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Discurso
filosófico
UnisulVirtual
Palhoça, 2014
Créditos
Discurso
filosófico
Livro didático
Designer instrucional
Isabel Zoldan da Veiga Rambo
UnisulVirtual
Palhoça, 2014
Copyright © Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por
UnisulVirtual 2014 qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.
Livro Didático
100
D63 Discurso filosófico : livro didático / Carlos Euclides Marques, César
Frederico dos Santos, Daniel Schiochett, Marcos Rohling ;
design instrucional Isabel Zoldan da Veiga Rambo. – Palhoça :
UnisulVirtual, 2014.
86 p. : il. ; 28 cm.
Inclui bibliografia.
Introdução | 7
Capítulo 1
Preâmbulos da leitura | 9
Capítulo 2
O domínio discursivo filosófico e alguns de seus
gêneros textuais | 25
Capítulo 3
Outros olhares | 45
Considerações Finais | 75
Referências | 77
Neste momento inicial que você se deparou com este Livro Didático, partindo
do título, você deve ter questionado: “O que é um discurso filosófico?”. Para
começarmos nossa conversa, e de forma muito resumida e sem grandes
aprofundamentos, diria a você que discurso filosófico é o texto produzido pelo
filósofo. Evidentemente, não se trata de qualquer texto produzido pelo filósofo,
mas aquele que procura dar conta de uma visão de mundo, da definição
conceitual de determinada noção ou conjunto de noções. E mais, trata-se de
um texto que foi considerado pela tradição, como filosófico. Tais textos têm,
conforme o autor e a época, variações estilísticas. Você pode encontrar longos
textos dissertativos, conjuntos de aforismos (textos curtos), alguns que mais
parecerão romances literários, cartas... Essa enorme gama de estilos faz com que
certos textos não sejam vistos por determinadas tradições como filosóficos.
Dito isso, cabe lhe esclarecer que, embora o que se segue comece com uma
apresentação sobre tipos de leituras, não é o objetivo principal aqui fazer um
longo debate sobre a teoria da leitura ou a teoria do texto – algo que mereceria,
certamente, um lugar na sua trajetória de estudante de Filosofia, particularmente
se você optar por desenvolver temáticas na linha da Filosofia da Linguagem,
Filosofia Analítica. Ainda assim, algumas fontes indicadas poderão lhe ser úteis
caso queira aprofundar nesse aspecto.
Mas, então, o que se pretende com este estudo? Ele procura lhe dar instrumentos
para desenvolver habilidades de leitura de textos filosóficos. Trataremos de
aspectos, digamos básicos, como estabelecimentos de tipologias de textos
filosóficos e abordagens de leituras com suas estratégias básicas. Reforçando
que serão tipologias para podermos começar, pois poderíamos escolher
outras tipologias. E há mesmo, em algumas sugestões de leitura apresentadas
no Roteiro de estudo, nomenclaturas diferentes. Assim sendo, num primeiro
momento procure reconhecer as similaridades entre as estratégias apresentadas
em diferentes textos, não se preocupando tanto com os aspectos da
nomenclatura. Tais aspectos e outras especificidades devem ser motivos de sua
atenção mais detalhada, a partir de uma segunda ou terceira leitura.
Sobre as pretensões dessa leitura, cabe retomar algumas observações:
Preâmbulos da leitura
Carlos Euclides Marques
9
Capítulo 1
Seção 1
Perspectivas de leituras
Provavelmente, você já se pôs a pensar em dicionários e comentadores
Perspectiva filosófica especializados sobre esse ou sobre aquele filósofo ou
Essa expressão, aqui, perspectiva filosófica. Mais ainda, talvez tenha pensado
está sendo usada
nas questões sobre a tradução e o fato de você não saber
em um sentido mais
coloquial, sem a esta ou aquela língua para dar conta de uma boa leitura
carga filosófica que deste ou daquele texto filosófico. Restará, também, aquela
tem. Embora, mesmo imagem de que o discurso filosófico é, por natureza,
o sentido coloquial
hermético, de difícil penetração.
carregue, em parte, o
sentido filosófico.
Todas essas especulações têm sentido; contudo, podem
carregar os seguintes preconceitos:
10
Discurso Filosófico
Com isso, não queremos dizer que você deva abandonar por completo
dicionários especializados, aspectos historiográficos e a questão da tradução.
Apenas queremos ressaltar que é mais salutar você primeiro experimentar ler o
próprio texto filosófico e, conforme o nível das leituras que vai fazendo, poderá
recorrer a esta ou aquela fonte complementar. Claro que é salutar, também, você
saber se determinada tradução tem maior ou menor aceitação na academia. Mas,
para iniciar o exercício de desenvolvimento de habilidades de leitura para o texto
filosófico, o mais importante é ter contato com o texto filosófico.
Antes de avançarmos um pouco mais reflita sobre essa passagem de Mello (1993,
p. 20), na apresentação de seu livro Nietzsche: o Sócrates de nossos tempos:
11
Capítulo 1
Em fazer uma leitura rápida da obra como um todo. Em tal estratégia, você
não deve se deter, aqui e ali, a algum tipo de problema que surja: vocabulário,
entendimento de certos raciocínios etc. Trata-se de uma leitura rápida, que serve
para você, minimamente, se dar conta da temática do texto e de um ou outro
argumento central. É o que aconselhamos na Introdução deste Livro, servindo
tanto para a leitura dos textos filosóficos como para a leitura desse.
Mesmo quando, a partir de uma segunda leitura, quando você começar a verificar o
vocabulário e algumas estratégias argumentativas de uma forma mais básica, ainda
não estaremos na leitura filosófica, mas na antessala dela. Por vezes, serão necessárias
muitas leituras mais básicas para você realmente começar a leitura filosófica.
Você se assustou com isso? Pois é, repassar o texto muitas vezes será
necessário para chegarmos à leitura filosófica. Assim, paciência e persistência
são virtudes do leitor de textos filosóficos.
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Discurso Filosófico
Para essa leitura, você deve organizar bem seu tempo. Quando ele for curto,
detenha-se em uma ou duas páginas, sempre com uma ficha de leitura, uma folha
pautada ou um bloco de anotações ao lado para tomar notas. Tomar notas é de
fundamental importância, pois nelas você:
Cabe lembrar, ainda, que tais estratégias são instrumentais para sua vida
acadêmica e apreendê-las – tornando-as habituais no seu trabalho com textos
– não é “perda de tempo”. Muito pelo contrário, se inicialmente tais estratégias
vão lhe tomar certo tempo, posteriormente, com as anotações em mãos e o
entendimento do funcionamento de certas estratégias de leitura, ficará mais fácil
escrever seus trabalhos.
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Capítulo 1
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Discurso Filosófico
Seção 2
Uma tipologia para abordagens de leituras
filosóficas
Basicamente, podemos falar de três tipos de abordagens do texto filosófico
quanto à leitura:
•• a historicista;
•• a dogmática;
•• a genético-historicista.
Esse é o tipo de abordagem que você encontra, por exemplo, nos textos de
introdução, Vida e obra, dos volumes da coleção Os pensadores, também em muitos
manuais de História da Filosofia. Para efeito de exemplificação, tomemos a parte que
apresenta a filosofia de Aristóteles em História da filosofia – Volume 1 – Filosofia
Pagã, de Giovani Reali e Dario Antiseri. Primeiramente, uma introdução sobre A
“questão aristotélica”, que, brevemente, remete a aspectos de como os textos do
Estagira chegaram até nós. Logo depois, temos o tópico: A vida de Aristóteles.
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Capítulo 1
Pode ser que você estranhe, dizendo: “Ora, professor, este é um manual de
História da Filosofia e não poderia ser diferente!”. Sim, sim, é pertinente o que
você aponta. Passemos, então, a outro texto, um que pretende apresentar,
introdutoriamente, a filosofia de Nietzsche: Nietzsche: a transvalorização dos
valores, de Scarlett Marton (1993). O referido livro divide-se em duas partes: a
primeira busca apresentar o pensamento de Nietzsche; a segunda traz alguns
fragmentos de textos desse filósofo. Atente para um trecho da primeira parte:
Você nota, claramente, que a autora indica ser a obra de Nietzsche uma
resposta ao seu tempo e, dessa forma, antes de apresentar algumas noções de
sua filosofia é importante contextualizar aspectos históricos, alguns dos quais
anteriores ao século XIX. É claramente uma abordagem historicista.
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Discurso Filosófico
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Capítulo 1
por exemplo, o que faz Arnould Hauser (1972), em sua já clássica obra, História
social da literatura e da arte. Tão diferente de outro livro já clássico nesta área,
A história da arte, de Ernst Hans Josef Gombrich (1993), repleto de imagens.
O que temos são abordagens diferentes, cada qual tem aspectos positivos e
negativos. E o mesmo se dá quando as abordagens de leitura filosófica. O que
queremos reforçar é, simplesmente, que a estratégia adotada não pode ser um
pretexto para inferirmos outros aspectos que não derivam da leitura, ou seja, do
texto que pretendemos ler.
Claro que é difícil, por vezes, tomarmos o texto dessa forma, pois, ao lermos um
texto, já estamos a conversar com ele. E se discordamos do ponto de vista do
autor, não raro, já nos pomos a propor, mentalmente, respostas a hipóteses de
trabalho. Há mesmo os que desistem da leitura, pois consideram as hipóteses
do autor algo inconcebível. Esse tipo de atitude não é recomendável. Não raro,
quando você insiste na leitura, em algum momento, identifica certa coerência na
argumentação do autor. Despir-se de seus próprios preconceitos é importante para
fazer esse tipo de leitura. Reforçando, é nesse sentido que você deve entender que
o autor tem razão e, a partir de uma lógica interna, o texto traz uma verdade.
•• comentário de texto;
•• explicação de texto.
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Discurso Filosófico
Para essa abordagem, o texto se revela por si só, bastando uma leitura atenta.
Mais a frente, Folscheid e Winenburger (1997, p. 32) indicam os princípios
da explicação de texto:
Também Cossutta (2001, p. 212-213), embora não use a nomenclatura que estamos
a utilizar, parece indicar características dessa abordagem de leitura filosófica:
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Capítulo 1
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Discurso Filosófico
O objeto (ou tema) do texto não salta aos olhos — ou melhor, não
deve saltar aos olhos. É verdade que a primeira linha retém o
olhar: “O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo.”
Mas evitamos deduzir imediatamente que o texto trata do bom
senso. Uma linha não basta.
Indo um pouco mais adiante, poderíamos supor que o texto
trata da razão. Mas, como Descartes remete finalmente esse
tema à opinião filosófica comum, de modo nenhum é certo que
faça disso o verdadeiro objeto de seu discurso — a menos que
ruminemos banalidades.
A tese central não e mais fácil de se descobrir. Certamente, a
fórmula sobre o bom senso ou sobre a razão “por natureza igual
em todos os homens” é precisa. Mas, como o fim do texto anula
aparentemente o caráter singular (e até provocador) da afirmação,
não avançamos.
Resta considerar a segunda metade do primeiro parágrafo, que
faz surgir o motivo do método. Para um livro que pretende
explicitamente tratar dele, e um tema a assinalar. Mas é preciso
ainda articular razão e método, e integrar outros elementos
presentes no texto, o que complica nossa tarefa.
Assinalaremos em particular a utilização da noção de espírito,
que permite a Descartes reintroduzir a desigualdade que ele
recusava à razão.
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Capítulo 1
Como exercício, você pode tomar uma passagem de alguma das principais obras
de Platão. Algo visível de imediato é se tratar de um diálogo e que, como tal,
apresenta personagens. Essas figuras nominadas são vistas por alguns estudiosos
como personagens históricos e não simplesmente como personagens literários.
Aqui cabe uma pequena ressalva. Como indica José Trindade Santos (2008b, p. 12),
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Discurso Filosófico
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Capítulo 1
E continua o autor:
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Capítulo 2
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Capítulo 2
Seção 1
Retomando uma possível caracterização do
discurso, texto filosófico
Para avançarmos um pouco mais, é importante recuperar algumas características
do discurso apresentadas na introdução deste Livro Didático. Então, vejamos. Um
texto (discurso) pode ser filosófico por:
Certo. Mas essas características isoladas não são suficientes para tomarmos este
ou aquele texto como sendo filosófico. Por que isto? Ora, como já foi apontado,
a definição de discurso filosófico não é fechada, não enuncia algo do tipo: “O
discurso filosófico é X ou Y.” Como o texto filosófico é um tipo de discurso
filosófico e, por vezes, os termos discurso e texto se confundem, o mesmo que
indicamos sobre discurso filosófico serve para texto filosófico. Contudo, para que
não fiquemos perdidos num emaranhado que dificulta nosso avanço, precisamos
de pontos de partida. As pistas apontadas acima, principalmente se tomadas
em conjunto, podem ser nossos indicativos iniciais. É possível também, como
fez Jorge Alberto Molina (2006), em seu artigo A leitura de textos filosóficos,
diferenciar outros tipos de textos do texto filosófico. Em parte, essa estratégia
possibilita que, ao menos, tenhamos em mente o que não é um texto filosófico.
Sigamos, então, a estratégia de Molina.
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Discurso Filosófico
Mais significativo ainda é o que Molina (2006, p. 40) indica quanto ao uso de
conceitos.
Assim para um texto científico determinados conceitos já estão dados. Mas, para
um texto filosófico, esses conceitos são o mote da escrita. O texto filosófico,
geralmente, apresenta dada definição, mesmo que provisória, para dado
conceito. Aqui cabe um alerta: ao ler um texto filosófico tome cuidado com o
preenchimento que você pode dar a determinado conceito, pois, não raro, os
filósofos estabelecem um recorte relativamente preciso para esse ou aquele
conceito. E nem sempre tal recorte é o mesmo da linguagem que você usa no
dia a dia. E, mesmo quando um filósofo toma a linguagem do dia a dia, tende a
restringir ou alargar seu campo semântico.
Continuando na trilha apontada por Molina (2006), podemos encontrar entre o texto
jurídico, o teológico e o filosófico certa similaridade, a saber, o uso das linguagens
naturais. Entretanto, os dois primeiros recorrem a textos canônicos: códigos de leis
ou textos sagrados; já no texto filosófico isso não é comum. Eis uma diferenciação
entre esses textos e o filosófico. A exceção dos textos de Filosofia Medieval. Talvez,
aqui, você indague: “Por quê?”. Pense bem, retomando o que já foi dito. Se uma
das características do texto filosófico é construir visões de mundo, está no próprio
texto ou num conjunto de textos de dado filósofo o “cânon”. Ou seja, a resposta
aos princípios não vem de fora, mas está no que apresenta o autor. Contudo, isso
nem sempre é dado claramente para o leitor.
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Capítulo 2
Ainda que um texto filosófico não apresente uma definição conceitual que vai
defender, quando parte para a avaliação crítica, esse toma um ou mais conceitos de
certa tradição e estabelece um diálogo sobre o preenchimento dado por tal tradição.
Isso não significa que alguns textos filosóficos não tragam em sua teia
argumentativa alguns desses elementos do texto literário. Apenas que esses
elementos não são, necessariamente, os motes dos textos filosóficos.
Como vimos, um texto filosófico pode ser crítico ou autofundante, ou mesmo uma
mistura dos dois elementos. Tendo isso como ponto de partida, Molina (2006,
p. 43) estabelece “... duas formas de organização textual: a exposição forense
e a exposição more geométrico.” O autor segue explicitando o que seja uma o
que seja outra e apresenta os prós e os contras de cada forma. Resumidamente,
temos que na exposição forense o filósofo assemelha-se a um advogado ou um
juiz, e que são as leis da razão que regem e fundam sua argumentação. Dessa
forma, trata-se de um discurso autofundante. Na exposição geométrica,
Bem, Molina avança estabelecendo uma tipologia de leitores. Para nossos fins o
que foi explorado do texto de Molina (2006) é o suficiente. Você pode avançar um
pouquinho mais nestas diferenciações e caracterizações dadas por Molina (2006),
lendo o referido texto na íntegra.
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Discurso Filosófico
Seção 2
Dos gêneros textuais em filosofia
Usamos por diversas vezes o termo tipo, geralmente se referindo a tipos de leitura.
Tal termo foi empregado mais num sentido comum. Mas, agora, para avançarmos,
precisaremos distinguir as noções de tipos textuais e gêneros textuais.
Você já deve ter estudado isso no ensino médio. Os gêneros clássicos, nessa
perspectiva, são: o lírico, o épico e o dramático. Entretanto, estudos linguísticos
mais recentes vêm abandonando tal abordagem, que foca mais na estrutura
textual. As abordagens mais recentes se preocupam menos com a estrutura
léxico-gramatical, embora não a abandone, e mais com o papel sociointerativo
do texto. É por esse motivo que para avançarmos precisaremos, agora, definir os
termos tipo textual, gênero textual e domínio discursivo. Para tanto, trazemos
a contribuição de Luiz Antônio Marcuschi (2008, p. 154-155), em seu livro
Produção textual, análise de gênero e compreensão:
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Capítulo 2
Certamente, você notou que, para Marcuschi (2008), a noção de tipo textual
é mais abstrata, teórica e pouco dada a mudanças. Já a de gênero textual é
mais pragmática e alargada, podendo incluir diversas designações e situações
comunicativas. Assim, em nosso caso, temos determinado domínio discursivo
que abarca a instância filosófica. Como tal apresentará diversos gêneros textuais,
alguns mais canônicos desta instância, outros mais abertos. Aqui, também
teremos o fator histórico, que estabelece certas “rotinas comunicativas” fundadas
ou predominantes em dado contexto.
2.1 A poesia
O discurso filosófico nasce num contexto mítico-poético, ou seja, no contexto
do discurso mítico-poético. E mais, que mesmo apontando uma oposição a esse
discurso, o discurso filosófico nascente mantém algumas de suas características
(do discurso mítico-poético). Uma dessas características é o texto em forma de
poesia. Exemplo significativo é o famoso poema de Parmênides. Outra forma
empregada é a oracular. Essa mais característica de Heráclito. Essas formas são
ainda manifestações de uma cultura não letrada ou, no máximo, pré-letrada.
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Discurso Filosófico
Primeiro que não podemos pensar aquilo que temos da Filosofia nascente como
Literatura, no sentido moderno e contemporâneo. Eric A. Havelock (1996), em
seu livro A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais,
aponta como razões para não vermos esses textos como Literatura: o fato de não
serem escrito para leitores em grande massa e as dificuldades tecnológicas para
a difusão em larga escala desses textos. Algo que só será possível, efetivamente,
com o advento da imprensa.
Havelock (1996) irá demonstrar nas páginas seguintes do seu livro, a partir do que
temos de Xenófanes, Heráclito e Parmênides, como muito da tradição mítico-
poética persiste na Filosofia nascente.
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Capítulo 2
Mas quando falamos do domínio filosófico é correto dizer que este gênero
ficou restrito à filosofia nascente? Qual a sua posição sobre isso?
Bem, o que podemos dizer é que há uma maior concentração do uso deste
gênero — a poesia — no contexto da filosofia nascente. Entretanto, não significa
que ele tenha sido abandonado por completo nos períodos históricos seguintes.
Apenas que, com o passar do tempo, esse não é um gênero muito comum de
manifestação do domínio filosófico. E mais, não é adequado, como alguns o
fazem, opor o discurso filosófico ao discurso poético em sua totalidade. Você
notará que alguns filósofos se utilizam do gênero poético em suas diversas
modalidades, ainda que “embutido” em outros gêneros.
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Discurso Filosófico
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Capítulo 2
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Discurso Filosófico
Em seu artigo Por que Sêneca escreveu epistolas? Ingeborg Braren Braren
(2007) dá algumas pistas sobre as características desse gênero:
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Capítulo 2
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Discurso Filosófico
Este tom de devaneio que encontramos em Rousseau não é novo, pode ser um
eco do espírito cético, algo que percebemos nas primeiras palavras dos Ensaios
de Montaigne:
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Capítulo 2
Esses gêneros são, assim como outros já indicados, importantes para uma
abordagem histórica ou génetico-historicista.
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Discurso Filosófico
A beleza das máximas está na sua forma sucinta que, apesar disto, carrega uma
profundidade de pensamento. Embora sejam escritos, na maioria das vezes, um
pouco mais longos, se comparados com as máximas, os aforismos também
carregam esse teor.
Por sua concisão e estilo aforismo e máximas são gêneros muito difíceis de
escrever e, não raro, tal dificuldade se reflete na interpretação deles. Francis
Bacon e Friedrich Nietzsche são dois grandes expoentes deste gênero.
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Capítulo 2
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Discurso Filosófico
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Capítulo 2
Mas, nosso foco, aqui, não é propriamente se o corpus aristotélico é ou não uma
obra sistemática, se é ou não uma produção do estagirita ou uma compilação
posterior a ele, ou ainda, se esta ou aquela estratégia de leitura é mais adequada
ou não para ler tais textos. A digressão que fizemos tinha por objetivo apenas
indicar que mesmo que os textos atribuídos a Aristóteles não sejam propriamente
tratados filosóficos ou científicos, num sentido mais técnico do termo, ou
seja, mesmo não tendo um rigor sistemático de um tratado, são textos que se
aproximam bastante dos gêneros mais recorrentes na academia hodierna. Assim,
se são apontamentos de aulas, também esse gênero nos é comum.
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Discurso Filosófico
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Capítulo 2
Bem, você está num ambiente acadêmico e poderá encontrar perspectivas mais
ou menos rigorosas. É importante que no seu processo de formação filosófica, no
qual você terá que produzir alguns textos mais ou menos filosóficos, mais ou
menos acadêmicos, você lide com essas diferenças, esses modos de produzir.
E, depois de sua diplomação, você pode querer seguir carreira acadêmica,
tornando-se um pesquisador na área. Se for o caso, terá que publicar em revistas
especializadas, escrever monografias, dissertações de mestrado e teses de
doutorado. Eis o que nos leva a indicar, mais uma vez, que apreender estratégias
de leitura, desenvolver habilidades para a identificação dos gêneros textuais
utilizados no domínio discursivo filosófico, entre outros aspectos, são processos
importantes para você desenvolver habilidades de escrita. Afinal, leitura e escrita
são, em nossa época, habilidades que se desenvolvem concomitantemente.
Dessa forma, você, como iniciante, pode aprender observando os grandes
mestres. E, no nosso caso, os grandes mestres são os próprios textos dos
filósofos. O que temos aqui são pistas, mas o desenvolvimento de habilidades de
leitura e escrita só se efetivarão no exercício mesmo da leitura e da escrita. Eis
seu (nosso) desafio!
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Capítulo 3
Outros olhares
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Capítulo 3
Seção 1
A leitura de textos em ontologia
Daniel Schiochett
É certo que esses gêneros admitem certa flexibilidade. Mas algo nos salta aos
olhos depois que nos familiarizamos com o discurso filosófico: somos capazes
de classificar os textos segundo as suas áreas com relativa segurança. Depois
de certo tempo lendo, estudando e frequentando textos filosóficos, o estudante
de filosofia começa a ser capaz de, já nas primeiras linhas ou páginas, dizer que
gênero de texto está em suas mãos, sem ter que recorrer a uma classificação
prévia das obras filosóficas. A pergunta é: o que nos permite fazer esse tipo de
classificação? Que intuição é essa que adquirimos ao nos familiarizarmos com os
textos filosóficos?
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Discurso Filosófico
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Capítulo 3
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Discurso Filosófico
A inserção desse “isso” na questão ontológica mostra que não estamos mais
preocupados em saber quais são as coisas que existem e sim que tipos de
coisas que existem. E falar de tipos de coisas que existem significa, em última
instância, dizer que estamos travando uma discussão conceitual. A ontologia
não é um discurso que fala simplesmente sobre as próprias coisas tais como elas
são. A ontologia é um discurso que se articula conceitualmente e se pronuncia
sobre como as coisas podem ser ou não.
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Capítulo 3
criar todas as coisas, pelo simples fato de tê-las criado, conheceria a essência
delas. Mas o homem também tem um intelecto que é imagem do intelecto divino.
Mesmo imperfeito, o intelecto humano poderia, com a ajuda dos sentidos, mas
fundamentalmente devido à sua capacidade de ler dentro das coisas, conhecer
a essência das coisas tal como Deus as criou. Tomás de Aquino compreendia
que a única forma de conhecer algo era conhecer essa essência por meio de
uma espécie de conhecimento intelectual, que contava com os sentidos apenas
como corroboradores dessa capacidade de ler dentro, a inteligência. A ontologia,
no sentido clássico, ainda não tinha transformado a questão em uma questão
apenas conceitual, pois via sua tarefa como uma tarefa também “científica”, isto
é, que conhecia por intelecção quais coisas existem e como existem.
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Discurso Filosófico
Para Kant, o ser não é um predicado real das coisas. Quando falamos do ser
de alguma coisa, a partir de Kant, não estamos perguntando pelo ser enquanto
uma coisa em si mesma, mas por um conceito de ser. A pergunta ontológica se
transforma assim na pergunta o que é isso que é/existe/há.
Antes desse momento inaugurado por Kant, filosofia e ciências não tinham
fronteiras muito definidas. A pergunta pelo que existe e a pergunta conceitual
pelo tipo de coisas que existem estavam muito próximas. A ontologia anterior a
Kant estava preocupada sim em saber o que existe e como existe, papel hoje
assumido preponderantemente pela ciência ou conceitualmente pela filosofia.
Mas a pergunta conceitual também existia misturada à questão de saber que
coisas que existem. E isso, de tal forma que, se podemos encontrar uma unidade
nisso que a chamamos de ontologia, essa pergunta é a pergunta conceitual o que
é isso que é/existe/há? Compreender assim o problema da ontologia permite a
nós, leitores hodiernos, classificar um texto como sendo um texto ontológico.
A concepção do que seja a substância variou ao longo dos mais de dois mil anos
de filosofia ocidental. De qualquer forma, suas bases se encontram em Platão e
Aristóteles.
Para Platão, a substância, ou melhor, aquilo que se mantém idêntico apesar das
mudanças que ocorrem no mundo são as ideias. Conhecer algo só era possível
porque relembraríamos a ideia da coisa que contemplamos antes de ter contato
com o exemplar dela na sensibilidade. Para Aristóteles, ao contrário de Platão,
cada coisa individual é substância na medida em que ela é o sujeito de qualquer
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Capítulo 3
Não vamos entrar aqui nos problemas que a concepção substancialista enseja.
O importante é atentarmos que essa posição responde à questão da ontologia
(o que é isso que existe?), afirmando que o que existe são as substâncias. Na
leitura de um texto de ontologia o qual responde à questão ontológica dessa
forma, encontraremos um quadro teórico que movimentará os conceitos de
substrato, sujeito, atributos essenciais, atributos acidentais, identidade, unidade
e multiplicidade, entre outros. O modo como o partidário dessa concepção
substancialista movimentará esses conceitos poderá trazer conclusões e
posições diferentes em ontologia. Mas o pressuposto fundamental de que o que
existe é um X independente, portador de atributos, estará presente.
Apesar de presente ainda hoje, a ontologia substancialista deve brigar por espaço
ao lado de outras duas posições nascidas a partir da crítica kantiana à ontologia
clássica. Essas duas posições resolvem a crítica de Kant, ao afirmarem que
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Discurso Filosófico
quando falamos que algo é/existe/há não estamos nos referindo às próprias
coisas como se falássemos de uma propriedade delas. Estaríamos falando
do modo como as coisas se dão ao nosso pensamento via linguagem ou via
consciência. As coisas deixam de ser pensadas como substâncias que existiriam
independentes de nós, para serem compreendidas como objeto. A noção de
substância como noção fundamental da ontologia (e os conceitos movimentados
ao redor dessa noção) é substituída pela noção de objeto. Dois caminhos se
põem: ou o objeto se dá via linguagem e a ontologia se aproxima da semântica,
ou o objeto se dá para uma consciência e a ontologia vira fenomenológica.
Ser, seguindo de perto a letra kantiana, não é um predicado real das coisas.
Pensar que o ser é algo das próprias coisas é, segundo a posição lógico-
semântica, confundir a estrutura gramatical da língua com a estrutura lógica.
Tomemos como exemplo a sentença, A rainha da Inglaterra é elegante.
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Capítulo 3
Gramaticalmente temos:
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Discurso Filosófico
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Capítulo 3
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Discurso Filosófico
Por fim, cabe salientar que não é o caso de afirmar uma ontologia mais ou
mesmo correta. O primeiro passo, na leitura de um texto ontológico, diz
respeito a compreender qual a concepção ontológica que lhe subjaz. Apenas
num segundo momento é que poderemos julgar se os conceitos ontológicos
movimentados por esta ou aquela concepção são frutíferos para a ontologia que
buscamos ou na explanação da ontologia a qual subjaz às teorias adotadas. Mas
neste momento deixamos de simplesmente ler textos filosóficos e ontológicos
para passar a fazer filosofia e ontologia. Aliás, se existe um problema que
subjaz todo texto filosófico, existe também um convite: um convite à filosofia.
Você aceita este convite?
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Capítulo 3
Seção 2
A Lógica na leitura de textos filosóficos
César Frederico dos Santos
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Discurso Filosófico
Um argumento bem simples vai nos ajudar a entender essa definição. Veja este
exemplo clássico:
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Capítulo 3
usar as duas técnicas que usamos antes. Repare nas palavras porque e pois.
Elas introduzem as premissas, isto é, vêm depois da conclusão e imediatamente
antes das premissas. Outras palavras que introduzem premissas em português
são desde que, como, dado que. Além disso, é claro, o sentido das proposições
continua permitindo-nos identificar quais afirmações justificam quais outras, e daí
descobrir as premissas. Veja, por exemplo, que na segunda paráfrase a afirmação
todo homem é mortal aparece antes do pois; apesar disso, sabemos, pelo seu
sentido, que ela é uma afirmação a qual visa a justificar a conclusão, e por isso é
uma premissa.
Primeiro devemos ver se ele é mesmo argumentativo. Não basta haver uma
sequência de afirmações para que um texto seja argumentativo. É preciso
também que haja a intenção de que algumas dessas afirmações, apresentadas
como verdadeiras ou hipotéticas, queiram justificar uma outra, a conclusão.
Exatamente isso é o que encontramos nesse texto: um encadeamento de ideias
com o fim de justificar um modo de encarar a pena de morte. Porém, com
60
Discurso Filosófico
Argumento 1)
O tratado social tem por objetivo a conservação dos contratantes.
Quem quer o fim quer também os meios, e esses meios são inseparáveis de alguns riscos,
inclusive de algumas perdas.
Logo, quem quer conservar a vida às expensas dos outros deve dá-la por eles quando se faz
necessário.
Argumento 2)
O cidadão não é juiz do perigo ao qual a lei o expõe.
Sua vida não é mais uma mercê da Natureza, mas um dom condicional no Estado.
Não foi senão sob essa condição que viveu em segurança até esse momento.
Logo, quando o príncipe lhe diz: “Ao Estado é útil que morras”, ele deve morrer.
Argumento 3)
Quem quer conservar a vida às expensas dos outros deve dá-la por eles, quando se faz
necessário.
Quando o príncipe lhe diz: “Ao Estado é útil que morras”, ele deve morrer.
Logo, a pena de morte, imposta aos criminosos, pode ser, de certa forma, encarada sob esse
ponto de vista: para não ser vítima de um assassino é que se consente em morrer, sendo o caso.
61
Capítulo 3
Tendo estruturado o texto dessa forma, podemos notar várias outras nuances
da argumentação do autor. Por exemplo, percebe-se que as conclusões dos
argumentos um e dois são semelhantes, giram em torno da ideia de que alguém
deve aceitar morrer se a situação assim exigir. Isso não é simples redundância,
mas sim uma estratégia de convencimento. O autor apresenta dois argumentos
diferentes, conduzindo ao mesmo ponto. Vale lembrar que a análise do trecho
de Rousseau nesses três argumentos é só uma possibilidade entre muitas. É
claro que é possível segmentar os passos intermediários do raciocínio de várias
maneiras diferentes, igualmente corretas.
O lugar em que a conclusão, por assim dizer final, aparece na sequência do texto
não é importante para a sua análise lógica. O autor pode enunciá-la logo no início
do texto, sem maiores explicações. Mas isso não a converte em premissa. Se no
desenvolvimento do texto o autor dedica-se a justificá-la, ela é conclusão. Aliás,
começar pela apresentação da conclusão é uma boa estratégia de escrita, pois
já esclarece ao leitor qual é o objetivo do texto, aonde o autor quer chegar. Isso
facilita a vida do leitor.
Mas como saber qual é a conclusão principal defendida pelo autor, sua tese?
Como já foi dito em outra parte, atentar para o problema que o autor está
tentando responder ajuda muito nisso. Se você souber que a questão que
preocupa Rousseau é indagar como é possível conciliar a liberdade natural do
homem com a vida em sociedade, não será difícil concluir que a resposta dele
62
Discurso Filosófico
para isso é o contrato social. Tendo clareza sobre a tese defendida pelo autor, fica
mais fácil analisar logicamente o texto. E a análise lógica do texto aumenta a sua
compreensão da tese, pois você passa a saber quais são os pressupostos que o
autor está assumindo e quais são os raciocínios que o levaram dos pressupostos
à conclusão. Você fica sabendo em que bases o autor fundamenta suas ideias.
Isso é pré-requisito indispensável para a avaliação da força argumentativa do
texto, sobre o que trataremos a seguir.
Argumento 1)
Todo gato é mamífero.
Jack é um gato.
Logo, Jack é mamífero.
Argumento 2)
Todo médico usa jaleco branco.
Pedro usa jaleco branco.
Logo, Pedro é médico.
63
Capítulo 3
Será que o segundo argumento também é válido? Será possível que suas
premissas sejam verdadeiras e sua conclusão, falsa? Ora, sim, isso é plenamente
possível. Imagine que Pedro seja um dentista. Nesse caso, será verdade que
todo médico usa jaleco branco, será verdade que Pedro usa jaleco branco (pois
dentistas usam-no), mas será falso que Pedro é médico. No segundo argumento,
a verdade das premissas não obriga a verdade da conclusão. Assim, o argumento
é inválido, suas premissas não justificam a conclusão.
64
Discurso Filosófico
Esse argumento é válido. Note que ele tem a mesma forma do argumento sobre
o gato Jack, dado acima. Mas ele tem uma premissa falsa, visto que não existem
mulheres em Vênus, portanto, Paloma não pode ser venusiana. A validade
é requisito para um bom argumento, mas não é suficiente. Mesmo que um
argumento seja válido, podemos simplesmente rejeitar a verdade das premissas.
Imagine, por exemplo, que o Jack mencionado no exemplo anterior não seja um
gato, mas um jacaré. Nesse caso, a segunda premissa seria falsa. O argumento
continuaria sendo válido, pois se Jack fosse um gato, a conclusão seria inevitável.
No entanto, poderíamos rejeitar o argumento rejeitando sua segunda premissa:
Jack não é mamífero porque Jack é um jacaré.
Além da validade, outro requisito para um bom argumento é que ele tenha
premissas verdadeiras. Portanto, um bom argumento deve incluir evidências que
demonstrem a veracidade de suas premissas. Quando verdade e validade estão
presentes, dizemos que o argumento é correto.
Certamente a defesa da verdade das premissas pode ser feita pela apresentação
de outros argumentos, produzindo, assim, uma cadeia argumentativa em que
cada argumento tem suas premissas justificadas por argumentos anteriores,
como vimos no exemplo tomado de Rousseau. Mas, é claro, essa cadeia não
pode ser infinita. Em algum momento a argumentação tem de parar, então,
algumas premissas terão de ser aceitas como pressupostos indemonstráveis.
Nesse ponto, esgotam-se os recursos lógicos do autor para defender suas teses
e também os recursos lógicos do leitor para avaliá-las.
Por exemplo, para saber se Jack é um gato, é preciso vê-lo. Sabemos que
Paloma não é venusiana porque astrônomos, físicos e biólogos não acham
possível haver vida em Vênus. Em textos filosóficos, porém, é comum que
os pressupostos mais básicos não sejam avaliáveis empiricamente. Aí a
avaliação das premissas passa a depender de fatores como obviedade,
plausibilidade, conveniência, fertilidade etc.
65
Capítulo 3
Mas validade e correção não são os únicos requisitos para um bom argumento. Um
bom argumento deve ser convincente, e para tal ele deve ser apresentado com
clareza, no estilo adequado para o seu público-alvo, em um contexto conveniente,
enfim. Há várias características desejáveis de um bom argumento que vão para
muito além da lógica. A arte da retórica pode nos dizer mais sobre isso.
Portanto, quando você topar com um argumento que pareça inválido, leve em
conta a possível existência de premissas ocultas. Costuma-se dizer que na
interpretação de qualquer texto argumentativo deve-se sempre adotar o chamado
princípio de caridade, segundo o qual é somente a melhor versão possível de
um argumento que deve ser submetida à avaliação. Então, antes de avaliar um
argumento, fortaleça-o ao máximo, complete-o com as premissas faltantes e
julgue-o dentro do panorama da obra do autor.
66
Discurso Filosófico
Algumas falácias, inclusive, são válidas. Veja, por exemplo, o caso da falácia
da Petição de Princípio, também chamada de Argumento Circular. Nessa
falácia, a conclusão é assumida como premissa do argumento. É claro que,
nesse caso, será impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão
falsa, simplesmente porque a conclusão é uma das premissas. Mas isso não
é vantagem nenhuma, porque ele não demonstrará a conclusão, visto que a
assumiu desde o início. Um exemplo:
O problema aqui está nas evidências das premissas. Como se sabe que a Bíblia
é a palavra de Deus? Ora, responderão os crentes, porque a Bíblia diz isso. Mas
isso é uma petição de princípio. Pois, se temos que nos fiar no que a Bíblia diz
para aceitar a premissa “A Bíblia é a palavra de Deus”, temos antes que aceitar
que a Bíblia é verdadeira. Mas essa não é a conclusão que se quer demonstrar?
Esse argumento não demonstra a verdade da Bíblia, simplesmente porque ele só
67
Capítulo 3
68
Discurso Filosófico
Esses são apenas alguns dos aspectos lógicos que ajudam em uma interpretação
mais profunda de um texto. Mas já são um bom começo.
Seção 3
Como ler um texto de ética filosófica?
Marcos Rohling
Introdução
A importância da obra de Rawls ainda não pode ser corretamente indicada.
No entanto, a dizer do lugar que ocupa nos debates e na literatura produzida
Theory of Justice no âmbito da reflexão sobre a ética e a política
Doravante, usar-se-á contemporâneas, seguramente figurará entre os maiores
TJ para referir-se a
pensadores da história do pensamento ocidental. Nesse
obra Uma Teoria da
Justiça. Trad. Jussara breve texto, indicam-se alguns pontos que devem orientar
Simões São Paulo: a leitura de um texto de ética, principalmente, uma obra
Martins Fontes, 2009. como A Theory of Justice de Rawls.
Rawls
Sobre as principais
correntes da ética
contemporânea,
em termos de um
apanhado geral,
sugere-se o seguinte
livro: BORGES,
DALL’AGNOL &
VOLPATO DUTRA.
Ética. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.
69
Capítulo 3
Com isso em mente, é interessante levar em conta o que o próprio autor pensa
a respeito do seu magistério em ética e filosofia política, partindo-se de TJ.
Numa entrevista, parcialmente reproduzida por Freeman (2007, p. 06-8), numa
das mais completas e respeitáveis exposições do pensamento do filósofo
estadonidense, Rawls fala a respeito de TJ que seu tamanho e escopo, na
verdade, surpreenderam-no, pois imaginava que seu livro teria em torno de 350
páginas. Além disso, após a conclusão e publicação do livro, tinha a pretensão
de escrever a respeito de temas relacionados à terceira parte, que diziam respeito
especialmente aos fins e à psicologia moral que dava suporte a sua teoria da
justiça — a parte que mais gostava. Ainda em relação à questão, num texto
que ainda será publicado — My Teaching (1993) — e que é importante para os
propósitos aqui estabelecidos, Rawls afirma que “A parte do livro que eu sempre
gostei mais foi a terceira, sobre a psicologia moral. A recepção do meu livro, no
entanto, pegou-me de surpresa e eu procurei uma explicação.”
70
Discurso Filosófico
O que se quer dizer é que, do que Rawls afirma, em relação aos autores que
foram lidos por ele, deve-se procurar guiar-se por tal orientação: sempre procurar
entender mais profundamente o que o autor quer dizer. Ou seja, como um
exemplar, agora, aprendemos a fazer filosofia política e moral, especialmente,
lendo e estudando a prática filosófica de Rawls.
Assim, ler um autor, seja ele clássico ou não, mas, principalmente se ele for a
razão de muitas investigações teóricas, como é o caso de Rawls, e certamente o
é de Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau,
Kant, entre outros, demanda cuidados e prudência: uma leitura deve ser
cautelosa, uma vez que procura entender o que o autor propõe. E, como Rawls
sugere, conforme indicado acima, deve-se ter em vista procurar compreender o
que o autor quis dizer, não de qualquer forma, mas consonante a interpretação
mais razoável de seu texto. Por que isso? Por conta de uma questão de justiça,
coerência e discernimento em relação aos textos que são fundamentais da
cultura de pensamento ocidental. Eles podem inspirar-nos novas formas de
pensar? Podem, mas devem ser lidos e compreendidos em relação às suas mais
fundamentais preocupações, de modo a serem conhecidos e respeitados, assim
como a sua doutrina vista em sua melhor forma.
71
Capítulo 3
Na primeira parte, que abrange quatro capítulos e trinta parágrafos, está o núcleo
da teoria da justiça como equidade – e, por isso mesmo, chamada teoria – e que
toma forma nos conceitos de posição original, véu de ignorância, bens sociais
primários com os quais se obtêm os princípios de justiça, caracterizando
como procedimentalista o esquema de Rawls. Ao ler-se essa parte, deve-se
observar como esses conceitos se articulam. Além disso, tendo presente que a
formulação da justiça é orientada ao estabelecimento de uma teoria da justiça
social, que seja uma alternativa à doutrina utilitarista, é primordial distinguir o seu
objeto: a estrutura básica da sociedade. Trata-se das principais instituições
de uma sociedade, como a constituição política e os principais acordos sociais
e econômicos. O papel da justiça, que é o de governar tais instituições, é
assumido pela teoria da justiça como equidade, da qual o núcleo são os
princípios de justiça. Esses princípios, por sua vez, resultam de acordo obtido
sob circunstâncias muito particulares. Todas essas ideias são bem esclarecidas
ao longo dos primeiros nove parágrafos.
Na segunda parte, por sua vez, que compreende três capítulos e é formada por
29 parágrafos, estão as instituições sociais que requisitam os princípios de
justiça, as quais são aquelas de uma democracia constitucional, formando uma
72
Discurso Filosófico
Por fim, na terceira parte, que compreende três capítulos e 28 parágrafos, Rawls
desenvolve as bases humanas sobre as quais se assenta a justiça, bem como os
fins a que pretende chegar a justice as fairness. Aqui o autor desenvolve dois
elementos centrais de sua teoria moral, a saber, a concepção de bem e o senso
de justiça. Por meio desse, no lastro de Kant, Rawls argumenta que a justiça
prepondera sobre as concepções de bem individuais, de modo que um acordo
sobre a justiça seja possível.
73
Considerações Finais
Fica claro que sua tarefa não terminou aqui. Isto é apenas um primeiro passo, e
como ensinou Platão: “O começo é a metade do caminho”.
75
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83
Sobre os Professores
Conteudistas
Carlos Euclides Marques
É Bacharel e Licenciado em Filosofia pela UFSC – Universidade Federal de Santa
Catarina (1991-1992), Mestre em Literatura, na área de Teoria Literária (1997), pela
mesma Universidade e graduado em Artes Plásticas pela UDESC – Universidade
do Estado de Santa Catarina (2011). Foi professor substituto no curso de Filosofia
da UFSC entre 1992-1995, 1998-1999, 2008-2010. De 1998 a 2003, trabalhou
na UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí, principalmente, com Filosofia da
Educação, no curso de Pedagogia. Teve uma breve passagem, em 1999, pelo
curso de Ciências da Religião (UNISUL), ministrando Filosofia da Educação.
Voltando a esta instituição em 2002, inicialmente, no curso presencial de Filosofia,
onde, entre outros conteúdos, ministrou História da Filosofia Antiga, Medieval e
Contemporânea, Estética e Filosofia na América Latina. Foi orientador de vários
TCC’s e de alguns trabalhos de Iniciação Científica pelo artigo 170. Publicou
artigos no campo da Crítica Literária e da relação Literatura e Filosofia. Para o
curso de Filosofia a distância escreveu, em colaboração com outros autores,
os livros didáticos: História da filosofia II (Unisul, 2008), Filosofia política II
(Unisul, 2010) e Antropologia filosofia (revisado e ampliado por este na edição
de 2011), Filosofia da educação (FAEL, 2013), Ontologia (UNIASSELI, 2013).
Autor, também, do livro didático Discurso Filosófico I (Unisul, 2012). Atualmente,
trabalha com as Unidades de Aprendizagem Filosofia na Grécia Antiga,
Reflexões sobre o homem na Filosofia, Discurso Filosófico I e II no curso de
Filosofia da UnisulVirtual. Além dos livros para esta modalidade, também produziu
Objetos Virtuais de Aprendizagem (OVA) e Webaulas. Está na EaD da Unisul
desde a constituição do curso de Filosofia nesta modalidade.
85
de Filosofia (EaD), da UNIASSELI (2013) e escreveu alguns artigos na área de
Filosofia da Ciência e Lógica.
Contatos: cesarfredericosantos@gmail.com
Daniel Schiochett
Possui graduação em Filosofia pela Unisul (2006), mestrado em Filosofia pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2009) e, atualmente (2014), doutorando
do mesmo programa. É membro do corpo editorial do periódico: PERI –
Publicação Eletrônica dos Alunos de Pós-Graduação em Filosofia da UFSC. Já
foi membro de diversas bancas de TCC’s e Monografias de curso de graduação
e aperfeiçoamento. Coautor do livro didático Ontologia, do curso de Filosofia
(EaD), da UNIASSELI (2013). Desenvolve pesquisas na área de Filosofia, com
ênfase em Fenomenologia e Linguagem, atuando, principalmente, nos seguintes
temas: metáfora, homem, compreensão, temporalidade, percepção, corpo.
Contatos: danielschiochett@gmail.com
Marcos Rohling
Graduado em Filosofia, bacharelado e licenciatura, pela Universidade Federal
de Santa Catarina, Bacharelando em Direito pela Unisul (interrompido,
temporariamente), Mestre em Filosofia: Ética e Filosofia Política – PPGFIL /
UFSC, e doutorando em Educação: Sociologia e História da Educação – PPGE
/ UFSC, com um projeto sobre a A Educação e a Justiça Social em Rawls. Na
área de Filosofia, tem interesse principalmente por Filosofia Política, Filosofia
do Direito e Filosofia da Educação, realizando pesquisas, principalmente, em
questões relacionadas aos seguintes temas: direito, direito natural, educação,
formação moral, justiça, justiça social, obediência e obrigações políticas, a partir,
principalmente, dos seguintes autores: Agostinho de Hipona, Cícero, Finnis, Hart,
Locke, Rawls e Tomás de Aquino. Coautor de alguns capítulos do Livro didático
Filosofia Política II (Unisul, 2010).
Contatos: marcos_roh@yahoo.com.br
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