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pensamento feminista conceitos fundamentais Heloisa Buarque de Hollanda organizagaio a ‘poyreMPO Cee fee ea eae Se FR ee eka Lea ead Pen eau ied ee kee eer) Po Dice Peter ete ere Chena any ee Ca ae Gira k a Gaertn Pee elcid ALLL ane Bele Ana Cecilia Acioll ie eu ear aa uae ee dal ed UES Taos aa og Creme nine “ae Teeth 0 a saa Pe UL ACE ‘irra : Maria Peule Gurgel Ribeiro TSE L te) Teo siis foe Lary ee ENCE POT Crees aes rey : eon Re as rf 5 Pose es Pee ed etre eee tee eee ee Usd ea betes Cee Mer er ener eta) Pe here eed ncaa nee) Semen eee oe eked ee rl. ee a) 4.Femirismo. 2. Teoria feminists. 3, Identidade de género, 4. Mulheres ce AN a Aaa ue eee ted ered ee rete ten nake) a oven ti tue) Gee cur cent ake eal ama ey Cea CR aE PLC) 2 ele eerste bree Neer a Nao se nasce mulher Monique Wittig UM ENFOQUE FEMINISTA MATERIALISTA da opressiio feminina rompe com a ideia de que mulheres so um “grupo natural”: “um grupo racial de uma categoria especial, um grupo percebido como natural, um grupo de homens considerado como materialmente especifico em seus corpos.”? O que a andlise realiza no nivel das ideias, a pratica concretiza no nivel dos fatos: por sua prépria existéncia, a sociedade lésbica destréi o fato (social) artificial que constitui as mulheres como um “grupo natural”. Uma sociedade lésbica* revela pragmaticamente que a divisdo criada pelos homens da qual as mulheres tém sido objeto é politica e mostra que fomos reconstrufdas ideologicamente como “grupo natural”. No caso das mulheres, a ideologia vai longe, uma vez que tanto os nossos corpos quanto as nossas mentes sao produtos dessa manipulagao. Nos fomos for- gadas em nossos corpos e em nossas mentes a corresponder, sob todos os aspectos, a ideia de natureza que foi determinada para nés. De tal forma distorcida, que nosso corpo deformado é o que chamam de “natural”, 0 que deve existir como tal diante da opressao. De tal forma distorcida, que no fim a opressio parece ser uma consequéncia dessa “natureza’ den- tro de nés (uma natureza que é apenas uma ideia), 0 que uma andlise materialista faz por meio do raciocinio, uma sociedade lésbica realiza na pratica: nao sé ndo existe um grupo natural “mulheres” (nds, lésbicas, somos a prova viva disso), mas também como individuos nés questiona- 83 mos “mulher”, cue para nds, assim como para Simone de g, 0 passa de um mito. Ela disse: Swain, nag ninguém nasce mulhes, masse torna mulher: Nevihum dos aico, psicol6gico ou econdmico determina figura yuo a timer nha apresenta na sociedade: 6. civilizagio como um todo ues an essa criatura, intermediria entre macho e cunuca, deserne feminina.* “come Entretanto, a maioria das feministas e feministas-lésbicas na América e em outros lugares ainda acredita que a base da opressao das mulhere é tanto biolégica quanto histérica. Algumas até afirmam encontrar suse fontes em Simone de Beauvoir.° A crenga no matriarcado e numa "pre -hist6ria” em que as mulheres criam a civilizacao (em decorréncia de uma predisposi¢io biolégica) enquanto os homens grosseiros ¢ brutais cagam (devido a uma predisposigéo biolégica) é equivalente & interpre. tagdo de viés biolégico da historia produzida até agora pela classe dos homens. E ainda o mesmo método de encontrar em mulheres e homens uma explicagao biolégica para sua divisio, fora de fatos sociais, Para mim, isso jamais poderia constituir um enfoque lésbico da opressio das mulhe- res, jd que pressupde que a base da sociedade ou 0 comeco da sociedade estd na heterossexualidade. O matriarcado no é menos heterossexual do que o patriarcado: sé o género do opressor é que muda. Além disso, nfo apenas tal conceo¢4o esta ainda aprisionada nas categorias de género (mulher e homem), mas se prende A ideia de que a capacidade de parir {biologia) é o que define uma mulher. Embora fatos praticos e modos de vida contradigam essa teoria na sociedade lésbica, existem lésbicas que afirmam que “mulheres e homens sao espécies ou racas diferentes (2s palavras so usadas de forma intercambidvel): homens sao biologica- mente inferiores a mulheres; a violéncia masculina é uma inevitabilid de biolégica...’° Ao fazer isso, ao admitir que existe uma divisio "satura entre mulheres e homens, nés naturalizamos a histéria, nés assumimos que “homens” e “mulheres” sempre existiram e sempre existirae. Nao s6 naturalizamos a histéria, mas também, consequentemente, natu" lizamos os fenémenos sociais que expressam nossa opressa0, tornando imposs{vel a mudanga. Por exemplo, em vez de ver 0 ato de parir oe uma produgiio forgada, nés o vemos como um processo “natural “bio 84 gico”, esquecendo que em nossas sociedade: a (demograficamente), esquecendo que nés mesmas somos programa- das para, produzir filhos, embora esta seja a tinica atividade social, “foraa guerra’,” que representa um enorme risco de morte. Assim, enquanto nés formos “incapazes de abandonar por vontade ou impulso um compro- misso vitalicio e secular de ver a gravidez como o ato criativo feminino,”® ganhar controle sobre a produgio de filhos ird significar muito mais do que o mero controle dos meios materiais dessa produsio: as mulheres terdo que se abstrair da definigao “mulher” que lhes é imposta. Um enfoque feminista materialista mostra que o que tomamos por causa ou origem da opressio é de fato apenas a marca’ imposta pelo opressor; 0 “mito de mulher”,” mais seus efeitos e manifestacdes mate- riais na consciéncia e nos corpos capturados de mulheres. Assim, essa marca nao vem antes da opressio: Colette Guillaumin mostrou que, antes da realidade socioeconémica da escravidio negra, o conceito de raca no existia, pelo menos nao no seu sentido moderno, j4 que ele era empre- gado a linhagem de familias. Entretanto, agora, raga, exatamente como género, é considerada como “dado imediato”, “dado sensate’, “atributos fisicos”, pertencendo a uma ordem natural. Mas o que nés acreditamos ser uma percepcao fisica e direta 6 apenas uma construcio sofisticada e mitica, uma “formacio imagin4ria’," que reinterpreta atributos fisi- cos (em si mesmos tao neutros quanto quaisquer outros, mas marcados pelo sistema social) por meio da rede de relacionamentos na qual eles sio percebidos. (Eles sao vistos como negres, portanto sdionegros; elas sto vistas como mulheres, portanto sao mulheres. Mas antes de serem vistos assim, eles primeiro tiveram que ser feitos assim.) As lésbicas deviam sempre lembrar e reconhecer 0 quanto era “artificial”, forgado, total- mente opressivo e destrutivo para nés ser “mulher” antigamente, antes do movimento de liberagao das mulheres. Era uma repressio politica, e aquelas que resistiam eram acusadas de nao serem mulheres “de verda- de”, Mas nés nos orgulh4vamos disso, visto que na acusacao ja havia algo : como uma sombra de vitéria: a declaracao do opressor de que “mulher’ nao é algo inequivoco, porque para ser mulher é preciso ser mulher “de verdade”. Nés fomos acusadas ao mesmo tempo de querer ser homens. Hoje essa dupla acusagio foi retomada com entusiasmo no contexto do movimento de liberagéo das mulheres por algumas feministas etambém, infelizmente, por algumas lésbicas cujo objetivo politico parece ser, de 's 0 nascimentos sio planeja- 85 certa forma, tomarem-se maise mais “femininas’, Recusar-sea sep . ‘entanto, nao significa que @ pessoa tem que se torn, mulher. 2 gm disso, se usarmos como exemplo 0 perfeito en a av gesico que provoca mais horror, a quem Proust teria cham, de mulher/homem, de que modo a alienacao dela seré diferente da ali. nacio de alguém que quer se tornar uma mulher? Tweedledume Tyee, -dee (cara de um, focinho do outro). Pelo menos, o fato de uma mulhe, querer se tornar um homem prova que ela escapou da sua Programacig inicial. Mas mesmo que ela queira, com todas as forgas, nao pode se tor. nar um homem, pois tornar-se um homem exigiria da mulher néo 55 aparéncia externa de um homem, mas também sua consciéncia, isto ¢ 4 consciéncia de alguém que dispde por direito de pelo menos dois “escrg. yos” naturais ao longo da vida. Isso é impossfvel, e uma caracteristica da opressao Iésbica consiste precisamente em deixar as mulheres fora do nosso alcance, j4 que as mulheres pertencem aos homens. Desta forma, uma Iésbica tem que ser outra coisa, uma ndo-mulher, um néo-homem, um produto da sociedade, no um produto da natureza, pois nao existe natureza na sociedade. Arecusa emse tornar (ou continuar) heterossexual sempre significou recusar a se tornar um homem ou uma mulher, conscientemente ou néo. Para uma lésbica isso vai mais além do que a recusa do papel de “mulher’. a recusa ao poder econ6mico, ideoldgico e politico do homem. Isto, nés lésbicas, bem como no lésbicas, sabiamos antes do inicio do movimento feminista e lésbico. Entretanto, como Andrea Dworkin enfatiza, recente- mente muitas ésbicas “vém tentando cada vez mais transformar a pré- pria ideologia que nos escravizou em uma celebragio dinamica, religiosa, psicologicamente convincente do potencial biolégico feminino’.” Assim, algumas vias do movimento feminista e Iésbico nos levam de volta 0 mito da mulher que os homens criaram especialmente para nés, com isso nés afundamos de novo em um grupo natural. Tendo nos erguifo para lutar por uma sociedade sem género, agora nos vemos presas na conhecida armadilha de que “mulher é maravilhoso”. Simone de Be voir sublinhou, em especial, a falsa consciéncia que consiste em escolhet entre as caracteristicas do mito (de que as mulheres sao diferentes dos homens) aguelas que parecem boas e usé-las como uma defini Tare G ein "mube mv ein OT lores caracteristicas (melhores de acor? 86 quem?) que a opressao nos concedeu, e ndo questiona de forma radical as categorias homem” e “mulher”, que sio categorias polfticas e nao dados naturais, Isso nos coloca em uma posigao de lutar dentro da clas- se “mulheres” nao como fazem outras classes, pelo desaparecimento da nossa classe, mas pela defesa da “mulher” e seu reforco. Isso nos leva a desenvolver com complacéncia “novas” teorias sobre nossa especifici- dade: assim, chamamos nossa passividade de “nao violéncia’, quando o ponto principal e emergente para nés é combater nossa passividade (nos- so medo, melhor dizendo, um medo justificado). A ambiguidade do termo “feminista” resume a situacio. O que significa “feminista’? E uma pala- vra formada por “femme”, “mulher”, e significa alguém que luta pelas mulheres. Para muitas de nés, significa alguém que luta pelas mulheres como uma classe e pelo desaparecimento dessa classe. Para muitas outras, significa alguém que luta pela mulher e sua defesa - pelo mito, entao, e seu reforgo. Mas por que a palavra “feminista” foi escolhida se ela ain- da contém um minimo de ambiguidade? Nés escolhemos nos chamar de “feministas” dez anos atrds no para apoiar ou reforgar o mito de mulher, nem a fim de nos identificarmos com a definig&o que o opressor faz de nés, mas sim para afirmar que nosso movimento tinha uma histéria e enfatizar o elo politico com o velho movimento feminista. E, portanto, esse movimento que colocamos em questao, pelo sentido que ele deu ao feminismo. Acontece que o feminismo no iiltimo século jamais conseguiu resolver suas contradicées em relagao aos temas natu- reza/cultura, mulher/sociedade. As mulheres comecaram a lutar por si mesmas como grupo e consideraram corretamente que compartilhavam caracteristicas comuns como resultado da opresso. Mas para elas essas caracteristicas eram naturais e biolégicas mais do que sociais. Chegaram aadotar a teoria darwinista de evolucao. Mas nao acreditavam, como Dar- win, “que as mulheres eram menos evolufdas do que os homens; acredita- vam que as naturezas de macho e fémea tinham se bifurcado no decorrer do desenvolvimento evolutivo e que a sociedade em geral refletiu essa polarizacio.”# 0 fracasso do infcio do feminismo se deve a0 fato de que ele s6 atacou a acusacao darwinista de inferioridade feminina, aceitando as bases dessa acusagio - a saber, a visio da mulher como “tinica’.** E, final- mente, foram mulheres académicas - € nao feministas - que destruiram cientificamente essa teoria. As primeiras feministas tinham fracassado em considerar a historia como um processo dinAmico que se desenvolve 87 :om base em conflitos de interesses. Além disso, elas ainda acredit c 29 como os homens acreditam, due 8 ae de sua opressig est dentro delas mesmas. E portanto, depois de algumas vitéria ae _ as feministas dessa primeira frente de patalhs Se viram diante ge a impasse por falta de razbes para lutar: Blas aPolaram o principio 50 de “igualdade na diferenga’, uma ideia que esta nascendo de nova - cafram na armadilha que volta a nos ameacar: 0 mito damulher Portanto, é nossa tarefa histérica, e néo apenas nossa, definir o gy chamamos de opressao em termos materialistas, tornar evidente que . mulheres sao uma classe. Isso significa dizer que a categoria “mulher assim como categoria “homem” so categorias politicas e econémicase nao categorias eternas. Nossa luta tem como objetivo suprimir os homens como classe, néo por meio de um genocfdio, mas de uma luta politic Quando a classe “homens” desaparecer, “mulheres” como classe irio desaparecer também, pois nao existem escravos sem senhores. Nossa primeira tarefa, ao que parece, é desassociar completamente “mulheres’ (aclasse dentro da qual lutamos) de “mulher”, o mito. Pois “mulher” nio existe para nés, é apenas uma formagao imagindria, enquanto “mulhe- res” so o produto de uma relagio social. Nés sentimos isso fortemente quando recusamos em toda parte sermos chamadas de “movimento de liberacio da mulher”, Além disso, temos que destruir o mito dentro e fora de nés mesmas. “Mulher” nao é cada uma de nés, mas sim a formagio politica e ideolégica que nega “mulheres” (0 produto de uma relacio de exploracdo). “Mulher” existe para nos confundir, para ocultar arealida- de “mulheres.” Para nos conscientizarmos que somos uma classe e part nos tornarmos uma classe, primeiro temos que matar o mito “mulher’, inclusive seus aspectos mais sedutores. (Eu penso em Virginia Woolf, quando ela disse que a primeira tarefa de uma escritora é matar “oanjo da casa”.) Mas, para nos tornarmos uma classe, n&o temos que suprimit nossas individualidades, e como nenhum individuo pode ser reduaido a sua opressao, nés também somos confrontadas com a necessidade histérica de nos constituir como sujeitos individuais de nossa histor? {fambém. Eu acredito que essa é a razdo pela qual todas as tentativas i, reas de mulher esto florescendo agora. O we ae cee 86 ae mulheres) éuma definigao inal meso preciso coecer’s le classe. Pois, quando se reconhece @ 7 ‘ost © experimentar 0 fato de que uma pessoa P% 88 = ee ae a opesigfo a objeto de opressiio), que uma Pepesieniiel Net Wess ie et ee possivel para alguém privado de iden- ee ‘na para lutar, uma vez que, embora eu s6 possa lutar com outros, primeiro eu luto por mim mesma. A questo do sujeito individual é historicamente dificil para todos. fe} marxismo, 0 ultimo avatar do materialismo, a ciéncia que no: politicamente, nao quer ouvir falar a respeito de um “sujeito.” 0 mar- xismo rejeitou o sujeito transcendental, 0 sujeito como constitutivo de conhecimento, a consciéncia “pura’. Tudo o que pensa por si, antes de toda experiéncia, terminou na lata de lixo da histéria, porque afirmava existir fora da matéria, antes da matéria, e precisava de Deus, espiri- to ou alma para existir dessa maneira. Isto 6 que é chamado de “idea- lismo”. Quanto aos individuos, eles so apenas o produto de relagdes sociais, portanto sua consciéncia s6 pode ser “alienada’. (Marx, em The German Ideology [A ideologia alemal], diz precisamente que individuos da classe dominante também so alienados, embora sejam os produtores diretos das ideias que alienam as classes oprimidas por eles. Mas como obtém vantagens visiveis de sua prépria alienacfo, eles podem tolerar isso sem muito sofrimento.) Existe uma coisa chamada consciéncia de classe, mas uma consciéncia que nao se refere a um objeto em particular, exceto como participando em condigdes gerais de exploragao junto com 0s outros sujeitos de sua classe, todos compartilhando a mesma cons- ciéncia, Quanto aos problemas préticos de classe - fora dos problemas de classe de forma, como sio tradicionalmente definidos - que se pode- ria encontrar (por exemplo, problemas sexuais), eles eram considerados problemas “burgueses” que iriam desaparecer com a vitéria final da luta de classe, “Individualista’, “subjetivista’, “pequeno burgués”, esses eram os rétulos dados a qualquer pessoa que tivesse mostrado problemas que nao podiam ser reduzidos a “luta de classe” em si. Dessa forma, o marxismo negou aos membros das classes oprimidas 0 atributo de serem sujeitos. Ao fazer isso, 0 marxismo, em raziodo poder ideolbgico e politico que esta “ciéncia revoluciondria’ exercia mediata- mente sobre o movimento dos trabalhadores e sobre todos os outros gru- pos politicos, impediu que todas as categorias de pessoas oprimidas se constitu{ssem historicamente como sujeitos (sujeitos de suas lutas, por ‘0 lutavam por elas mesmas, exemplo). Isso significa que as ‘massas” na 89 mas pelo partido ou per suas organizagées. 7 quando uma transformagiy econémica ocorria (fim da propriedade privada, constituicao do estado socialista), nenhuma mudanga revoluciondria acontecia na nova sooje dade, porque as préprias pessoas nao mudavam. Para as mulheres, o marxismo teve dois resultados. Ele as impediy de perceber que eram uma classe ¢, portanto, de se constituirem com classe durante muito tempo, deixando a relagao mulheres/homens” fora da ordem social, transformando-a em uma relagao natural - sem dividg para os marxistas, a dnica, junto com a relagao entre maese filhos, a sey vista desta maneira - e ocultando o conflito de classe entre homens ¢ mulheres atrés de uma divisio natural de trabalho. Isso diz respeito ao nivel tedrico (ideoldgico). No nivel prético, Lenin, o partido, todos os par. tidos comunistas até agora, incluindo os grupos politicos mais radicais, sempre reagiram a qualquer tentativa por parte das mulheres em refletir e formar grupos com base em seu préprio problema de classe com uma acusaciio de divisdo. Ao unix, nés, mulheres, estamos dividindo a forga do povo. Isso significa que, para os marxistas, as mulheres pertencem ou a classe burguesa ou 2 classe proletdria, em outras palavras, aos homens dessas classes, Além disso, a teoria marxista nao permite que as mulheres, da mesma forma que outras classes de pessoas oprimidas, constituam-se como sujeitos histéricos, porque o marxismo nao leva em conta o fato de que uma classe também consiste em individuos um por um. Consciéncia de classe nao é suficiente. Nés temos que tentar entender filosoficamente (politicamente) esses conceitos de “sujeito” e “consciéncia de classe’, e como eles agem em relac&o A nossa histéria. Quando descobrimos que as mulheres sao objetos de opressio e apropriagao, no momento mesmo que somos capazes de perceber isso, nés nos tornamos sujeitos no sentido de sujeitos cognitivos por meio de uma operacdo de abstragfio. Consciéncia de opressao nio é sé uma reagao (uma luta) contra a opressao. £ também toda a reavaliagao conceitual do mundo social, sua completa reorganiza- do com novos conceitos, do ponte de vista da opressiio, Cada uma de nés deve realizar a operacdo de comprender a realidade: podemos chamat isso de pratica subjetiva, cognitiva. O movimento para frente e para tras entre os niveis de realidade (a realidade conceitual ea realidade material da opress&o, ambas realidades sociais) é feito por meio da linguagem. Somo nés que historicamente temos que assumir a tarefa de definir o sujeito individual em termos materialistas. Isso sem diivida parece Se" 90 uma impossibilidade, uma vez que materialismo e subjetividade sempre foram mutuamente excludentes. No entanto, e em vez de perder a espe- ranga de compreender, temos que reconhecer a necessidade de alcancar a subjetividade no abandono por muitas de nés do mito “mulher” (ele € apenas uma armadilha que nos atrasa). Esta necessidade real de que todos existam como individuos, assim como membros de uma classe, € talvez a primeira condigao para a realizac&o de uma revolucao, sem a qual nao pode haver luta verdadeira ou transformagao. Mas 0 oposto também é verdadeiro, sem classe e consciéncia de classe nao ha sujeitos reais, 86 individuos alienados. Para as mulheres resolverem a questo do sujeito individual em termos materialistas, elas precisam primeiro mostrar, como as lésbicas e as feministas fizeram, que problemas supos- tamente “subjetivos”,“individuais” e “privados” sao de fato problemas sociais, problemas de classe; que a sexualidade nao é para as mulheres uma expressio individual e subjetiva, mas uma instituigao social de vio- léncia. Mas depois de havermos mostrado que todos os pretensos pro- blemas pessoais sdo de fato problemas de classe, ainda teremos diante de nés a questio do sujeito de cada mulher - nao o mito, mas cada uma denés. Nessa altura, digamos que uma nova definigao pessoal e subjetiva para toda a humanidade s6 pode ser encontrada fora da categoria de sexo (mulher e homem), e que o advento de sujeitos individuais exige primei- ro a destruicao das categorias de sexo, o fim do uso dessas categorias e a rejeigdo de todas as ciéncias que ainda usam essas categorias como base (praticamente todas as ciéncias sociais). Destruir a “mulher” nao significa que queiramos, sem falar na des- truigdo fisica, destruir o lesbianismo junto com as categorias de sexo, porque o lesbianismo oferece no momento a unica forma social em que podemos viver livremente. Lésbica é 0 tinico conceito que eu conhego que est fora das categorias de sexo (mulher e homem), porque o sujeito designado (Iésbica) nao é uma mulher, seja economicamente, politica- mente ou ideologicamente. Pois o que faz uma mulher em uma relagio social specifica com um homem, uma relago que chamavamos ante- riormente de servidao,® uma relac&o que implica obrigagéo sociale fisica, bem como obrigagao econémica (“vesidéncia forgada’,” trabalho domés- tico, deveres conjugais, ilimitada produgio de filhos etc.), uma relagio da qual as lésbicas escapam, recusando-se a se tornar ou permanecer heterossexuais. Nés somos fugitivas da nossa classe do mesmo modo que of os escravos americanos foragidos a da escravidao @ Se ton vam livres. Para nés, isso é uma necessidade absoluta, nossa sobteviga’” cia exige que empreguemos todas as nossas forcas Para a destruicas classe de mulheres dentro da qual os homens se apropriam das Tulhetes Isso s6 pode ser conseguido pela destruigao da heterossexualidade cn um sistema social baseado na opressao das mulheres pelos homens | a produz a doutrina da diferenca entre sexos para justificar a Opressio, * TexTO ORIGINALMENTE PUBLICADO 808 0 TITULO “ONNENAIT PAS FEMMES" EM QUESTIONS Fetes NOUVELLES QUESTIONS FEMINISTES 8, PARIS, 1980, P. 75-84, TRADUGAO DE LEA SUSSEKIND Viveigg Sacto, ESTA TRADUGAO FOI PUBLICADA COM A PERMISSAO DE BEACON PRESS, BOSTON, APamtinng Livio THE STRAIGHT MIND, COPYRIGHT BY MONIQUE WITTIG, 1992 NOTAS 1 Christine Delphy, “Pour un ferninisme materialiste’ LArc 61,1975. 2 Colette Guillaumin, “Race et Nature: Systeme des marques, idee de groupe naturel et rapposts sociaux’, Pluriel, n° 11,1977. 3 Ewusoa palavra sociedade com um sentido antropolégico ampliado; estritamente falando, cla nao se refere a sociedades nas quais as sociedades lésbicas nao existem de forma completamente auténoma em sistemas sociais heterossexuais. 4 Simone de Beauvoir, Le deuxiéme sexe, Gallimard, Paris, 1949, t. 11, p.15. 5 Redstockings, Feminist Revolution, Nova York: Random House, 1978, p.18. 6 Andrea Dworkin, "Biological Superiority, The World's Most Dangerous and Deadly Idea’, Heresies, n° 6, 1977, p46. 7 Ti-Grace Atkinson, Amazon Odyssey, Nova York: Links Books, 1974, p. 15. 8 Andrea Dworkin, op. cit. 9 Colette Guillaumin, op. cit. 10 Simone de Beauvoir, op. cit. u1 Colette Guillaumin, op. cit. 12 Andrea Dworkin, op. cit. 33 Ti-Grace Atkinson, op. cit, p. 6: “Se o feminismo tem alguma légica, deve ser trabalhar por uma sociedade sem género, 14 Rosalind Rosenberg, “In Search of Woman's Nature”, Feminist Studies, vol. 3, n°1/2, 1975, Pll 15, Ibid, p.146. 16 Emum artigo publicado em LIdiot International, maio de 1970, cujo titulo original era "Pour ut mouvement deliberation des femmes”. 17 Christiane Rochefort, Les stances a Sophie, Paris: Grasset, 1963. 92

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