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134 AKROPOLIS, 8 (3): jul/ses., 2000] AESTETICA CLASSICA EM DRUMMOND, Apolo dos Santas Siva Resumo Introducio E mais uma leitura de Drummond, onde o “Paixdo Medida” apresenta a o basilar que norteia sua produgao autor de fundament poética © revela, com muita clareza, seu fazer estético. A preocupagio deste trabalho é apresentar ao letor como este poeta comprova ser conhecedor dos antificios clissicos do processo criativo, quer nos aspectos formais, quer na plurissignificdncia que o texto apresenta, PALAVRAS-CHAVE: Leitura, Fstética, Poesia. Abstract Itis one more Drummond reading, where the author of “Measured Passion” presents the basic fundamentals that guides his poetic production and reveals, very clearly, hisesthetic doing. The focus of this paper is then to present to the reader. Kow this poet confirms to be a connoisseur of the classic devices of the creative process, either in the formal aspects or in the plurisignificance that the (ext presents KEYWORDS: Reading, Esthetic, Poetry. * Docemte da UNIPAR, Doutorem Letras. A poesia ltica é manifestagaio litersiria que esti sempre presente nos cultores das letras, o que nos eva leitura de sua concepgao para melhor compreender seu valor. Os eriticos nos remetem aos sgtegos latinos como exemplos dessa modalidade de produgio litersria, Advém daf uma aveitagao ticitae quase inquestiondvel desses modelos. O leitor moderno sente dificuldades cada vez. maiores em eestudar esse género por um motivo muito simples: 0 desconhecimenta do texto original grego ou latino, A nossa contribuigdo encaminha-se no sentido de demonstrar, numa ripida anélise, como essas \s Se evidenciam. A pedo pelo gua latina se deu, porseressa lingua mais, préximaa lingua portuguesa e por possuiridentidade de valores decorrentes do processo filial de ser a “Ultima flor do Licio incultae bela”. (BARBOSA. 1997:154) A raziio do uso do texto original se prende & necessidade intrinseca da poesia lirica, desta forma manifestagdes lit textoem resguardando os valores do ritmo snico © a expresso cultural no momento animico de seu criador. Esse condicionamento limita o texto a lingua AKROPOLIS, 8 (@) juliet, 2000) 135 nativa, preservando a estrutura fonica peculiar que a diverge de outra, 0 corpus € constituido dos poemas Arte Poética ¢ Paixio Medida de Carlos Drummond de Andrade, e © poema 5 da Carmina Catulli, A proposta se prende a andlise do ritmo métrico- melédico de seus versos. A eleigdo desse proceso tem por objetivo a demonstracio dessa presenga classic existente nos poemas. 5 Viuamus mea Leshia, atque amenus Rumoresque senum seueriorum Omnes unius aestimemus assis Soles oecidere et redire possunt, Nobis cum semel occidit breuis lux, OS Nox est perpetua una dormienda Da mi basia mille, deinde centum Dein mille altera, dein secunda centum Deinde usque altera mille, deinde centum. Dein, cum milia multa fecerimus, 10 Conturbabimus illa, ne sciamus Aut ne quis malus inuidere possit, Cum tantum sciat esse basiorum, (LAFAYE, 1954:5) Arte poética ‘Uma breve uma longa, uma longa uma breve uma longa duas breves duas longas das breves entre duas longas e tudo mais é sentimento ou fingimento 05 levado pelo pé, abridor de aventura, confiorme a cor da vida no papel. (ANDRADE,1996:103) Paixdo medida Trocaica te amei, com ternura déctila © gesto esponden Teus iambos aos meus com forca entrelacei Emdiaalemanico, oinstinto ropilico rompeu, leonino, 05 a porta pentémetra, ‘Gemido trilongo em breves murmiios. E,que mais, e que mais, no crepiisculo eedico, senao a quebrada lembranga de latina, de grega, inumerdvel delicia? 10 (ANDRADE, | 996; 104) 1. A leitura de Catulo poema latino esté moldado na estrutura do. verso falécio, Apresenta a rigidez fixada pela seqiiéncia dos pés métricos, ocorrendo pequenas variagdes (substituigdes) inerentes ao processo da escansiio. A estrutura deste verso difundido naescola alexandrina -ul-vul vl-ul-u Tanto o troqueu inicial quanto o final, pode passat pelo processo da substituigao através do uso do espondeu . Conhecedor profundo do rigor métrico alexandrino, Catulo soube utilizar de nuances raras, permitidas por essa escola postica renovadora, O poema 5 apresenta em todos os primeiros pés 0 espondeu substituindo o troqueu e, no tiltimo pé, utiliza-se da substituigdo uma tnica vez, no verso 5S. Esta marcagdo quantitativa da vogal nfio equivale ao acento intensivo empregado na metrificacdo portuguesa, mas, & sim, a marea da duragao da prolagao da vogal. Quando tem a durago normal, correspondendo a uma unidade de tempo, ela se constitu uma silaba breve (briiquia) eé marcada pelo simbolo U ; quando corresponde a duas unidades de tempo, a silaba se chama longa (mécron) eo seu simbolo é. Assim se verifica que o verso latino é constituido por essas segiiéncias quantitativas organizadas em pés métricos. O poemaem estudoé em verso hendecassilabo, com cinco medidas métricas. O primeiro pé é um espondeu, o segundo um dactilo, e as rés medidas restantes so troquel ‘com uma tinica substituicdo do tiltimo pé no verso 5, O que rege, no seu aspecto formal, 0 verso ckissico, €arigidez do emprego desse aspecto quantitativo. verso falécio apresenta uma estrutura onde 0 ttoqueu predomina, Este pé métrico é indicado para 136 AKROPOLIS, 8 3): jul Set, 2000] as manifestagdes animicas que retratar as variagBes sentimentais do “eu ltico apaixonado. Mas a musicalidade do verso possui outros elementos que determinam o seu ritmo fonico, que siio as pausas versais, a entonagaio¢, principalmente, a sonoridade ‘advinda das sflabas marcadas pelas presengas consonantais, ou de palavras reiteradas. Essas combinggéies encadeiam-se, ecoam e matizam © poema com uma sonoridade contagiante. Assim encontramos o processo anaférico que registra com uma intensidade superlativa, as palavras. intencionalmente escolhidas: basia, mille, centu, dein, deinde. Presentificam-se no poema as aliteragdes, as paranomisias e as reiteragdes contiguas ¢ & distineia que se multiplicam e se entrelacam por todo o texto, Huma matriz sonora que envolve 0 poema no seu todo, sao as silabas estruturadas pela oclusiva bilabial surda /in/e as acts vocdlicas. Essa reiteragdo se realiza em val dezessete momentos, projetando um eu obliquo, ico e intensamente envalvido no aspecto semé transparecendo as emogdes do eu postico. Assim (os me ¢ mi evocam uma primeira pessoa condutora de conflitos que se envolve com 0 1 (Lesbia) projetando no sufixo —mus, a unido desses dois agentes emocionais. Hi outras possibilidades de leitura que a combinagdo sonora do proceso sikinico como das silabas marcadas pelas propicia, linguodentais sonoras, as bilabiais sonoras, que ecoam, nas andforas, paranomasias e reiteracSes. A titulo de amostragem percebe-se que o poema apresenta musicalidade muito intensa, propiciada, principalmente, pelos sons conso ticos “apresentados nao s6 na leitura horizontal dos versos, mas também pela letura do-eixo vertical dos mesmos que transforma o poema de leitura fragmemtada em umaunidade ampliada pela verticalidade dos sonse dos sentidos que essas reiteragdes propiciam, A riqueza da sonoridade presente em Catulo talvez seja a raziio da admiragdo que criticos e poetas moderos tém por ele. 2. A leitura de Drummond © poeta Carlos Drummond de Andrade, ao Jangar em 1981 0 livro Paixdo medida, retoma a arte poética de nossos antepassados culturais e claramente expde a tradigdio das formulas posticas estabelecidas em pés métricos, Associa a eles as combinagdes sonoras to a gosto dos alexandrinos, através de um processo aparentemente ingénuo de combinagdes anaféricas. Assim © poema Arte Péética tem implicito em sia forga de c6digo legal queestabelece as normas genéricas do fazer poético. Ao leitor distanciado da cultura classica, a sucessio dos quatro primeiros versos pode parecer ‘umacitagio inécua de sentido, mesmo se ele perceber que 0s versos seguintes devem ter alguma ligagdo com os anteriores num processo de causa eefeito. Masao aproximara leitura deste poema ode Catulo encontramos no procedimento fonico, aspectes muito similares, Profiferam as andforas num grau de refido, onde os sons sealternam no verso (plano horizontal) também se repetem inter-versos ( plano vertical) estabelecendo uma unidade sonora dos versos. Estes se associam no plano do contetido te6rico e projetam uma leitura semidtica, ao caracterizar as medidas métricas mais comuns, utilizadas pelos classicos na elaboragzio de poemas e, em especial, de temas. liricos. Nesse inicio do poema, Drummond, utiliza- se de quatro voeabulos e na jungao combinatéria, deles, através da sugestio nominal, retomma uma teoria do fazer postico. prépria do mundo classico que centralizava as suas normas em dois signos que combinayam entre si: ~ U. O some o sentido se casame projetam a criatividade do poeta. O ritmo sonoro € imposto pelas repetigdes alternadas das palavras e ao mesmo tempo a teoria dos pés métricos vai surgindo, O poeta numa forma erudita poderia semioticamente projetar as imagens dos signos -UU- [AKROPOLIS, 810) juliet 2000 137 ¢ a leitura sob o prisma da teoria do verso seria: jambo—troquet déctilo espondew troqueu jambo Conhecedor do processo que norteia a poesia, Drummond didaticamente encerra a concepcaio poética, deixando a cada um a liberdade da criagao. Ele valoriza o verso clissico, recupera a teoria & cenaltece o ritmo fonico, Ao final reafirma que a poesia se utiliza do sentimento e da ficgaoe 0 cromatismo vital de cada um e se realiza através desta palavra trabalhada, musicada e cheia de sentido de acordo com 0 estado animico pessoal. Essa manifestagio -o-diditica do poeta projeta o lirico que deixa de ser totalmente solitirioe passaa dividir o seu segredo de poetar Assim uma leitura possfvel seria.a lembrangaque ‘o poeta tem dos cédices que determinavam 0 fazer poético clissico. Ao utilizar 0 jambo (Uo eu poemitico apresenta o metro como simbolo de toda a poesia classica que traz a marca embrionsria ca ‘dgia agressiva de um eudefensivo que instiga a pessoa mala ironizando-ae satirizando-a levemente. Esse tipo de medida sustentou a produgio postica primitiva, quando registrava dentro do processo amoroso a ironiae sitira de uma forma mais branda essividade violentae mordaz da satira, que chegavaa levaras pessoas a gestos extremos quando eram atingidas por essa modalidade de poesia. Quando Drummond de Andrade apresenta esse tipo de pé métrico, recupera toda produgio literéria que se serviu deste protétipo na antigitidade clissica, percortendo-lhe a meméria das produgdes de Salo, Alceu, Arquiloco, Siménide, Hordcio, Marcial. Ao utilizar 0 ~ U (troqueu), estaria o poeta destacando as produgdes méiricas, por exceléneia, de Safo, Anacteonte, Catulo, Virgilio .Desta forma o troqueu iio fica restrito a0 simbolo grfico determinador do ritmo ckissico, mas traz. 4 memsria as produgdes literdrias desses autores que 0 utilizaram, Esta presentificagio de uma literatura tao distante ouaa cronologicamente, pois remonta a 2000 anos, € recuperada por Drummond, no 6 na lembranga desses pés métricos , cellulae matres dos cantos liricos, mas também nos ~ UU (dctilo) e ~~ (espondeu), medidas classicas para expor as aventurase feitos dos heréis pétrios, que caracterizam a produgio épica. Nesse sentido nelas esto presentes as lembrangas de Homero, Vergilio. Lucano e todas as épicas reflexas dali decorrentes. A mengao que Drummond faz do p = (coridimbico) indicador da combinagio de troquen jambo, faz 0 eu poemitico presentificar toda a simbiose possivel de combinagSes metricas que eram utilizadas nas produgdes temticas do mundo greco- romano. Nesse sentido Drummond presta um pleito a poética embriondria da cultura greco-romana, estruturada nas seqiéncias quantitativas determinantes do ritmo do poem. Os tiltimos trés versos valorizam novamente os pés métricos que ele chama de abridor de aventuras, possibilitando a multiplicidade de combinagdo entre sie atendendo a necessidade da criagio do eu poemaitico nas varias nuangas da vida, onde o pocma seri o espelho desse sentimento ou desse fingimento. A pratica do conceito acima vem em forma do poema que ele nomina de Paixdio Medida, Faz uso metaférico da linguagem e actescenta polissemiat ‘aos termos. Ao mesmo tempo em que se preocupa com a sonoridade dos versos, ¢ as intensidades silabicas que determinam o ritmo fonico, ele deixa extravasar 0 jogo de imagens registrador de ‘momentos amorosos que extasiaram gregos ¢ romianos. Num processo altamente lirico, ha neste texto ‘umeu postico que presentifica a experiéncia amorosa outrora vivenciada. O processo da satisfagao transpde 0 passado para o presente € atinge plenamente a intimidade dele, Ao observar o sew aspecto formal, o texto apresenta um aparato lexical ‘que no minimo faria qualquer leitor buscar apoio dos dicioniriose&teoria literdria, Assim mesmo, palavra aqui trabalhada ndo vem num sentido real, possui \strico UU 138. TARROPOUIS, 6). juiset. 2000] outras variantes, sugere outras semanticas. Desta forma apresentamos aqui uma das leituras que jjulgamos ser pertinente. O primeiro aspecto para a compreensio inercial que propomos é entender certas palavras chaves, nesta 6tica: rocaica no faz sentido pleno s6 como derivado de troqueu (pé lirico {que canta tema amoroso) mas tem 0 valor de um adjetivo que se refere & pessoa amada,e, numa visio paranomidsica, passa a sugerir a idéia de trocada, vestida adequadamente para a ocasitio; déctila € ‘outro adjetivo com valor polissémico, nao se pode vercomo a medida métrica que serve para os relatos épicos, pois esses sao geralmente agressivos € © poeta faz esse adjetivo qualificar aternura, portanto se trata dos dedos © que essa palavra significa cetimologicante no grego e é aceitivel no verso; sesto esponden sugere uma ago espontinea € talvez um gesto nobre que é préprio do pé métrico espondeu, utilizado como substituto do detilo no verso pico, Por outro lado, no pode ser desprezivel a visio herdica da primeira conquista amorosa. Jambos logicamente nao sio 0 pé métrico (jambo) proprio da poesia satirica e que serve para agredir, atacar a intimidade das pessoas € a sua reputacio ‘moral Aqui no texto nao vemos esta forte conotacao, ‘mas se trata de um aspecto para palavra francesa jambe que significa perna, e, desta forma, o verso fica aceitavel; os adjetivos continua, se suicedendo num jufzo de valor que envolve a petcepedio do mundo do.eu poético, possuindo assim outras conotagdes os termos tfpicos da teoria postica, aqui adjetivados por Drummond: alemdnico. ropilico, leonino e pentémetro que se orientam para uma descriga0 pormenorizada e altamente erotizada da descrigdo da cena amorosa. inomdsico com a Conclusao Para compreensio do poema, além das possibilidades registracas pelas palavras no contexto,, ha outras reflexces possiveis que alargam a nossa compreensiio. O gesto herdico do verso inicial, com sua contagem decassilaba, propoe a leitura de um amor épico, mareado nao pela narrativa de feitos alheios, mas de um cu jambico agressivo e ao mesmo tempo terno. E bem diferente da visio de Catulo que se centraliza no eu litico mais solitario do que solidario & pessoa amada. Do terceiro até o quinto verso hd semelhanga coma diserigao do ato amoroso apresentado por Catulo, A diferenga est no emprego das figuras de linguagem que em Drummond sao marcadas pela presenga de aliteragdes, paranomisias ereiteragdes contiguas, mostrando, simbolicamente, 4 conjungao sonora com a carnal; as imagens metonimicas se sucedem cor paranomsica de rompalico que sugere a expresso fiélico; usando ainda os termos da arte postica antiga | torna-os eufemismos para poder descrever com realeza a descrigao de um relacionamento amoroso, m ferir sensibilidade dos impudicose provocando, no leitor mais culto, miltiplas possibilidades de entendimentos. Bibliografia 01 ANDRADE, Carlos Drummond de. A paixiio medida. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. 02. BARBOSA, Frederico. Clissicos da Poesia Brasileira. Sao Paulo: Klick, 1997. 03. ELLIOT. T.S. A Esséneia da Poesia. Riode Janeiro: Artenova, 1972. 04 LAFAYE, Georges. Catulle, Poesies. Paris: Les Belles Lettres, Boulevard Raspali, 1954, 05 POUND, Ezra L. A arte da poesia: ensaios cescolhidos. 2.ed. Sao Paulo: Cultrix, 1988. 06 PROENGA, M. Cavalcanti, Ritmo e Poesia. Rio de Janeiro: Org. Simbes, 1955. Apolo dos Santos. O Ritmo nas Odes de Ricardo Reis. Dissertagdo de mestrado, Fafil, Bauru, 1983. 08. STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, 07: SIL

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