Nº 1439 . 1/10 A 7/10/2020 . CONT. E ILHAS: €3,70 .

SEMANAL
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

JOSÉ NEVES OPERAÇÃO LEX

“MUITO DINHEIRO JOÃO PINTO
QUE VAI PARA VAI PEDIR
A FILANTROPIA NOVA SENTENÇA
É DESPERDIÇADO”

GRIPE COVID-19

COMO RESISTIR
À DUPLA AMEAÇA
OS SINTOMAS CONFUNDEM-SE, MAS A MISTURA
.
DAS DUAS DOENÇAS FAZ AUMENTAR O RISCO.
.
SAIBA O QUE FAZER PARA SE PROTEGER QUEM DEVE SER VACINADO
OS SINAIS A QUE DEVE PRESTAR ATENÇÃO
GUIA PARA ENFRENTAR O INVERNO
 VISÃO
1 OUTUBRO 2020 / Nº 1439

14 Entrevista: Sefi Shaked

RADAR
18 Raios X
20 A semana em 7 pontos
22 Holofote
23 Inbox
D.R.

24 Almanaque
25 Transições
26 Próximos capítulos
28 Imagens do mundo
54 Operação Lex: o fator João Vieira Pinto
Dois juízes do Tribunal da Relação de Lisboa foram acusados de terem
escolhido o magistrado que ia julgar um recurso de José Veiga. Sete anos
FOCAR depois, João Vieira Pinto, único condenado nesse processo, deverá pedir
a revisão da sentença e vai avançar com pedidos de indemnização
64 Autárquicas, o embrião
da frente de direita?
70 EUA: a juíza de Trump 34 Gripe e Covid-19, a conjugação explosiva
74 Tecnologia: o seu telemóvel Médicos e especialistas explicam as principais dificuldades em distinguir
os protagonistas deste inverno, revelam como podem os portugueses
anda a espiá-lo? prevenir-se, quem deve ser vacinado e porquê, e como estão as estruturas
76 Futebol: os lobos de saúde a preparar-se para os meses que se aproximam
falam português
78 Comportamento:
sons do escritório 46 “Corremos o risco de haver pessoas que ficam para trás”
José Neves, o fundador da Farfetch, criou uma fundação para dar
o seu contributo na criação de competências para a revolução digital.
VAGAR Em entrevista à VISÃO, confessa-se preocupado com a possibilidade
de virmos a enfrentar “um grave problema de empregabilidade”
80 Agatha Christie:
a eterna rainha do crime
86 Pessoas 58 E se a globalização tiver começado há mais de mil anos?
Essa é a teoria que a historiadora Valerie Hansen defende num livro que
é também uma fascinante volta ao mundo. Uma teoria que tem na base
VISÃO SETE o desembarque dos exploradores vikings no Canadá e no México,
89 À descoberta de Oleiros cinco séculos antes de Cristóvão Colombo

OPINIÃO
10 Mia Couto
12 Rui Tavares Guedes Online W W W.V I S A O . P T
27 António Pires de Lima Últimos artigos no site da VISÃO
72 José Carlos de Vasconcelos
88 Capicua
114 Ricardo Araújo Pereira

Luís Delgado Hugo Silva Inês Margarida Martins

LINHAS DIREITAS MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA MODA
Debate imperdível Venda de casas As tendências
Interdita a reprodução, mesmo parcial, já tem vencedor – a oportunidade (também) falam
de textos, fotografias ou ilustrações sob é agora português
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais.
Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

4 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

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contactos, melhorámos relações,
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continuar a fazer nos próximos tempos.

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REPORTAGEM PARA
QUANDO O BANCO ALIMENTAR É A ÚNICA SAÍDA
QUEM FICOU SEM TRABALHO COM A CRISE
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

COSTA IMOBILIÁRIO

Nº 1438 . 24/9 A 30/9/2020 . CONT. E ILHAS: €3,70 . SEMANAL

VICENTINA OS NOVOS
PARQUE ESCRITÓRIOS
NATURAL PARA
AMEAÇADO
Ç ENFRENTAR
PELO PLÁSTICO A PANDEMIA

MARQUÊS DE POMBAL
A HISTÓRIA SECRETA
AS REVELAÇÕES SURPREENDENTES DE UMA NOVA BIOGRAFIA, COM ACESSO A DOCUMENTAÇÃO INÉDITA

RAPTOU A MULHER COM QUEM SE CASOU • A MORTE PREMATURA DO PAI E O TRAUMA

DAS DESAVENÇAS COM A MÃE • A ENTRADA SEM CURRÍCULO NA ACADEMIA • O “MONSTRO”
QUE TAMBÉM FOI UM “HUMANISTA” • A LONGA LUTA COM OS TÁVORA E O ÓDIO AOS JESUÍTAS

VISÃO Açores com os melhores trilhos Uma investigação fundamental

Qualquer época do ano é boa para descobrir os
Açores, um arquipélago que, além da sua beleza
A
ímpar e de ser considerado um exemplo mundial
de sustentabilidade e de proteção ambiental, possui
hoje uma vantagem acrescida: é um dos locais mais
seguros do planeta. A melhor forma de conhecer
cada uma das suas nove ilhas é a pé, caminhando
pelos muitos trilhos, cada vez mais bem sinalizados.
É esse um dos focos de mais uma edição especial
VISÃO Açores (a quarta em quatro anos), em que
V que, aos proprietários de explorações,
o jornalista Miguel Judas relata muitas das suas
experiências pelos percursos pedestres, que nos
permitem descobrir a beleza intensa do arquipélago.
Esta edição de luxo – com fotografias do premiado Joel Santos, entre outros –
conta ainda com várias crónicas do escritor açoriano João Gago da Câmara e,
entre centenas de ideias e sugestões para planear uma viagem às ilhas, damos
uma atenção especial às Casas Açorianas, uma rede pioneira no setor do
turismo rural. Com uma vantagem suplementar: na maior parte destas casas,
o visitante tem a oportunidade de sentir os Açores por dentro, como se fosse
um habitante local, de forma genuína e embrenhada no espírito do território.
Uma edição para guardar e partilhar.
sobre uma das maiores figuras
da nossa História
Manuela Gomes, Porto
COSTA VICENTINA
É triste ver como a participação cívica de
Juntos pelo Sudoeste e da associação
Zero [V1438] é completamente ignorada
quer pelo Governo quer pela Assembleia
da República. As petições em defesa do
ambiente caem em saco roto enquanto
tudo é tolerado.
António Nicolau Barbosa, Porto
MANUEL VINHAS
Chego do Brasil e amigos entregam-me
o exemplar da revista VISÃO que tinha
como capa Manuel Vinhas [V1435]. Em
memória do meu grande amigo, que era
meu hóspede no Rio de Janeiro, devo
dizer que a reportagem é justa com a
dimensão da personalidade do Manuel,
mas peca por usar a sua postura no que diz
respeito a Angola. Aproveita-se deste facto
para criticar o regime, como se ele fosse
oposição. Fui com ele, por mais do que
uma vez, visitar o professor Marcelo e ele
almoçou em minha casa, com o Presidente

VISÃO Júnior Miúdos em força

Tomás. O seu encanto com o golpe
comunista iludiu-o durante poucos meses.
Era um democrata e plural nas relações,
como o são as pessoas civilizadas.
Aristoteles Drummond, Monte Estoril
Já está à venda a edição de outubro da irmã mais ESCLARECIMENTO
nova da VISÃO, cuja leitura é recomendada pelo No seguimento do artigo Auditoras:
Plano Nacional de Leitura 2027. Uma revista feita Vítimas ou Vilãs? (V1437), esclarece-
para miúdos e com miúdos: a VISÃO Júnior tem se que, em finais de 2001, quando foi
conhecido o escândalo da Enron, a
um novo grupo de jovens consultores que ajuda a Accenture (ex-Andersen Consulting)
escolher os temas, envia ideias, dá opiniões sobre tinha já atividade independente da Arthur
a revista. Além disso, tem muitas secções abertas Andersen, em resultado do processo
à participação de crianças e jovens, que todos os judicial de cisão da Andersen Worldwide.
meses podem colaborar e aparecer.
Contactos
visao@visao.pt
Miúdos a Votos de regresso As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome, morada
A eleição dos livros mais fixes pelos alunos portugueses
e telefone. A revista reserva-se
vai realizar-se este ano pela quinta vez, uma iniciativa da
o direito de selecionar os trechos
VISÃO Júnior e da Rede de Bibliotecas Escolares, que,
que considerar mais importantes.
no ano passado, contou com a participação de mais de
16 mil crianças e jovens. Uma das novidades deste ano
é que os alunos podem também ser eles próprios os NOVA MORADA
repórteres desta iniciativa, contando a todos os leitores CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
da VISÃO Júnior o que se vai lá passando. Qualquer – Quinta da Fonte,
Edifício Fernão Magalhães, 8,
escola pode participar – basta inscrever-se em
2770-190 Paço de Arcos
www.visaojunior.pt. As inscrições já estão abertas.

6 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

CAMINHO
SEGURO
É TEMPO DE AÇORES

UNIÃO EUROPEIA

Fundo Europeu de
Desenvolvimento Regional
 MAPEADOR DE ILHAS
O peso do sonho
POR MIA COUTO
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO
H
á muito que não tenho um pesadelo –
queixa-se a paciente.
O médico escuta, impávido. Treinados
em ouvir os doentes, os médicos estão
especializados em deixarem de se ouvir a
si próprios. A mulher olha o terapeuta de
soslaio. E vê, pela centésima vez, o médico
juntando os dedos sobre a cana do nariz
para depois esfregar os olhos, fazendo
balançar os óculos diante do rosto.
O médico exibe então uma inesperada fragilidade
como no momento em que as girafas se debruçam
para beber. E a doente interroga-se, quase sorrindo.
Que raio, lembrar-se agora das girafas.
Engana-se a paciente, ocupada que está em se
escutar a si mesma. O gesto do médico não é de
cansaço. O homem aproveita sim para espreitar os
8 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
apontamentos da sessão anterior. E ali surge, em
letra que agora lhe custa decifrar, o registo de uma
estranha culpabilidade da paciente. Assegurou a
mulher que seria por causa da Humanidade que as
estrelas tinham escurecido a ponto de quase não se
distinguirem no escuro do céu. O médico intercedeu
a favor da Humanidade, invocando a poluição como
a razão daquele embaciamento celestial.
– As estrelas ficam assim por causa dos fumos –
disse o médico
– Há coisas que sujam mais do que os fumos –
declarou a mulher com convicção.
– Como por exemplo? – indagou o médico,
curioso.
– Por exemplo, não sonhar.
Todos os povos nomearam as estrelas, explicou
então a paciente. E deram-lhes nomes mesmo antes
de designarem os lugares terrestres. Foi o que ela lhe as-
segurou: as constelações foram batizadas muito antes de
se dar nome aos deuses e aos bichos.
– Pode ter a certeza, doutor, à noite, quando olhamos
o céu estamos lendo o mais antigo de todos os livros.
Tudo isto confessou ela, foi o que lhe disse o pai que
era um homem letrado e que a tinha avisado para não
se casar com este homem com quem ela há anos via
escurecer a sua própria vida.
O médico saltou umas folhas do bloco. Era longo o
registo das declarações da última consulta. E o assunto
não variava: as estrelas. Esse gosto de se procurar nos
astros começou quando, em menina, lhe ofereceram um
caleidoscópio. Não foi boa ideia. Ficou dias espreitando
pelo tubo mágico. E de nada mais ela se ocupava. Era
preciso dar-lhe água e comida à boca. A menina ficou
bêbeda, assaltada por essa incurável embriaguez de ver
o infinito. Deitada no sofá, apoiava o caleidoscópio, ora
num olho ora noutro. Para ver o infinito basta um olho,
comentava, entusiasmada. À noite adormecia apenas com
um olho fechado. Era o olho por onde ele sonhava.
Era este o registo da sessão passada. O médico fecha
o bloco de notas, suspira a convocar paciência, acerta
as hastes dos óculos de aro fino e volta a contemplar
a paciente.
– Há muito que não tenho pesadelos –
renova ela a queixa.
– Quer falar sobre esse assunto? –
pergunta ele à paciente
Quem se suicida
– Que assunto? – indaga a doente. não faz ruído
– Os pesadelos – esclarece o médico. ao sair da vida,
– Os pesadelos não são um assunto.
Eu sou o único assunto, doutor.
disse ele.
– Não sei – declara o médico. O suicida nada
E prossegue, inclinando-se para mais
próximo da sua cliente: – Da última vez,
proclama.
falou-me nas estrelas e nos sonhos. Pois Apenas desiste
voltemos ao assunto de hoje. Fazem-lhe
falta os pesadelos?
– Sem eles não sei viver, doutor.
A mulher poderia ter justificado: o que valem as
estrelas e os sonhos se a vida já é um pesadelo? Mas não.
Ela tem outras razões, mais mundanas: no dia em que
deixasse de ter pesadelos, nada mais teria para conversar
com o marido. Depois de ambos acordarem, e antes
de ele sair de casa, há um único momento em que o
marido a escuta. Quer saber dos sonhos dela. E então
a esposa senta-se na poltrona da sala como se fosse
outra vez noiva, faz rodar o pijama como se fosse um
longo vestido branco e inspira fundo antes de revelar o
seu último pesadelo. Tudo mentira, tudo inventado em
longas insónias, com o mesmo esmero que ela coloca na
arrumação e na limpeza da casa.
O marido escuta e ela vê os dedos dele crisparem-se,
os olhos dele a escurecerem como um céu atravessado
por uma tormenta. Há então nela um prazer quase físico
em ver como o medo que ela convoca vai tomando conta
do marido. E tudo aquilo é tão real e tão voluptuoso que
ela sente, no medo que ele exibe, uma declaração de
amor que há muito deixou de escutar. E acredita, por um
instante, que o marido se entrega frágil e receoso não
por causa do pesadelo, mas padecendo desse temor que
atravessa todos os que amam e são amados.
Tudo isso ficou suspenso quando, há um mês, ela
relatou, no exíguo espaço da cozinha, o seu derradeiro
sonho. Era uma manhã igual às outras, o marido
preparava-se para o ritual da partida, com a eficiência
que os homens gostam de exibir.
– Sonhei que morrias – disse ela.
– Com o vírus? – perguntou o marido.
E então ela colocou as mãos frias sobre os braços dele
e suspirou, quase em lágrimas.
– Suicidaste-te, marido. Naquela árvore – suspirou
ela, apontando para o quintal.
– Mas aquilo é um arbusto, fui eu que o semeei –
declarou o marido.
A mulher argumentou: também ela acreditava na sub-
missa fidelidade das plantas. Até à noite passada, em que
ela viu, e jurou por todos os santos ser verdade, o arbusto
tornar-se subitamente uma árvore. Ela então viu o ma-
rido subir aos ramos sem apoio de escada para depois se
enforcar sem que nenhuma corda houvesse. E escutou,
com os ouvidos que a terra irá comer, o corpo do marido
tombar com um estrondo tal que a cidade toda parou,
acreditando tratar-se do fim do mundo.
O marido ouviu o pesadelo e não
pareceu atemorizado. Sacudiu a cabeça e
contestou a veracidade do relato. Quem
se suicida não faz ruído ao sair da vida,
disse ele. O suicida nada proclama. Apenas
desiste. Foi o que ele disse para, depois,
se levantar de forma acintosa e perguntar,
com a sua habitual arrogância, se a esposa
não tinha nada melhor para lhe oferecer.
Como se ela se mantivesse encolhida
no silêncio, o marido bateu a porta com
a habitual violência. E desapareceu na
ruidosa ausência de sempre.
– Foi este o meu último pesadelo, e foi
tão real como se fosse eu aquele arbusto
convertido em árvore – admite agora a paciente, de olhos
postos no chão do consultório.
Como não há reação do médico, a mulher ergue o ros-
to, inquisitiva. E vê o homem com a cabeça afundada nos
ombros, a bata branca enrugada entre as mãos nervosas.
– O que se passa, doutor?
– Como é que adivinhou? – balbucia o médico. – Esse
é o meu pesadelo – diz o terapeuta.
E a emoção faz com que as restantes palavras se
travem no peito. O bloco de notas tomba-lhe das mãos.
O homem levanta-se para repetir: – É meu, esse pesadelo
é o que me rouba o sono todas as noites.
A paciente vê o médico desabar. De repente, a
fragilidade que ela tanto queria ver no marido está
patente na figura do médico, até então sempre seguro,
sóbrio, e esse homem que era pago para escutar os outros
não tinha quem o escutasse.
A doente junta os dedos sobre a cana do nariz, esfrega
lentamente os olhos e pergunta ao médico:
– Quer falar sobre o assunto, doutor? visao@visao.pt
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 9
 OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
A clareza resolve crises e a
transparência salva vidas
P O R R U I T A V A R E S G U E D E S / Diretor-executivo
1

A
s declarações do ministro dos ser alvo de pressões, de qualquer dos lados.
Negócios Estrangeiros e do Pre- É desse bom exemplo de respostas que
sidente da República em resposta começamos a precisar urgentemente face
ao embaixador dos EUA foram à pandemia. Por uma razão simples: é a
exemplares, tanto pela rapidez única forma de se conseguir criar um clima
como pela clareza da mensagem. que permita ter a comunidade consciente
Quando o homem que em Lisboa do que se deve ou não fazer e a compreen-
representa a administração nor- der, sem grandes dúvidas, as medidas que
te-americana – não por ser um diplomata precisam de ser tomadas. Esta era uma so-
de carreira, mas apenas como recompensa Um estudo publicado na revista cien- lução básica, mas
pelos serviços prestados no apoio e no fi- tífica The Lancet sobre as ações de vários demasiado gasta
nanciamento da campanha presidencial de governos face à pandemia, em diversas ao fim de oito me-
Donald Trump, em 2016 – tem o desplante regiões do mundo, identificou os fatores ses de pandemia.
de exigir, numa espécie de ultimato, numa que, pela experiência registada até agora, É preciso procurar
entrevista ao jornal Expresso, que Portugal são determinantes para se poder man- alternativas
deveria afastar os chineses da futura rede ter a sociedade em funcionamento sem
5G, bem como, entre outras coisas, de uma se ser obrigado a recorrer, novamente, a
eventual gestão do Porto de Sines, tanto confinamentos com resultados económi-
Augusto Santos Silva como Marcelo Rebelo cos trágicos. Um dos principais fatores a
2
de Sousa (e uso aqui a ordem cronológica que os autores do estudo chegaram foi o
das declarações e não a da hierarquia de da necessidade de se gerar um clima de
Estado) foram de uma assertividade crista- confiança na população, antes de se avan-
lina: em matéria de soberania çar para novas medidas
nacional, Portugal decide por restritivas ou de reabertu-
si próprio e não admite in- É disto que ra. Segundo afirmam, só
terferências de ninguém. precisamos há uma forma para se criar
Ambos sublinharam que, mais vezes: esse clima: com partilha
nessa matéria, o País tem o de informação constante,
direito e o dever de escolher declarações baseada em dados fiáveis e
o seu caminho, no quadro claras, relevantes. Ou seja: trans- A mistura
explosiva dos
da sua História e do seu concretas, parência absoluta, tanto
vírus da gripe e
contexto político e geográfi- sobre a evolução de novos
co, mas sem aceitar pressões sem direito casos como sobre os focos
da Covid-19 é a
melhor opção. Mas
de aliados ou de parceiros a segundas de contágio e as respostas sem precisar de
comerciais, resolvendo, num interpretações do sistema de saúde. recorrer a imagens
instante e sem rodeios, uma É preciso também que tão realistas
eventual crise diplomática. É as pessoas compreendam
disto que precisamos mais vezes: declara- a razão por que as medidas são tomadas,
ções claras, concretas, sem direito a segun-
das interpretações e que, por isso mesmo,
com informação clara e transparente,
para se evitar, por exemplo, que ninguém
3
são esclarecedoras e não criam qualquer perceba porque pode haver público numa
equívoco ou mal-entendido na opinião tourada mas não num estádio de fute-
pública. bol. Ou até, no limite, porque pode haver
Mais: são declarações que, pela sua assistência num estádio durante um con-
clareza, marcam também um rumo para o certo, mas não num jogo...
futuro. Indicam os princípios norteadores Sem informação transparente, dizem
e as respetivas linhas vermelhas, de uma os autores do estudo, as pessoas tendem
forma simples e direta – e serão, por isso, a não respeitar as regras porque, simples-
várias vezes lembradas, não tenho dúvida, mente, não acreditam nelas. Ao mesmo
nos decisivos tempos que se avizinham. tempo que a transparência também ajuda
É esta a melhor
O confronto entre os EUA e a China vai, a eliminar regras desnecessárias, porque solução: além dos
com toda a probabilidade, agravar-se nos rapidamente se percebe que não fazem vírus, a imagem
próximos anos, seja qual for o próximo in- sentido. E, no fim, a confiança ajuda a sal- também poder
quilino da Casa Branca, e Portugal voltará a var vidas. rguedes@visao.pt ser vista como
um gráfico de
contágios. É isto!

10 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

CANAL 63

16 200 | LOJAS MEO | MEO.PT

Sefi Shaked Estratega e gestor de campanhas eleitorais

Se Marcelo tivesse
investido em redes sociais
o mesmo que investiu
em ações de proximidade,
em relações públicas
ou a ir à praia, poderia
chegar a 70% ou 72%
nas presidenciais
O C TÁV I O L O U S A D A O L I V E I R A MARCOS BORGA

12 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 S
Sefi Shaked nasceu há 46 anos em
Telavive (Israel). É especialista em
comunicação política e já conduziu
dezenas de campanhas em várias partes
do globo. Há uma década, por exemplo,
trabalhou com Benjamin Netanyahu
e, em 2018, foi consultor de Salome
Zourabichvili, a primeira mulher a
chegar a chefe de Estado num país do
Cáucaso (Geórgia). Vive em Cascais há
três anos – diz que Portugal é a sua
segunda pátria –, acompanha com
atenção a política nacional e admite ver
potencial em vários protagonistas.
Até nos mais controversos...
Como acha que Netanyahu está a
lidar com as acusações de corrupção?
O Netanyahu de 2009 não é o
Netanyahu de hoje. Se olharmos ao
longo do tempo, podemos dividir as
críticas. Tem uma avaliação muito boa
quando se trata de relações externas, de
posicionar Israel como uma potência,
fez a paz com os países do Golfo... Num
mundo em que os líderes são fortes,
são bullies, a maior parte dos israelitas
estará feliz por ter alguém como ele.
Internamente, está a ter um mau
desempenho e a cometer muitos erros.
Que erros?
Está a dividir as pessoas. Havia duas
formas de liderar quando começou
a Covid-19. Ele poderia ter sido o
pai da nação, a pessoa a quem todos
recorreriam, o adulto, e parado de
falar do julgamento, das acusações...
Eu aconselhei-o, no Yedioth Ahronoth,
um dos maiores jornais de Israel, há
dois meses, a rapar o cabelo (porque
os média estão sempre a gozar com
o penteado dele), a acordar às 6h,
a reunir os empresários e homens
mais inteligentes das tecnologias e
do desenvolvimento e a encontrar
soluções para a economia e para a
Covid. Aconselhei-o a juntar as pessoas
e a dizer “Estou a lutar contra o vírus,
não há judeus ou árabes, sefarditas ou
asquenazes, ricos ou pobres, esquerda
ou direita”. Israel é muito pequeno para
um comportamento à Trump.
Netanyahu tem condições para
continuar a ser primeiro-ministro?
Ele continua a ter 29% das intenções
de votos. O segundo, Naftali Bennett,
está nos 20% e a crescer. Não sei o que
esperar, mas estou muito desapontado
com esta divisão e o que me faz gostar
ainda mais de Portugal é que, havendo
querelas políticas, com a Covid, as
pessoas estiveram juntas e a oposição foi
mais cooperante do que na maioria dos
países.
Seria preferível o país ir a eleições ou,
pelo menos, o Likud encontrar uma
nova liderança?
Se fossem tempos normais, não haveria
alternativa a novas eleições. Neste
momento, quando temos oito mil casos
diagnosticados por dia, numa população
de nove milhões, não vejo condições
para isso.
Atribui algum valor ao facto de Israel
ter sido reconhecido por outros dois
estados árabes (Bahrain e Emirados
Árabes Unidos), isolando mais o Irão
e os xiitas?
Sim, é um grande feito, mas,
considerando a terrível crise da Covid
e da economia, é como uma mulher
bonita a pôr batom no Titanic.
Acredita que Netanyahu vai
suspender a anexação de colonatos
na Cisjordânia, como prometeu?
Nem Netanyahu sabe o que vai fazer
sobre isso. Pelo seu comportamento,
fará o que for adequado aos seus
interesses. E repare que não estou a
dizer aos interesses de Israel.
Numa campanha em Israel, quais
são os temas em que mais se foca?
Segurança, segurança e segurança?
Sim, sim e sim! Qualquer criança
israelita ouve sirenes no Dia da Memória
do Holocausto e tem de se levantar para
homenagear os seis milhões de judeus
mortos. Duas semanas mais tarde, há o
Dia da Memória dos Soldados... Desde
que nasces, és educado no pressuposto
de que estás em perigo, todas as famílias
judias têm parentes que morreram na
guerra. E, claro, temos a história da
nação – Israel foi fundada em 1948,
foi atacada, quase perdeu para o Egito
e para a Síria em 1973, teve ataques
terroristas por toda a parte. Portanto,
a segurança é uma grande questão. A
esquerda sempre foi considerada mais
fraca quando se trata de segurança por
ser mais liberal, menos fanática, e é por
isso que a direita tem vindo a ganhar.
E os outros temas?
A economia é muito importante. Os
preços em Israel são terrivelmente altos
e os salários, não. Digamos que o salário
médio é o dobro do salário médio em
Portugal, mas os preços são cinco vezes
mais altos. Preferia ser um português a
ganhar 800 euros do que um israelita
a ganhar 2 000. Infelizmente, porque a
segurança é um assunto tão premente,
ninguém vota a pensar na economia.
É esse o segredo de Netanyahu,
o discurso securitário?
Ele tem algumas armas secretas. É um
dos líderes mais inteligentes que conheci
e é um grande orador. Garante muito
respeito internacional a Israel, excluindo
os últimos três meses. E o irmão, que
era das forças especiais e perdeu a vida
no Uganda, em 1976, foi morto como
um herói [numa missão no aeroporto
de Entebbe]. Portanto, quando se vê nas
notícias, a toda a hora, que alguém foi
esfaqueado ou que houve um ataque
terrorista, a maioria dos israelitas
vai para a direita. Não entendem que
uma solução pacífica talvez seja uma
alternativa melhor.
Acredita que esse efeito se verifique
na Europa Ocidental ou nos EUA?
A Europa Ocidental e os EUA merecem
respostas completamente diferentes. Na
Europa, por causa do fluxo de imigra-
ção, do crescimento das redes sociais e
dos resquícios dos problemas econó-
micos, vemos os populismos crescer.
Em Israel, sentimos que estamos em
estado de guerra permanentemente.
Todos os israelitas têm alertas especiais
no telemóvel, equivalentes ao Correio
da Manhã. O taxista está a condu-
zir e tu vês “Alguém foi esfaqueado”,
“Um assalto ali”... São nove milhões de
pessoas conectadas a um feed, a uma
sucessão de acontecimentos; se houver
um escândalo, toda a gente vai falar dele.
Toda a gente está na mesma narrativa.
É muito fácil controlar e manipular a
opinião em Israel.
Faz sentido que os líderes mundiais
apostem tanto nas redes sociais e
abdiquem dos meios tradicionais?
Há algo belo no facto de os líderes
comunicarem com o povo sem inter-
mediação, mas há pontos preocupantes,
porque os média são os guardiões da
democracia e já só relatam o que está
a acontecer a uma parte da população.
Mais gente vê o Facebook do que lê a
sua revista. Nunca teríamos Bolsonaro
ou Trump como líderes se não fossem
as redes sociais. Há dez, 15 anos, votá-
vamos para eleger um Parlamento, um
Presidente e também em reality shows;
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 13
agora, votamos todos os dias com likes.
Quem quer saber de ir às urnas? E, no
nosso feed, encontramos maioritaria-
mente pessoas que pensam como nós,
não temos outras perspetivas. As redes
sociais são a maior mudança que acon-
teceu ao mundo. Começaram bem, mas
estamos a ver o seu lado negro.
Em Portugal, há um líder populista
omnipresente nas redes sociais. Além
disso, o presidente do PSD, Rui Rio,
recusa dar entrevistas a jornais e
revistas e está sempre a tweetar. Que
tipo de riscos esta opção comporta?
Em termos de redes sociais, Portugal
está muito melhor do que a maioria dos
países. Há algo no País que eu admiro:
os portugueses não se deixam levar
por conversa da treta. Portugal é muito
pequeno para fake news. Vocês são mais
calmos, relaxados, é muito difícil irritar
um português. Não vejo um perigo
como um Trump ir a votos e arrebanhar
60% das pessoas através das redes
sociais. Por outro lado, vejo muitos
políticos cá a subaproveitarem ou a não
usarem as redes, de todo. Por exemplo,
o Presidente: eu vejo-o em Cascais a
toda a hora, a apertar a mão às pessoas,
é fantástico, mas, se estivesse a trabalhar
com ele, quereria traduzir esta incrível
campanha popular, que nunca tinha
visto em nenhum lado, para as redes
sociais, porque o tempo é limitado.
Encontramos 100 pessoas por dia e
podemos fazer isso com um milhão de
pessoas por dia na internet. Se este tipo,
se Marcelo tivesse investido em redes
sociais o mesmo que investiu em ações
de proximidade, em relações públicas
ou a ir à praia, poderia chegar até 70%,
72% nas presidenciais.
Há algum partido com que não
trabalhasse em Portugal?
Não sei o suficiente para dizer. Penso
que todos os partidos cá podem
melhorar. Parece-me que todas as
campanhas são feitas com base na
intuição dos candidatos, ao invés de na
monitorização das redes sociais e de
estudos adequados. Veja-se o Chega.
Ele [Ventura] mobilizou a sua base até
9%, 10%, mas parece que atingiu o
máximo. Devia parar de usar narrativas
sobre aborto, racismo e misoginia –
com as quais eu nunca colaboraria, por
ultrapassar os meus limites – e ser mais
anti-establishment. Devia falar mais dos
problemas de segurança. Se eu fosse
o Chega, 90% das minhas mensagens
seriam sobre como ajudar os polícias
a ganharem o dobro e faria com que
cada português, antes de pressionar
14 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
Quais são as regras
das redes sociais
para Trump?
Entreter, tornar-se
parte da rotina dos
seus apoiantes. (...)
Biden está a tentar
ser cool e não
funciona. É a coisa
mais aborrecida
que podemos ver
no feed
o botão para ativar o seu alarme
noturno, pensasse no Chega. Depois, os
outros 5%, 10% seriam sobre os salários
dos médicos, sobre corrupção...
Conseguiria pegar em Ana Gomes
e ganhar as presidenciais?
Olhando para os números, seria muito
presunçoso dizer que ganharia, mas
conseguiria adicionar 5% ou 10%
à votação dela facilmente, apenas
melhorando questões técnicas nas
redes sociais e com um estudo: quem é
a sua base, o que deveríamos dizer-lhe
para os manter mobilizados e quem
são aqueles que não pensam votar nela
agora, mas que, se ela disser a coisa
certa, poderão votar.
Não seria prudente que dissessem
a Trump “saia da internet, deixe que
alguém gira as redes”?
Trump é um dos maiores especialistas
mundiais em redes sociais. Qualquer
pessoa que o substituísse não seria tão
boa. Como diziam na campanha de
2016, deixem Trump ser Trump. Quais
são as regras das redes sociais no caso
dele? Entreter, tornar-se parte da rotina
diária da sua base. A base de Ventura,
quando abre o Facebook, quer ver o
que ele disse naquele dia, é como uma
telenovela. Até os inimigos adoram ver
o que se passa.
Estamos a reduzir a política a
entretenimento.
É um dos problemas... Aliás, mesmo
antes das redes sociais, podíamos ver
celebridades como Ronald Reagan
a serem eleitas. Como disse Roger
Stone, um gestor de campanhas dos
EUA, a política é show business para
pessoas feias. E, agora, algumas delas até
são bem-parecidas [risos]!...
Se trabalhasse com Trump, insistiria
na bipolarização da sociedade,
assente em questões étnicas?
Recusaria trabalhar com Trump
exatamente por essas razões. Agora,
aconselharia Biden a fazer algo
completamente diferente do que está
a fazer.
Como assim? Uma das fraquezas que
lhe apontam é a falta de carisma.
Ele esforça-se para ser o Bill Clinton
de 1992, ao utilizar expressões como
“Yeah, man!”, e não funciona... Está a
tentar ser cool e não dá. Pode ver-se
como falta de carisma, eu vejo como
gestão inadequada. O tipo é a coisa mais
aborrecida que podemos ver no feed.
Se fosse o seu gestor de campanha, iria
até ao fim com este aborrecimento,
porque aborrecidos eram os EUA antes
de Trump, da Covid e dos motins.
Eu escondê-lo-ia até à eleição, todos
os meus spots televisivos seriam sobre
2025, com a praia em Malibu, as pessoas
sem máscaras, tudo tranquilo e depois
“Biden: porque os EUA merecem um
presidente aborrecido”. A campanha de
Biden é pior do que a de Hillary, e Biden
é um candidato pior do que Hillary.
Qual foi o segredo para conseguir que
uma mulher, Salome Zourabichvili,
se tornasse a primeira chefe de
Estado de um país do Cáucaso?
Foi mostrar a verdadeira personalidade
dela, enfatizar as vantagens de eleger
uma mulher, especialmente na Geórgia,
realçar que ela estava familiarizada com
o Governo em funções, que era melhor
do que o anterior, e fizemo-lo em três
semanas...
Qual o político português com quem
mais gostaria de trabalhar?
Só conseguiria responder depois
de conhecer os políticos.
Não conhece nenhum?
Conheço um, o meu amigo Ricardo
[Baptista] Leite, mas todos aqueles de
que ouvi falar são interessantes: Ana
Gomes, pelo seu historial e por ser
um grande desafio transformar o seu
sucesso em domínio das redes sociais
e na transmissão da mensagem certa.
Marcelo, que parece um bom tipo, por-
que seria divertido converter este amor
das ruas para as redes sociais. Quanto a
Ventura, há um ponto de interrogação.
Se for misógino e racista, não trabalharia
com ele; se não for e tiver sido rotulado
dessa forma – não sei o suficiente –,
então há um desafio estratégico: tirá-lo
das franjas e otimizá-lo para um candi-
dato mais mainstream. Contudo, com
este tipo temos de ser extremamente
cautelosos. ooliveira@visao.pt
Seja responsável, beba com moderação.


 
O perfil singular da terra, a força do sol, a expressão das castas,
os olhos de quem cuida, a espera, a minúcia, a dedicação,
a certeza de uma experiência genuína.
Tudo o que é único tem uma origem
e esta é Monção e Melgaço.
 RAIOS X

A net nunca dorme Com mais de 4,5 mil milhões de utilizadores

no mundo, a internet está em permanente ebulição.
Veja o que acontece num minuto na World Wide Web

M A N U E L B A R R O S M O U R A mbmoura@visao.pt

Empurrão da pandemia
O mundo mudou, definitivamente, em 2020.
A pandemia Covid-19 mandou drasticamente em quase
59%
O número de utilizadores regulares
da internet está a crescer de forma muito
todos os aspetos da vida, que passou a ser muito mais acelerada. Em abril de 2020, estima-se
vivida online. Tudo ficou ainda mais dependente que 59% da população mundial,
da internet. E a oitava edição do estudo Data Never o que representa 4,57 mil milhões
Sleeps (Dados Nunca Dormem), da Domo, empresa de pessoas, esteja ligada à rede.
norte-americana de software, mostra-nos que a quantidade Trata-se de um aumento de 6%
de dados criados por minuto não para de aumentar. relativamente a 2019.

MICROSOFT 208 333 YOUTUBE 479 452

69 444 TEAMS PESSOAS
PARTICIPAM
REGISTA
O UPLOAD DE
UTILIZADORES
ENVOLVEM-SE COM NETFLIX
CANDIDATURAS CONECTA
DE EMPREGO
ATRAVÉS DO 52 083
EM REUNIÕES
NO 500 CONTEÚDOS
NO
FAZ O
STREAMING DE
HORAS
LINKEDIN UTILIZADORES ZOOM DE VÍDEO REDDIT 404 444
HORAS DE VÍDEO

347 222 319

STORIES
SÃO POSTADAS NO 2020 NOVOS UTILIZADORES
REGISTAM-SE NO
INSTAGRAM Um minuto TWITTER
na internet
CONSUMIDORES 1 388 889
GASTAM 860 MIL EUROS CHAMADAS
EM COMPRAS ONLINE DE VÍDEO OU DE VOZ
REALIZADAS

TIKTOK 3 262
EUROS GASTOS EM
É INSTALADO
2 704 APLICAÇÕES
VEZES
150 MIL SÃO UTILIZADORES
MENSAGENS SPOTIFY PARTILHADAS
AMAZON TROCAM
TROCADAS NO DISPONIBILIZA 147 MIL DESPACHA 41 666 667
FACEBOOK 28 FOTOS NO
6 659 MENSAGENS NO
MESSENGER MÚSICAS NOVAS FACEBOOK ENCOMENDAS WHATSAPP

16 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 7
PONTOS DA SEMANA
POR
MAFALDA ANJOS*
JOSÉ CARLOS CARVALHO
HAJA PACIÊN… SANIDADE!
“Uma crise política agora era absolu-
tamente insano”, bradou um António
Costa com cada vez menos razões para
o otimismo de sempre. Já se sabe que
todas as crises políticas são insanas,
mas cada uma é insana à sua maneira.
Desde a semana passada, quando saí-
ram as teses do PCP, em que ficou claro
que o partido vai mesmo bater a porta a
uma nova geringonça, que se fala cada
vez mais em crise política e de fim de
ciclo. Há um certo clima no ar que se
instala nestas alturas, como quando
Guterres saiu de cena desiludido com o
“pântano”. Um Parlamento pulverizado
que não garantia uma maioria e a apro-
vação de orçamentos e leis reformistas
– o de Guterres apesar de tudo, menos
do que este – e uma oposição pouco
disponível para “fazer o jeito” e colabo-
rar condicionaram de forma dramática
a governação. As autárquicas crispadas
foram a gota de água que o empurrou
para a saída. Um governo incapaz de
governar e reformar e um País fragi-
lizado e enfraquecido não serviam a
ninguém, considerou Guterres. Era
preciso uma clarificação para se andar
para a frente, e ele saiu do caminho e foi
à sua vida.
Hoje estamos, porém, em circunstân-
cias bem distintas, que não se prestam
a arrufos e batidas com a porta. O País
enfrenta uma pandemia sem fim à vista,
uma crise económica devastadora, e
desafios sociais e políticos inéditos.
Temos uma boia de salvação da Euro-
pa – os fundos de recuperação – que
só conseguimos agarrar devidamen-
te se por cá nos entendermos. Sobre
isso mesmo tem alertado o Presidente
da República, que se tem desdobrado
em apelos à esquerda e à direita para a
aprovação do Orçamento. Apelos estes
*Diretora
manjos@visao.pt
18 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
que tanto Jerónimo de Sousa como Rui
Rio recusaram. O PCP está preocupado
com a perda crescente nas sondagens e
quer afastar-se do PS, e Rui Rio apenas
devolveu na mesma moeda o discurso
que tem sido o do Primeiro-Ministro,
que tem recusado cabalmente entendi-
mentos à direita, porque a sua política é
de esquerda. Direitas fora, resta pois o
Bloco, que já traçou as suas linhas ver-
melhas e sente-se, graças a Costa, com
a faca e o queijo na mão para negociar e
ganhar terreno no xadrez partidário.
Mas, afinal, a quem interessa uma crise
política? A ninguém. Temos duas elei-
ções à porta em janeiro e em outubro, o
que complica o calendário, além da pre-
sidência da União Europeia no primeiro
semestre. Muito provavelmente, o PS
não deverá conseguir a maioria abso-
luta, o PSD e o PCP terão um mau de-
sempenho, o Bloco não deve sair muito
do mesmo sítio, o CDS encolherá ainda
mais (tal como o PAN) e só o Chega vai
cantar realmente de galo. Para ficar tudo
na mesma, mais vale aguentar mais um
ano e esperar para ver.
E o que é que tudo isto importa aos
portugueses, no meio dos problemas
prementes com que se deparam todos
os dias? Muito pouco ou quase nada.
Calculismos eleitorais, jogadas de basti-
dores, finca-pés, manobras oportunis-
tas – nada disto faz sentido nem revela
qualquer sentido de Estado, perante a
imensidão dos desafios com que o País
se depara. Convenhamos: em poucos
momentos da História foi tão impor-
tante como agora reunir um consenso
para andar para a frente. Não deem ar-
gumentos a quem nada mais faz senão
atirar contra os políticos. Pode faltar
tudo, incluindo a paciência, mas que
não nos falte a sanidade agora!
NÚMERO FRASE

1 000 000 Estamos numa época em

que isto está mais para
mortes por
Covid-19
os partidos dos extremos”
É sobretudo um marco Pedro Santana Lopes, sobre a sua saída
simbólico. Tal como se do Aliança e os maus resultados do partido.
antecipava, a pandemia Em entrevista à TVI24, recusou regressar ao PSD
chegou ao valor do e afastou-se da ideologia do Chega.
milhão de mortes,
em setembro. Desde
9 de janeiro, quando PREJUÍZOS
se registou a primeira
morte, até dia 29 em que
se chegou a este valor,
Carga pesada
passaram-se 263 dias. na TAP
Um milhão de mortes
Era o número que todos
com o mundo “fechado”,
temiam: o impacto de uma
com rigorosas medidas
quase total paralisação
de confinamento, e
durante dois meses e uma
com uma partilha de
tímida recuperação dos
informação inédita e a
voos posterior ascendeu
comunidade científica a
a um prejuízo do grupo
trabalhar em conjunto. ESCÂNDALO TAP, só no primeiro
Imagine-se onde
semestre, de 606 milhões
estaríamos se nada
tivesse sido feito, como
Trump, o homem sem qualidades de euros. Uma quebra
Apresenta-se como um empresário multimilionário de suces- de 62% nos passageiros
alguns advogam.
so, mas, em 11 de 18 anos fiscais, nunca pagou um cêntimo transportados deixou este
ao fisco. Donald Trump, que se tem recusado a revelar as lastro pesado. Dos 1 200
REDES suas declarações de impostos – algo que não acontecia com milhões autorizados pela
um Presidente desde os anos 70 –, pagou apenas 750 dólares Comissão Europeia, o
Dilema ou em impostos sobre os seus rendimentos no ano em que foi Governo planeava gastar
eleito, em 2016. A investigação do New York Times, publicada menos de 1 000 milhões
distopia antes do primeiro debate da campanha presidencial, trouxe para assistir a empresa,
anunciada? novas revelações esclarecedoras. “As suas declarações
mostram um empresário que recebe por ano centenas de
mas até ao momento já
foi emprestado metade
O recente documentário milhões de dólares, mas que, mesmo assim, acumula perdas desse valor. Aguarda-
da Netflix, The Social crónicas que usa de forma agressiva para evitar o pagamento se agora pelo plano
Dilemma, aborda com de impostos”, pode ler-se na reportagem. Em circunstâncias de reestruturação,
clareza arrepiante a normais, nenhum político resistiria a isto. Mas estas não são que vai incluir um
forma como as redes as circunstâncias: estamos na América, em 2020. E por isso, redimensionamento da
sociais estão, de forma mais esta prova da absoluta ausência de ética e de compe- companhia aérea, com
deliberada, a transfor- tência pode não ser suficiente para retirar da Casa Branca o menos trabalhadores, voos
mar a Humanidade em Presidente norte-americano mais incapaz que o mundo já viu. e rotas.
viciados numa tecnologia
que nos deprime e nos
faz mal, isola em bolhas
ESCOLAS
e condiciona nas nossas
ações. Percebe-se bem
como, sem regulação
Funcionários, precisam-se
e um travão urgente, a Um novo relatório com base os vários alertas sobre
distância que separa o nos testes PISA revela que esta lacuna nas escolas,
mundo de tornar-se uma Portugal está no terceiro sobretudo em tempos de
distopia de contornos ini- lugar na lista dos países pandemia, quando são mais
magináveis é muito mais com maior escassez de necessários para ajudar na
pequena do que pensáva- recursos humanos no fiscalização e higienização.
mos. Sobretudo quando ensino público, graças Esta semana, o Governo
estamos perante uma à falta de funcionários finalizou a contratação de
pandemia. É obrigatório nas escolas. Tornam-se, mais 1500 funcionários
ver, refletir e agir. pois, mais prementes para as escolas.

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 19

 HOLOFOTE

George E. Glass Partir a loiça toda

EM PLENA GUERRA
Pontos de Apoiante de
pressão Trump
Não é a primeira
vez que os EUA, em COMERCIAL COM A Amante da
Natureza, de
guerra comercial
com a China,
CHINA E A MENOS caça e de futebol
norte-americano,
mostram estar
atentos à presença
DE DOIS MESES DAS George Edward
Glass, 60 anos,
Outra vez o 5G daquele país em ELEIÇÕES NOS EUA, O chegou a Lisboa Homem de
Desde que chegou
a Portugal, em
gou Portugal. Num
ano, houve, pelo EMBAIXADOR NORTE- no verão de 2017.
O representante
família, católico
cató
Eagles
e fã dos Eag
2017, o embaixador
ador menos, três sinais
de luzes a Lisboa. AMERICANO EM da administração
Trump é um
“Pai, Marido,

PORTUGAL FAZ VOZ

norte-americanono Orgulhoso de
Em fevereiro de empresário de ser ambos”: é a
nunca tinha sido
do
2019, Ajit Pai, Lake Oswego, no
tão verbal no
separar de águasas responsável GROSSA POR CAUSA DO Oregon. Antigo
descrição que
próprio
faz de si própr
5G. MAS NÃO SÓ
do regulador banqueiro de no Twitter. Tem
entre os Estados
os
FCC, alertou o investimento, Antes
três filhos. An
Unidos e a China.
na.
Governo para passou pelo indicado
de ser indicad
Na entrevista deste
rejeitar soluções PA U L O Z A C A R I A S G O M E S ramo imobiliário para Lisboa, titinha
fim de semana ao
da Huawei no 5G. e administrou
Expresso, Georgege passado pelo País
Três meses depois, universidades. em férias com a
Glass instou o
o embaixador Com a mulher, mulher, altura em
Governo a escolher
olher
acusou Pequim Mary, criou a que conheceu o
“entre os aliados
os
de ter comprado George and Mary Douro, Lisboa e
e os chineses”,
as infraestruturas Glass Foundation. visita
Fátima. A visit
ameaçando
críticas de Nas últimas ao santuário foifo
mudanças nas
Portugal por “10 duas décadas, que o
especial, já qu
relações de
cêntimos”. Já este fez doações casal é católico
católic
segurança e defesa
efesa
ano, o secretário a campanhas Glass
praticante. Gla
caso a China entre
ntre
da Energia, Dan e candidatos é adepto dos
no 5G em Portugal.
ugal.
Brouillette, visitou republicanos – em Portland Timbers
Timb –
A resposta
o terminal de Sines 2016, entregou a equipa de fufutebol
portuguesa
(para onde os EUA 77 500 dólares à que celebra ca cada
também nunca a
exportam gás campanha do atual golo ao som d do
tinha sido tão
natural) e disse Presidente. corte de um tr tronco
explícita. O MNE,
E,
Augusto Santoss haver interesse nas de madeira co com
Silva, afirmou infraestruturas no uma motosserra
motosser e
que quem toma a País, incluindo na dos gritos de “cut
“
as decisões expansão daquele (“corta
that wood!” (“c
no País são as porto, que os esse tronco!”) – e
“autoridades chineses também ainda fã da música
mú
competentes”, têm debaixo de dos Eagles.
e o Presidente olho. Mas foi mais
da República brando do que
secundou: “Em Glass: “Nunca
Portugal, quem m sugerimos que
decide acerca dos deixassem de falar
seus destinos são com os chineses.
os representantes
tes Queremos é que
escolhidos pelos
os as empresas
portugueses.” americanas e
outras saibam que
também estamos
interessados.”

20 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

INBOX

M O D É S T I A À PA R T E

Modéstia à
parte, acho queue Caras
continuo a terr
faro jornalístico
co bonitas
FRANCISCO PINTO
BALSEMÃO
O fundador do Expresso
deu uma rara entrevista
o
ta
há muitas
para assinalar a edição
2 500 do semanário
o
e não estão
todas na
televisão
JÚLIA PALHA
Apesar de admitir que ser bonita
“facilita as coisas”, a atriz, de 21 anos,
quer acabar com o estigma que ainda
existe sobre a beleza feminina:
tem de haver talento e muito trabalho

A primeira vez que

ue
cantei fado foi numm FRASE DA SEMANA

aniversário, rodeada
da
de pessoas a cantar
tar Não entendo
flamenco
MARÍA BERASARTE E
porque não há
Natural de San Sebastián,
án,
a cantora basca é considerada
rada espectadores no
uma das melhores artistas
tas
estrangeiras a cantar fado
do futebol. Temos
de viver com a
Foi um erro diminuir
uir C H O Q U E F R O N TA L nova realidade
o presidencialismo na
Constituição e o papel ou ficamos todos
dos militares malucos
JOSÉ ADELINO MALTEZ JORGE JESUS
O politólogo considera Treinador do Benfica
o nosso regime demasiado
parlamentarizado e diz que,
“às vezes, é preciso chamar
os governos à pedra e dar
umas reguadas”

Se não tivermos Em Portugal,

O nosso estilo de parceiros confiáveis, quem decide
vida moderno não é mudará a forma acerca dos seus
favorável a uma boa como interagimos destinos são os
com Portugal representantes
noite de sono em termos de escolhidos pelos
GUY LESCHZINER
O especialista do sono, autor segurança e de portugueses
do livro O Cérebro Noturno, defesa MARCELO REBELO
alerta para aquilo a que chama GEORGE GLASS DE SOUSA
uma “epidemia de apneia Embaixador dos EUA Presidente da
do sono” em Portugal República

Fontes: VIP, Expresso, A Bola, Público, Diário de Notícias

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 21
 ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

1 000
A Liga propôs à Direção
Regional da Saúde dos Açores
que o encontro Santa Clara-Gil
Vicente, da terceira jornada da
I Liga de Futebol, que se realiza
já no sábado, 3, tenha uma
assistência de mil pessoas,
seguindo as normas regionais
para a Covid-19. A confirmar-
se, este jogo poderá servir de
teste ao regresso dos adeptos
às bancadas em todo o País.

Vinhas à mercê do fogo
Nos últimos dias, algumas das mais famosas vinhas de Napa Valley,
no Noroeste da Califórnia, EUA, foram devastadas por incêndios
provocados por uma nova onda de calor
Um brutal incêndio, já apelidado de
“Glass Fire”, começou no domingo,
27, e em apenas dois dias já devorou,
segundo as autoridades californianas,
mais de 4 500 hectares no condado
de Napa, uma das áreas de produção
de vinho de maior prestígio nos
Estados Unidos da América. Algumas
propriedades vinícolas viraram cinzas,
como a Chateau Boswell, na cidade
de Santa Helena, enquanto outras
estavam fortemente ameaçadas pelas
chamas, como a Merus Wines e a
Davis Estates. Mais de 11 mil pessoas
foram obrigadas a abandonar as
TÓQUIO 2021
Tocha olímpica retoma o seu caminho em março
GETTY
casas durante a noite de domingo
para segunda-feira, incluindo 4 500
moradores de uma zona residencial
sénior no condado vinícola de Sonoma,
perto de Napa. Estes dois condados já
tinham sido atingidos por incêndios
devastadores em 2017, que causaram
a morte de 44 pessoas e destruíram
milhares de edifícios. A Califórnia está
em chamas há meses. Nos últimos
anos, os incêndios, que costumam
ocorrer entre agosto e novembro,
-se tornado mais frequentes e mais
têm-se
ortantes neste estado, em parte por
importantes
sa das alterações climáticas.
causa
100
Fernando Pimenta conquistou,
no domingo, 27, a centésima
medalha internacional da
sua carreira. O canoísta
português venceu a prova de
K1 5000 na Taça do Mundo
de Szegeb, Hungria, depois
de ter feito o mesmo no K1
1000 e de ter conseguido o
segundo lugar no K1 500. Na
mesma competição, Joana
Vasconcelos ganhou o ouro em
K1 500 metros e o bronze nos
200 metros. Na paracanoagem,
Norberto Mourão conquistou
uma medalha de prata e outra
de bronze.
1,3 milhões
O famo
famoso naturalista britânico
David AAttenborough, 94 anos,
no dia 24, um perfil no
criou, n
Instagram. Em poucas horas,
Instagr
já tinha mais de 1,3 milhões
seguidores.
de seg

350 000
O percurso da tocha olímpica, que começará em março ço de 2021,
manter-se-á de acordo com o trajeto inicialmente previsto,
evisto, um ano
após o plano original, garantiu, esta semana, o Comité é Organizador dos
Jogos Olímpicos de Tóquio. A tocha sairá da prefeiturara de Fukushima
a 25 de março do próximo ano e passará por 46 outrass prefeituras Os con
constrangimentos
japonesas, pelas mãos dos estafetas, durante 121 diass e até acender provocados pela pandemia
provoc
a pira no estádio olímpico de Tóquio em 23 de julho, data
ata de início fizeram com que existam, neste
da competição, que decorrerá até 8 de agosto. O percurso
urso é idêntico momento, 350 mil cartões
mome
ao que estava previsto para este ano, antes da decisão o de adiar os cidadão por levantar. O
de cida
Jogos para 2021 devido à pandemia Covid-19, já depois ois de a tocha ter Governo vai avançar com duas
Govern
chegado ao Japão em março, proveniente da Grécia, e de, inclusive, medidas para descongestionar
medida
ter sido exibida em vários locais, entre os quais o Museu
seu Olímpico de serviços, aproveitando
os serv
Tóquio. O que ainda não está garantido é se todas as dez mil pessoas a rede Espaços Cidadão e
que se tinham inscrito para participar conseguirão fazê-lo.
zê-lo. fazendo entregas em casa.
fazend

22 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

TRANSIÇÕES

J O R G E S A L AV I S A
No tempo em que
a Gulbenkian tinha
companhia de ballet,
era comum vê-lo no
grande auditório em dia
de estreia. Fazia parte da
mobília, daquele universo
encantado. Jorge Salavisa
era um dos grandes, dos
que se inscreveram na
história do mundo da dança
em português e além-
-fronteiras. Nunca perdeu
a pose de bailarino, isso
dava para topar quando JULIETTE GRÉCO 1927 - 2020
alguém se cruzava com ele,
embora tenha deixado de o
ser com 36 anos, em 1975,
para desgosto de quem
o viu em palco. Depois,
“Sobretudo, livre”
sucederam-se uma série Sedutora e seduzida, sempre de negro, Juliette Gréco fica para a história
de cargos importantes, em da cultura francesa como uma grande intérprete da sua chanson
Portugal e no estrangeiro:
nos bastidores, a ensinar, “Nunca compreendi o que me figuras como Boris Vian, Jean-Paul
a dirigir. Passou, como aconteceu... Às vezes, pergunto-me: Sartre e Simone de Beauvoir, Jacques
já se disse, pelo extinto porque me aconteceu tudo isto, a mim? Brel, Serge Gainsbourg e muitos outros...
ballet Gulbenkian, pela E não tenho resposta”, dizia Juliette Todos juntos construíam uma Paris
Companhia Nacional de Gréco em entrevista à VISÃO, em Paris, mítica e luminosa, uma luz que perdura
Bailado, pela escola de em 2008. E o que era “tudo isto”? até aos dias de hoje. “O meu encontro
dança do Conservatório Uma vida cheia, sobretudo, de bons com essas pessoas todas foi mais do que
Nacional, pelo São Luiz encontros. Para aquela miúda tímida sorte, foi um milagre”, disse.
e ainda foi programador que nasceu em 1927, em Montpellier, O seu percurso passou, também,
da Capital Europeia da parecia improvável, mesmo impossível, pelo cinema (muitas vezes em papéis
Cultura, em 1994. Nestas tornar-se uma figura mítica e icónica ligados à sua carreira de cantora).
passagens, todas elas da vida cultural parisiense. Mas foi Em 1950, filmou com Jean Cocteau
diferentes em forma e exatamente isso que aconteceu a partir em Orfeu. Em Bonjour Tristesse, de
conteúdo, deixou um rasto
dos anos do pós-Guerra, depois da Otto Preminger, cantava a canção que
de modernidade e ficou
experiência traumática de ter visto a dava título ao filme, uma das mais
notório o seu interesse
por todas as artes e pela
mãe e a irmã mais velha a serem detidas célebres do seu repertório, e em 1960
forma de as intrometer, pelos ocupantes nazis (conseguiu contracenou com Orson Welles no
originalmente, umas nas reecontrá-las no fim da guerra). filme Crack in the Mirror.
outras. Em 2012, escreveu Numa rive gauche cada vez mais Na mesma entrevista à VISÃO, no
uma autobiografia, Jorge vibrante, começou a trabalhar em ano dos seus últimos concertos em
Salavisa - Dançar a Vida, pequenos teatros e rapidamente se Portugal, Gréco dizia-nos: “O meu
e nela avisou: “Seja qual impôs com intérprete de canções com primeiro disco chamava-se Je Suis
for a ocasião, nunca digo um estilo único, sempre vestida de Comme Je Suis [Sou como Sou] e eu
adeus.” Morreu na segunda- negro, pele muito branca e uma beleza sou, sobretudo, livre.” Juliette Gréco
-feira, 28. Cumpra-se então sedutora. Ficou célebre a sua paixão morreu, aos 93 anos, no passado
o seu desígnio. L.O. (correspondida) por Miles Davis, de dia 23 de setembro na sua casa em
visita à capital francesa, e a sua vida Ramatuelle, no Sudeste de França,
cruzava-se, quotidianamente com rodeada pela família. P.D.A.

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 23

 É imperativo
PRÓXIMOS CAPÍTULOS preservar os
direitos dos
mais velhos

PERISCÓPIO

INTIMIDADE europeia: é a presidente

Porreiro, pá 2.0 da Comissão!
Desde António Embrulhem, Guterres e
Guterres que os Sócrates...
primeiros-ministros do
PS se vangloriam de CONFUSOS
tratar os seus pares A invasão dos
europeus por “tu”. Costas
O tratamento por tu O presidente do CDS,
parece, desde então, Francisco Rodrigues
ter-se tornado mais a dos Santos, fez, nas
regra do que a exceção, redes sociais, alguns
na intimidade das comentários críticos ao

INÁCIO LUDGERO
reuniões do Conselho “plano Oliveira e Costa”.
Europeu. Mas, neste Ou o antigo homem
capítulo, António Costa forte do BPN deixou
foi mais longe do que algum plano nalguma
os seus antecessores, gaveta, que só o líder
R E L AT Ó R I O P O R T U G A L M A I S V E L H O transformando uma centrista conhece, ou
informalidade que o espírito de Oliveira

Viver mais e... pior

costuma ser privada e Costa está a enviar
numa declaração vibrações do Além.
pública: ao elogiar O que se conhece é
Ursula von der Leyen, o plano Costa Silva,
Contra o estereótipo em relação aos mais velhos, esta semana, em o tal documento
Lisboa, o primeiro- estratégico que um
a Associação de Apoio à Vítima apresenta uma série
ministro disse “a terceiro Costa – o
de recomendações dirigidas a quem de direito tua liderança”, em António – encomendou
bom português (com ao prestigiado gestor.
Podíamos começar este texto roubando o título ao filme dos tradução simultânea, Ou estamos muito
irmãos Coen, Este País Não É para Velhos, não estivesse ele mais claro). Ora, ainda por enganados, ou anda
do que gasto. Mas, na realidade, a frase condiria na perfeição cima, Ursula não é uma grande confusão lá
com o Relatório Portugal Mais Velho, da responsabilidade da uma simples homóloga pelo Largo do Caldas...
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), com o apoio
da Gulbenkian. Nele, traça-se um retrato bastante negativo da
violência, lato sensu, sobre os idosos, resultado de um estudo
levado a cabo entre janeiro de 2019 e junho de 2020. Isto
apesar de os avanços tecnológicos, médicos e sociais do último
meio século terem permitido que a população portuguesa
vivesse mais. Mas não necessariamente melhor, pois, segundo
o que se lê nas recomendações deste relatório, há “desrespeito
pelos seus direitos, exclusão e marginalização daqueles que se
encontram em situação de vulnerabilidade e, não raras vezes,
situações de crime ou violência”. Para chegar a estes resultados
desconcertantes, foram auscultados mais de 80 profissionais
que lidam com esta franja da população
e consultadas cerca de 40 pessoas
inseridas no grupo etário em questão e APOIO
alguns dos seus cuidadores ou familiares. Quem é o senhor ao lado de Rui Moreira?
Com base nestes contactos e em O candidato presidencial apoiado pela Iniciativa
AS PESSOAS biografia especializada, a APAV elaborou Liberal, Tiago Mayan Gonçalves, partilhou, na
IDOSAS DEIXAM um conjunto de 30 recomendações página oficial da campanha, no Facebook, algumas
fotos sobre a angariação de assinaturas para
diretamente dirigidas a algumas
DE SER UM instituições públicas e privadas, como formalizar a candidatura. Entre elas, destaca-se a
SUJEITO PASSIVO o Ministério da Saúde. Estas medidas de um muito bem-disposto Rui Moreira, presidente
da Câmara do Porto, lado a lado com o candidato.
pretendem apenas preservar os direitos
E PASSAM A SER dos mais velhos, coisa que não tem vindo Com algum pudor, a foto está no meio de outras,
sem qualquer referência ao autarca portuense,
VISTAS COMO a acontecer. “Nesta necessária mudança assim tratado como um cidadão anónimo. Mayan
de paradigma, as pessoas idosas deixam
SERES HUMANOS de ser um sujeito passivo, pessoas que limita-se a comentar: “(...) Obrigado a todos os
que se têm juntado a nós neste caminho para um
COM DIREITOS precisam de ajuda e proteção, e passam Portugal mais Liberal.”
RELATÓRIO a ser vistas como seres humanos com
Portugal Mais Velho direitos.” Luísa Oliveira

24 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 OPINIÃO

Tempo
de vésperas
P O R A N T Ó N I O P I R E S D E L I M A / E C O N O M I S TA E M I L I TA N T E D O C D S - P P

S
ente-se o cansaço no ar. Meses e meses mais um ano, ela estará aí. Uma coligação informal
desta nova peste que deixa médicos, não é cimento para a maior recessão e para a brutal
enfermeiros e técnicos de saúde em crise social que traz por arrasto. Nem Bloco de
permanente alerta, vivendo tantas vezes Esquerda nem PCP acharão oportuno estar colados
no limite, trabalhando na linha da frente, ao poder para as terríveis notícias, e o primeiro-
incansavelmente, para salvarem vidas e ministro e o líder da oposição já nos fizeram saber
protegerem a comunidade. Noticiários que não existem para governarem juntos. É lógico,
desde março que se sucedem com nenhum foi eleito nesse pressuposto.
números, estatísticas e interpretações, Teremos, pois, eleições legislativas dentro de um
sujeitos a um monotema: vem aí uma ano, um ano e pouco, provavelmente logo a seguir
segunda vaga, o novo surto já está entre nós, às autárquicas. E a alternativa à esquerda não se
crescem os infetados e, no percebe: Rui Rio não descola, o
entanto, é necessário continuar CDS não recupera, a Iniciativa
a viver. Liberal trilha um caminho
Em nome da vida, os alunos A exaustão contamina estimável, mas o povo português
voltaram à escola, mascarados, está envelhecido e, com exceção
impedidos de grandes convívios, o poder. As olheiras, de alguns jovens urbanos, não
na iminência de uma infeção a irritabilidade, é liberal, muito menos em
que se descobre e que a todos a frustração e os momentos de desespero.
pode devolver a casa. Professores Na exaustão, cavalgam
temerosos e pais que não desacertos são os populismos. Anda todo o
conseguem realmente organizar indisfarçáveis. Líderes mundo político e a comunicação
as suas vidas profissionais, social a verberar o Chega.
sempre sujeitos ao imprevisto de políticos, meses a Está claro que o sr. Ventura
terem de voltar para casa para os fio, a lidarem com é um radical oportunista –
seus filhos poderem acompanhar. o desconhecido, embora também os haja, sem
Nas empresas luta-se para comoção geral, à esquerda...
se sobreviver, acumulam-se ocultando a tensão –, mas não compreendo tanta
planos de contingência, adiam-se permanente, atenção. Custa-me que não se
sonhos e investimentos, olha-se perceba que a sua ascensão é
diariamente para a “caixa”, não se procurando consequência de um imenso
renovam contratos, sucedem-se vender-nos esperança vazio, da revolta dos que não
as baixas e os burn-out. com incertos se sentem representados e
A exaustão contamina o poder. de muito boa gente que está
As olheiras, a irritabilidade, a calendários de vacinas frustrada com a incapacidade
frustração e os desacertos são de, à direita, não se apresentar
indisfarçáveis. Líderes políticos, uma alternativa clara,
meses a fio, a lidarem com o responsável, moderada e coesa.
desconhecido, ocultando a tensão permanente, Não é trabalho fácil, entendamo-nos, mas era o
procurando vender-nos esperança com incertos mais necessário a um ano de eleições autárquicas.
calendários de vacinas. A única certeza, porém, E, quiçá, legislativas. visao@visao.pt
é um ciclo económico em que a realidade é a
recessão mais severa, desemprego e, em muitos
lares, a fome. O PS não está habituado a governar PS. Por motivos profissionais, que em breve ficarão
assim. esclarecidos, decidi que este é o meu último artigo.
Adivinha-se a crise política. Suponho que não Quero agradecer aos leitores da VISÃO e, obviamente,
será para já – o povo não compreenderia uma à diretora Mafalda Anjos o convite que me fez há
gerigonça que só existisse para os tempos de seis meses. Foi uma experiência curta de que vou ter
“vacas gordas”, definição de António Costa. Mas, saudades.

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 25

IMAGENS

LEMBRAR
AS VÍTIMAS
Em oito meses, desde a primeira vítima mortal, registada
a 11 de janeiro na China, a pandemia já provocou
um milhão de mortos em todo o mundo

FOTO: PABLO BLAZQUEZ DOMINGUEZ/GETTY IMAGES

FOTO: FINNBARR WEBSTER/GETTY IMAGES

POOLE, REINO UNIDO

Na praia de Sandbanks,
o artista Luke Jerram
montou a sua instalação
“In Memoriam”, em
homenagem às vítimas da
Covid-19, bem como aos
trabalhadores da saúde e
voluntários que arriscaram
as suas vidas nos momentos
mais difíceis da pandemia

WASHINGTON, EUA
Chris Duncan – cuja mãe,
de 75 anos, morreu com
FOTO: WIN MCNAMEE/GETTY IMAGES

Covid-19, no dia do seu

aniversário – tira uma
fotografia às mais de
20 mil bandeiras que foram
colocadas no National Mall,
mesmo em frente à Casa
Branca, em homenagem
às 200 mil vítimas da
pandemia nos EUA

26 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 MADRID, ESPANHA
Milhares de bandeiras
espanholas foram
colocadas no Parque de
Roma, por voluntários da
Associação Nacional das
Vítimas do Coronavírus.
Espanha foi um dos países
mais atingidos na primeira
vaga e está agora a viver
um recrudescimento de
casos, na segunda vaga
FOTO: JUNI KRISWANTO/GETTY IMAGES

SURABAYA, INDONÉSIA
Uma lápide com o símbolo
do Super-homem, numa
zona do cemitério de
Keputih dedicada às vítimas
da Covid-19. A Indonésia
conta com mais de dez
mil vítimas mortais da
pandemia

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 27

 IMAGENS

S A LVA R
AS BALEIAS
A difícil e demorada tarefa de tentar salvar
da morte certa centenas de animais que, por razões
que permanecem desconhecidas, encalham em grupo
na praia, como sucedeu na Austrália
FOTO: MELL CHUN/GETTY IMAGES

FOTO: GETTY IMAGES

CORRIDA CONTRA
O TEMPO
Mal foi acionado o alarme
a avisar que centenas de
baleias tinham encalhado,
em grupo, na praia de
Port Macquarie, na ilha
da Tasmânia, centenas de
voluntários precipitaram-
se para o local,
enfrentando as águas frias
para tentar guiar o máximo
possível de animais de
volta ao mar. Contas feitas,
apenas conseguiram
salvar 108 das 470 baleias
FOTO: GETTY IMAGES

28 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 MISTÉRIO POR
RESOLVER
Porque encalham as
baleias nas praias e porque
é que a ilha da Tasmânia,
no Sul da Austrália,
é um dos locais onde
esse fenómeno ocorre
com maior frequência?
Os cientistas ainda não
conseguiram encontrar
respostas adequadas para
essa pergunta. Sabe-se
apenas que as baleias são
FOTO: MELL CHUN/GETTY IMAGES

animais gregários, com

forte sentido de grupo. Por
isso, podem ter encalhado
quando perseguiam as suas
presas ou, simplesmente,
seguindo uma matriarca
moribunda que queria
encalhar sozinha

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 29

 OCEANO DE ESPERANÇA
Oceano de Esperança é um projeto da VISÃO em parceria com a ROLEX, no âmbito da sua iniciativa Perpetual Planet, para dar
voz a pessoas e a organizações extraordinárias que trabalham para construir um planeta e um futuro mais sustentáveis
“A proteção da Natureza
tem de ser feita com
as comunidades locais”
Aos 36 anos, João Campos-Silva está numa missão para salvar o peixe gigante
da Amazónia. E, com ele, todo o ecossistema do rio
BRUNO LOBO
Jonathan Baillie não é facilmente impressionável, até porque
é responsável por avaliar e supervisionar todos os projetos
que se candidatam ao financiamento da National Geogra-
phic Society. Já viu de tudo, mas quando fala do trabalho
de João Campos-Silva o seu entusiasmo é evidente: “Cerca
de 15% da Terra está protegida e existe um plano para pro-
teger 30%, até 2030. Nos oceanos o valor é menor (entre
5% e 7%), mas já existem estudos suficientes para perceber
exatamente o que temos de fazer”, explica. “Agora, sobre os
sistemas de água doce sabemos muito pouco. O projeto do
João é mesmo o primeiro modelo de sucesso que tivemos.
E ainda por cima pode ser facilmente adaptado para outras
zonas do mundo, pelo que a sua importância ultrapassa
largamente a simples conservação do arapaima.”
Baillie é, também, um dos dez membros do júri dos Rolex
Awards for Enterprise, que no ano passado galardoaram o
jovem cientista brasileiro pelo trabalho na Amazónia.
O arapaima, ou pirarucu, como os brasileiros o preferem
chamar, é um enorme peixe de água doce que se encontra
apenas na bacia do Amazonas. Os maiores espécimes che-
gam a pesar quase 200 quilos e ocupam um papel central
na alimentação dos povos indígenas, sendo que a sobre-
-exploração dos recursos naturais e a pesca furtiva quase
o levaram à extinção.
Curiosamente, quando o biólogo João Campos-Silva
partiu para a Amazónia, há cerca de 13 anos, o arapaima
estava longe de ser uma das suas prioridades: “Queria
perceber que espécies de aves estavam mais suscetíveis
de extinção, considerando as altas taxas de desmatamento
previstas.” Só que, ao fim de algum tempo a viver na selva,
percebeu como seria impossível ter “uma Amazónia sus-
tentável, no futuro, se não houver um alinhamento pro-
30 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
fundo entre conservação da biodiversidade e o bem-estar
das populações locais”.
Campos-Silva percebeu que não poderia proteger o ara-
paima à força, mas apenas se conseguisse transformar essa
missão numa tarefa a realizar em conjunto com as comu-
nidades locais. Na verdade, algumas já estavam a fazê-lo,
pelo que João apenas sistematizou o processo. “Primeiro,
tivemos de estabelecer um período de quarentena de três
anos”, para recuperar o número de peixes no rio e, “depois,
criámos uma gestão comunitária das pescas, num sistema
de quotas e em que todos os lucros são partilhados pela
comunidade”.
Com isso conseguiu não só aumentar o número de ara-
paimas em cerca de 30 vezes, como muitas outras espécies
beneficiaram também dessa proteção, “incluindo as tartaru-
gas de água doce, botos, vários outros peixes”. E até jacarés…
“O arapaima é um modelo que nos ajuda a vislumbrar
um outro tipo de desenvolvimento para a Amazónia – um
desenvolvimento que contempla a proteção da Natureza
com a qualidade de vida das comunidades locais, em que
a floresta gera muito mais valor estando de pé. Todo o tra-
balho mais importante é feito por essas comunidades. Elas
merecem muito mais os holofotes do que eu”, pede.
De facto, a gestão comunitária já permitiu criar escolas
e centros de saúde locais. Os lucros passaram a ser par-
tilhados por toda a comunidade, e, pela primeira vez, as
mulheres têm acesso ao seu rendimento, sem depender
do marido: “O pirarucu também tem contribuído para a
equidade de género.” Olhando para todas as conquistas,
sentimo-nos realmente um pouco como Jonathan Baillie:
parece impossível não ficar entusiasmado com o projeto e
com esta força de vontade.
D.R.

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 31

 G R I P E / C O V I D -1 9

Ameaça
a dobrar

32 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

Cansaço, tosse, dor de cabeça, febre. Os sintomas estão lá
e a dúvida também. A comunidade científica questiona-se
sobre o impacto da convivência entre o vírus da gripe e o novo
coronavírus. Uma mistura que, mostra um estudo recente,
pode ser fatal. Médicos e especialistas explicam as principais
dificuldades em distinguir os protagonistas deste inverno,
revelam como podem os portugueses prevenir-se, quem deve
ser vacinado e porquê, e como estão as estruturas de saúde
a preparar-se para os meses que se aproximam
MARIANA ALMEIDA NOGUEIRA

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 33

C O V I D - 1 9 / G R I P E S E G U N D A VA G A

O
GRIPE
O CAVALO DE TROIA DA COVID-19
As portas que a gripe abre, no nosso organismo,
e que irão facilitar a entrada do novo coronavírus

> Vias aéreas

superiores
> Suprarregulação
Uma vez que as infeções da enzima ACE2
respiratórias virais nos tratos
intercorrentes são um respiratórios superior
gatilho para danos e inferior
na mucosa do trato
As patologias virais
respiratório superior,
com sintomas gripais
além de
provocam uma significativa
comprometerem
regulação negativa da
a imunologia local,
enzima ACE2, recetor
O outono está aí e, com ele, as ma- a sua existência
existente à superfície das
nhãs frias, a chuva e o vento que, este prévia pode
células, através do qual o
ano, além das folhas caídas no chão, aumentar
novo coronavírus entra no
levanta inúmeras dúvidas. Se, há um a predisposição
organismo,
ano, muitos portugueses ignorariam para uma infeção
podendo predispor
certos sintomas gripais, 2020 e a subsequente
o doente a um
pandemia Covid-19 vieram alterar o por Covid-19
desenvolvimento
cenário. A cada espirro ou tossidela, clínico posterior
há olhares de soslaio e a mesma per- mais grave
gunta paira na cabeça de quase toda de Covid-19
a gente: será só gripe ou algo mais?
A preocupação não é infundada,
até porque as manifestações clínicas
das duas doenças, sobretudo numa
fase inicial, são muito semelhantes, e
a novidade da situação está a confun-
dir médicos e pacientes. Apesar de a FONTE Critical Care VISÃO/DREAMSTIME

sazonalidade do vírus SARS-CoV-2

ainda não ter sido confirmada, pe-
rante o aumento significativo de
casos de Covid-19, em toda a Euro-
pa, nas últimas semanas, os peritos
da Organização Mundial da Saúde
recomendam a vacinação contra a
gripe sazonal, de forma a evitar ca-
sos graves de doença que possam
requerer internamento hospitalar e
sobrecarregar os serviços de saúde.
Em Portugal, a Direção-Geral da
Saúde antecipou o início da campa-
nha de vacinação contra a gripe de
15 de outubro para 28 de setembro,
disponibilizando dois milhões de
doses de vacinas tetravalentes (con-
tra quatro estirpes de vírus da gripe),
mais 600 mil do que no ano passado,
em duas fases de vacinação, tendo
arrancado a primeira na segunda-fei-
ra, 28, com 350 mil doses destinadas
às faixas prioritárias da população,
como residentes em lares de idosos,
profissionais de saúde, profissionais
do setor social, que prestam cuida-
dos, e grávidas. Na segunda fase, com
início agendado para 19 de outubro,
34 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
serão abrangidas pessoas a partir dos
65 anos ou com doenças crónicas.
Para se adquirir a vacina na farmácia,
será necessário um atestado médico.
Relativamente aos impactos exer-
cidos sobre as estruturas de saúde
pública, gripe e Covid-19 parecem
andar de mãos dadas, mas será tam-
bém a mistura dos dois vírus explo-
siva nos doentes? Uma análise levada
a cabo por cientistas do governo do
Reino Unido, durante uma fase inicial
da pandemia, indicou que ter gripe e
Um estudo recente revela que
as pessoas infetadas com ambas
as doenças têm duas vezes maior
probabilidade de morrerem,
comparativamente aos infetados
apenas com o novo coronavírus
Covid-19 em simultâneo aumentava,
significativamente, o risco de morte.
No estudo, pré-publicado na plata-
forma medRxiv, os investigadores
observaram 58 doentes, revelando
que as pessoas infetadas com ambas
as doenças tinham duas vezes maior
probabilidade de morrerem, com-
parativamente aos infetados apenas
com o novo coronavírus. Apesar de
os resultados não parecerem anima-
dores, a amostra é muito reduzida,
e tanto médicos como especialistas
concordam que é preciso esperar que
cheguem mais casos de coinfeção à
prática clínica para que se possam re-
tirar conclusões mais aprofundadas.
“Ao nível clínico, ainda não tive-
mos qualquer caso de coinfeção, mas
é de admitir que, na sua existência,
possa haver um agravamento do es-
tado do doente, devido à sobreposi-
ção de efeitos nocivos de dois vírus
diferentes”, afirma à VISÃO Fernando
Maltez, diretor do serviço de infec-
ciologia do Hospital Curry Cabral,
em Lisboa. Corroborando a dificul-
dade em prever o comportamento
conjunto do SARS-CoV-2 e do vírus
da gripe, pela falta de casos clínicos,
Margarida Tavares, infecciologista
do Hospital de São João, no Porto,
acrescenta uma nova possibilidade.
Segundo a médica, “também pode
dar-se o caso de existir uma coinfe-
ção com a predominância de um dos
vírus”. Neste caso, estaríamos perante
um fenómeno de interferência vírica,
ou seja: um dos vírus interfere com
a replicação do outro, o qual, além
de não se replicar, não causará os
seus danos habituais. “Não sabemos
ainda se esse fenómeno vai existir
ou não, há pouquíssimos estudos”,
refere a médica.
GRIPE MAIS LEVE?
Já o virologista Pedro Simas defende
que, relativamente a doentes que não
são de risco, a coinfeção deverá ser
semelhante às que já existiam antes
da chegada do novo coronavírus,
entre outros vírus respiratórios.
“Quando, nestes pacientes, a infeção
das vias respiratórias superiores se
traduz numa doença assintomática e
leve, a coinfeção não é um problema
grave. A questão agora é que o fenó-
meno está amplificado, porque esta-
mos perante uma pandemia, ou seja,
a primeira preocupação é despistar se
se trata de Covid-19 ou não”, afirma o
médico, acrescentando: “Quanto aos
doentes de risco, a resposta lógica e
intuitiva é a de que os efeitos sejam
piores, mas não é assim tão linear,
porque depende como ambos os ví-
rus se comportam um com o outro.
É tudo muito novo.”
Tudo muito novo no Hemisfério
Norte, já que, no Hemisfério Sul, a
pandemia chegou em pleno inverno
e em concomitância com inúmeros
vírus respiratórios, constituindo
esta zona do mundo, atualmen-
te, a principal fonte de informação
13 respostas essenciais
Preparar o inverno passa por estar informado sobre as semelhanças,
sintomas e vacinas das principais infeções respiratórias
> Que sintomas da infe-
ção pelo novo coronaví-
rus não se devem des-
valorizar? Além da tosse
seca, febre e cansaço, a
perda de olfato e paladar
não deve ser desvaloriza-
da, por ser muito caracte-
rística da doença.
> Como distinguir
a perda de olfato e
paladar da dificuldade
em se percecionar
o gosto e o odor,
resultante de uma
congestão nasal? No
caso da congestão nasal,
ainda é possível distinguir
o doce do amargo,
enquanto os doentes com
Covid-19 não sentem
qualquer diferença entre o
sabor dos alimentos.
> Quais os perigos de
se apanhar gripe e
Covid-19 ao mesmo
tempo? Ainda não
existem casos suficientes
na prática clínica para se
retirarem conclusões. Os
vírus podem potenciar-se,
como refere um estudo,
tornando-se ainda mais
mortíferos ou, pelo
contrário, podendo um
deles anular a ação do
outro.
> Ter gripe pode aumen-
tar a probabilidade de
desenvolver uma forma
mais grave de Covid-19?
Um estudo italiano verifi-
cou que esta é uma proba-
bilidade, uma vez que as
infeções gripais debilitam
não só a mucosa nasal
como a enzima através da
qual o SARS-CoV-2 entra
no organismo.
> Quem deve tomar a
vacina contra a gripe
sazonal? Pessoas
com mais de 65 anos,
doentes crónicos e
imunodeprimidos,
grávidas, profissionais de
saúde e outros prestadores
de cuidados.
> Quando começa a
campanha de vacinação
gratuita contra a gripe
sazonal? A primeira
fase da vacinação
gratuita começou a 28 de
setembro; a segunda fase
tem início previsto para 19
de outubro.
> Quem tem direito
à vacinação gratuita
contra a gripe
sazonal? Na primeira
fase, residentes,
utentes e profissionais
de estabelecimentos
de respostas sociais,
doentes e profissionais
da rede de cuidados
continuados integrados,
profissionais do SNS e
grávidas. Na segunda
fase, cidadãos com idade
igual ou superior a 65
anos, doentes crónicos e
imunodeprimidos.
> Onde se toma a vacina
contra a gripe sazonal?
As pessoas que são
abrangidas pela vacinação
gratuita contra a gripe
sazonal são vacinadas
nas unidades de saúde
do SNS, nas instituições
onde se encontram a
residir e, em contexto
de pandemia Covid-19,
também em locais
alternativos, dependendo
de organização regional
e local. As vacinas contra
a gripe compradas
nas farmácias, com
prescrição médica, podem
ser administradas nas
farmácias, nos centros de
saúde ou noutros serviços
de saúde.
> Há perigo de faltarem
vacinas contra a gripe?
Este ano, o Estado
português adquiriu cerca
de dois milhões de doses
de vacinas, mais 600
mil em relação ao ano
passado. Os médicos
defendem que pode ser
perigoso a vacinação
de toda a população e
asseguram que o número
de doses existente será
suficiente para vacinar os
grupos de risco indicados
pela DGS.
> Existe algum
teste de diagnóstico
diferenciado para
a gripe e para a
Covid-19? Sim. Através
da recolha de uma única
amostra, via zaragatoa
da nasofaringe, o
teste permite fazer o
diagnóstico diferencial
entre a infeção por SARS-
CoV-2 e outras patologias
respiratórias sazonais,
virais e bacterianas, com
resultados disponíveis
entre 24 e 36 horas.
Mas, até 15 de outubro,
este está reservado aos
grupos de risco, mediante
prescrição médica.
> Quem deve tomar a
vacina pneumocócica?
Crianças até aos 5 anos,
menores de 18 com
doenças cardíacas, renais
ou do fígado, e adultos
com cancro ou doenças no
sistema imunitário.
> Quem tem direito à
vacina pneumocócica
gratuita? Estas vacinas
são administradas no
âmbito do Programa
Nacional de Vacinação
(PNV) a todas as crianças,
aos dois, quatro e 12
meses e a grupos de risco
clínico.
> Onde se toma a
vacina pneumocócica?
As pessoas que são
abrangidas pela
vacinação gratuita são
vacinadas nas unidades
de saúde do SNS. As
vacinas pneumocócicas
compradas nas farmácias,
com prescrição médica,
podem ser administradas
em algumas farmácias,
nos centros de saúde
ou noutros serviços de
saúde.
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 35
C O V I D - 1 9 / G R I P E S E G U N D A VA G A

As “ondas” que invadem Portugal

Neste gráfico, são bem visíveis os andamentos da Covid-19 no nosso país: uma primeira vaga
na primavera, uma espécie de “maré alta” no verão, e a segunda vaga com a chegada do outono

2 DE MARÇO EVOLUÇÃO DIÁRIA DO NÚMERO DE NOVOS CASOS CONFIRMADOS

Anúncio dos dois COVID-D19
primeiros casos 28 DE SETEMBRO
688 novos casos
1 200 19 DE MARÇO 20 DE ABRIL 3 DE MAIO
Início do Início da Telescola Fim do estado de emergência. Máscaras
1 000 confinamento obrigatórias nos transportes públicos 14 DE SETEMBRO
18 DE MAIO 1 DE JUNHO Reabertura das escolas
800
Abertura de restaurantes Abertura de creches
600 e lojas; regresso dos alunos e do Pré-escolar; abertura
do Ensino Secundário de cinemas e teatros
400

200

0
27 FEV 2020 1 ABR 1 MAI 1 JUN 1 JUL 1 AGO 1 SET 28 SET
FONTE DGS AR/VISÃO

para se prever o comportamento do

SARS-CoV-2 e do vírus influenza,
Idades atingidas potenciou, eventualmente, a resposta
inflamatória, condicionando o maior
em simultâneo. De acordo com os A população ativa é a mais risco de se adquirir o SARS-CoV-2 e
dados revelados pela Organização fustigada pela Covid-19. o maior risco de a Covid-19 evoluir
Mundial da Saúde, o Hemisfério Sul No entanto, os idosos para formas mais graves”, explica
registou uma época gripal ligeira, são quem mais sofre Filipe Froes.
e países como a Austrália e a Nova
Zelândia bateram mesmo o recorde NÚMERO DE CASOS CONFIRMADOS VACINA PARA TODOS?
do menor número de casos de gripe POR GRUPOS ETÁRIOS Evitar a todo o custo a gripe é a
sazonal registado nos últimos anos. VALORES EM 28 DE SETEMBRO mensagem latente no discurso dos
“O uso da máscara e o distancia- COVID-19 especialistas. Parece ser imperiosa
mento social, adotados como forma 0-9 a necessidade de se prevenir e diag-
de mitigar a pandemia nestes paí- 10-19 nosticar precocemente a ocorrência
20-29
ses, acabaram por diminuir muito a 30-39 da chamada “tempestade perfeita”,
transmissão dos outros vírus respira- 40-49 termo usado para descrever a pre-
50-59
tórios”, explica Filipe Froes, coorde- 60-69 sença simultânea do risco em con-
nador do gabinete de crise Covid-19 70-79 trair Covid-19 e desenvolver forma
+ 80
da Ordem dos Médicos, referindo grave de doença em simultâneo com
0 5 MIL 10 MIL
que este facto demonstra a extrema a presença de outros vírus respirató-
importância da adoção de medidas rios. Mas, para isso, será necessário, e
de intervenção não farmacológica na benéfico, submeter toda a população
prevenção, não só da Covid-19 mas Em combate à vacina contra a gripe sazonal?
também na circulação de outros vírus De novo está bem visível a segunda “Não concordo com uma vaci-
respiratórios, como o da gripe. vaga a crescer em setembro nação massiva; acredito que os que
O pneumologista alerta ainda para devem ser vacinados são os grupos
o efeito “cavalo de Troia” – assim de risco”, afirma, perentoriamente,
cunhado por investigadores italia- CASOS ATIVOS Pedro Simas. O virologista explica
nos, num estudo publicado na revista CASOS CONFIRMADOS MENOS que, ao contrário do novo corona-
OS CASOS ENCERRADOS
científica Critical Care –, segundo o COVID-19 vírus, o vírus da influenza tem uma
qual a gripe pode funcionar como 24 MIL grande capacidade de mutação, além
um autêntico “cavalo de Troia” que 20 MIL de possuir um genoma segmentado,
abre as portas do organismo para 16 MIL que facilmente pode ser combinado
a entrada de outras tropas, nomea- 12 MIL com o genoma de outras estirpes,
damente as do novo coronavírus. 8 MIL dando origem a tipos mais perigosos
“Parece que a infeção prévia pelo 4 MIL e complexos. “Não acho que seja ne-
vírus influenza, e outros vírus respi- 0 cessário e pode mesmo ser um perigo
ratórios, provocou uma diminuição 26 FEV 2020 28 SET vacinar a população toda contra a
dos mecanismos de defesa locais e gripe, porque põe-se uma enorme

36 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

pressão no vírus da gripe existente,
o que pode encorajar a seleção de
mutantes mais perigosos que fujam
à vacina.” Segundo o especialista, se
tal acontecesse, mesmo uma pessoa
jovem, ao apanhar esta versão mais
grave de gripe, poderia ter de recor-
rer aos serviços nacionais de saúde,
sobrecarregando os mesmos numa
altura em que o objetivo é exatamente
o oposto.
Também Filipe Froes comenta que
“não é preciso inventar, é só preciso
cumprir o que está recomendado”. E
o que está recomendado, neste caso,
é a vacinação de pessoas com mais de
65 anos, doentes crónicos e imuno-
deprimidos, grávidas, profissionais
de saúde e outros prestadores de cui-
dados. E, num ano em que o Governo
disponibiliza mais 600 mil doses do
que o habitual, Fernando Maltez não
tem dúvidas ao afirmar: “O número
de vacinas disponível chega para co-
brir os grupos de risco. Todas essas
pessoas devem vacinar-se porque, de
facto, a vacinação, mesmo que não
proteja a 100%, pode minimizar os
efeitos da gripe, permitindo ainda
reduzir a afluência aos serviços de
saúde.”
De facto, num estudo ainda a
aguardar a validação dos seus pares,
investigadores suíços e brasileiros
verificaram que, em cerca de 92 mil
doentes internados com Covid-19,
os pacientes que tinham recebido
previamente a vacina da gripe (a qual
não atua de forma alguma contra
o SARS-CoV-2) apresentavam 8%
de menor probabilidade de virem
a necessitar de internamento em
cuidados intensivos, 18% de me-
nor probabilidade de precisarem de
ventilação mecânica e 17% de menor
probabilidade de morrerem.
Sendo a Covid-19 uma doença que
afeta as vias respiratórias, e seguindo
a lógica de existir, quando estamos
debilitados, uma maior probabilidade
de apanharmos mais doenças, tam-
bém a vacina pneumocócica, contra
a bactéria Streptococcus pneumo-
niae, tem sido referida como uma
ferramenta de proteção. “Tudo o
que pudermos fazer para diminuir o
risco de infeções respiratórias graves
e a necessidade de ir aos serviços de
saúde é importante”, afirma Filipe
Froes, insistindo que, também neste
caso, devem seguir-se as normas da
Direção-Geral da Saúde.
Incluída no Programa Nacional
Os novos tratamentos
Multiplicam-se os candidatos a vacinas e a testagem de medicamentos
inovadores. O maior conhecimento do vírus e a manutenção
de tratamentos-padrão, apesar de não curarem a doença,
podem estar a contribuir para a redução das taxas de mortalidade
> Vacina de vetores vi-
rais da Universidade de
Oxford e AstraZeneca: A
vacina, que utiliza um vírus
geneticamente modifica-
do muito semelhante ao
SARS-CoV-2, é considera-
da a mais promissora, pois
provocou uma resposta
dupla do sistema imunitá-
rio, traduzida na produção
de anticorpos e no aumen-
to dos níveis de células
T. Esta é a vacina que
chegará a Portugal (6,9
milhões de doses), caso
seja provada a sua eficácia.
Apesar de ter visto os
testes da terceira fase sus-
pendidos, após uma das
voluntárias ter desenvolvi-
do uma inflamação grave
na medula, estes já foram
retomados no Reino Unido
e no Brasil.
> As vacinas genéticas
da Moderna e da
BioNTech/Pfizer: As
propostas mais inovadoras
chegam dos EUA e da
Alemanha, através de
vacinas genéticas que
codificam parte do código
genético do vírus e dão
ordem às células para
produzirem proteínas
virais no corpo do
indivíduo, a fim de ativar
o sistema imunitário
deste. Já na terceira fase,
ambas as vacinas estão
a ser testadas em 30 mil
voluntários.
> CanSino e SinoVac
arriscam: Duas das
quatro vacinas chinesas já
estão a ser administradas
a militares e a profissionais
de saúde, na China. A
vacina desenvolvida pelo
Instituto Científico Militar e
a empresa biofarmacêutica
chinesa CanSino
Biologics, que recorre
a clonagem molecular
da Covid-19, superou as
duas primeiras fases de
testes, demonstrando
potencial para prevenir
doenças causadas pelo
SARS-CoV-2. Já a vacina
desenvolvida pela SinoVac,
após ter demonstrado
o desenvolvimento de
anticorpos em 90% dos
casos, iniciou a terceira
fase de testes no Brasil.
> Johnson&Johnson
entra na corrida: A
vacina, que entrou na
terceira fase de testes com
60 mil voluntários, recorre
à manipulação do vírus da
gripe comum (adenovírus
sorotipo 26 ou Ad26),
de modo a transportar
a proteína do vírus até
às células hospedeiras,
incitando o corpo a
aumentar a resposta
imunológica no combate
ao SARS-CoV-2.
> Remdesivir: Desde abril
deste ano considerado
um dos medicamentos
mais promissores para
combater a Covid-19, o
Remdesivir foi ainda o
primeiro a ser autorizado
pela União Europeia
para tratar a doença em
adultos e adolescentes
com mais de 12 anos,
com pneumonia e que
requerem oxigénio
suplementar. Segundo
a Agência Europeia
de Medicamentos, os
doentes que recebem
este antiviral recuperam
quatro dias mais depressa
do que os outros.
Médicos, especialistas e
entidades reguladoras
concordam que este é
um medicamento que,
por agora, deve ser usado
apenas em casos clínicos
graves.
> Tratar a Covid-19
com spray nasal: Uma
empresa biotecnológica
australiana está a
desenvolver um spray que
poderá travar a replicação
do vírus SARS-CoV-2 e
evitar a sua transmissão.
De acordo com os primeiros
testes realizados pela
biotecnológica australiana
Ena Respiratory, o spray
nasal que a empresa
desenvolveu, à base da
molécula sintética INNA-
051, poderá reduzir a
replicação do vírus SARS-
CoV-2 no nariz em 93% e na
garganta em 96 por cento.
> Tratamento
português: Um
consórcio formado pela
Universidade de Coimbra,
Centro Hospitalar e
Universitário de Coimbra
e duas empresas,
uma portuguesa e
outra canadiana, quer
desenvolver uma terapia
inovadora para eliminar
“em poucos segundos”
o novo coronavírus
diretamente nas fossas
nasais. O FOTOVID utilizará
terapia fotodinâmica,
uma tecnologia de
desinfeção nasal já usada
para eliminar bactérias
multirresistentes,
reposicionando-a para
matar vírus. Os primeiros
testes arrancam em
outubro, seguidos de
ensaios clínicos com
voluntários em 2021.
> O poder dos
esteroides: Uma equipa
de investigadores de
Oxford chegou à conclusão
de que a administração
de dexametasona
pode reduzir até um
terço o risco de morte
em pacientes com
complicações respiratórias
graves. No entanto, para as
pessoas com casos mais
ligeiros, este esteroide não
parece ajudar, podendo
mesmo piorar a situação.
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 37
C O V I D - 1 9 / G R I P E S E G U N D A VA G A
de Vacinação desde 2015, a vacina,
conhecida como Prevenar, é gratuita
e especialmente recomendada para
todas as crianças até aos 5 anos, me-
nores de 18 anos com doenças car-
díacas, renais ou do fígado e adultos
com cancro ou doenças no sistema
imunitário. Na norma da Direção-
-Geral da Saúde, lê-se ainda que “as
vacinas pneumocócicas podem ser
administradas quer simultaneamente
quer antes ou depois de outra vacina
viva ou inativada, incluindo a vacina
contra a gripe”. Ainda assim, os espe-
cialistas aconselham a aguardar uma
semana de intervalo entre ambas,
caso existam efeitos secundários re-
sultantes da que for tomada primeiro.
Os cidadãos abrangidos pela vacina-
ção gratuita podem ser vacinados nas
unidades de saúde do SNS e, no caso
da vacina da gripe, nas instituições
onde se encontram a residir ou em
locais alternativos, dependendo de
organização regional e local, além
da possibilidade de vacinação em
farmácias comunitárias. Quanto aos
restantes cidadãos, podem adquirir
ambas as vacinas, com prescrição
médica, nas farmácias.
Vacinas à parte, tanto a menor
prevalência de gripe, registada nes-
te ano no Hemisfério Sul, como a
opinião de todos os especialistas
convergem para um ponto essencial:
se a Covid-19 pode ser mitigada com
recurso ao distanciamento físico,
uso da máscara e cumprimento da
etiqueta respiratória, também o ví-
rus da gripe o será. “Temos de nos
consciencializarmos de que as armas
para combater o aumento de casos de
Covid-19, bem como uma dissemi-
nação descontrolada da gripe, mais
do que em vacinas e antivíricos, estão
nas nossas mãos”, afirma Fernando
Maltez.
SEGUNDA VAGA À PORTA
Epidemiologistas e virologistas não
se cansam de afirmar que os termos
“onda” ou “vaga” em nada estão rela-
cionados com epidemiologia, sendo
cautelosos na utilização dos mesmos.
“É evidente que, se olharmos para
um gráfico e se virmos a evolução
do número de novos casos por dia,
a sensação com que ficamos é a de
que em março houve um grande
aumento, seguido de uma diminui-
ção, ao longo de abril, o que pare-
ce uma onda, e, depois, houve um
mar a meia altura no verão”, afirma
38 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
Manuel Carmo Gomes, professor
de Epidemiologia da Faculdade de
Ciências da Universidade de Lisboa
SINTOMAS e membro da Comissão Técnica de
DE COVID-19, Vacinação. Segundo o especialista,
GRIPE neste momento assistimos a um
ressurgimento da doença que, no
E CONSTIPAÇÃO entanto, ainda não é comparável ao
que assistimos em março. Também o
CONSTIPAÇÃO
virologista Pedro Simas prefere não
falar em ondas, referindo antes três
COVID-19
fases pandémicas. “Se a primeira fase
GRIPE
correspondeu efetivamente a uma
primeira onda, a segunda passou por
FALTA DE AR Comum Raro Não um desconfinamento exemplarmente
DOR DE CABEÇA Às vezes Comum Raro controlado, que nos mostrou que é
impossível travar completamente
a transmissão do vírus. Agora, es-
TOSSE Comum Comum Às vezes tamos a entrar numa terceira fase,
SECA caracterizada pelo aumento de novos
casos, resultante da movimentação
das pessoas durante as férias e de
outras movimentações inevitáveis,
FEBRE Comum Comum Raro que continuarão a existir e a provocar
mais aumentos.”
A reabertura de escolas e de uni-
DOR DE GARGANTA Às vezes Às vezes Comum versidades, o regresso de muitos
portugueses ao trabalho presencial e
a maior frequência de restaurantes,
FADIGA Comum Comum Às vezes bares e casas de amigos são algumas
das movimentações apontadas pelo
virologista como inevitáveis e causa-
NARIZ ENTUPIDO Raro Às vezes Comum doras do aumento de novos casos de
DIARREIA E VÓMITOS Às vezes Às vezes Não Covid-19. Ainda assim, Pedro Simas
admite que esta terceira fase pode
ESPIRROS Não Às vezes Comum dar origem à chamada segunda onda.
“Até pode ser maior do que a primei-
DORES ra, no que respeita ao número de in-
NO Comum Comum Às vezes feções, mas terá necessariamente de
CORPO
se diferenciar num aspeto muito im-
portante: as infeções nos grupos de
risco têm de diminuir muito”, alerta.
ARREPIOS Comum Comum Raro De facto, parece ser algo que já
está a acontecer. Se em março e abril
chegámos a ter cerca de 25% dos in-
PERDA DE OLFATO Comum Raro Raro fetados com mais de 70 anos, agora a
E PALADAR percentagem tem-se mantido cons-
FONTE OMS/CDC/Vox.com VISÃO tante entre os 11% e os 13 por cento.
Os especialistas recomendam
a vacinação contra a gripe
apenas aos idosos e a
grupos de risco. Se a mesma
for generalizada a toda a
população, pode ser mais
prejudicial do que benéfica
“É uma grande melhoria, que explica
o porquê de termos este aumento de
Os casos mais graves
casos já há umas semanas e não haver O número de pessoas internadas nos hospitais está
um número correspondente de hos- a crescer, mas é um facto que os médicos agora têm
pitalizações”, aponta Carmo Gomes. mais armas para combater a doença
Também as curvas de infetados e de
mortes, que em março tinham um
declive semelhante, neste momento NÚMERO DIÁRIO DE INTERNADOS E DE INTERNADOS
diferem e, apesar do aumento de
novos casos, a curva de mortalidade
NAS UNIDADES DE CUIDADOS INTENSIVOS (UCI)
parece ainda não ser tão acentuada. COVID-19
1 200
Mas Pedro Simas avisa que o número
diário de infetados continuará a su- 1 000
bir, excedendo os 50 casos por 100
mil habitantes, e refere, por isso, a 800 INTERNADOS
importância do cumprimento das
medidas de mitigação da pandemia. 600
“O potencial de as coisas se des-
controlarem, se as pessoas relaxa- 400
rem, como aconteceu em Espanha,
é grande. Só quem fecha os olhos é 200 INTERNADOS UCI
que não vê”, afirma Simas, acrescen-
tando: “Felizmente temos uma coisa 0
que é barata, que é a máscara e que é 3 MAR 2020 28 SET
muito eficiente.” FONTE DGS AR/VISÃO

Segundo os especialistas, o País

deve aproveitar o avanço epidemio-
lógico mais lento, em que, de um dia
para o outro, o aumento de novos
casos deixou de rondar os 15% para
descer até 1%, a fim de apostar na
proteção dos grupos de risco e evi-
tar um contágio em massa de gripe,
pneumonia e outras infeções respira-
tórias, com sintomas extremamente
semelhantes aos da Covid-19, que
podem levar muita gente aos servi-
ços de saúde, sobrelotando hospitais,
pondo em risco a capacidade de res-
posta dos mesmos e gerando muita
confusão.
A CONFUSÃO DOS SINTOMAS
Apesar de a vacinação dos grupos de
risco e de as medidas adotadas para
mitigar surtos de gripe e de Covid-19
ajudarem a evitar a denominada
“tempestade perfeita”, perceber se
estamos perante a Covid-19, uma
gripe, uma pneumonia, outra infe-
ção respiratória ou uma combinação
de várias das anteriores representa,
atualmente, uma tarefa hercúlea para
os médicos. Fernando Maltez refere
que “a evolução clínica do SARS-
-CoV-2 tem algumas características
muito próprias, mas, no início, e
mesmo no decurso da doença, as
manifestações clínicas confundem-se
com as da gripe e são extremamente
difíceis de distinguir, podendo mes-
mo ser impossível diferenciá-las da
gripe ou da pneumonia”.
Menos óbitos
Portugal acompanha a tendência
europeia: até ver, a segunda vaga
está a ser menos mortífera
EVOLUÇÃO DIÁRIA
DO NÚMERO DE ÓBITOS
COVID-19
30
20
10
0 Margarida Tavares refere que,
1 MAR 2020
Febre, tosse, dores de cabeça, fa-
diga, arrepios e dores no corpo são
apenas alguns dos sintomas sobre-
poníveis que preocupam os médicos.
Margarida Tavares afirma que, “in-
clusive em exames de imagem, como
o raio-X ou a TAC, podem surgir
dúvidas”. Fernando Maltez aponta a
perda do olfato e do paladar como
a pista mais significativa que pode
conduzir o médico e o paciente em
direção ao diagnóstico de Covid-19,
em detrimento dos restantes.
“À luz do que temos neste mo-
mento, todos os doentes com sin-
tomas respiratórios, em que não
consigamos distinguir se têm gripe
ou outra infeção respiratória ou,
muitas vezes, uma descompensação
não infecciosa resultante de uma
patologia cardiovascular prévia, são
reencaminhados para a chamada
área respiratória”, explica Margari-
da Tavares. Ao chegarem a esta área,
os doentes são submetidos a testes,
consoante a gravidade dos sintomas
apresentados, e, nos casos menos
graves, mandados para casa a fim de
cumprirem isolamento, até serem
informados se têm ou não Covid-19,
24 horas mais tarde.
28 SET por agora, no Hospital de São João,
uma vez que a época gripal ainda
não começou, a prioridade prende-
-se em perceber se um doente com
sintomas respiratórios suspeitos tem
Covid-19. “Durante a época gripal
será importante conseguir despistar
também se há infeção pelo vírus da
gripe, porque não desejaríamos, por
exemplo, internar doentes com Co-
vid-19 e gripe junto de outros que
tenham apenas Covid-19. Idealmente,
teremos áreas separadas para os dois
tipos de doentes.”
A eficácia da separação depende-
rá, segundo a médica, da existência
de testes mais ou menos rápidos e
eficazes que despistem tanto a pre-
sença de Covid-19 como a de gripe.

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 39

C O V I D - 1 9 / G R I P E S E G U N D A VA G A
TAXA DE INCIDÊNCIA POR 105 PESSOAS
FONTE DGS
“Neste momento, ainda não sabemos
se e quando vão chegar ao hospital”,
revela a infecciologista. A Unilabs já
lançou o primeiro teste deste tipo
no nosso País, disponível desde o
dia 25 de setembro, numa primeira
fase apenas para os grupos de maior
risco e mediante prescrição clínica,
destinando-se em especial a urgên-
cias pediátricas, hospitais e a outros
profissionais de saúde. Através da re-
colha de uma única amostra, via zara-
gatoa da nasofaringe, o teste permite
fazer o diagnóstico diferencial entre
a infeção por SARS-CoV-2 e outras
patologias respiratórias sazonais,
virais e bacterianas, com resultados
disponíveis entre 24 e 36 horas. A
partir de dia 15 de outubro, o teste
poderá também ser feito pela restante
população, nos mesmos locais onde
se realizam os testes para a Covid-19.
O surgimento de testes de diag-
nóstico diferencial como o da Unilabs
é um marco importante e uma ajuda
preciosa para os clínicos. Apesar do
aparecimento de diversos estudos
que indicam uma eventual ordem
específica de aparecimento de sin-
tomas própria da Covid-19, tanto
Margarida Tavares como Fernando
Maltez afirmam o contrário. “A di-
Durante a época 2018-
2019, o número de óbitos
atribuíveis à gripe chegou
aos 3 331, segundo o
Instituto Ricardo Jorge
40
TAXA DE INCIDÊNCIA DE SÍNDROME GRIPAL (ÉPOCA 2019-20)
NÚMERO DE CASOS SEMANAIS POR CADA 100 MIL HABITANTES
62,2
60
50
40
30
20
10
2,3
0 pode resultar numa grande sobrecar-
30 SET 21 OUT 11 NOV 2 DEZ 23 DEZ 13 JAN 3 FEV 24 FEV 16 MAR
2019 2020
ferença ao nível de período de in-
cubação é notória, com um período
de dois a cinco dias para a gripe,
enquanto o da Covid-19 pode ir até
14 dias, mas, de resto, não existe
uma ordem de sintomas específica”,
refere Fernando Maltez. Margarida
Tavares, que também não acredita
em ordens estanques e predefinidas
de sintomas para a Covid-19, explica
que “um doente com Covid-19 tem
um padrão de TAC bastante suges-
tivo, sobretudo se for um doente
em estado grave”, e revela que, no
Hospital de São João, os resultados
da TAC podem ser cruciais para a de-
cisão de internamento direto de um
doente na coorte Covid, mesmo que
este ainda se encontre a aguardar o
resultado do teste de despiste. Ainda
assim, a infecciologista explica que
os resultados das TAC não são 100%
determinantes do diagnóstico, “até
porque não costumamos fazer TAC
em caso de gripe e, por isso, podem
existir imagens que não sabemos se
são gripe, outras infeções respirató-
rias ou Covid-19”.
A LINHA MAIS CONCORRIDA
Se até os clínicos admitem dificulda-
des em diagnosticar corretamente a
VISÃO 1 OUTUBRO 2020
doença, a maioria das pessoas pode
ficar preocupada quando surgem os
primeiros sintomas duvidosos. “Pe-
rante determinados sintomas respi-
ratórios, que podem encaixar numa
ou noutra doença, antes de procu-
rarem os serviços de atendimento,
devem ligar para a linha de saúde,
de modo a perceberem se é ou não
necessário recorrer aos serviços de
urgência ou aos centros de saúde”,
apela Fernando Maltez. O médico su-
0 blinha que uma corrida às urgências
ga dos hospitais, causando prejuízo
para quem precise urgentemente de
AR/VISÃO assistência médica. Resta perceber se,
nos próximos meses, a linha SNS24
terá capacidade de resposta para to-
das as chamadas que receberá.
“Em março vimos a linha SNS24
colapsar, foi notório”, afirma o pre-
sidente da Associação Nacional dos
Médicos de Saúde Pública, Ricardo
Mexia, lamentando que os dados
relativos ao fluxo das chamadas não
sejam disponibilizados nem atuali-
zados, no portal da transparência do
Serviço Nacional de Saúde, desde o
dia 9 de março deste ano. O médico
explica que, na primeira fase da pan-
demia, o problema prendeu-se não
apenas com a linha SNS24 mas tam-
bém com a incapacidade em rastrear
as diversas cadeias de contactos, so-
bretudo na Região de Lisboa e Vale do
Tejo. “São duas situações que, even-
tualmente, se podem vir a repetir, o
que não é desejável. A incapacidade
de responder a montante provoca um
grande afluxo às urgências. Se não
conseguirmos evitar os casos antes de
eles chegarem aos hospitais, a coisa
pode complicar-se e ficaremos sem
grandes alternativas”, alerta.
O Sistema Nacional de Saúde terá,
então, de ser capaz de assegurar,
nos próximos meses, uma resposta
integrada, a qual implicará sucesso
no primeiro contacto através da li-
nha SNS24; o seguimento dos casos
suspeitos, a elaboração de um diag-
nóstico, a identificação dos contactos
dos infetados, e sua colocação em
isolamento profilático; e uma respos-
ta robusta ao nível dos cuidados de
saúde primários e hospitalares para
quem estiver doente.
De novo, o nosso SNS vai estar sob
pressão, assim como as pessoas nos
locais de trabalho, nas escolas, nos
transportes públicos... Vamos con-
seguir estar à altura? mnogueira@visao.pt
Segunda vaga Infeções disparam na Europa
em força Países mais afetados querem evitar o regresso ao confinamento total,
nem que para isso tenham de isolar bairros ou cidades
A Europa debate-se com
um aumento brutal de casos
de Covid-19
Dos primeiros 28 dias de após o confinamento total se iniciou o estado de
setembro, 11 registaram imposto na primavera, a emergência.
NOVOS CASOS DIÁRIOS EM ESPANHA novos recordes de casos estratégia passa por evitar,
COVID-19 diários na Europa. A a todo o custo, voltar a No resto da Europa, a
10 MIL partir do passado dia fechar toda a gente em situação também não
5 MIL 10, o número de novas casa. é animadora. Embora
infeções por Covid-19 alguns países, sobretudo
0
esteve sempre acima Em Espanha, França e de menor dimensão, não
15 FEV 2020 28 SET dos contabilizados, dia Reino Unido, porém, essa apresentem uma curva
após dia, desde o início possibilidade está cada ascendente nesta fase da
da pandemia. Para se ter vez mais presente nas pandemia, a esmagadora
uma ideia mais precisa, intervenções públicas maioria está já ao nível
NOVOS CASOS DIÁRIOS EM FRANÇA a primeira onda atingiu o dos governantes, ou acima dos registos
COVID-19
15 MIL seu auge, no que respeita devido à velocidade de da primavera, no que
10 MIL a este parâmetro, a 1 de propagação da Covid-19. respeita aos casos diários
5 MIL abril, com um total de 43 Para já, até esta terça- confirmados. A grande
0 268 testes positivos. A feira, 29, as autoridades diferença, para melhor,
15 FEV 2020 28 SET 26 de setembro, sábado espanholas tinham em relação a esses
último, o novo coronavírus confinado 45 bairros de primeiros meses do ano
foi detetado em 79 141 Madrid, forçando cerca continua a ser o número
pessoas. de um milhão de pessoas reduzido de mortes. Até
NOVOS CASOS DIÁRIOS NO REINO UNIDO a permanecerem na ver, este indicador – o
COVID-19 Estes dados, da sua área de residência, mais importante – está
7,5 MIL
Organização Mundial da com autorização para agora muito longe de
5 MIL
Saúde, põem em evidência sair apenas em caso acompanhar o do total
2,5 MIL
a chegada da segunda de deslocações para o de infetados, como
0
vaga ao continente trabalho ou escola, idas aconteceu em março e
15 FEV 2020 28 SET europeu, mas as medidas ao médico ou assistência abril. No seu pico, só no
de restrição, entretanto a familiares dependentes. dia 4 de abril morreram
introduzidas na maioria Na região de Manchester, 5 179 pessoas em toda a
dos países, também não em Inglaterra, o Europa; ao longo do mês
NOVOS CASOS DIÁRIOS EM ITÁLIA deixam dúvidas sobre o confinamento localizado de setembro, o pior registo
COVID-19
6 MIL potencial desta segunda traduz-se, por exemplo, data de dia 28 e quedou-se
4 MIL investida do SARS-CoV-2. na proibição de receber nos 847 óbitos. O aumento
2 MIL Restrições no número de amigos em casa. Já em do número de testes e o
0 pessoas permitido em França, os bares e cafés facto de haver mais casos
15 FEV 2020 28 SET ajuntamentos, redução dos de Marselha receberam detetados entre uma
horários ou encerramento ordens para fechar e os população jovem – menos
de espaços comerciais e de Paris terão de reduzir suscetível a desenvolver
confinamentos cirúrgicos, o horário. Na capital os sintomas mais
NOVOS CASOS DIÁRIOS NA ALEMANHA em áreas onde existe francesa, a ocupação agressivos da doença –
COVID-19 maior incidência do vírus, dos hospitais é cada vez têm sido apontados como
6 MIL
surgem como as respostas mais preocupante: nesta possíveis explicações
4 MIL
de primeira linha por parte segunda-feira, 28, já para a discrepância das
2 MIL
de governos e autoridades havia mais doentes de curvas de mortalidade na
0
de saúde. Com a economia Covid internados do que primavera e no verão.
15 FEV 2020 28 SET
ainda em convalescença a 18 de março, quando Rui Antunes

NOVOS CASOS DIÁRIOS NA HOLANDA

3 MIL COVID-19
A grande diferença, para
2 MIL
MIL
melhor, em relação aos
0
15 FEV 2020 28 SET
primeiros meses do ano está
FONTE worldometers.com VISÃO
no número reduzido de mortes
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 41
C O V I D - 1 9 / G R I P E S E G U N D A VA G A
MANUAL DE RESILIÊNCIA
Como vamos viver
nos próximos meses
O primeiro outono e o primeiro inverno de uma pandemia costumam ser os piores.
O que está ao nosso alcance para resistirmos melhor a esta segunda ofensiva?
RUI ANTUNES
> REAGIR AOS SINTOMAS
Tosse, febre, dificuldade respi-
ratória. Se apresentar algum
destes sintomas, ou tiver tido
contacto com alguém infetado
com Covid-19, deve ligar para a
Linha SNS24, a fim de perceber
qual o passo seguinte a dar.
Dor de garganta, cansaço e
dores musculares podem ser
outros sinais de alerta, assim
como a perda de olfato e/ou
paladar. O número é este:
808 24 24 24.
> ESCOLAS SOB PRESSÃO
O regresso ao ensino presen-
cial é talvez o maior desafio das
próximas semanas para conter
a pandemia. O uso obrigatório
de máscara por toda a comuni-
dade escolar, com exceção dos
alunos do 1º ciclo, a separação
de turmas, as entradas e saídas
desfasadas e o isolamento ime-
diato, em sala apropriada, no
caso de alguém testar positivo,
são medidas que fazem parte
do novo quotidiano.
> AJUNTAMENTOS
REDUZIDOS
Desde 15 de setembro, e pelo
menos até 14 de outubro,
estão proibidas aglomerações
com mais de dez pessoas.
Em restaurantes, cafés ou
pastelarias nas imediações
de escolas (menos de 300
metros), o limite baixa para
quatro pessoas por grupo, tal
42 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
como nas zonas de restaura-
ção de centros comerciais.
> MÁSCARA AO AR LIVRE
Obrigatórias em espaços
públicos fechados, casos de es-
tabelecimentos comerciais ou
transportes públicos, as más-
caras são já recomendadas,
também, ao ar livre, sempre
que não seja possível manter o
distanciamento de dois metros
de outras pessoas. Por enquan-
to, o Governo não vê razão para
decretar a obrigatoriedade de
taparmos o rosto na via públi-
ca, mas não é uma medida a
descartar. Segundo um estudo
da Universidade de Berna, na
Suíça, 20% dos infetados são
assintomáticos e, por isso, nem
desconfiam que podem ser
agentes transmissores do novo
coronavírus. Além de reduzir
a probabilidade de o portador
ficar infetado, usar máscara
tem a vantagem de diminuir o
risco de infetar terceiros.
> COMO UM GUARDA-CHU-
VA OU UM PRESERVATIVO
O recurso à máscara num
contexto de pandemia, mes-
mo que venha a tornar-se
obrigatório na rua, “não deve
ser visto como algo extraordi-
nário mas normal, da mesma
forma que usamos um guar-
da-chuva quando chove ou
um preservativo nas relações
sexuais”, defende David Neto.
O presidente do Conselho de
Especialidade de Psicologia
Clínica e da Saúde da Ordem
dos Psicólogos Portugueses
enaltece o exemplo de vários
países asiáticos, nos quais os
próprios cidadãos tomam a
iniciativa de se protegerem a si
e aos outros. “A normalização
do uso de máscaras ajudará a
reduzir o stresse associado às
medidas de prevenção”, justifi-
ca o psicólogo.
> PERDIGOTOS NO AR
Espirrar, tossir ou simplesmente
falar fazem expelir gotículas de
saliva que, por mínimas que se-
jam, constituem o principal fator
de transmissão do SARS-CoV-2.
É, por isso, importante colocar
o cotovelo ou um lenço à frente
da boca, sempre que espirra-
mos ou tossimos. A quem está
por perto, se não conseguir
manter a distância recomen-
dável, a DGS sugere que “vire a
cara para o lado”. Quanto menos
gotículas inalar, menor a proba-
bilidade de ser infetado.
> CUIDADO COM
OS TELEMÓVEIS
O contacto com superfícies é
outra das vias de transmissão
do vírus. E se há uma que
manuseamos com frequência
é a dos ecrãs dos telemóveis.
Limpá-los, “de preferência com
toalhetes de limpeza e desin-
feção rápida à base de álcool
ou outro desinfetante com ação
contra o vírus”, é mais um aviso
da DGS. O mesmo é válido para
os teclados dos computadores.
> TRABALHO FLEXÍVEL
Nas áreas metropolitanas de
Lisboa e do Porto, as empre-
sas devem promover escalas
de rotatividade entre trabalho
presencial e teletrabalho, assim
como horários distintos, de modo
a reduzir concentrações de
funcionários no local de trabalho.
As medidas estão pensadas
para diminuírem, igualmente,
a utilização em simultâneo dos
transportes públicos.
> FEBRE NOS
AEROPORTOS
Todos os passageiros são sub-
metidos à medição da tempera-
tura, através de infravermelhos,
à chegada aos aeroportos
internacionais em Portugal Con-
tinental. Quando provenientes de
países com risco epidemiológico,
têm ainda de apresentar, no
momento da partida, um teste
negativo ao novo coronavírus,
realizado nas 72 horas ante-
riores. Nas regiões autónomas
da Madeira e dos Açores, este
comprovativo é exigido apenas à
chegada. Quem não o apresen-
tar, só entra no território depois
de ser testado no aeroporto.
> LEI SECA
O consumo de bebidas alcoólicas
na via pública está proibido, tal
como a venda em estações de
serviço. Em outros estabeleci-
mentos, só é autorizada até às
20 horas, com exceção do consu-
mo às refeições.
> CULTURA DE MÁSCARA
Todos de máscara, lugares
preenchidos alternados com
cadeiras vazias (a menos que
sejam coabitantes), porta de
entrada diferente da porta de
saída, intervalos inexistentes
ou de duração reduzida, de
preferência sem sair do lugar.
É assim a nova realidade nas
salas de cinema, teatro e em
concertos.
> TOURADAS
COM MEIA CASA
As corridas de toiros estão au-
torizadas, com regras idênticas,
desde que o número de espec-
tadores não ultrapasse 50% da
lotação máxima das praças.
> ESTÁDIOS
E DISCOTECAS VAZIOS
“Público nos estádios e
reabertura das discotecas
não será certamente nos
próximos tempos”, afirmou
Graça Freitas, a 9 de setembro,
justificando as cautelas com
a necessidade de avaliar,
primeiro, os efeitos do regresso
à escola na evolução da
pandemia. “Manda a prudência
que não ensaiemos outras
medidas que podem levar a
mais contactos”, acrescentou a
diretora-geral da Saúde. No dia
seguinte, o primeiro-ministro,
António Costa, reforçava a
ideia em relação aos recintos
desportivos: “O nosso
comportamento no cinema
é muito diferente do nosso
comportamento no futebol.”
A liga de clubes quer ver os
estádios com 30% da lotação
preenchida.
> RESPOSTA HOSPITALAR
O plano de saúde para o
outono/inverno prevê a
instalação de hospitais
de campanha “em áreas
metropolitanas”, se a situação
epidemiológica assim o exigir.
Também em cima da mesa,
“nas unidades hospitalares
de maiores dimensões”,
está a “a conversão total de
edifícios” em unidades de
cuidados intensivos e “áreas
de internamento para doentes
com infeção respiratória aguda
Covid-19”.
> SEM VACINAS
“Na melhor das hipóteses, em
meados do próximo ano.” É
esta a previsão mais otimista
de Anthony Fauci, prestigiado
imunologista norte-americano,
para o início da distribuição
generalizada de uma vacina. O
plano conjunto dos países da
União Europeia aponta para
uma espera ainda mais longa,
“entre 12 a 18 meses”.
> DESAFIO SEM PRAZO
“Resiliência é a palavra-chave”
para lidar com esta pande-
mia sem fim à vista, salienta
a psiquiatra Maria Antónia
Frasquilho, que a descreve
como “um terramoto em
câmara lenta”. Não se trata de
“suportar tudo com um sorriso
nos lábios”, mas de “reagir de
forma salutar à adversidade”,
na certeza de que um dia há
de acabar. Esta convicção deve
ser reforçada com a definição
de um propósito, por exemplo o
de prestar assistência a quem
está mais isolado. “Se puder
ajudar alguém que está pior
do que eu, já vivi o meu dia”,
enfatiza a médica.
> LAYOFF REINVENTADO
Estão na calha novas medidas
de apoio às empresas que
pretendam poupar nos salários
dos trabalhadores, manten-
do-os em casa sem quebra
de contrato, em setores mais
debilitados como o turismo. O
psicólogo David Neto destaca
a vulnerabilidade acrescida de
pessoas que enfrentam o medo
“O desafio é ter o medo
suficiente para aderirmos
às medidas de proteção,
mas sem o tornar
obsessivo ou paralisante”
do desemprego e, perante tal
quadro agravado, recusa a exis-
tência de soluções milagrosas:
“Podia dar os conselhos ha-
bituais, de manter a atividade
física, fazer meditação, usar as
redes sociais, mas é um pouco
invalidante face à situação
precária em que se encontram.
O mais indicado para quem não
conseguir lidar com a situação
é procurar ajuda profissional.”
> PSICOLOGIA
POR TELEFONE
Desde abril que o SNS tem a
funcionar a Linha de Aconse-
lhamento Psicológico, para
responder a situações de
“ansiedade aguda, fragilidade
psicológica ou agravamento
de doença psicológica” nestes
tempos de pandemia. A linha
destina-se à população em
geral, mas também a profis-
sionais “que se encontrem a
prestar cuidados de saúde”.
Chega-se a ela através da
opção 4 da Linha SNS24.
> INFORMAÇÃO CREDÍVEL
Contra a “boataria e semiloucu-
ra das teorias da conspiração”,
Maria Antónia Frasquilho reco-
menda bom senso na procura
de fontes credíveis para saber
mais sobre a Covid-19. “É preci-
so manter os pés na realidade,
a desinformação pode causar
maior sofrimento”, alerta a
psiquiatra. Na mesma linha,
David Neto, da Ordem dos Psi-
cólogos, chama a atenção para
as consequências das notícias
alarmistas: “Como estamos a
ser sistematicamente bom-
bardeados com informação,
há pessoas que encaram o
vírus como ameaça constan-
te e vivem a exposição aos
média com grande ansiedade,
enquanto outras, simplesmen-
te, desligam.” No meio (termo)
estará a virtude.
> E O NATAL?
A transmissão do SARS-
CoV-2 no meio familiar tem
vindo a ganhar expressão,
segundo as autoridades de
saúde, que também apontam
as deslocações no período de
férias como uma das causas
para o aumento do número de
infetados. Mas então e o Natal?
António Costa já deu a entender
que não se atreve a separar
famílias, como fez na Páscoa.
> PASSAGEM
DE ANO CÁ DENTRO
Destinos com temperaturas
amenas, que convidem a passar
mais tempo ao ar livre, são prefe-
ríveis a escolhas mais frias, como
as estâncias de esqui, também
uma tradição na hora de trocar
de ano. Mas o que é mesmo
desaconselhável, segundo a
DGS, é sair para “fora do espaço
europeu, sobretudo para destinos
sem ligações fáceis a Portugal”.
Se calhar, tal como no verão, o
melhor é pensar em ficar por cá
na passagem para 2021.
> SEM MEDO
Antes e depois da quadra festiva,
haverá que dosear o medo. “O
desafio é ter o suficiente para
aderirmos às medidas de prote-
ção, mas sem o tornar obsessivo
ou paralisante, ao ponto de não
nos deslocarmos ao hospital
para despistar, por exemplo, o
aparecimento de um caroço, que
pode ser um sinal de doença
oncológica”, sublinha David
Neto, com o pragmatismo que
também contagia a mensagem
de Maria Antónia Frasquilho: “Na
Segunda Guerra Mundial, apesar
dos bombardeamentos em Lon-
dres, as pessoas continuaram a
trabalhar e a ir à escola. A vida
não para, temos é de viver com
inteligência, sem correr riscos
desnecessários.”
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 43
Ideia antiga Aos 46 anos,
o fundador da Farfetch lança
a sua fundação, depois de
vários anos ligado à filantropia
JOSÉ NEVES
Gostaria de
ver Portugal
perto de uma
Suécia ou de
uma Coreia
do Sul
O fundador da Farfetch criou uma
fundação para dar o seu contributo
na criação de competências para a
revolução digital que estamos a viver.
Para que “ninguém f ique para trás” e
não tenhamos de enfrentar “um grave
problema de empregabilidade”
C E S A LT I N A P I N T O LUCÍLIA MONTEIRO
Q
Foi no Porto, no espaço Indulgent, que
a Fundação José Neves improvisou um
estúdio para transmitir, em streaming,
o seu primeiro evento global. Convida-
dos de várias partes do mundo alerta-
ram para a urgência de criar condições
para que todos tenham acesso à melhor
educação possível. Foi também ali que
José Neves se desdobrou em entrevis-
tas para dizer ao que vinha.
Agora que se tornou bilionário,
o que mudou na sua vida?
A primeira palavra que me vem à
cabeça é gratidão. Porque realmente
tive muita sorte. Comecei a pro-
gramar com 8 anos, tive a minha
primeira empresa de criação de
software aos 19. Tive a sorte de fazer
aquilo de que gosto, numa empresa
tecnológica como a Farfetch. Sempre
quis estar envolvido numa empresa
global. Tive a sorte de ter construído
valor, não só para mim mas também
para os cinco mil colaboradores,
que têm todos ações da empresa;
chamamos-lhe o “Farfetch for all”
(Farfetch para todos). Com esta cria-
ção de valor, alguns deles consegui-
ram comprar casa, pagar o carro ou
fazer poupanças suficientes para pôr
todos os filhos a estudar na universi-
dade… Foi uma criação de valor para
todos. Sinto orgulho e uma enorme
gratidão. A ideia da fundação vem
dessa gratidão, desse sentimento de
partilha. Quando algo de bom nos
46 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
No clube dos milionários José
Neves entrou no ano passado para
a lista dos portugueses mais ricos
em 2015, em Londres, que incentiva
os empreendedores a doarem, pelo
menos, 2% dos seus rendimentos
pessoais para caridade], fui um dos
primeiros signatários, há sete anos,
acontece, queremos partilhar com mesmo antes de ter esta liquidez.
outros. Sou também o primeiro signatário
Tornar-se milionário transfor- português do Giving Pledge, uma
mou-o num filantropo? iniciativa de Bill Gates, que reúne
Muitos fazem filantropia indepen- alguns dos maiores filantropos,
dentemente dos meios financeiros em que se trocam experiências e
que têm. A filantropia é partilha. E a conhecimento sobre o que funciona
maior partilha é a do nosso talento, ou não. Muito dinheiro que vai para
energia, tempo, atenção, criativida- caridade e filantropia é desperdi-
de, conexões e as nossas influên- çado, porque simplesmente não há
cias, para criar impacto positivo na
sociedade, nas nossas comunidades.
A nossa mente intelectual acha que,
quando damos, ficamos sem aquilo
que damos. Mas o nosso coração
sabe que, quando partilhamos e
damos, ganhamos. Este lado huma-
no é o mais importante. E qualquer
pessoa pode fazê-lo, seja qual for o
seu nível económico. É importante
partilhar o nosso talento.
Faz alguma distinção entre filan-
Muito
tropia e caridade?
O importante é tentarmos criar
dinheiro
impacto positivo. Na contribuição fi-
nanceira, comprometi-me com dois
que vai para
terços de tudo o que tenho durante a
minha vida e no momento da minha
caridade e
morte. Sou um componente antigo
do Founders Pledge [uma organi-
filantropia é
zação sem fins lucrativos fundada desperdiçado

preocupação em estudar e medir o
impacto de cada uma das medidas.
Esse impacto tem de ser pragmático,
claro, e tem de poder ser medido.
Isso é que é filantropia e também o
que poderia ser caridade. E, aí, elas
juntam-se.
Quer dar o peixe ou dar a cana
para ensinar a pescar?
Em Portugal e em todos os países do
Sul da Europa, temos pouca tradição
disto. Já nos países anglo-saxónicos,
Estados Unidos ou Reino Unido,
existe uma tradição muito grande,
tanto de caridade como de altruís-
mo e filantropia. Podemos aprender
muito com essas sociedades, em que
a filantropia é esperada e faz parte de
um percurso de realização pessoal.
Isto ainda faz falta na nossa cultura.
Pensamos muito em determinados
tipos de caridade, mas todos deve-
mos estar envolvidos em atividades
filantrópicas.
A fundação tem, nesta fase, cinco
milhões para aplicar através da
educação. Onde foi buscar este
modelo?
A missão é ajudar a transformar
Portugal numa sociedade do co-
nhecimento, para elevar o nível de
desenvolvimento humano. Este tem
muitas vertentes: educação, saúde,
liberdade de expressão, igualdade,
segurança... Enfim, muitas variáveis.
Há uma tabela da OCDE com o
ranking dos países mais desenvol-
vidos ao nível do desenvolvimento
humano – que é diferente do desen-
volvimento económico. Por exemplo,
os Estados Unidos têm um desen-
volvimento económico enorme, mas
um desenvolvimento humano muito
baixo. O maior catalisador para o caso
português é a educação. Daí a iniciati-
va dos ISA e do Brighter Future.
Que resultado pretende,
exatamente?
Há aqui também uma vertente
pessoal. Desenvolvi a minha ativida-
de profissional na economia digital.
A revolução digital que vivemos é
muito mais impactante do que a
Revolução Industrial. Essa revolução
digital está a criar riqueza; basta ver
que no S&P500, o índice das 500
maiores empresas americanas, 25%
– um quarto de toda a capitalização
bolsista – são tecnológicas. Mas há
o risco de haver pessoas que ficam
para trás por não terem as compe-
tências necessárias para participar
nesta nova economia. Não estamos
a falar só de programadores. Dou
o exemplo da Farfetch: dos cinco
mil colaboradores, apenas 30% são
programadores, analistas de sis-
temas ou informáticos, vindos das
tecnologias da informação. Ou seja,
3 500 têm outras competências para
a economia digital: fazem criação de
conteúdos (não jornalísticos, mas
editoriais de moda), design gráfi-
co, profissionais de marketing, de
comunicação. Se não fizermos isto
para um número muito alargado de
portugueses, vamos ter um grave
problema de empregabilidade.
O mais urgente está realmente na
educação. E esta crise da Covid-19
está a acelerar a necessidade de
os portugueses adquirirem novas
competências para conseguirem
adaptar-se. Há empresas que estão a
contratar pessoas e a aumentar pos-
tos de trabalho. Nem todas estão em
layoff ou a reduzir empregos. Como
vamos dotar os portugueses das
competências necessárias para não
termos um problema grave dentro
da comunidade? Essa é a urgência.
Cada um é livre de escolher
o curso?
Exato. Há 100 cursos à disposição
em 22 instituições de ensino, entre
universidades, politécnicos, boo-
tcamps. São pós-graduações, no
máximo até dois anos, e qualquer
português pode concorrer, indepen-
Um bom negócio
para o negócio?
Prós e contras de ter uma fundação
A Fundação José Neves, com sede legal
no Porto, foi criada pelo empresário en-
quanto representante da sua José Neves
Foundation, de Londres. Esta “é reconhe-
cida e supervisionada pelo Governo in-
glês através da UK Charity Commission
e tem um trustees board internacional
que supervisiona as doações realizadas
à Fundação José Neves”, segundo as
respostas enviadas à VISÃO. De acordo
com os estatutos, o património inicial
mínimo é de 250 mil euros colocados
por essa fundação inglesa, mas isso não
diz nada sobre o seu “poder de fogo”. Isto
porque José Neves vai pôr o seu próprio
património (em valor não discriminado)
ao serviço dos trabalhos da fundação.
“O meu compromisso como Fundador é
dotar a Fundação de meios significativos,
assumindo o compromisso de doar dois
terços dos meus ativos, ao longo da
minha vida, para perseguir este objetivo
maior”, afirma o empresário na Carta do
Fundador. No ano passado, entrou pela
primeira vez na lista da EXAME dos mais
ricos de Portugal, com a sua participa-
ção na Farfetch avaliada em mais de 370
milhões de euros. O valor desta partici-
pação aumentou, entretanto, e estes cál-
culos não incluem o valor já encaixado
com a venda de parte da empresa, antes
da entrada em bolsa.
Mas o que significa criar uma fundação
e que vantagens existem? Navegar pela
legislação fiscal das fundações é um
desafio (está dispersa e conduz, muitas
vezes, a interpretações distintas), mas
há vários benefícios claros, nomeada-
mente fiscais.
Fundações de mera utilidade pública
(por exemplo, com fins científicos ou
culturais, como a Champalimaud, a
Gulbenkian), se reconhecidas como de
utilidade pública, têm um regime fiscal
mais benéfico, explica à VISÃO o fiscalis-
ta Tiago Caiado Guerreiro. Se exercerem
principalmente atividades para os fins
que justificaram essa utilidade pública,
podem beneficiar de isenção de IRC.
E os prédios que fiquem destinados à
realização dos seus fins podem ainda ser
isentos de IMI e IMT.
Caiado Guerreiro aponta também a
importância atribuída pelo legislador ao
mecenato, que permite majorar as dedu-
ções de donativos concedidos a funda-
ções. Esta fonte de receita, exemplifica, é
considerada a 140% do total nas contas
do mecenas, se os donativos se destina-
rem apenas a prosseguir fins de carácter
social. P.Z.G. e T.F.
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 47
 16 SET $28,82
25
2018 24 FEV
2019
20
15
10
VALORES EM DÓLARES (EUA)
SET NOV 2019 MAR MAI JUL
Euforia, depresão
e recuperação
da Farfetch
A Farfetch é o exemplo mais reluzente da
nova geração de empresas portuguesas
que se transformaram em unicórnios
(avaliadas em mais de mil milhões de dó-
lares). Das empresas desta categoria, foi
a única a ir para a bolsa, o que lhe trouxe
mais valor, mais visibilidade, mas também
mais problemas. Em setembro de 2018,
entrou na bolsa de Nova Iorque. As ações
foram vendidas a 20 dólares, dando à
empresa uma avaliação a rondar os 5,8
mil milhões de dólares. Depois da euforia
inicial, com os títulos a subirem perto de
50%, veio uma forte correção.
O ano seguinte foi de altos e baixos, mar-
cado pelos resultados que desiludiram os
analistas e por uma campanha agressiva
de aquisições, por uma empresa ainda
à procura de chegar ao lucro. O culmi-
nar deste percurso foi a colocação em
tribunal de uma ação coletiva por parte
de um grupo de investidores que alega ter
sido enganado na compra das ações da
Farfetch. Defendem que estas não valiam
o que pagaram e que só o fizeram porque
foram enganados. Este processo dura há
cerca de um ano e está ainda em tribunal,
visando a Farfetch e os seus dirigentes,
entre eles José Neves. A empresa tem
evitado falar do caso, mas José Neves
já salientou que este tipo de processos é
muito comum nos EUA, visando sobretu-
do empresas tecnológicas que entram em
bolsa. Do lado da acusação estão, aliás,
grandes escritórios de advogados conhe-
cidos exatamente pela sua agressividade
neste tipo de processos, que muitas vezes
terminam com um acordo.
Praticamente um ano depois dessa
acusação, as ações da Farfetch mostram
uma forte recuperação e têm estado
até acima do preço de venda. Já os
resultados continuam no vermelho mas,
apesar do aumento das perdas, os dados
operacionais parecem ter agradado
aos investidores, com as ações a reagirem
em alta. T.F.
48 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
$29,32
16 AGO
2019
$20
PREÇO DE VENDA $25,29
27 SET
2019
$7,05
29 MAR
2020 AR/VISÃO
SET NOV 2020 MAR MAI JUL SET
dentemente de ter ou não trabalho,
ou da sua condição económica. É
uma espécie de bolsa reembolsável.
O candidato apresenta-se, diz que
quer tirar o MBA, a pós-graduação
ou o bootcamp x, que custa, vamos
supor, 30 mil euros. Sendo aprovado,
fazemos o pagamento total das pro-
pinas e o candidato só tem de reem-
bolsar se vier a conseguir emprego
acima de um determinado patamar
salarial, que é pré-acordado.
Isso não é dar agora e tirar depois?
Não. Se tivermos um sistema com
circularidade, podemos ajudar muito
mais pessoas. Se não fosse reem-
bolsável, ajudaríamos muito menos.
Faz todo o sentido alguém que tire
um MBA e, com isso, consiga uma
promoção ou subir o nível salarial,
e que uma percentagem desse sa-
lário volte a entrar no sistema para
ajudar outros que querem fazer esse
percurso. Criamos aqui um efeito
multiplicador, para que daqui a al-
guns anos a fundação esteja a ajudar,
não 1 500, mas dezenas de milhares
de portugueses. Começámos pelas
pós-graduações de dois anos em
Portugal, mas a ideia é expandir,
no futuro, para pós-graduações no
exterior, para licenciaturas e outros
tipos de formação.
O candidato tem de mostrar
a declaração de IRS e provar que
é pobre?
Não, isto não é um empréstimo. Não
tem nada que ver com a capacidade
financeira, mas sim com a motiva-
ção. Tem de ser alguém motivado, e
vamos fazer testes de motivação. Es-
tamos a trabalhar com investigadores
na área da psicologia e dos testes
psicotécnicos para garantir que têm a
motivação certa. Para bem delas, não
só para proteger a fundação. E vamos
usar a nossa base de dados – daí o
Brighter Future estar conectado,
também, com este programa – para
que possam tomar decisões baseadas
em factos. Se eu tirar um MBA que
custe uns 30 mil euros, será que
vou conseguir uma promoção?
Será que vou conseguir um novo
emprego? E que salário vou ter?
O Brighter Future vai dizer isso, com
dados em tempo real, ou quase real.
Este é o nosso segundo projeto. Com
base nesses dados, os candidatos, a
fundação ou as universidades podem
tomar decisões, para que as pessoas
não percam tempo e a fundação não
perca dinheiro. É garantido que
a pessoa nunca perde dinheiro.
Se não conseguir um emprego ou
uma promoção, não tem de pagar
nada à fundação.
Quer moldar uma nova geração
no País?
Se o programa tiver sucesso, in-
vestiremos mais do que os cinco
milhões. Gostaria muito que, daqui a
dez ou 15 anos, uma grande maio-
ria dos portugueses pudesse dizer:
“Os meus pais não tinham dinheiro,
mas tirei a minha licenciatura ou a
minha pós-graduação, porque tive
uma bolsa reembolsável da Fundação
José Neves, e isso foi extremamente
útil para o meu futuro.” E gostaria
também que dissessem: “Sinto-me
orgulhoso, porque consegui retribuir
ao programa, e essa retribuição está
agora a ajudar miúdos que precisa-
vam desses fundos.” Estaremos
a criar circularidade no sistema.
E o número de pessoas que podemos
ajudar é maior.
Faz isso por considerar que Portu-
gal tem falhado nesse propósito?
Portugal não tem nada com esse
propósito! Temos um sistema de en-
sino público em que as licenciaturas
são subsidiadas, felizmente. Por isso
é que as licenciaturas não nos pare-
ceram uma prioridade; e é ótimo que
exista um sistema de bolsas e de ação
social. Mas para quem quer tirar uma
pós-graduação, evoluir, requalificar
ou avançar é algo que existe muito
pouco. E muito pouco com estas
características, que estão totalmente
ligadas ao sucesso, e se não houver
sucesso, simplesmente não há obri-
gação nenhuma de devolução.
O que quer que isto acrescente?
O que está a sonhar para o País?
Vamos lá ver: se medirmos o
número de pessoas com grau de
mestrado, MBA ou pós-graduação
hoje, e se medirmos daqui a dez
anos, gostaria de poder dizer que
essa percentagem de portugueses é

Dois países Nascido no Porto,
José Neves vive em Londres, tendo
fundações tanto cá como lá
muito maior e que o nosso ISA con-
tribuiu marcadamente para isso.
E não terei dúvidas nenhumas de que
gerou valor, porque vamos conseguir
medir, na nossa base de dados, pelo
salário médio. No Brighter Future,
podemos ver qual o nível salarial de
uma pessoa com e sem MBA. Qual
o nível salarial de um engenheiro
com e sem mestrado. Se daqui a dez
anos medirmos tudo isso e con-
seguirmos dizer que x milhares de
portugueses conseguiram elevar em
x milhares de euros o seu salário e os
rendimentos das suas famílias, isso é
uma criação de valor.
E é riqueza para o País?
O sonho seria ver Portugal no topo
desse ranking da OCDE, em que
estão sempre os países escandinavos.
Imagine ver Portugal perto de uma
Suécia ou de uma Coreia do Sul. Há
lá países pequenos e sem recursos
naturais. A Suécia tem, mais ou me-
nos, o mesmo número de habitan-
tes que Portugal, não tem recursos
naturais e tem um nível de desen-
volvimento económico e humano
incrível. Gostaria de ver Portugal
nesse patamar. Temos a humildade
de saber que vamos dar um pequeno
contributo. Temos de ser nós, com as
outras empresas, as outras funda-
ções e toda a sociedade, em Portugal.
Seria um sonho para todos.
E é possível. Porque não?
Já que tem uma estratégia para o
País, o que pensa do plano estra-
tégico de Costa Silva e onde é que
este coincide com as suas ideias?
Vou ser sincero: não conheço esse
plano estratégico. Na fundação, o
que estamos a fazer é uma missão
muito concreta de tornar Portugal
numa sociedade do conhecimento,
Criar talento
é o mais
importante.
Se algum for lá
para fora, não
me preocupa
com duas iniciativas também muito
concretas: uma são os ISA, o acesso
a bolsa; e a outra é o Brighter Future.
E temos consciência de que este é um
pequeno passo para contribuir para
a sociedade em geral e para o esforço
que o Governo também está a fazer.
Mas sem tentar de forma alguma
influenciar ou fazer qualquer lóbi.
Não teme estar a formar pessoas
que vão emigrar e ser aproveitadas
por outras empresas europeias?
Como se pode reter este talento?
Se isso acontecesse, nem era mau de
todo. Imagine que começávamos a
ter prémios Nobel a torto e a direi-
to... Temos três mil pessoas formadas
em Ciências Biomédicas, um grande
número de portugueses com papers
científicos nalgumas das maiores
universidades do mundo, com avan-
ços e descobertas incríveis, porque
foram lá para fora. Eu também fui lá
para fora. Não vejo problema nisso.
Agora, a retenção de talento cá é
algo que compete ao setor privado,
às empresas. É um desafio também
para a Farfetch. As empresas têm de
criar motivação, ambiente de traba-
lho e condições salariais que rete-
nham as pessoas. Mas se formarmos
pessoas com competências à escala
global e se elas forem atraídas por
grandes empresas, instituições de
ensino e universidades estrangeiras,
e aí derem cartas, é fantástico para
o País.
As empresas têm capacidade
para isso?
Sim. Há tantas startups em Portugal.
Estou a lembrar-me da OutSystems,
um dos nossos parceiros, da Talk-
desk, da Feedzai… tantas tecnológi-
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 49
Potenciar
a mudança
São quatro os pilares em que
assenta a estratégia de atuação
Democratizar
Ajuda à formação
Disponibilizar meios financeiros para
criar condições de igualdade no acesso
à Educação. Para já, os apoios (ISA)
abrangem 100 pós-graduações
em 22 instituições portuguesas
Futuro
Informação para melhores decisões
Identificar as competências e as
profissões de futuro, antecipando
a requalificação necessária. Um dos
instrumentos disponibilizados é a
plataforma Brighter Future, uma base
de dados com vários indicadores sobre
as profissões
Digital
Competências atualizadas
Preparar a adaptação para a revolução
digital, que vai valorizar a educação
ao longo da vida
Equilíbrio
Desenvolvimento em várias
dimensões
Unificar a dimensão intelectual e
espiritual do conhecimento, reforçando
o desenvolvimento humano, moral
e ético, que equilibra a sociedade
50 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
Chuva de estrelas No evento
digital de lançamento da fundação
participaram figuras como
a ex-modelo Naomi Campbell
ou o músico will.i.am
cas, em que qualquer um daqueles
profissionais poderia estar a traba-
lhar em Silicon Valley. E não estão.
Estão em Portugal. É um desafio que
já está a ser vencido. Criar talento é
o mais importante. Se algum desse
talento for lá para fora, não me preo-
cupa. É melhor do que não o ter.
Põe muita ênfase nas tecnológi-
cas, mas temos visto que existe aí
uma grande bolha ou que estão
hipervalorizadas. Ou não?
Não sou investidor. Como tal, não
comento [risos]. Tenho apenas pe-
quenos investimentos como “angel”
[“business angel” é alguém que
ajuda a alavancar negócios].
Vivemos um tempo em que difi-
cilmente conseguimos prever o
futuro. Tem assim tanta certeza
do que o futuro vai precisar?
Não tenho certeza nenhuma. Por
isso, existe a Brighter Future. Entra
na plataforma, clica numa profissão,
vamos supor, na de advogado. Ela
vai dizer-lhe o salário médio dos ad-
vogados em Portugal, quantos estão
empregados, quantos estão desem-
pregados, a evolução do salário por
região, por faixa etária, diferença
salarial entre homens e mulheres
– que é uma coisa que vai dar que
falar, espero, porque ainda existe
muita desigualdade, infelizmente.
Isto permite obter dados em tempo
real sobre o mercado de trabalho, a
empregabilidade, as competências.
Mas vai permitir também a empre-
sas, famílias, pais, filhos ou institui-
ções de ensino tomarem decisões
com base em factos e, assim, cons-
truir o futuro. Realmente, ninguém
sabe como vai ser. A única coisa que
podemos fazer é olhar para os dados
do presente e tentar extrapolar
as tendências do futuro.
Há um pilar intrigante: o da es-
piritualidade, do “conhece-te a ti
mesmo”. O que significa isto?
Há dois tipos de conhecimento. O do
exterior, do mundo à nossa volta, da
física, química, engenharia mecânica,
digital… tudo o que é o ser humano
manipulando a realidade e o nosso
meio ambiente; e existe o conheci-
mento interno, quando viramos a
nossa consciência para nós e come-
çamos a descobrir coisas sobre nós.
Quando começamos a valorizar a
psicologia, a psicoterapia, a neuro-
ciência, também a espiritualidade –
seja qual for a tradição ou a religião,
porque não há aqui nenhum conceito
religioso –, isso é muito importante
para termos uma sociedade equi-
librada, mais humana e com mais
valores. Não podemos ter uma socie-
dade equilibrada quando as pessoas
vivem só do intelecto. O que vamos
fazer é surpresa, estamos ainda
a trabalhar nisso. cmpinto@visao.pt
CANAL 63

16 200 | LOJAS MEO | MEO.PT

 JOÃO PINTO QUER
NOVA SENTENÇA
DOIS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA FORAM ACUSADOS
DE TEREM ESCOLHIDO A DEDO O MAGISTRADO QUE IA JULGAR UM
RECURSO DE JOSÉ VEIGA. SETE ANOS DEPOIS, JOÃO VIEIRA PINTO,
ÚNICO CONDENADO NESSE PROCESSO, DEVERÁ PEDIR A REVISÃO
DA SENTENÇA E VAI AVANÇAR COM PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO
CONTRA O ESTADO, CONTRA VEIGA E CONTRA OS JUÍZES
S Í LV I A CA N E C O

Assistente João Vieira

Pinto foi chamado a dizer,
na Operação Lex, o que
sabia sobre as relações
entre Rangel e José Veiga,
alegado corruptor do juiz

52
5 2 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
 J
João Vieira Pinto começou por ser investigado
por fazer parte de um quarteto que montara
um esquema para o então jogador de fute-
bol não pagar impostos sobre um prémio de
assinatura de 4,2 milhões de euros, aquan-
do da sua transferência do Benfica para o
Sporting. Mas, em 2013, acabou como único
culpado desse crime de fraude fiscal, tendo já
reembolsado ao Estado mais de meio milhão
de euros. O antigo jogador de futebol nunca
se conformou com a decisão do Tribunal da
Relação de Lisboa que absolveu o empresário
José Veiga e os então dirigentes do Sporting,
Luís Duque e Rui Meireles, condenando-o
apenas a si. E agora, sete anos depois, o antigo
avançado do Benfica e do Sporting tenciona
usar os emails, os SMS e outros indícios re-
colhidos pela investigação da Operação Lex
como arsenal jurídico para tentar repor a
justiça na sua condenação.
A defesa do atual diretor da Federação
Portuguesa de Futebol (FPF) entende que o
conteúdo do Lex é suficiente para mostrar
que João Vieira Pinto terá sido prejudicado
intencionalmente nessa decisão judicial de
2013. E está a estudar em que moldes pedirá
a revisão da sentença, que foi assinada por
Rui Gonçalves, juiz-desembargador apa-
nhado no meio da investigação dos alegados
pagamentos do empresário José Veiga a Rui
Rangel – e que vai continuar a ser investigado,
noutro processo, por suspeitas de corrupção
naquela decisão.
Mas há mais: ao que a VISÃO averiguou,
o ex-jogador de futebol vai aproveitar o seu
estatuto de assistente na Operação Lex para
pedir uma indemnização pelos danos sofri-
dos. Contra José Veiga, contra Rui Rangel,
contra o ex-presidente do Tribunal da Relação
de Lisboa, Luís Vaz das Neves, e até contra o
54 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
Estado. E, se não conseguir que o seu pro-
cesso seja reanalisado por outros magistrados
através de um recurso de revisão, admite
ir até ao Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem reclamar que não teve uma sentença
justa, porque, ao contrário do que ditam as
regras, não teve direito a um juiz escolhido
aleatoriamente.
A investigação da Operação Lex mostra
que Rui Gonçalves não terá sido seleciona-
do para julgar o caso de João Pinto e de José
Veiga (o processo 1/05.2JFLSB), através do
programa de computador em que é feita a
distribuição de juízes. O processo terá sido
entregue em mãos por Luís Vaz das Neves,
que presidiu àquele tribunal entre 2005 e
2016.
O Lex também mostra que o juiz Rui Gon-
çalves, investigador do Centro de Investigação
de Direito Penal e Ciências Criminais, recebeu
o recurso de Veiga no seu email três meses
antes de o processo lhe ser distribuído. Que
O EX-JOGADOR antes da distribuição houve troca de mensa-
gens entre Rangel, então juiz-desembarga-
INVOCARÁ O dor naquele tribunal, e o então presidente,
Luís Vaz das Neves, com o número daquele
CONTEÚDO DA processo. E que, em datas próximas àquela
“OPERAÇÃO
decisão judicial, José Veiga terá transferido
cerca de 250 mil euros para um homem que
LEX” PARA o Ministério Público acredita ser um testa de
ferro de Rui Rangel.
MOSTRAR Para os procuradores que conduziram esta
investigação, não restavam dúvidas de que Rui
QUE, EM 2013, Rangel e Vaz das Neves atuaram em conjunto
para beneficiar José Veiga nesse processo.
NÃO TEVE UMA Por essa razão, o empresário é acusado de
SENTENÇA
corrupção ativa, e os dois juízes, de corrup-
ção passiva para ato ilícito. O que ainda não
JUSTA
se sabe é se Rui Gonçalves, o juiz escolhido
a dedo para julgar esse processo, o juiz que

A transferência Ao lado do agente
José Veiga, João Vieira Pinto
protagonizou a polémica saída
do Benfica para o rival Sporting
recebeu esse recurso no seu email antes de o
processo dar entrada no Tribunal da Relação
de Lisboa e o juiz que viria a absolver José
Veiga em julho de 2013, tomou essa decisão
de livre consciência, de forma imparcial, ou
porque lhe foi pedido que beneficiasse o
empresário ou, até, porque recebeu alguma
contrapartida para o ilibar.
O Ministério Público precisa de fazer
outras diligências para chegar a essas con-
clusões. Mas, somando tudo o resto que já
se sabe, adensam-se as suspeitas sobre a
decisão que absolveu Veiga poder não ter
sido imparcial, quanto mais não seja porque
a escolha do juiz não o foi. Teria o resultado
sido outro se tivesse havido sorteio eletrónico
e o caso tivesse ido parar às mãos de outro
magistrado?
AS HIPÓTESES DOS INJUSTIÇADOS
O difícil, agora, é descobrir que ferramentas
legais existem na lei portuguesa para repor a
justiça numa decisão tomada há sete anos, e já
sem qualquer hipótese de recurso (transitada
em julgado, isto é, definitivamente encerrada).
Para mais, o exemplo de João Vieira Pinto
poderá não ser caso único. Durante a investi-
gação, a Polícia Judiciária descobriu centenas
de distribuições manuais de processos dentro
da Relação de Lisboa, e para vários juízes. A
título de exemplo, alguns terão ido parar às
mãos de Rui Rangel, principal acusado neste
processo, e umas dezenas às mãos de Fátima
Galante, sua ex-mulher e então juíza numa
secção cível daquele tribunal superior (tam-
OS NÚMEROS
DO PROCESSO
Uma fraude fiscal,
um acórdão que deu
que falar e, pelo meio, bém acusada na Operação Lex). E, nessas
um alegado esquema centenas de decisões, outros arguidos ou
de corrupção vítimas poderão ter sido prejudicados.
508
Mesmo num caso como o de João Vieira
Pinto, em que já foram encontrados vários
indícios de que o juiz do seu processo não foi
escolhido aleatoriamente, e em que há outros
magistrados acusados de corrupção por cau-
sa do rumo dado a esse recurso, a tarefa da
defesa, a cargo do advogado Tiago Rodrigues
Bastos, não será fácil. O pedido de revisão de
sentença está previsto no Código de Proces-
MIL EUROS
so Penal, mas só se aplica em circunstâncias
Uma fuga ao fisco muito especiais (ver caixa pág. 57). Ninguém
relacionada com um esperava um monstro. “A dimensão deste caso
prémio de assinatura ultrapassa tudo o que pensámos para o pro-
de 4,2 milhões de cesso de revisão. Ninguém esperava ver isto
euros levou João acontecer num dos tribunais de recurso mais
Vieira Pinto a ser importantes do País. Podemos estar a falar de
acusado num centenas de decisões atribuídas ilegalmente e
processo judicial e, de muitos lesados. Muitos deles podem, ainda
depois, condenado hoje, não saber que foram lesados”, lembra
a pagar ao Estado à VISÃO Luís Menezes Leitão, bastonário da
mais de meio milhão
Ordem dos Advogados.
de euros
O caminho mais óbvio para o pedido de
4
revisão de sentença seria seguir a alínea que
dita que este pode ser apresentado quando
outra sentença (já transitada em julgado) der
como provado um crime cometido por um
juiz (ou jurado), “relacionado com o exercício
da sua função no processo”. O que, para sim-
plificar, e olhando para o caso de João Vieira
Pinto, significaria que o ex-jogador de futebol
Além do ex-jogador poderia pedir a revisão do seu acórdão, se Rui
do Benfica, estavam Gonçalves fosse condenado por algum crime
acusados José cometido no âmbito da sua atuação nesse
Veiga, Luís Duque processo e só quando essa condenação tran-
e Rui Meireles. sitasse em julgado. E isso, para o ex-avançado
Mas, dos quatro ou para qualquer outra pessoa que se sentisse
arguidos, três foram
lesada por uma decisão judicial, significaria
absolvidos pela
uma longa espera. “Poderiam passar muitos
Relação de Lisboa
anos sem que se pudesse corrigir a vida de
250
pessoas que podem ter sido prejudicadas”,
atesta o representante dos advogados.
O mais provável é que, para evitar essa es-
pera, a defesa de João Pinto tente enveredar
pela alínea d, que dita que pode ser pedido
um recurso de revisão da sentença quando
se descobrirem “novos factos ou meios de
prova” que suscitem “graves dúvidas sobre a
MIL EUROS justiça da condenação”.
No despacho de acu- Só que, aí, há quem não veja hipótese de
sação da Operação ganhar a causa, fazendo uma interpretação
Lex, os procurado- mais literal da lei. “Creio que essa alínea só
res dizem que José se aplica quando as novas provas são sobre
Veiga pagou cerca a causa, isto é, sobre o processo que já foi
de 250 mil euros a decidido, como uma prova de ADN, por
Rangel (através de exemplo. Olhando para a lei, creio que só
um alegado testa de se houver uma sentença sobre aquele juiz,
ferro) para ser ab- e transitada em julgado, é que há hipótese
solvido no processo de recurso de revisão”, adianta Rui Cardoso,
sobre os impostos de ex-presidente do Sindicato dos Magistrados
João Vieira Pinto do Ministério Público.
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 55
 CINCO JUÍZES DEBAIXO DE FOGO
TRÊS JUÍZES FORAM ACUSADOS NA OPERAÇÃO LEX.
E OUTROS DOIS VÃO CONTINUAR A SER INVESTIGADOS

ORLANDO LUÍS VAZ RUI MANUEL FÁTIMA RUI RANGEL

NASCIMENTO DAS NEVES GONÇALVES GALANTE O antigo desembar-
Sucedeu a Luís Vaz das O ex-presidente do É este o nome do juiz Está separada há gador, entretanto ex-
Neves na presidência Tribunal da Relação do Tribunal da Rela- anos de Rui Ran- pulso da magistratura,
do Tribunal da Relação de Lisboa é acusado ção de Lisboa que, gel, mas nunca se é o principal prota-
de Lisboa e acabou de um crime de cor- em 2013, tomou uma divorciaram no papel. gonista da Operação
por ser afastado desse rupção passiva para decisão polémica ao Continuavam a falar Lex. É acusado de um
cargo, já este ano, ato ilícito (em coau- absolver José Veiga quase diariamente. crime de corrupção
depois das notícias toria) e três crimes e alguns dirigentes Ele trabalhava numa passiva para ato ilícito
sobre o seu envolvi- de abuso de poder, sportinguistas, con- secção penal do por alegadamente ter
mento na Operação por supostamente ter denando apenas João Tribunal da Relação recebido dinheiro de
Lex, razão pela qual ajudado Rui Rangel a Vieira Pinto por um de Lisboa; ela, numa José Veiga para con-
também é alvo de um manipular os sorteios esquema de fraude secção cível. Ele foi seguir que este fosse
processo disciplinar. dos juízes de alguns fiscal. Muitos estra- expulso da magistra- absolvido num pro-
Enquanto investiga- processos que davam nharam este acórdão, tura; ela foi demitida cesso que tinha dado
vam, os inspetores entrada naquele que invertia a decisão compulsivamente. A entrada no Tribunal
da Polícia Judiciária tribunal superior. O de 1ª instância, que investigação usa uma da Relação de Lisboa.
e os procuradores juiz jubilado tornou-se condenara todos os série de emails e men- Antes, recorde-se,
do Ministério Público suspeito na investiga- arguidos por fraude sagens telefónicas Veiga financiara uma
descobriram que este ção devido aos SMS fiscal em coautoria. para acusar Fátima campanha de Rangel
juiz foi o escolhido por trocados com Rui Agora, os dados re- Galante de ter sido à presidência do Ben-
Vaz das Neves para Rangel sobre alguns colhidos pela Opera- cúmplice de Rangel fica. O antigo juiz tam-
decidir um processo processos judiciais ção Lex trazem uma em vários crimes, so- bém terá de responder
de Rui Rangel contra pendentes, e por ter nova luz sobre estes bretudo no branquea- por um crime de
o Correio da Manhã, distribuído em mãos factos. A investiga- mento de dinheiro recebimento indevido
na sequência de o juiz vários processos, ção descobriu que do advogado José de vantagem – por ter
desembargador ter violando as regras dos este juiz recebeu o Santos Martins, que o tentado influenciar
avisado que aquele sorteios eletrónicos recurso de José Veiga Ministério Público diz um processo fiscal
recurso ia dar entrada e do princípio do juiz no seu email cerca ser testa de ferro de pendente contra Luís
e ter pedido ajuda para natural. A acusação de três meses antes Rui Rangel, e a quem Filipe Vieira (em troca
não ser novamente diz que usou os seus de aquele processo a juíza dava ordens de bilhetes e viagens
prejudicado. Chamado poderes funcionais lhe ser oficialmente recorrentes para lhe para jogos cedidos
a decidir esse recurso, para escolher o juiz distribuído; e que pagar despesas. Além pelo Sport Lisboa
Orlando Nascimento que julgou o processo o processo lhe foi do branqueamento de e Benfica) –, quatro
viria mesmo a conde- de José Veiga (Rui entregue em mãos capitais, é acusada de crimes de abuso de
nar aquele jornal diário Gonçalves), o juiz que pelo então presidente um crime de corrup- poder (dois deles em
a pagar 50 mil euros levantou o arresto dos daquele tribunal, Luís ção passiva para ato coautoria com Luís
a Rui Rangel, decisão bens do empresário Vaz das Neves. Rui ilícito, em coautoria Vaz das Neves, ex-pre-
que seria depois re- angolano Álvaro So- Gonçalves argumen- com Rangel (sendo sidente da Relação de
vertida pelo Supremo brinho (Rui Rangel) e tou que não costuma os corruptores ativos Lisboa), um crime de
Tribunal de Justiça. até o juiz que ia decidir ver os emails nem é Santos Martins e um usurpação de funções
Na Operação Lex, foi um processo de Ran- amigo de Rangel, mas cidadão espanhol – por redigir pareceres
ouvido apenas na qua- gel contra o Correio da os procuradores não chamado Ruy Carre- e projetos legislativos
lidade de testemunha, Manhã (Orlando Nas- estão convencidos, ra), e seis crimes de –, seis crimes de falsi-
mas vai continuar a cimento). Antes desta pelo que decidiram fraude fiscal, entre ficação de documento,
ser investigado noutro última distribuição, continuar a investigar. 2012 e 2017. Respon- seis crimes de fraude
processo. A equipa de Rangel terá enviado Terá Rui Gonçalves de ainda por um crime fiscal e um crime
procuradores quer sa- mensagens a pedir- sido escolhido para de abuso de poder, por de branqueamento.
ber se o ex-presidente -lhe ajuda para não julgar aquele recurso ter abusado das suas Rangel começou a ser
da Relação de Lisboa ser “prejudicado outra porque Rangel e Vaz funções e ter ajudado investigado em 2016,
tomou aquela decisão vez”. Vaz das Neves das Neves sabiam que a redigir centenas de devido a um acaso da
em consciência ou disse que ia ligar para não acreditava em acórdãos que, depois, Operação Rota
para beneficiar Rangel, o tribunal a pedir que coautoria nos crimes eram assinados por do Atlântico, como
ou até se sabia que não o processo só fosse de fraude fiscal, ou foi Rui Rangel. “Tens a a VISÃO noticiou na
tinha sido sorteado distribuído quando chamado a beneficiar papinha toda feita”, altura. Foi alvo de
para julgar o caso. chegasse a Lisboa. José Veiga? dizia-lhe, nos emails. buscas em 2018.

56 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 QUEM PODE PEDIR
A REVISÃO DE UMA
SENTENÇA?
Agora, no campo das hipóteses, imagine- Só há sete
mos que o juiz Rui Gonçalves nunca vem a circunstâncias em
ser condenado ou sequer acusado por algum que a lei permite que
crime relacionado com o processo de João uma decisão judicial
possa ser reanalisada
Vieira Pinto, porque nunca se encontram
por outro juiz
quaisquer provas de que decidiu assim a
pedido de alguém ou para beneficiar Veiga. E
imaginemos também que, daqui a uns anos, 1 Quando outra
Rui Rangel e Luís Vaz das Neves são efetiva- sentença transitada
mente condenados por corrupção por terem em julgado tiver
unido esforços para beneficiar o empresário considerado falsos os
e ex-agente de futebolistas, viciando a dis- meios de prova;
tribuição daquele processo. 2 Quando outra
O facto de não existir crime de Rui Gon- sentença tiver dado
çalves não significa que não possa ter existido como provado crime
um crime cometido por outros juízes, rela- cometido por juiz (ou Fátima Galante Nos anos 90,
cionado exatamente com o mesmo processo. jurado), relacionado chegou a ser suspeita de vender
Ou, no limite, mesmo não havendo qualquer com o exercício da sua sentenças, mas foi ilibada pelo
crime provado, isso não significa que não função no processo; Supremo. Agora, é acusada
possa ter havido uma distribuição ilegal de de ser cúmplice do marido
centenas de recursos no Tribunal da Relação 3 Quando os factos Rui Rangel em vários crimes
que fundamentaram
de Lisboa, violando o chamado princípio do
a condenação forem
juiz natural.
inconciliáveis com
Se a lei for interpretada de forma literal, os que foram dados
Mas, quando o caso chegou ao Tribunal da
corremos o risco de saber que houve pessoas como provados noutra Relação de Lisboa, só o antigo avançado do
injustiçadas mas ter um sistema que não cor- sentença; Benfica e do Sporting foi condenado: a uma
rige essa injustiças? Tudo indica que sim. “O pena de prisão suspensa por quatro anos,
sistema não estava preparado para uma coisa 4 Quando se condicionada ao pagamento de 508 mil eu-
destas. A violação das regras de distribuição, descobrirem novos ros. A decisão, tomada em julho de 2013 pelos
por si só, não permite a reabertura de um factos ou meios de desembargadores Rui Gonçalves e Conceição
processo já encerrado. Há casos em que pode prova que suscitem Gonçalves, já na altura causou polémica.
não haver corrupção, mas apenas manipula- graves dúvidas sobre a Afinal, os juízes tinham entendido que não
justiça da condenação;
ção. Mas a nossa lei não oferece resposta para podia haver coautoria na fraude fiscal – o que,
isso”, lamenta o procurador Rui Cardoso. 5 Quando a condenação naquele caso concreto, significava dizer que
É nesse sentido que o bastonário da Ordem foi fundamentada com o elaborado esquema de fuga ao fisco saíra
dos Advogados pede ao poder político uma provas proibidas; unicamente da cabeça de João Pinto.
alteração legislativa urgente, que amplie as O Ministério Público não se conformou
6 Quando for declarada,
possibilidades do recurso de revisão de sen- pelo Tribunal
por três arguidos terem sido absolvidos e pe-
tença a estes casos pendentes, sob pena de se Constitucional, uma diu a nulidade do acórdão: estava provado que
estar perante uma chamada inconstitucionali- inconstitucionalidade todos tinham comparticipado na ocultação de
dade por omissão: “Os pressupostos atuais são com força obrigatória rendimentos, e se os juízes não vislumbra-
tão apertados que temo que muitos lesados geral de norma de vam coautoria na fraude fiscal, teriam, pelo
possam não ter hipótese de recurso. E ainda conteúdo menos menos, de vislumbrar que os outros arguidos
não sabemos se não há, nesta lista, pessoas favorável ao arguido; tinham sido cúmplices. Mas Rui Gonçalves foi
que estão a cumprir penas efetivas. É preciso inflexível: a culpa era do Ministério Público,
facilitar os pressupostos do recurso de revisão, 7 Quando uma porque se queria discutir a cumplicidade na
sentença vinculativa
permitir que sejam interpostos antes de uma fraude fiscal, deveria ter feito essa acusação,
do Estado Português,
condenação do juiz, logo quando há dúvidas e não a da coautoria.
proferida por uma
fundadas e sérias sobre a sua imparcialidade. instância internacional,
Foi já em 2016 que a decisão passou de
Não vejo o poder político muito interessado for inconciliável com a polémica a suspeita, quando se percebeu que
em fazê-lo, o que me faz adivinhar futuras condenação. Rui Rangel poderia ter recebido dinheiro de
condenações num tribunal internacional.” Veiga para influenciar decisões judiciais nos
processos em que o empresário era visado.
A ESTRANHA ABSOLVIÇÃO Mais tarde, o desenrolar da investigação

“É URGENTE
O ex-agente de futebolistas José Veiga foi con-
denado pelas Varas Criminais de Lisboa a uma
pena suspensa de quatro anos e seis meses de
prisão por fraude fiscal e branqueamento de
capitais, juntamente com dois dirigentes do
Sporting (Luís Duque e Rui Meireles) e João
Vieira Pinto, por supostamente terem arqui-
mostrou que Rui Gonçalves recebeu, no seu
email, em outubro de 2012, o recurso do
UMA ALTERAÇÃO empresário, mas este só lhe foi distribuído
a 7 de janeiro de 2013. Uns dias antes dessa
LEGISLATIVA”, distribuição manual, Rangel enviou ao então
presidente da Relação de Lisboa uma men-
AVISA MENEZES sagem que tinha apenas o número de um

LEITÃO
tetado um esquema para o jogador não pagar processo: 1/05.2JFLSB.
impostos sobre um prémio de assinatura. scaneco@visao.pt

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 57

E SE A GLOBALIZAÇÃO
TIVER COMEÇADO
HÁ MAIS DE MIL ANOS?

58 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

Essa é a teoria provocadora que a historiadora
Valerie Hansen defende num livro que é
também uma fascinante volta ao mundo. Uma
teoria que tem na base o desembarque dos
exploradores vikings no Canadá e no México,
cinco séculos antes de Cristóvão Colombo
fazer a sua travessia para as Américas
ROSA RUELA

Como nas sagas

Os relatos dos poetas
islandeses não eram
fruto da sua imaginação.
No ano 1000, os vikings
atravessaram mesmo o
Atlântico, desembarcando
na América do Norte

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 59

 A
“A rua está repleta de gente que compra colares
de pérolas do Sri Lanka, ornamentos esculpidos
em marfim africano, perfumes preservados com
estabilizadores oriundos do Tibete e da Somália,
frascos fabricados em âmbar do Báltico e móveis
de todas as madeiras aromáticas imagináveis.
O perfume de incenso estrangeiro impregna o
ar. Ao virar da esquina, uma loja vende produ-
tos caros e de alta tecnologia, lado a lado com
versões modificadas para os consumidores
locais. Conforme os feriados, devotos hindus,
muçulmanos ou budistas juntam-se à multidão.”
Esta podia ser a descrição de uma qualquer
grande metrópole moderna, mas Quanzhou
era assim há mais de mil anos, acredita Vale-
rie Hansen, especialista em História Mundial
e professora da Universidade de Yale (EUA).
Tudo o que na época estava à venda naquela
cidade chinesa portuária, situada a meio cami-
nho entre as atuais Xangai e Hong Kong, eram
bens comuns no ano 1000. Bens importados
que os chineses financiavam com um vigoroso
comércio exportador, em que o produto tec-
nologicamente mais sofisticado era a cerâmica
de alta temperatura.
É com esta descrição algo cinematográfica
que a historiadora arranca no seu novo livro,
Ano 1000 – O Verdadeiro Início da Globali-
zação (Porto Editora, 336 págs., €18,80). Uma
obra de divulgação científica dirigida ao grande
público que o mundo académico recebeu com
alguma cautela.
Valerie Hansen parece apostada em sur-
preender os leitores logo no prólogo. Depois
de apresentar a sua versão de “Quanzhou
Ano 1000”, defende que foi nessa altura que
os exploradores vikings deixaram para trás a
Escandinávia, atravessaram o Atlântico Nor- Representações Foi quando se encontrava em plena escrita
te e chegaram à ilha da Terra Nova, na costa A África, onde reinava do seu livro anterior, sobre a rota da seda (The
nordeste do Canadá, uma região por onde Mansa Musa, aparece Silk Road: A New History), que se apercebeu
nenhum europeu antes viajara. A “história da desenhada por cima de que diferentes regiões do mundo já estavam
globalização” terá começado com esse “mo- do Mediterrâneo, no a entrar em contacto umas com as outras no
mento de contacto indubitável” entre a Europa atlas do cartógrafo ano 1000. “E se a globalização tivesse, afinal,
e as Américas – quase cinco séculos antes de Al-Idrisi. Os geógrafos começado muito antes da travessia para as
Cristóvão Colombo, note-se. islâmicos sabiam Américas de Colombo, em 1492?”, equacionou,
E a historiadora vai mais longe: considera mais acerca do mundo entre pesquisas.
no ano 1000 do que
“plausível” que os nórdicos tenham desem- “Hoje, a definição corrente de globalização
quaisquer outros.
barcado na Península do Iucatão, no México, significa que podemos comprar qualquer coisa
Se virarmos o mapa,
também por volta do ano 1000. Uma teoria distinguimos a Europa,
em qualquer lado do mundo, e que nos enfia-
provocadora, reconhece a própria, que obriga à esquerda mos num avião e vamos a qualquer sítio onde
a repensar a História do mundo moderno. queremos ir”, lembra. “Mas a um nível mais

60 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 O homem mais fundamental, ela existe quando as pessoas de
um local são afetadas por pessoas de outro lo-

rico do mundo cal e não têm nenhum controlo com o que lhes
acontece”, defendeu recentemente, numa entre-
vista à rede de podcasts New Books Network.
Por volta do ano 1000 e Para esta especialista em História da China
nos séculos seguintes, e em História Mundial, que dá aulas há mais
é provável que três de três décadas em Yale, foi exatamente esse
ou quatro toneladas o processo que começou no ano 1000. Uma
de ouro, no valor de das explicações que encontra está na “cereali-
cerca de 128 milhões zação” na Europa Ocidental e no crescimento
de euros aos preços das plantações de arroz no mundo islâmico e
atuais, viajassem todos
na China. “Um aumento imenso na produção
os anos para norte,
agrícola fez com que a população mundial
através do Sara. Mansa
Musa, rei do Mali
alcançasse quase as 250 milhões de pessoas,
durante 25 anos, “levou permitindo que algumas delas deixassem de
a bonança do ouro ao trabalhar a terra a tempo inteiro, passando a
seu apogeu”, escreve produzir outros bens e tornando-se mercado-
Valerie Hansen. Quando res”, afirmou no mesmo podcast.
passou pelo Cairo a
caminho de Meca, ATRAVESSAR O ATLÂNTICO
transportou de camelo No caso dos vikings, a estrutura social, sobretu-
cem carregamentos do a dinâmica dos bandos de guerra, desempe-
de ouro (hoje, seriam nhou um papel crucial no ano 1000, porque os
aproximadamente 684 chefes, ambiciosos, procuravam novos territó-
milhões de euros), o rios, ensina. As suas embarcações eram famo-
que fazia dele o homem sas pela construção flexível e leve, velocidade
mais rico do seu e capacidade de desembarcar em águas pouco
tempo. Mansa Musa e profundas. E, segundo reza a história narrada
o seu séquito gastavam pelas sagas islandesas, os vikings fizeram três
tão prodigamente viagens distintas às Américas.
que nessa viagem A primeira ocorreu precisamente no ano
conseguiram provocar a
1000, quando Leif Erikson, apelidado de “o
queda do ouro no Cairo.
Sortudo” pelo pai, Erik, “o Vermelho”, zarpou
As notícias da sua
riqueza propagaram-se
da Gronelândia e alcançou a ilha de Baffin,
até Espanha, onde um entre o Nordeste do Canadá e a Gronelândia.
fazedor de mapas criou Dali, foi com os seus homens até um local
a única imagem que nos situado provavelmente na costa do Labrador,
chegou sua. já mesmo no Canadá.
“Ambos os locais eram demasiado frios e
áridos para serem habitados por humanos”,
lemos em Ano 1000... Já o último lugar onde
desembarcaram, a que chamaram Vinland
(“Terra das Vinhas”), era muito mais convida-
tivo. Encontraram uma terra fértil com erva e
peixe em abundância, construíram barracas e
regressaram a casa sem se terem cruzado com
quaisquer indígenas.
Alguns anos depois, um irmão de Leif,
Thorvald, decidiu liderar uma segunda expe-
dição rumo a Vinland e avistou “três barcos
revestidos em couro”, com nove nativos a
bordo. Esse encontro revelou-se fatal, com
os homens de Thorvald a matarem oito dos
nativos. O nono voltou para terra e trouxe re-
forços que, por sua vez, atingiram mortalmente
o líder islandês com uma flecha.
Numa terceira expedição, comandada por
um parente de Leif, já houve troca de bens
entre os dois grupos: por peles de animais, os
escandinavos ofereceram pedaços de tecidos
feitos com lã de ovelha e tingidos de vermelho.
Os nativos tinham um interesse tão grande pelo

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 61

tecido que aceitavam pedaços minúsculos em
troca de peles inteiras.
Há boas razões para pensar que Vinland
ficava onde é hoje L’Anse aux Meadows, na
ponta norte da ilha da Terra Nova, no Nordeste
do Canadá, escreve Valerie Hansen. “A prova
mais reveladora da presença dos nórdicos
é uma oficina que continha uma bigorna e
fragmentos de ferro, indícios da atividade de
um ferreiro”, lê-se na sua obra. “No ano 1000
não havia mais ninguém, em parte alguma do
continente, que trabalhasse o ferro” – a fun-
dição tinha de ser de forasteiros.
Sabe-se que L’Anse aux Meadows era um
povoado escandinavo também por causa de
um alfinete de bronze ali encontrado. Em 1960,
o diplomata norueguês Helge Ingstad e a sua
mulher, a arqueóloga Anne-Stine Ingstad, vele-
jaram pela primeira vez ao longo da costa leste
do Canadá para ver se conseguiam localizar os
sítios por onde Leif Erikson tinha viajado. Mas
seria apenas oito anos mais tarde, no último
dia da última temporada de escavações, que o
casal fez “a” descoberta.
“Soltámos um grito ao percebermos que ali
estava uma prova que ninguém podia refutar
– um alfinete com a cabeça em forma de anel
indiscutivelmente idêntico aos alfinetes do
período dos vikings”, descreveria Anne-Stine,
nas suas memórias.
62 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
As trocas no ano Os vikings abandonariam as suas coló-
1000 Valerie Hansen nias na América do Norte ao fim de apenas
“ainda” não encontrou dez anos. A inexistência de bens comerciais
um objeto que tivesse verdadeiramente valiosos, além da madeira,
viajado pelo mundo levou-os a regressarem a casa; mas mantive-
todo. “Mas sei que ram as rotas abertas, lembra Valerie Hansen,
era possível, porque precisamente por causa da madeira, em per-
os caminhos estavam manente falta na Islândia.
abertos”, diz a “As suas viagens não inauguraram o co-
historiadora
mércio nas Américas”, nota a historiadora,
mas “foram extremamente importantes por-
que ligaram redes de comércio preexistentes
em ambos os lados do Atlântico, dando assim
início à globalização”.
CHUVA DE CRÍTICAS
Nas Américas, a maior cidade era provavel-
mente a povoação maia de Chichén Itzá. Lo-
calizada perto da costa norte da Península do
Iucatão, no México, estima-se que tivesse 40
mil habitantes no ano 1000. É no seu Templo
dos Guerreiros, assim batizado pelos arqueó-
logos, entre 1925 e 1934, que Valerie Hansen
situa o “indício” de que os vikings possam ali
ter estado há mais de mil anos.
Algumas das pinturas que revestiam parte
das paredes interiores do templo retratam
pessoas com cabelos loiros, olhos claros e pele
branca. Uma determinada cena de batalha
mostra mesmo uma vítima loira junto a dois
barcos cor de madeira, um deles com uma
proa esculpida, semelhante às das embarca-
ções escandinavas. Sabendo que os nórdicos
alcançaram a Terra Nova e que as tempestades
e as correntes do Giro do Atlântico Norte os
impediam muitas vezes de chegarem aos seus
destinos, a historiadora de Yale põe a hipó-
tese de eles também terem, por essa altura,
desembarcado na Península do Iucatão.
Foram várias as vozes críticas do mundo
académico que se fizeram ouvir por causa desta
sua teoria, acusando-a de se deixar levar pela
“história alternativa”, por definição especula-
tiva e ficcional.
Entre as mais corrosivas estão as dos três
professores universitários que assinam o artigo
Como Escrever Uma História do Mundo Falsa,
publicado na revista online Le Grand Continent
(do Grupo de Estudos Geopolíticos, da Escola
Superior Normal, de Paris), para quem Hansen
revelou “um descaramento que lembra o do
próprio Cristóvão Colombo”.
“As suas descrições genéricas dos merca-
dos orientais ‘exóticos’ parecem tiradas de
uma brochura turística”, escrevem Cornell
Fleischer, da Universidade de Chicago, Cemal
Kafadar, de Harvard, e Sanjay Subrahmanyam,
do Colégio de França. Mas, mais grave ainda,
apontam, é o facto de a historiadora afirmar
que a globalização foi possível pela primeira
vez graças aos vikings que contactaram com
o Nordeste da América, bem como com os
maias – “hipótese arriscada não sustentada
pelos grandes especialistas”.
O historiador Noel Malcolm também já
questionara as conclusões “triunfais” de
Hansen, numa crítica publicada no jornal
The Telegraph. “Mesmo que os arqueólogos
encontrem budas de bronze que pertenceram
aos vikings na Terra Nova, poderíamos con-
cluir algo de tangível sobre o processo geral?
E mesmo que os vikings tivessem ficado mais
tempo, não teriam encontrado no Nordeste
da América a rede necessária para esse tipo
de comércio”, rebate. “A globalização envolve
muito mais do que um contacto isolado nos
Prisioneiros loiros confins de um continente.”
Um está dentro de Numa outra resenha, publicada no site
água, com os braços The Arts Desk, o conhecido crítico britânico
amarrados, enquanto Boyd Tonkin escreve que Hansen faz uma
um captor agarra os “rara incursão na História alternativa para um
cabelos de um outro professor de Yale” ao avaliar que “não era im-
possível” um navio viking ser apanhado pelas
correntes do Atlântico e puxado em direção à
costa mexicana.
Valerie Hansen recebeu esta última crítica
com humor e até como um elogio. “Quem é que
Nórdicos em quer agir como um professor de Yale o tempo
todo?”, pergunta, a rir, no podcast já citado
Chichén Itzá? acima, insistindo que os murais encontrados
no Templo dos Guerreiros, em Chichén Itzá,
são “muito sugestivos”.
Desde as décadas de 20
“No passado outono, ensinei aos meus alu-
e 30 do século passado
que os académicos ques-
nos a diferença entre aquilo que é plausível,
tionam se os homens possível e absolutamente certo. Este caso, o
de cabelo loiro e pele dos vikings no México, penso que é plausível.
clara das pinturas que Inteiramente. O timing é perfeito e temos
revestiam as paredes do vários relatos, vindos da Islândia, de barcos
Templo dos Guerreiros, desviados do seu curso.”
em Chichén Itzá, no Certo é aquilo que a historiadora escreve
México, são retratos de sobre os escravos utilizados nestas viagens pelo
nórdicos. Houve inclusive mundo. “Tantos eram os escravos que vinham
quem sugerisse que da Europa de Leste que o significado da palavra
estariam a usar perucas grega para ‘eslavo’ (sklabos) se alterou algures
amarelas, para que o seu no século X, passando o significado original
cabelo correspondesse de ‘eslavo’ a assumir a aceção mais ampla de
ao do deus do Sol a quem ‘escravo’, quer este fosse eslavo ou de qualquer
seriam sacrificados. Para outra origem.”
Valerie Hansen, a desco- O que não tem espaço para polémica é aqui-
berta de que os vikings lo que Valerie Hansen afirma sobre as trocas
estiveram em L’Anse aux comerciais com os chineses no ano 1000. “Im-
Meadows, na América do
portavam incenso, madeiras como o sândalo
Norte, no ano 1000, lan-
e fragrâncias em geral”, ouvimo-la dizer no
çou uma nova luz sobre
estes murais da Penín-
podcast. “Queriam que o mundo tivesse um
sula do Iucatão. Eles cheiro diferente.”
“poderão efetivamente Há mil anos, os chineses também importa-
representar os escandi- vam cavalos, por razões militares, e âmbar, que
navos e os seus barcos”, adoravam e lhes chegava da Escandinávia. “Não
escreve, que “poderão encontrei um objeto que tivesse viajado pelo
ter sido desviados da sua mundo todo, é pena!”, lamenta a historiadora.
rota e depois capturados” “Mas sei que era possível, porque os caminhos
pelos maias. estavam abertos.” rruela@visao.pt
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 63
 PODER LOCAL
FOCAR

PSD e CDS sintonizados:

“Liderança é levar
alguém a querer
fazer algo que
Porto não é entrave
te ajude”
Dwight Eisenhower
Militar e político norte-
americano
(1890-1969)

64 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 Aproximação Presidente do
PSD não exigirá ao líder do
CDS que abdique de estar com
Moreira, apesar das divergências

H
públicas com o sucessor

á quase um ano e meio, na

ressaca das eleições euro-
peias, Marcelo Rebelo de
Sousa identificou “uma forte
possibilidade de haver uma
Rio e Rodrigues dos Santos devem reunir-se este crise na direita portugue-
sa nos próximos anos”. O
mês para discutir as linhas gerais do acordo para diagnóstico do Presidente
as autárquicas. Não haverá uma coligação nacional, da República, apresentado
avisam do lado social-democrata; Rui Moreira não cai, numa intervenção na Fun-
dação Luso-Americana para
garantem da barricada centrista. Iniciativa Liberal pode o Desenvolvimento (FLAD),
entrar nas contas em Lisboa. Ventura, excluído, ataca irritou PSD e CDS, que preferiam que o
entendimento de “tristes” chefe de Estado se coibisse de fazer es-
sas leituras (pelo menos, publicamente).
O C TÁV I O L O U S A D A O L I V E I R A Em todo o caso, depois de outro sufrá-
gio traumático (as legislativas), sociais-
-democratas e centristas dão sinais de
aproximação em nome da manutenção do
poder autárquico. Não deverá haver uma
aliança nos moldes propostos, na semana
passada, pelo presidente da Juventude
Social Democrata (JSD), Alexandre Poço,
mas, segundo apurou a VISÃO, Rui Rio e
Francisco Rodrigues dos Santos deverão
sentar-se à mesa, este mês, para discutir
as balizas dos entendimentos que pode-
rão vir a ser estabelecidos. Concelho a
concelho, das bases para o topo.
De acordo com fontes de ambos os
partidos, Rio não fez nem deverá fazer
qualquer ultimato a Rodrigues dos Santos
relacionado com o Porto. Simplificando, o
presidente do CDS não será forçado a dei-
xar cair o apoio a Rui Moreira para conse-
guir uma base de acordo mais ampla, que
venha a incluir câmaras espalhadas por
todo o território nacional (além daquelas
em que as duas forças, em conjunto, já
exercem o poder). Atualmente, sociais-
-democratas e democratas-cristãos, em
sociedade, estão ao leme de 19 autarquias
das 308 que o País tem, no total.
Na semana passada, a VISÃO noticiou
que o PSD estaria até disponível para se
entender com Rui Moreira e que Salvador
Malheiro, vice-presidente, funcionava
como pivô “laranja” nas conversações de
aproximação. No mesmo dia, o Diário
de Notícias dava conta de uma alegada
imposição de Rio a Chicão (como é co-
nhecido o líder dos democratas-cristãos),
mas fontes partidárias garantem que não
haverá “moedas de troca”. O tempo é de
urgência e as quezílias de outrora entre
o antigo e o atual líderes do município
portuense terão de ser ultrapassadas.
LUCÍLIA MONTEIRO

RIO IGNORA REPTO DE POÇO

Sendo certo que ainda não houve ne-
gociações formais para que a parceria

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 65


PODER LOCAL
seja alinhavada, dos dois lados o clima é,
agora, de maior tranquilidade. As pres-
sões e as cotoveladas em praça pública,
dizem no núcleo duro dos dois partidos,
não devem prosseguir, porque, a um ano
das autárquicas, é hora de tocar a rebate.
Ainda assim, uma fonte social-democrata
seca as pretensões de Alexandre Poço e
dos entusiastas de uma federação dos
partidos à direita do PS, alertando que
não haverá uma frente de centro-direita
ou uma grande coligação nacional. Na
sexta-feira passada, 25, o líder da Jota
levou ao Conselho Nacional o assunto que
aflorara numa carta aberta, mas a ideia
foi recebida com indiferença. Ficou a falar
sozinho na sala, apesar de a sugestão ser
bem-vista em vários setores do partido
e também entre diversos responsáveis
centristas.
Embora não queira enfraquecer mais
o parceiro tradicional, o PSD não tencio-
na esbater demasiado um eventual mau
score do CDS. Simplificando: coligados,
não seria possível aferir que parcela de
votos teria cabido a cada um dos partidos.
Os acordos, autarquia a autarquia, serão
66 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
Portas? CDS cético
Miguel Poiares Maduro lançou
o nome, Rui Rio gabou-lhe as
qualidades, mas a direção do CDS
tem dúvidas de que Paulo Portas
pondere mesmo ser candidato a
Lisboa. Entre a cúpula centrista,
o antigo vice-primeiro-ministro
é visto como uma personalidade
consensual, caso decidisse avançar,
e uma ótima solução para que o
centro-direita pudesse ombrear
com Fernando Medina. Em todo o
caso, o raciocínio do núcleo duro
de Francisco Rodrigues dos Santos
é prudente: se o ex-presidente
do CDS perdesse, hipotecaria a
hipótese de concorrer a Belém
no pós-Marcelo, razão pela qual
desconfia da real disponibilidade de
Portas. Mais à direita, André Ventura
também já estuda alternativas para
a capital: Hernâni Carvalho, Suzana
Garcia, Carlos Barbosa e Carmona
Rodrigues são os preferidos do líder
do Chega.
Repto Alexandre Poço desafiou
PSD, CDS e IL a constituírem um
bloco de direita, mas a direção
de Rio não terá gostado do
conselho
D.R.
propostos pelas estruturas (concelhias e
distritais) e, posteriormente, validados
pela Comissão Autárquica, encabeçada
pelo secretário-geral do partido, José
Silvano, e pela direção de Rio. Por isso,
Silvano, de forma telegráfica, garante à
VISÃO que ainda não chegou o momento
de decidir sobre putativos candidatos
ao Porto ou a qualquer outro executi-
vo camarário. “Não existem candidatos
indicados. Só no final de outubro é que
começaremos a analisar os perfis dos
candidatos”, assegura.
CHICÃO RECUSA RASGAR ACORDO
ASSINADO EM 2013
Do outro lado da barricada, uma fonte
da direção de Rodrigues dos Santos não
estranha a opção da cúpula de Rio, mas
vinca que, desde que o sucessor de As-
sunção Cristas chegou ao Largo do Caldas
(sede do partido), nunca lhe foi sugerido
rasgar o “contrato” assumido com Rui
Moreira em 2013, que viria a ser reno-
vado quatro anos volvidos. Rio, explica
esse interlocutor, sabe que o CDS “não
tem margem” para apoiar outra perso-
 EPAL e Bordallo Pinheiro
Na mesa dos portugueses
há mais de um século

jarro

O Jarro pode ser adquirido:

• Museu da Água da EPAL, na Rua do Alviela, 12
• Mãe d’Água das Amoreiras, na Praça das Amoreiras, 10
• Lojas EPAL – Edifício Sede e Loja do Cidadão (Laranjeiras), em Lisboa
 PODER LOCAL

Impasse Cotrim quer que a IL

corra em pista própria, mas pode
ser “obrigado” a aliar-se a PSD e
CDS em alguns concelhos

nalidade e que mudar de tática em cima

do jogo fragilizaria ainda mais o partido
e o seu líder.
De resto, logo no dia em que a hipó-
tese foi aventada, a concelhia do CDS do
Porto tentou arrumar o assunto. Emitiu
um comunicado no qual salientava “or-
gulha[r]-se do apoio” ao projeto do antigo
presidente da Associação Comercial do
Porto, de que “fez parte desde a primeira
hora” e no qual garantiu “continua[r] a
rever-se”, por ser “a solução que melhor
serve os interesses da cidade”. “O CDS
Porto honra os seus compromissos”,
concluía a nota da estrutura chefiada
por Isabel Menéres Campos, que integra
a associação Porto, o Nosso Movimento
(que continua de braços abertos para
colecionar o apoio de partidos, conforme
a VISÃO escreveu na edição anterior).
Mais para o final do mês, ainda sem
data marcada, Rio e Rodrigues dos San-
tos deverão encontrar-se para afinar os
moldes de um acordo-chapéu para o
ato eleitoral, que acontecerá no outono
de 2021, tendo já o próprio Rodrigues
dos Santos – que defendera uma frente
de direita – realçado que os acordos de

coligação serão “sempre pontuais” e que
“haverá sempre concelhos que ficarão de
fora”, e em que o CDS será concorrente
com o PSD. “Acontece em muitos muni-
cípios deste país, é da vida, somos dois
partidos autónomos”, reforçou.
A “COLIGAÇÃO DOS TRISTES”
E O APOIO DA IL A MOREIRA
Ora, segundo a lógica dos dois partidos
da direita tradicional em Portugal, o
Chega e a Iniciativa Liberal ficarão de
fora do arranjo. “O CDS é o nosso par-
ceiro referencial. Outros partidos podem
pontualmente vir a fazer parte, em função
DIANA TINOCO
Alentejo e na Área Metropolitana de
Lisboa. Parecem a coligação dos tristes.
Não querem nem conseguem reconhe-
cer que há uma nova e muito dinâmica
força à direita.”
A Iniciativa Liberal opta, até ver, pelo
INICIATIVA LIBERAL silêncio, depois de já ter sublinhado que
prefere correr em pista própria a “andar
ESTUDA APOIO A RUI a decorar coligações”. Seja como for, a
força presidida por João Cotrim de Fi-
MOREIRA, NO PORTO, gueiredo admite acordos alargados onde

E NÃO EXCLUI UMA

das indicações das estruturas locais. Só
o Chega é que está excluído, mas, onde
se justificar, será objeto de análise da
Comissão Autárquica e da direção”, in-
dica Silvano.
Proscrito, André Ventura reage com
violência e eleva a fasquia: “Têm medo
e sabem que exigiríamos ir em primeiro
em muitos municípios, sobretudo no
existirem candidatos aos quais o partido
reconheça a costela liberal. Sem ter nada
FRENTE DE DIREITA como garantido, em Lisboa, os contactos
informais com os potenciais parceiros de
PARA TENTAR estrada já arrancaram. No Porto, o enre-
do é bem mais simples: a menos que Rui
DERROTAR FERNANDO Moreira penda demasiado para o lado do
PS, o apoio ao independente é bastante
MEDINA, EM LISBOA provável. ooliveira@visao.pt

68 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

AMBIENTE | ECOLOGIA | SUSTENTABILIDADE

24 e 25
OUTUBRO
ESTUFA FRIA
LISBOA

A sua revista ao vivo

PALESTRAS
DEBATES
TALKS E IDEIAS
DUELOS IMPROVÁVEIS
HUMOR
CONCERTOS
ATELIÊS

VÊM AÍ OS ENCONTROS
PELO PLANETA
Saiba mais em visão.pt

Em 2020, Lisboa é a Capital Verde Europeia.

O VISÃO Fest Verde insere-se na programação oficial
desta iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa.
 EUA

A devota juíza de Trump

Qualquer que seja o resultado das eleições de 3 de novembro,
a herança do 45º Presidente será visível no Tribunal Supremo durante
as próximas décadas

D
FILIPE FIALHO

onald John Trump, o 45º Pre- bilionários norte-americanos, nos quais

sidente dos EUA, passou a vida
adulta a vender-se como um rei
Midas dos tempos modernos.
A sua obsessão com a riqueza e
o sucesso era tal que chegou a
processar algumas publicações
por lhe subvalorizarem a fortuna,
que tinha obrigatoriamente de
Trump faz questão de se incluir e que
constituem 0,01% dos contribuintes do
país, pagam cerca de 25 milhões de dóla-
DESDE QUE ENTROU res, por ano, em impostos. Ora, segundo
as declarações de rendimentos do Chefe de
PARA A CASA BRANCA, Estado, entre 2000 e 2017, às quais o jornal
teve acesso, Trump cometeu a proeza de
EM JANEIRO DE 2017, pagar uma média anual de apenas 1,4 mi-

ultrapassar os dez dígitos. Há
muito que sabíamos que ele era o inquilino
mais abonado que alguma vez passou pela
Casa Branca, mas agora, graças ao New
York Times, ficamos também informados
que se trata de um empresário medíocre,
endividado e um sério candidato a su-
premo mago das artes de fugir ao Fisco.
De acordo com o diário da Big Apple, os
TRUMP JÁ NOMEOU
lhões. Mais impressionante ainda é o valor
que dispensou quando decidiu concorrer
218 JUÍZES FEDERAIS. à presidência: 750 dólares. Para se ter uma
ideia do que isso significa, basta dizer que
OBAMA NOMEOU 312 esse montante não chegaria para o com-
bustível de um minuto de voo do seu avião
NOS SEUS OITO ANOS privado e é sete vezes menos do que paga,
por exemplo, um bombeiro em impostos
DE PRESIDÊNCIA federais. Ou seja, estas contas ajudam a

70 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 Em família Amy Coney Barret levou
os seus sete filhos à Casa Branca,
para Trump anunciar a sua nomeação
para o Supremo Tribunal
perceber melhor a reação que Donald
Trump teve no dia 26 de setembro de há
quatro anos, quando Hillary Clinton, a sua
adversária do Partido Democrata, o acusou
de ser um potencial criminoso fiscal e re-
cusar a divulgação pública das declarações
de rendimentos, durante o primeiro debate
televisivo da campanha: “Isso é porque eu
sou esperto!”, retorquiu, em tom trocista,
o então magnata do imobiliário.
As revelações do New York Times,
publicadas na edição desta última segun-
da-feira, 28, são um contributo adicional
para o ambiente caótico em que o país
está mergulhado, devido à pandemia
da Covid-19 e ao período eleitoral que
se prolonga até 3 de novembro, em que
os norte-americanos vão às urnas para
decidirem se Donald Trump merece um
segundo mandato até 2024 ou se a Sala
OLIVIER DOULIERY/GETTY IMAGES
Oval deve ser entregue ao democrata,
e ex-vice-presidente, Joe Biden – além
de outros sufrágios a nível estadual e
também a renovação da Câmara dos Re-
presentantes e do Senado. Para já, é uma
incógnita saber em que medida este novo
escândalo poderá alterar as intenções de
voto e infletir as sondagens, que atri-
buem todo o favoritismo a Joe Biden. No
entanto, como escreveu esta semana em
editorial o Los Angeles Times, “no mun-
do de Trump, só os otários e os falhados
pagam impostos”. Mas esta interpretação
não resolve um problema prático com que
o ainda Presidente se debate: as dívidas e
os empréstimos no valor de 421 milhões
de dólares (qualquer coisa como 358 mi-
lhões de euros) que devem ser saldados
nos próximos quatro anos, incluindo uma
hipoteca de 100 milhões sobre a Trump
Power, na Quinta Avenida de Manhattan.
“Se ele perder as eleições, vai de certeza
ser alvo de acusações federais e estaduais
por fraude bancária e fuga ao Fisco”, antevê
Michael Bromwich, antigo inspetor-ge-
ral do Departamento de Justiça. O New
York Times, por seu turno, vaticina que,
mesmo em caso de vitória, os credores
de Trump “vão colocar-se numa posição
sem precedentes na História, executando
as hipotecas de um Presidente em exercí-
cio”. Nancy Pelosi, a líder dos democratas
no Congresso, considera que esta nova
polémica não se confina aos problemas
fiscais, legais e morais: “É também uma
questão de segurança nacional. A quem é
que ele deve dinheiro? Até que ponto as
cobranças o podem comprometer?”
A todas as dúvidas, o visado responde
sempre da mesma maneira: “Fake news”
e promessas de litigância até às últimas
Nós não deveríamos colocar
nos tribunais pessoas
que partilham as nossas
preferências políticas mas
as que querem respeitar a
Constituição
Discurso no Instituto de Políticas Públicas, na
Universidade de Jacksonville, em 2016
[Os juízes católicos] estão
obrigados, por juramento,
dever profissional e exigências
da cidadania, a fazer cumprir
a pena de morte. Estão
igualmente obrigados a
respeitar os ensinamentos
das suas igrejas em questões
morais
Num artigo que assinou, em 1998, na revista
jurídica Marquette Law Review
Se me pergunta se levo a
sério a minha fé, sim, sou uma
católica devota. No entanto,
quero sublinhar que a minha
fé e filiação religiosa em nada
prejudicam os meus deveres
enquanto juíza
Na audição em
que foi confirmada
para o Tribunal
da Relação do
7º Distrito, em
2017, após lhe
perguntarem se
era uma católica
ortodoxa
consequências. É aqui que entra Amy
Coney Barrett, a juíza de 48 anos e mãe
de sete crianças (duas delas adotadas),
que o Presidente escolheu para o Supre-
mo Tribunal (ST) dos EUA. Reza o bom
senso que os presidentes vêm e vão, mas
os juízes acabam por ficar; em particular
quando falamos dos que são nomeados
a título vitalício, como sucede no ST. E
Trump já tem um recorde impressionante:
em quatro anos no cargo, já nomeou 218
juízes federais, ao passo que o seu anteces-
sor, Barack Obama, se ficou pelos 312 em
oito anos, segundo o Pew Research Center.
ORIGINALISTA E CONSERVADORA
Indicada para substituir a progressista e
carismática Ruth Bader Ginsburg, faleci-
da no mês passado aos 87 anos, a católica
Amy Coney Barrett pode permanecer no
principal órgão judicial norte-americano
durante mais três ou quatro décadas. E,
acima de tudo, como tem explicado quase
toda a Imprensa, pode ser uma peça es-
sencial para desviar o centro de gravidade
do ST, para que este passe a contar com
seis juízes assumidamente conservadores
e apenas três liberais. Isto é, a juíza que
defende uma interpretação “originalista”
da Constituição está prestes a tornar-se
um trunfo de Trump e dos movimentos
antiaborto, anti-imigração e pró-armas
para impor uma revolução ideológica que
molde a sociedade norte-americana para
as próximas gerações. “Temos total con-
fiança em como ela será capaz de aplicar a
lei e a Constituição na defesa e na proteção
dos mais vulneráveis: as nossas crianças
que ainda vão nascer”, afirmou ao New
York Times Jeanne Mancini, presidente
de um grupo que pretende ver derrogada
a legislação aprovada pelo ST em 1973, o
caso Roe versus Wade que tornou possí-
vel a interrupção voluntária da gravidez.
Amy Barrett continua a dizer que as suas
convicções pessoais e religiosas jamais
conv
afetarão o seu desempenho profissional e
afeta
garante que vai seguir os ensinamentos de
garan
um sseu antecessor, o juiz Antonin Scalia,
de quem
qu foi assistente em 1999. Mas são
muitas as vozes a duvidarem da sua inten-
muit
ção de
d respeitar o stare decisis – expressão
latina que designa o princípio de que uma
sentença deve ser respeitada e, no futuro,
sente
funcionar como jurisprudência: “A juíza
func
Ginsburg deve estar a dar voltas no tú-
Gins
mulo e no paraíso, por ter sido escolhida
mul
uma pessoa com o objetivo de desfazer
tudo o que ela conseguiu”, alega Chuck
Schumer, o líder dos democratas no Se-
Schu
nado. Este dirigente, como a generalidade
nado
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 71
 OPINIÃO
EUA

Quem aprova
o OE?
P O R J O S É C A R L O S D E VA S C O N C E L O S

1
É unânime o reconhecimento da e o PSD aprovaram que, na regulação
$2 500 $9 MILHÕES necessidade para o País de o Or- do poder paternal, em caso de divórcio
MILHÕES Valor da çamento do Estado (OE) para 2021 ou separação, o tribunal “pode deter-
Valor da fortuna de ser aprovado; e é (quase?) unâni- minar a residência alternada do filho
fortuna Joe Biden, de me, pois também à direita assim com ambos os progenitores”, indepen-
de Trump, acordo com o se entende, a conveniência de ele dentemente de mútuo acordo. No seu
segundo a seu registo de ser viabilizado à esquerda. Penso o projeto, o PS defendia que o tribunal
Forbes interesses mesmo – e daí que tenha considerado devia “privilegiar” essa residência
preferível o PS, no início da legislatura, alternada – como fazia o BE, conside-
celebrar um acordo com o BE. Assente rando-o mesmo a regra, obviamente
$750 $299 346 isto, seria absurdo, incompreensível, com exceções. Pois o facto de o PS ter
Valor que Valor que António Costa dizer, sem mais, como concordado com a posição e formula-
Trump pagou Biden pagou se assevera ter ele dito, que no dia em ção do PSD, em prejuízo da sua inicial
em impostos em impostos que dependesse do PSD a subsistên- e da do BE, é qualificado na notícia
federais, em federais, em cia do Governo, este teria acabado. De de um jornal respeitável como “uma
2017, segundo 2019, segundo a facto, o que disse, expressa ou impli- cedência à direita”... O que não faz ne-
The New York sua declaração citamente, foi outra coisa diferente: no nhum sentido.

3
Times de rendimentos dia em que a subsistência do Governo
(disponível
depender de um acordo com o PSD, Foi agora conhecido parte do
no seu site de
ele acabou. Isto é: caso BE e PCP de- que um fulano, de cujo nome
campanha)
cidam votar contra o OE, Costa não me quereria esquecer, “ensi-
negociará qualquer acordo com o PSD; na” na Faculdade de Direito da
mas se o PSD, não obstante, viabilizar Universidade de Lisboa (FDUL).
dos seus companheiros de partido, não se o OE, abstendo-se em nome do “inte- São coisas inenarráveis, próprias
cansa de sublinhar a hipocrisia de Trump resse nacional”, nenhum problema... de uma mentalidade a que chamar
e dos republicanos em quererem nomear Só por ser assim o Presidente Mar- fascista será talvez inadequado, pois
em tempo recorde uma nova juíza para o celo pode defender, como defendeu, parece remontar a um ainda anterior
ST quando, em fevereiro de 2016, boico- esta eventual neces- inquisitorial tempo de
taram as intenções do Presidente Obama sidade, como último trevas – e de loucura.
em preencher uma vaga disponível nesse recurso para assegurar Não faz sentido Acusado de violência
mesmo órgão judicial, com o argumento a estabilidade políti- tirar ilações, doméstica, num julga-
de haver eleições. Caso se confirme a no- ca – lembrando o que quanto a mento a também me-
meação de Amy Barrett no Senado – as ele próprio fez quan-
primeiras audições estão agendadas para do líder do PSD, sen-
orientação política recer cuidada análise,
o fulano clamou, no-
12 de outubro e a votação final pode acon- do Guterres chefe de geral, de acordos meadamente, “morte
tecer já no final do mês – esta será a mais governo. De qualquer ou convergências aos feministas” e
rápida de sempre desde Salmon P. Chase, forma, insisto em que entre PS e PSD “morte a todos os
em 1864. O mesmo é dizer que Amy Co- o PS e Costa não devem comissários políticos
ney Barret entrará em funções a tempo de menorizar o diálogo e para a aprovação do Conselho Superior
ainda participar nos delicados processos possibilidade de enten- de certos diplomas da Magistratura”! Vem
que o ST tem para resolver a curto prazo. dimentos com o PSD legais nos jornais e nem se
A 10 de novembro, os nove juízes devem de Rui Rio, sob pena de acredita. Como nem
dizer já de sua justiça sobre o futuro do o PS cometer um grave se acredita, mas é
Obamacare, o plano aprovado pelo antigo erro, lesivo para o País (ver meu com. de verdade, que tal fulano seja há anos
Presidente que permitiu a mais de 25 mi- 6 de agosto). professor numa universidade portu-

lhões de norte-americanos terem acesso
a cuidados de saúde. No entanto, nessa
mesma altura, podem já estar inundados
com solicitações sobre os resultados das
presidenciais, a exemplo do que sucedeu
em 2000 quando ordenaram o fim da re-
contagem de votos na Flórida, com George
Bush a impor-se a Al Gore e a conquistar a
Casa Branca por 312 boletins de diferença.
Irá a história repetir-se? visao@visao.pt
2
guesa – e de Direito. Com o indispen-
De resto, carece de fundamento sável assentimento, desconhecimento,
tirar ilações ou conclusões, quan- ou o que for, de quem “de direito”... E
to a orientação política geral, de perante o para mim também incom-
acordos ou convergências entre preensível silêncio (pelo menos não dei
PS e PSD, ou entre quaisquer conta de protestos) dos estudantes, em
outros partidos, para a aprovação particular dos seus alunos, e da respe-
de certos diplomas legais. Um exemplo tiva Associação. O que se
muito expressivo desta semana. O PS passa? ... visao@visao.pt

72 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

 TECNOLOGIA
O seu telemóvel anda a espiá-lo?
Abre o Facebook e vê uma publicidade relacionada com a conversa que estava
a ter. Pura coincidência ou estão a ouvi-lo através do smartphone?
P
R U I D A R O C H A F E R R E I R A / E X A M E I N F O R M ÁT I C A
aulo Pimenta já conhecia o
mito de que empresas como
o Facebook e a Google ouvem
as conversas dos utilizado-
res para mostrar publicidade
personalizada, mas um dia
decidiu fazer um teste. “Com-
prámos um smartphone novo
e pusemo-nos à volta de uma
mesa”, começa por contar à
VISÃO. Primeiro, visitaram sites alea-
tórios e sem relação com o que viria a
ser o tópico principal da conversa e do
teste: cartões bancários Revolut. “Depois,
falámos do cartão, abrimos de novo o
browser e alguns sites, andámos a nave-
gar e a publicidade [ao cartão] apareceu.”
Este relato não é feito por um utiliza-
dor de serviços online como tantos ou-
tros – Paulo Pimenta é diretor executivo
do KuantoKusta, um portal comparador
de preços e uma empresa que investe
“milhares de euros por dia” na compra
de publicidade nas plataformas do Fa-
cebook e da Google. Com dois milhões
de produtos listados e cinco milhões de
utilizadores mensais, conhece e domina
o conceito de publicidade direciona-
da – mas isso não o impediu de ficar
surpreendido com o que aconteceu. A
justificação? “A Revolut podia estar a
fazer muita publicidade.”
Tanto o Facebook como a Google
negam ouvir as conversas dos utiliza-
dores para direcionar publicidade – ou
seja, mostrar conteúdos específicos para
aquela pessoa. Em resposta à VISÃO, o
Facebook remete para uma publicação,
de 2016, no blogue da empresa, na qual
afirma, de forma taxativa, que “o Fa-
cebook não usa o microfone do smar-
tphone para publicidade ou histórias
do feed de notícias”. Mais recentemen-
te, em 2018, numa audição no Senado
norte-americano, foi o próprio criador
da rede social, Mark Zuckerberg, quem
74 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
negou que o Facebook ouve as conver-
sas dos utilizadores para lhes mostrar
publicidade.
Já a Google, em resposta por email,
sublinha que “a Google não usa o som
ambiente de nenhum dispositivo para
direcionar anúncios”. Então, qual a ex-
plicação para o mito? A resposta está nos
dados, mais concretamente no grande
volume de informações que os gigantes
da internet têm sobre os utilizadores.
“OUVIR” PASSOS E CLIQUES
“Nós, como indivíduos, somos bru-
talmente atingidos nas redes sociais e
no mundo digital por campanhas de
marketing que nos mostram vários
anúncios com características parecidas
com o que acabamos de procurar. O que
permite esta situação é toda a informa-
ção recolhida por diversas empresas e o
ecossistema que se criou à volta delas”,
explica Eliano Marques, vice-presidente
de Analítica e Inteligência Artificial da
Protegrity, empresa norte-americana
especializada em ferramentas de prote-
ção de dados e privacidade empresarial.
HÁ EMPRESAS QUE TÊM
ACESSO AO MICROFONE
DO SEU SMARTPHONE
– POR EXEMPLO
QUANDO INSTALA UM
JOGO NOVO E LHE DÁ
PERMISSÃO
Estes dados agregados – que vão des-
de o histórico de pesquisa, de interações,
de localização e até de compras feitas em
lojas físicas – são depois disponibiliza-
dos aos anunciantes para que consigam
fazer chegar mensagens personalizadas
aos utilizadores. “A Google tornou isto
automatizado graças à Inteligência Ar-
tificial. Agora, posso ser genérico ou ser
mais específico na personalização. Mas
quanto mais específico sou, mais caro é
[o anúncio] e maior é a probabilidade de
converter [a publicidade numa compra].
Cada vez mais consegue-se atingir o que
queremos”, acrescenta Paulo Pimenta.
Resumindo: é uma questão de analí-
tica e de estatística, já que, na prática, o
que estas empresas sabem é que existe
uma maior ou menor probabilidade de
estar interessado num produto, tendo
em conta o registo de interações e pes-
quisas que têm do utilizador. As grandes
tecnológicas “ouvem” aquilo que diz –
não através das conversas propriamente
ditas, mas por meio do rasto digital que
deixa na utilização de serviços online.
“Têm informação sobre o meu telefone, a
minha localização nos últimos cinco dias
e as últimas pesquisas mais relevantes.
Se juntar essas três variáveis, criam uma
quarta variável, que, por sua vez, me as-
socia a um conjunto de produtos para os
quais faço parte do público-alvo”, explica
Eliano Marques.
Já Paulo Pimenta dá um exemplo: se al-
guém for ao KuantoKusta pesquisar sobre
o preço de fraldas para recém-nascidos,
então daqui a um ano esse comprador vai
precisar de fraldas maiores – nessa fase,
o sistema “lembra-se” desta informação
e vai comprar anúncios à Google e ao
Facebook de fraldas para crianças de 1
ano, para mostrar ao utilizador. E qual é
a probabilidade de, nessa altura, comen-
tar com alguém que precisa de comprar
fraldas para a criança de 1 ano?
 “Temos de ter a noção de que não
se pode apontar apenas o dedo à mo-
nopolização da recolha da informação
ou da criação da informação, porque a
economia global beneficia dela. Agora,
temos que ter mais ferramentas que nos
dão uma melhor perceção de como é
que aqueles dados estão a ser utilizados,
dando ao utilizador final maior transpa-
rência e maior poder de decisão”, sublinha
o executivo da Protegrity. Tanto o Face-
book como a Google já disponibilizam
ferramentas que permitem ao utilizador
interagir com um anúncio e saber “por
que razão está a ver esta publicidade”.

O TESTE DO ALGODÃO
Em 2019, a tecnológica Wandera anali-
sou e comparou a quantidade de dados
que era transferida por diferentes aplica-
ções, com acesso ao microfone do smar-
tphone, em salas de isolamento sonoro
e em ambiente de conversa – chegando
à conclusão de que o tráfego gerado por
essas apps era residual (60 kilobytes) e
semelhante em ambos os cenários. Já
quando era ativado o assistente digital
do sistema operativo, como a Siri, o
tráfego aumentava.
Apesar desta análise técnica, impor-
ta perceber que há empresas que têm
acesso ao microfone do seu smartphone
– quando instala um jogo novo e lhe dá
permissão, por exemplo. E também im-
porta perceber que, em casos específicos,
o microfone está sempre a ouvir o que
diz. A Google tem um assistente digital
que é ativado pelo comando de voz “Ok
Google”. Sempre que usa este comando,
o assistente “acorda” e regista o que lhe
diz – mas para conseguir “acordar”, tem
de estar sempre à escuta. Mas também
aqui a gigante norte-americana garante
que “esses dados não são usados para
personalização de anúncios”. São, isso
sim, usados para treinar a eficácia do
próprio assistente. “Para ajudar a me-
lhorar o processo de análise de áudio
da Google, uma amostra dos recortes de
áudio é desassociada das contas Google
durante a revisão. Em seguida, revisores
treinados podem analisar o áudio para
anotar a gravação e verificar se as pala-
vras ditas foram compreendidas com
precisão pelas tecnologias de reconhe-
cimento de áudio da Google”, explica a
empresa.
Traduzindo por outras palavras,
alguém pode vir a ouvir o que disse,
mas sem saber quem realmente é.
rferreira@exameinformatica.pt

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 75

 FUTEBOL
Os Lobos falam português
O Wolverhampton é um dos mais castiços clubes ingleses. Nos anos 50,
foi proclamado o melhor do mundo e agora, graças ao dinheiro chinês
e aos craques portugueses, tenta recuperar a glória
N
a pátria do futebol, o humor dá
sempre jeito, mesmo quando
se é humilhado nos relvados.
A 25 de novembro de 1953, no
estádio de Wembley, em Lon-
dres, mais de 100 mil especta-
dores assistiram ao apregoado
“jogo do século” e à derrota da
seleção inglesa contra a sua
congénere húngara, por um
inimaginável 3-6. Mal terminou a partida,
os comentadores britânicos descreveram-
-na como uma “aberração” e desvaloriza-
ram o baile de bola que o canhoto Ferenc
Puskás e demais “mágicos magiares” de-
ram ao carismático capitão Billy Wright e
aos outros craques ingleses. Por ninguém
acreditar – em terras da recém-entrona-
da Isabel II, bem entendido – que um tal
resultado se poderia repetir, agendou-se
uma desforra entre as duas equipas. O
embate, supostamente amistoso e sem
contar para nenhuma competição ofi-
cial, realizou-se em Budapeste, capital da
Hungria, a 23 de maio de 1954. No final
dos 90 minutos, sete golos para Puskás e
companhia, enquanto Ivor Broadis marcou
o único tento para a Inglaterra. Mais uma
vez, os cronistas da Velha Albion tinham
76 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
GETTY IMAGES
FILIPE FIALHO
de arranjar maneira de minimizar esta ca-
tástrofe desportiva sem precedentes. Re-
conheceram, a contragosto, que a grande
figura do dérbi fora Sándor Kocsis, o ata-
cante húngaro também conhecido como
“cabeça de ouro”, mas que a melhor cabeça
da Europa continuava a ser a de Winston
Churchill. E, como à terceira costuma ser
de vez, a vingança acabaria por acontecer à
custa dos pés de Billy Wright e do seu clu-
be, o Wolverhampton, detentor do título
do campeonato inglês e uma das equipas
mais antigas e populares de Inglaterra.
GENTE DE BEM E JOGOS A DESORAS
O tira-teimas aconteceu a 13 de dezembro
de 1954, no estádio Molineux, inaugurado
em 1889 e um dos primeiros em todo o
mundo a ser equipado com luz artificial,
para receber jogos à noite. O Wolverhamp-
ton estava, pois, incumbido de salvar o
orgulho britânico, tendo de provar nas
quatro linhas que o desporto-rei praticado
no Reino Unido ainda era o melhor dos
cinco continentes. Para tal, o clube do West
Midlands, no centro de Inglaterra, tinha
de bater o Honvéd, o campeão húngaro e
a formação que servia de base à seleção
húngara – ou seja, onde pontificavam os
“vilões” Puskás, Kocsis, Czibor e outros
que tais.
O Wolverhampton e o seu estádio não
foram escolhidos ao acaso. O clube já tinha
averbado uma série de “gloriosas vitórias”
frente a adversários internacionais, a meio
da semana e em jogos noturnos, nomea-
damente contra os argentinos do Racing
Avellaneda e os russos do Spartak de Mos-
covo. Pormenor curioso: a federação ingle-
sa de futebol (FA) não permitia, então, nas
provas por si organizadas, partidas após o
pôr do sol por entender que as pessoas de
bem deveriam estar em casa, ou na cama, a
tais desoras. Para demonstrar o contrário,
55 mil adeptos encheram as bancadas do
Molineux para assistir ao jogo, que era
também transmitido pela BBC – outra
particularidade não permitida pela FA nas
competições oficiais. Os Wolves (Lobos),
como também eram designados, ganha-
ram aos húngaros por 3-2, após estarem
a perder por 2-0. A reviravolta aconteceu
graças ao empenho dos jogadores ingleses
e ainda às táticas e manhas do treinador
Stan Cullis. Por saber que os húngaros ti-
nham muito mais técnica e que precisavam
de trocar artisticamente a bola entre si, o
técnico deu ordens para, no intervalo, se

D.R.
despejarem dezenas de cântaros de água
no relvado. A estratégia surtiu efeito. O
lamaçal favoreceu o famoso kick and
rush (corre e chuta) e as aptidões físicas
dos homens da casa. No final, em de-
clarações à Imprensa, Stan Cullis, com a
sua tradicional fleuma, descreveu os seus
jogadores como “os melhores do mundo”.
As suas palavras seriam reproduzidas nas
manchetes dos jornais e tiveram muito
mais impacto do que a atitude de Cullis,
em maio de 1938, quando era capitão do
Wolverhampton e uma das estrelas maio-
res da seleção inglesa: recusou fazer parte
da equipa nacional por não estar disposto
a fazer a saudação nazi num jogo contra a
Alemanha, no estádio olímpico de Berlim.
Após os ingleses proclamarem o Wol-
verhampton como “campeão do mundo”,
um dos espectadores que assistiu ao jogo
com o Honvéd, o francês Gabriel Hanot,
editor do jornal L'Equipe, escreveu que
esse título tinha de ser formalizado atra-
vés de uma prova oficial e que o clube das
West Midlands não era invencível. Poucos
meses depois, a UEFA, entidade responsá-
vel pelo futebol no Velho Continente, dava
origem à Taça dos Campeões Europeus.
Os Wolves acabariam por participar
duas vezes nesta competição e os resul-
tados não corresponderam às enormes
COM
OM NUNO ESPÍRITO SANTO,
O CLUBE CONSEGUIU NAS
DUAS
UAS ÚLTIMAS ÉPOCAS
O MELHOR DESEMPENHO
DESDE
ESDE 1979
Multidões Em 1939, frente ao
Liverpool, o estádio Molineux registou
um record de espetadores (61 mil).
Agora, recebe cerca de metade
HISTÓRIA DE CAMPEÃO
1877 Jack Addenbrooke e outros
alunos do colégio St. Luke
fundam o clube na cidade
de Wolverhampton
1888 É uma das 12 equipas
profissionais que disputam
o primeiro campeonato
inglês de futebol e alcança
o 3º lugar
1893 Vence a primeira das suas
quatro Taças de Inglaterra
(1908, 1949, 1960)
1938 Treinado por Frank Buckley,
o clube é vice-campeão
mas acusado de recorrer
ao doping. O capitão
Stan Cullis recusa fazer
saudação nazi num jogo da
seleção inglesa, em Berlim,
contra a Alemanha
1954 Conquista o primeiro dos
seus três campeonatos
nacionais, sob o comando
de Stan Cullis, e organiza
jogos à noite, amistosos
internacionais, transmitidos
pela BBC
1986 Na bancarrota e à beira da
dissolução, o clube joga na
quarta divisão inglesa
2016 É adquirido pelos chineses
da Fosun, por quase 50
milhões de euros
2018 Nuno Espírito Santo leva
o clube, de novo, para a
primeira divisão e alcança
um inesperado 7º lugar
2020 Equipa conta com dez
jogadores e cinco técnicos
portugueses e tem o sonho
de tornar-se um dos big six
da Premier League
expectativas. Na época de 58-59, perde-
ram logo na primeira eliminatória, com
os alemães do Schalke 04 e, na seguinte,
chegaram aos quartos de final mas acaba-
riam esmagados pelo Barcelona: no pri-
meiro jogo, na capital da Catalunha, perde
por 4-0 e depois, no estádio Molineux, o
marcador fica nos 2-5, com três dos golos
catalães a serem apontados por um velho
conhecido, o húngaro Sándor Kocsis. A
temporada de 1959-60 é o canto do cis-
ne do Wolverhampton, a última em que
o clube ganhou um grande troféu (a Taça
de Inglaterra) e também o início de um
vertiginoso sobe e desce pelos escalões in-
feriores do futebol inglês (chegou a militar
na quarta divisão), com várias bancarrotas
e ameaças de dissolução pelo meio.
Em 2016, um dos homens mais ricos
do mundo, o chinês Guo Guangchang,
administrador da Fosun – conglomerado
empresarial cujos interesses financeiros,
em Portugal, vão do Millennium BCP à
Luz Saúde –, comprou o Wolverhampton.
A troco de 45 milhões de libras (perto de
50 milhões de euros), o novo proprietário
pegou no clube com o propósito de lhe
devolver a glória. Não se tem saído nada
mal. Em 2017, já sob a tutela do treinador
português Nuno Espírito Santo, o clube
garante o regresso à Premier League e,
na temporada seguinte, alcança um sur-
preendente sétimo lugar, algo que não
sucedia há quatro décadas. As milionárias
contratações de vários jogadores portu-
gueses também ajudaram: João Moutinho,
Rui Patrício e Rúben Neves são apenas
três dos 15 elementos da armada lusitana
dos Wolves (técnicos incluídos), quase
todos representados por Jorge Mendes,
empresário da confiança de Guo Guan-
gchang. Os últimos tugas a chegar foram
Fábio Silva, Vitinha e Nelson Semedo, um
triunvirato que vem reforçar a equipa em
que os titulares nacionais são sempre em
maior número do que acontece no Ben-
fica, Porto ou Sporting. Motivo suficiente
para o Wolverhampton ter lançado, este
verão, com enorme sucesso comercial, um
equipamento alternativo – com camisola
e calções em vermelho bordeaux – muito
semelhante ao usado pela equipa das qui-
nas, e ao qual não faltam sequer as meias
verdes, para completar as cores habituais
da seleção de Portugal. Será que ainda
vamos ver assim vestidos, nas bancadas
do Molineux, Robert Plant, vocalista dos
míticos Led Zeppelin, ou Eric Idle, hu-
morista dos inigualáveis Monty Python,
a gritarem pelo clube mais português que
o Reino Unido já conheceu? ffialho@visao.pt
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 77
 C O M P O R TA M E N T O
O saudoso barulho da impressora
Ouvir sons normalmente associados ao escritório pode ser uma boa
forma de trabalhar à distância. Além de simular o local de trabalho,
“a banda sonora do escritório” pode facilitar a concentração
Q
uando se falou de teletraba-
lho houve quem pensasse na
qualidade de vida que poderia
ganhar. A ideia de ficar na “ro-
nha” até pouco antes da hora
de “picar o ponto”, de enviar
emails de pijama e de tomar o
pequeno-almoço em frente ao
computador agradou a muitos,
mas o confinamento revelou
não ser um mar de rosas.
Entre chamadas indesejadas do che-
fe em horário pós-laboral, dias sem fim
aparente e uma carga de trabalho cada vez
maior, muitos portugueses deram em doi-
dos ao tentarem equilibrar trabalho com
a vida familiar e a telescola das crianças.
Deste contexto de isolamento sem
precedentes, nasceram novas formas
de trabalhar e alguns hábitos caricatos.
Como uma nova playlist que entrou na
moda, com barulhos que associamos ao
escritório como forma de simular o local
de trabalho e aumentar a concentração. Ao
enganar o cérebro com sons de teclado,
telefonemas e conversas de fundo, houve
quem esquecesse o barulho dos miúdos
78 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
MARIA INÊS RODRIGUES
2 SITES COM PLAYLISTS
imisstheoffice.eu
Com direito a escolher
o número de colegas
presentes na sala e com o
poder de comandar cada
um dos seus movimentos, o
imisstheoffice.eu simula os
sons do “escritório moderno”
com o objetivo de facilitar a
concentração.
mynoise.net
Com mais de 250 mil
visualizações no hit
Calm Office, o mynoise.
net converte a utopia
do escritório perfeito
em realidade – com a
possibilidade de gerir o
volume das máquinas
fotocopiadoras, teclados,
relógios ou até de pedir
silêncio aos colegas mais
conversadores.
GETTY
e se sentisse no escritório por momentos.
Inês Lourenço, 40 anos, psicóloga
organizacional, duvida da eficácia desta
prática: “Não me parece que ajude, apenas
disfarça outros ruídos envolventes.” Já nos
casos em que o problema é a falta de ba-
rulho, a simulação pode trazer resultados
mais interessantes: “O silêncio também
incomoda as pessoas e, nesses casos [ou-
vir a banda sonora do escritório], pode
ser positivo para preencher esse ‘vazio’.”
No trabalho remoto, o mais importante
é “cumprir rotinas e horários”, continua a
psicóloga. Há que dividir o dia entre traba-
lho, família e lazer. “É preciso organização
pessoal e um sistema criado para conjugar
todas estas dimensões. De outra forma,
vão sobrepor-se com mais frequência,
surgindo como urgências, criando stresse
e uma sensação de insuficiência de tempo”,
alerta Inês Lourenço.
A banda sonora do escritório (que se
encontra em sites de playlists como o
mynoise.net) pode não ser uma solução
universal, mas quem procura um estímulo
auditivo está um passo mais perto de re-
gressar ao local de trabalho. visao@visao.pt
 FIGURA

Agatha
VAGA R

“Quanto mais
inteligente
se é, menos

Christie
se desconfia
do absurdo”
Joseph Conrad
Escritor
(1857-1924)

O misterioso caso
de Hercule Poirot
O QUE COMEÇOU COM UMA APOSTA ENTRE IRMÃS
TORNOU-SE UMA DAS MAIORES CRIAÇÕES LITERÁRIAS
DO SÉCULO XX. O PRIMEIRO LIVRO COM O DETETIVE
MAIS FAMOSO DO MUNDO, O MISTERIOSO CASO DE
STYLES, FOI PUBLICADO HÁ 100 ANOS. E POIROT
CONTINUA À PROCURA DE NOVOS LEITORES
LUÍS RICARDO DUARTE

80 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

Rainha do crime Agatha Christie tinha 30 anos quando o seu primeiro livro foi publicado, em outubro de 1920.
Foi logo aí que apresentou Poirot aos seus leitores. Seguir-se-iam mais 39 livros com o detetive como protagonista

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 81

É
FIGURA

É provavelmente o crime perfeito. Aquele

que se comete à frente de todos, mas sem
sangue nem culpados, e cujo desfecho,
caso algum dia seja levado a tribunal, só
pode ser um: absolvição. Aos poucos, ano
a ano, livro a livro, a personagem começou
a suplantar a criadora. Talvez se possa di-
zer que o detetive matou a escritora, mes-
mo depois de ela o ter matado primeiro.
As leis do tempo e da sobrevida literária
falaram mais alto. Se hoje nos lembramos
de Agatha Christie, isso deve-se sobretudo
a Hercule Poirot. Mas para falar de Her-
cule Poirot nem sempre é preciso con-
vocar a “rainha do crime”, como a autora
ficou conhecida. Ele vive pelos próprios
méritos. E continua em grande forma, a
decifrar enigmas em novos romances,
em adaptações cinematográficas cada
vez mais sofisticadas e, claro, na imagi-
nação dos leitores (ver caixas). Cumpre
este ano um século de existência, desde
a estreia no livro O Misterioso Caso de
Styles, publicado em 1920, e ninguém
saberá prever a sua longevidade. O seu
sucesso é um mistério e nesse mistério
está o seu sucesso.
Nada faria prever, de facto, que Poi-
rot viria a tornar-se um êxito mundial.
Durante muitos anos, chegou até a di-
zer-se que apenas a Bíblia e Shakespeare
superavam Agatha Christie em número
de livros vendidos. É, obviamente, uma
contabilidade impossível de apurar. Ainda
assim, reforça o estatuto das suas criações,
sobretudo a do seu detetive.
Poirot é, na verdade, um herói impro-
vável. É dedutivo, mas os seus antecesso-
res também o eram, não constituindo por
isso uma novidade. Investiga em dupla, Lugar de escrita Até à sua morte, em 1976, Agatha
com um fiel companheiro com quem Christie publicou mais de 80 livros, celebrizando
dialoga, o que na altura também não era personagens como Hercule Poirot e Miss Marple
novo. E se a natureza lhe deu atributos
insuperáveis, ao nível das “células cinzen-
tas”, não foi propriamente generosa nos calcorreando os passos da escritora, uma
atributos físicos. E no entanto... apaixonada pela arqueologia e civilizações
E, no entanto, Hercule Poirot é uma antigas.
personagem fascinante, daquelas que, Dê-se também o seu a seu dono e
caso se estranhe no início, facilmente se não será possível esquecer as qualidades
entranha ao correr da leitura e dos mis- literárias de quem, em vida, ultrapassou
térios que resolve. A inesperada e descon- a fasquia de dois mil milhões de livros
traída criação da escritora inglesa seduz e vendidos. Quer nos romances policiais, ou “A EXPLICAÇÃO
MAIS SIMPLES É SEMPRE
envolve, conduzindo-nos pelos meandros de outro figurino, quer nas muitas peças
do crime, sobretudo os familiares, e dos de teatro de igual êxito, Agatha Christie
venenos, a arma a que Agatha Christie
mais vezes recorre. Belga de nascimento
domina na perfeição a arte do diálogo.
No pingue-pongue dos interrogatórios A MAIS PROVÁVEL”,
e refugiado por circunstâncias históricas,
ele é, como o leitor, um observador de
ou nas reflexões partilhadas, o enredo
avança e inebria, oferecendo ao leitor a
DIZ HERCULE POIROT
um mundo que não é o seu, quer o do
Reino Unido, quando está em casa, quer
chave do mistério, embora nunca lhe diga
onde se encontra a fechadura. Em cima da
LOGO NO PRIMEIRO LIVRO
o do Oriente, quando segue em viagem, mesa estão todas as pistas, e ainda assim EM QUE APARECE, EM 1920

82 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

Os rostos de Poirot no cinema e na televisão
Não é centenária, como a personagem, mas quase. A presença do detetive
criado por Agatha Christie, no grande e pequeno ecrãs, começou em 1931
e continua a ser recriado com novos formatos e abordagens
Austin Trevor
Foi o primeiro rosto de Poirot, em Alibi, de 1931, ainda a preto-e-
branco, que adaptava O Assassinato de Roger Ackroyd. Diria mais
tarde que foi escolhido por conseguir falar o inglês afrancesado
que caracteriza o detetive belga. Repetiu o papel por duas vezes.
David Suchet
É impossível falar do detetive na televisão sem dedicar vários
capítulos ao seu desempenho na série britânica, responsável
pela fama atual de Poirot. Treze temporadas, de 1989 a 2013,
fizeram dele o retrato perfeito da personagem imaginada por
Agatha Christie.
John Malkovich
Protagoniza a série mais recente, Os Crimes do ABC, de 2018,
criada pela BBC num momento em que se procuram novas
abordagens. Adaptação livre do romance homónimo, explora
a condição de refugiado do detetive.
Peter Ustinov
Ator de vasta carreira, vencedor de dois Oscars (Spartacus e
Topkapi), a ele se deve o início da popularidade de Poirot no
cinema e na televisão. Foi protagonista em seis filmes, estreados
entre 1978 e 1988. O mais aplaudido foi Morte no Nilo.
Alfred Molina
Não ficará para a História pelo seu desempenho como
Poirot, mas o filme em que fez de detetive, Um Crime no
Expresso do Oriente, de 2001, filmado por Carl Schenkel,
foi a primeira tentativa de trazer para os nossos dias os
enredos da escritora inglesa.
Kenneth Branagh
É o Poirot do momento. Fez de detetive, em 2017, em Um Crime
do Expresso Oriente, e regressa em Morte no Nilo, que se estreia
em Portugal em dezembro. Uma adaptação vertiginosa
para um investigador que nunca teve pressa.
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 83
 FIGURA
o enigma é surpreendente até ao final. Se
fosse fácil, não seria para Hercule Poirot.
UMA APOSTA GANHA
“A explicação mais simples é sempre a
mais provável”, diz Hercule Poirot logo no
primeiro livro em que aparece, o tal que
o levará a resolver O Misterioso Caso de
Styles. Esse tornou-se o seu lema porque
a experiência mostrou-lhe que “a ima-
ginação é uma boa servidora, mas uma
má patroa.” Cuidado com as efabulações.
Para explicar o que levou Agatha Christie
a criar a sua personagem também teremos
de recorrer à explicação mais simples.
Estava aborrecida. Tinha 18 anos e gripe.
“Estava entediada. Já lera muitos livros,
fizera dezenas de paciências e estava agora
reduzida a jogar bridge sozinha”, recorda
na sua autobiografia, outro dos seus livros
de leitura empolgante.
Foi a mãe que lhe abriu o caminho.
“Porque não escreves uma história?” A
irmã Madge escrevera várias, porque
não arriscar também? Bastava tentar. O
conselho materno foi reforçado com a
oferta de um caderno. “Há umas listas
da lavandaria no princípio”, disse, “mas o
resto está vazio, podes começar a tua his-
tória já”. A futura escritora estava a nascer,
em contos que enviava, como mandava a
tradição da época, para revistas literárias
e que recebia na volta do correio com um
agradecimento e uma recusa.
Porém, não desistiu. Pensou que o
melhor seria escrever um romance. Teve
duas ideias e misturou-as, acabando com
um enredo martelado. Quem o disse foi
o seu vizinho Eden Phillpotts, roman-
cista, poeta e dramaturgo, autor de uma
vastíssima obra, hoje mais conhecido
por ter sido o primeiro crítico de Agatha
Christie. Foi generoso quando recebeu
o original, direto e certeiro. “Nem tenho
palavras para expressar como lhe estou
grata”, garantia a escritora. Elogiou-lhe
a noção do diálogo e censurou-lhe as
moralizações. Aconselhou-a a separar as
duas histórias que encontrava no livro e
a continuar. E ela assim fez.
Os anos seguiram-se, as histórias
também, incluindo as suas, pessoais,
como dois casamentos felizmente evi-
tados, pois seriam grandes erros, como
admitia entre risos, e o nó felizmente
dado, em 1914, com Archibald Christie,
de quem se separaria em 1928, para
voltar a casar-se, dois anos depois, com
Max Mallowan.
Foi durante a I Guerra Mundial que se
lançou efetivamente no mundo do crime,
84 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
“Novos casos antigos”
Hercule Poirot está de regresso, outra vez, no quarto romance em que
Sophie Hannah dá nova vida à mítica personagem de Agatha Christie.
Encontro à Meia-Noite é mais um labirinto de pistas e indícios
É um daqueles casos em que se pode dizer “ama-
-me ou odeia-me”, citando a famosa expressão
inglesa, ou então: “Lê-me ou não me compres.” Para
muitos fãs do famoso detetive criado por Agatha
Christie, os novos mistérios de Hercule Poirot são
uma grande notícia; para outros, um ultraje, uma
ofensa não só à escritora, mas também aos leitores.
Avaliados os pró e contras, os herdeiros decidiram
avançar mesmo com a ideia de dar novas aventuras
ao detetive. A escritora escolhida foi a inglesa So-
phie Hannah, que tinha a seu favor o forte currículo
no género policial e a paixão pela “rainha do misté-
rio”. O primeiro romance saiu em 2014 e, este mês,
chega o quarto, Encontro à Meia-Noite (Asa, 288
págs., €15,90), já nas livrarias. Uma homenagem no
estilo e no intrincado labirinto de pistas e indícios.
Ao decretar a morte da personagem Poirot, em
1949, Agatha Christie impossibilitou a evolução do detetive por períodos históricos
mais recentes. Sophie Hannah tem inventado, assim, “novos casos antigos”, isto é,
crimes que se encaixam no currículo que os leitores já conhecem. Escolheu o final
dos anos 20 e início dos anos 30, o período mais ativo de Poirot, já com agência
própria, e deu-lhe um novo parceiro de investigação, Edward Catchpool, inspetor da
Scotland Yard, substituto à altura do capitão Arthur Hastings. Pequena mudança que
não altera o essencial: uma dupla que discute e põe em perspetiva as provas e os de-
poimentos recolhidos, mansões da velha aristocracia que escondem diversos crimes
e o recurso constante ao diálogo. Agora, Poirot e Catchpool têm pela frente um caso
em que a principal suspeita é a irmã do morto. No entanto, Richard Devonport pede
ao detetive que prove a inocência da noiva, convidando-o a ficar em sua casa até
resolver o mistério. Só não pode dizer a ninguém o motivo da sua visita.
com o treino de muitos contos, ainda
que recusados, e romances, quase todos
abandonados. Uns anos antes, a sua irmã
Madge armara a bomba que algum tempo
depois havia de detonar. Eram as duas
apaixonadas por histórias de detetives, em
particular as de Sherlock Holmes, muito
famosas no início do século XX, e as de
Gaston Leroux, então recém-publicadas.
“Entusiasmada com tudo isto, declarei que
ia experimentar escrever uma história de
detetives”, lembra ainda na autobiografia.
“Aposto que não consegues”, respondeu-
-lhe Madge, talvez invejosa, pois falhara
HERCULE POIROT em igual tentativa.
Talvez não tenha sido uma aposta
CUMPRE ESTE ANO UM concreta, com valor definido ou prazo
SÉCULO DE EXISTÊNCIA.
estipulado, mas, como recorda Agatha
Christie, “as palavras foram ditas” e algu-
O SEU SUCESSO É UM res no fundo da sua mente “a ideia fora
plantada”. Desde esse momento soube que
MISTÉRIO, E NESSE “ia escrever um romance policial”. Só não
sabia que, com esse, viriam muitos mais,
MISTÉRIO ESTÁ O SEU incluindo os 39 que dedicou a Poirot, to-
dos publicados em Portugal (atualmente
SUCESSO pelas Edições ASA).

INTELIGÊNCIA E MÉTODO
Escrito numa altura em que a Europa es-
tava em ebulição e publicado em 1920, na
ressaca da I Guerra Mundial, O Misterioso
Caso de Styles não foi um êxito estrondo-
so, mas também não passou despercebi-
do. Vendeu dois mil exemplares, deixando
os editores recetivos a outros títulos. Mais
importante foi o facto de Hercule Poirot
ter criado, com apenas um livro, o seu
primeiro grupo de fãs, em particular no
jornal The Sketch.
Agatha Christie ainda publicou O
Inimigo Secreto, em 1922, a primeira
investigação de Tommy e de Tuppence,
dois dos vários detetives saídos da sua
pena, de cuja lista faz parte a também
muito famosa Miss Marple. Mas a mina de
ouro estava encontrada. Faltava perfurá-
-la. Em 1923, surgia Crime no Campo de
Golfe; em 1926, O Assassinato de Roger
Ackroyd. E, por essa altura, já se começava
a guardar um lugar só seu na história da
literatura policial.
Ao correr dos anos, Agatha Christie
viria a arrepender-se daquela forma
descontraída como desencantou o seu
detetive. É verdade que soube reinventar
a fórmula mágica de Arthur Conan Doyle,
que definiu durante décadas o género: a
dupla. Para acompanhar Hercule Poirot
foi buscar Arthur Hastings, companheiro
sempre disponível mas muitas vezes im-
pulsivo. Seguiu o modelo dedutivo, que já
vinha dos contos fundadores do género
que Edgar Allan Poe escreveu entre 1841
e 1844, mas emprestou-lhe outra vivaci-
dade. No entanto, sempre considerou um
erro tê-lo feito nascer já homem entrado
na idade, pois dessa forma não podia
crescer com a autora. Agatha Christie via
o mundo a alterar-se, mas a realidade de
Poirot permanecia a mesma.
Mais complicado revelou-se, como
já se disse, a dimensão física. “Homem
baixo de aspeto singular.” Nada a apon-
tar. “Pouco mais de um metro e sessenta
mas um porte cheio de dignidade.” Sem
ter a altura ideal, não é grave. “A cabeça
tinha exatamente a forma de um ovo e
ele inclinava-se sempre um bocado para
um lado. O bigode era completamente
Para a História Com a filha,
o neto e um amigo historiador,
em 1948. E fazendo medições
para a construção da sua figura
de cera, presente no museu
Madame Tussauds, em Londres
hirto e marcial.” O bigode ainda se aceita,
e tornou-se icónico, mas cabeça de ovo?
Esta perseguiu-a a vida toda. Nunca o
soube explicar.
Outros traços de personalidade reve-
lados no livro inaugural têm uma justifi-
cação clara: dão forma e expressão a um
espírito meticuloso e obsessivo: “A impe-
cabilidade do seu vestuário era quase in-
crível: creio que um grão de pó lhe infligia
mais dor do que o ferimento de uma bala.”
Muitas vezes a tendência de Poirot para
alinhar os objetos torna-se fundamental
para se perceber se o assassino regressou
ao local do crime para destruir provas.
E porquê Hercule Poirot? Soava bem.
E porquê belga? Havia muitos, com esta-
tuto de refugiados, como a personagem
também tem em Inglaterra. E porquê a
obsessão com os venenos, presente em
tantos livros? Agatha Christie dominava o
assunto, pois trabalhou como enfermeira
durante a I Guerra Mundial, e queria evi-
tar os crimes de sangue, mais violentos.
Tudo se definia na dosagem; na medida
certa revelava-se milagrosa, na errada
tornava-se fatal.
Poirot nascia, assim, um “verdadeiro
profeta”, como lhe chama Hastings, al-
guém capaz não só de perceber o que se
passou como de antecipar os passos se-
guintes do assassino. “Temos de ser mais
inteligentes”, diz constantemente ao seu
amigo. “Tão inteligentes que ele nem sus-
peite que somos inteligentes.” No Essex ou
no Nilo, a bordo de um barco ou dentro
de um comboio, à noite ou à luz do dia,
nenhum crime se revelou suficientemente
complexo. Basta levar tudo em considera-
ção. “Se os factos não se coadunam com
a teoria, abandone a teoria”, eis outra das
suas máximas.
O que Poirot mais gosta é de juntar
todos os suspeitos na mesma sala, como
faz em O Misterioso Caso de Styles, para
identificar o culpado ou levá-lo à confis-
são quando as provas são insuficientes.
“Não podemos misturar os sentimentos
com a razão”, dirá muitas vezes, porque
“provavelmente todos os assassinos são
velhos amigos de alguém”.
E o que Poirot sempre soube, e que
talvez explique o seu mistério e o seu ape-
lo, seguramente também o seu sucesso, é
que o criminoso pode ser, afinal, “um de
nós”. Por isso voltamos, uma e outra vez,
aos seus livros, assim como quem procura
um mapa para a alma humana.
rduarte@trustinnews.pt
1 OUTUBRO 2020 VISÃO 85
 PESSOAS

LUCÍLIA MONTEIRO
Richard Zimler
Regresso ao futuro
O primeiro livro em língua inglesa do escritor só agora chega traduzido às livrarias
portuguesas. No final do século passado, foi aconselhado a não o publicar

H
oje, aos 64 anos, é o
escritor profissional,
celebrado em vários paí-
ses, que os portugueses
conhecem bem. Mas os
primeiros passos da sua
carreira literária não foram fáceis. As
páginas de O Último Cabalista de Lis-
boa, em que Richard Zimler tinha tra-
balhado ao longo de três anos (de 1991
a 1993), eram sucessivamente rejeitadas
por várias editoras dos EUA, quando o
autor aceitou o conselho de uma amiga:
esquece esse livro e escreve outro. Mas
não considerou O Último Cabalista...
um caso perdido e salvou-o graças a
uma “ideia louca”: e se tentasse publicá-
-lo, traduzido, numa editora portugue-
sa? Bingo! A editora Maria da Piedade
Ferreira, então na Quetzal, não deixaria
passar a oportunidade e o livro, publica-
do em 1996, tornar-se-ia um bestseller
muito lido ainda hoje. Nesse mesmo ano
saía, para o mercado de língua inglesa, o
tal outro livro que escreveu entretanto:
Unholy Ghosts.
A Quetzal interessou-se rapidamente
por mais um título de um tão promissor
novo autor, mas acabou por não o editar.
“[Maria da Piedade Ferreira] disse-me
que teria muito gosto em publicá-lo, mas
acrescentou que achava que não devía-
mos fazê-lo. Porquê? Ela receava que
houvesse represálias contra mim, por
explorar temas que nessa altura eram em
grande parte tabu em Portugal. Resumin-
do, alguns editores de jornais e revistas
conservadores poderiam muito bem
esforçar-se ao máximo para nos destruir,
a mim e ao livro.” Estas peripécias, conta-
-as Richard Zimler no prefácio de Insub-
missos, a tradução desse Unholy Ghosts,

86 VISÃO 1 OUTUBRO 2020

que chega às livrarias, pela primeira
vez em português, a 30 de outubro.
E que temas eram esses? A sida e a
homossexualidade. Em 1989, Zimler
tinha perdido o irmão, vítima da nova
doença que assustava o mundo –
“Pareceu-me natural escrever sobre
as minhas experiências com ele, e
sobre a forma como a pandemia da
sida lançara uma negra sombra sobre
a vida na área da Baía de São Fran-
cisco, nos anos 80 do século passado,
CARLA BOLITO VÍTOR D’ ANDRADE
quando eu vivia em São Francisco
com o meu futuro marido, Alexandre
Quintanilha”, explica o escritor, reco-
nhecendo que foi, também, por causa
da atual situação pandémica que se
lembrou de recuperar esse seu livro.
“Eis que outra doença potencialmente
fatal volta a ser o principal foco dos
meios de comunicação, bem como
tópico das conversas diárias entre

‘‘Insubmissos’’
Publicado em
DAVID PEREIRA BASTOS RITA DURÃO
1996, só agora,
no próximo dia
30, chegará às
livrarias em
português.
O romance
recorda-nos uma
Só às paredes confesso
Quatro escritores e quatro atores dão corpo
outra pandemia: a um projeto artístico que só podia ter nascido neste ano
a da sida de confinamentos forçados

amigos. De repente, ocorreu-me que
talvez tivesse chegado o momento
certo para publicar o Unholy Ghosts.
Os meus editores da Porto Editora
concordaram imediatamente.”
O livro conta a história de um “jovem
e talentoso guitarrista clássico do
Porto”, António, que, depois de se
saber infetado com VIH, entra em
pânico. O seu professor de guitarra,
norte-americano, esforça-se então
para que o seu aluno potencie o mais
depressa possível as suas qualidades.
O enredo passa, então, por uma via-
gem a Paris, em busca de um gran-
de mestre, e a essa dupla junta-se o
pai de António, alguém que nunca
aprovou a homossexualidade do filho.
Um excerto da sinopse do novo livro
infantil de Richard Zimler, Na Terra
dos Animais Falantes (Porto Editora),
que por estes dias chega às livrarias,
também podia muito bem aplicar-se,
certamente, a este Insubmissos: “... al-
gumas respostas sobre a vida, a morte
e tudo o que está pelo meio”. P.D.A.
No futuro será, certamente, feita a história dos muitos projetos, nos mais
diversos géneros artísticos, que se inspiraram neste ano de pandemia,
partindo de experiências tão fortes como o distanciamento social e o
confinamento obrigatório. Este Aproveitando uma Aberta, cruzando várias
artes, encaixa bem nessa inevitável tendência. O subtítulo do projeto é mais
claro: Quatro monólogos para quatro atores em quatro divisões da casa.
A ideia foi de Madalena Alfaia (que nos últimos 15 anos tem estado ligada
ao universo dos livros como editora, revisora e tradutora) e começou
por ser pensada num registo muito simples e amador, como resposta
rápida ao confinamento obrigatório da primeira fase da pandemia do novo
coronavírus. “Como estávamos todos fechados em casa, na fase mais dura
do confinamento, a ideia era os atores filmarem-se a eles mesmos, com os
telemóveis. O João Gambino faria depois um pequeno trabalho sobre estes
vídeos caseiros”, explica.
Hoje, esse projeto é, também, uma instalação, visitável até 7 de novembro
no Museu de Lisboa - Palácio Pimenta. E em que consiste mesmo, afinal?
Quatro autores escreveram especificamente monólogos para quatro atores
a pensar em divisões específicas da casa. A saber: Matilde Campilho
escreveu para Vítor D’Andrade, na cozinha; Valério Romão escreveu para
Carla Bolito, na casa de banho; a própria Madalena Alfaia escreveu para
David Pereira Bastos, no quarto; e Jacinto Lucas Pires escreveu para
Rita Durão, na sala de estar. O resultado final pode ser visto online (nas
páginas de Facebook e Instagram de Aproveitando uma Aberta) ou visitado
em quatro espaços do museu lisboeta (de terça a domingo, das 10h às 18h).
Literatura, teatro, vídeo e música (de Filipe Melo) juntam-se para nos
fazerem olhar o presente nos olhos e também para deixarem a memória
de 2020 no futuro. P.D.A.

1 OUTUBRO 2020 VISÃO 87

 CRÓNICA
P O R C A P I C U A / Rapper
Primatas
A identificação
assoberba, dá medo,
é como conhecer um
ancestral que vive
milhares de anos
para nos lembrar de
que somos bichos,
crianças e velhos,
sempre bichos
88 VISÃO 1 OUTUBRO 2020
T
rinta anos depois voltei ao jardim zoológico, agora na
condição de mãe. Neste interregno tinha ficado com a
sensação de que grande parte dos animais não estava
hospedada convenientemente. Lembro-me de ser criança
e de sentir que estava tudo errado com as jaulas dos
felinos. Exíguas, forradas a azulejo de casa de banho e
incompatíveis com a sua natureza selvagem e fugidia. Não
tinham por onde correr ou esconder-se e ficavam ali a
andar em círculos, entre o tédio e o desespero.
Com um certo medo de que pouco tivesse mudado, comprei os bilhetes
e em boa hora. Gostei de ver a renovação e de saber que não só a fauna
prosperou como a flora cobriu os recantos com exuberância. Gatos e pavões
à solta, boas condições para os animais e muito bom gosto na forma como
os habitats (outrora jaulas) estão dispostos e arquitetados. Só uma coisa
continua a fazer-me confusão neste conceito de zoo, fazendo pesar a ideia
de clausura (ainda que as acomodações sejam impecáveis) – manter primatas
em cativeiro.
Concordo que seja por uma questão de identificação e que manter
primatas ou outros animais em cativeiro tenha exatamente a mesma
gravidade. Mas é inevitável sentir que somos feitos do mesmo molde, que
eles (por antropocentrismo) estão num patamar diferente e que, ao vê-los ali
confinados, se torne mais claro que estamos a visitar uma espécie de prisão
(ainda que espaçosa e arejada, com espaços verdes e boa comida).
Pode ser também que seja estúpida a diferenciação e que nasça apenas
do meu incómodo com macacos, em geral, e grandes primatas, em
particular. É difícil explicar por palavras, mas basicamente os macacos
fazem-me impressão. Os pequenos parecem pessoinhas pequeninas, com
mãozinhas perfeitinhas e rápidas, muito destras. E os grandes têm uma
quantidade de expressões faciais tão vasta que, nas suas nuances, estamos
permanentemente a descobrir as nossas.
Os pequenos parecem-me crianças endiabradas, que podem saltar-nos
para o colo a qualquer momento para roubarem o que levamos nos bolsos.
Os grandes parecem-me anciãos de olhos tristes e molhados, que sabem
sempre mais do que nós, mesmo que já não se lembrem. Os pequenos
parecem-me sempre imponderáveis. Os grandes parecem-me sempre tristes.
E parece-me sempre mal mantê-los ali atrás de um vidro, cativos, sem poder
praticar a imprevisibilidade ou a sabedoria.
Olhá-los arrepia-me fisicamente tanto quanto me causa um
estremecimento existencial. É um calafrio corporal e filosófico, que revira as
entranhas (da carne e do espírito) em reação ao encontro. Parece que, quando
me chego ao vidro, vejo o nosso reflexo sobreposto neles. A identificação
assoberba, dá medo, é como conhecer um ancestral que vive milhares de
anos para nos lembrar de que somos bichos, crianças e velhos, sempre
bichos, elétricos ou pensativos, sempre bichos, sujeitos a ficar cativos,
infantilizados de qualquer forma. E naquela condição de menosprezo, em
desrespeito pela majestática condição de primata, nós, humanos (na nossa
soberba), mostramo-los aos filhos, sem pompa ou respeito, como mais um
animalzinho qualquer.
Ainda por cima, para uma criança de um ano e meio, ver animais ao vivo,
um boneco de plástico, um poster A2 ou um desenho animado é mais ou
menos a mesma coisa. Ou se impressiona com a escala (como com as girafas
e os elefantes) e com o movimento (como com as lontras mergulhadoras do
oceanário), ou então nicles, não se extrai reação ou brilho de olhar arregalado.
Que falta de respeito para com aqueles gorilas imponentes, de sobrancelha
franzida, a mastigar lentamente o tempo de cativeiro. Que falta de apreço
pelos orangotangos de olhos doces, com um meio-sorriso-triste de palhaço
pobre. Que falta de sentido histórico. Que falta de consideração para com os
chimpanzés, primos primatas, com que partilhamos 99% do ADN.
Decididamente, o respeito pelas outras espécies devia estar no 1% que não
passou para este ramo da família. visao@visao.pt