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Porque a musica é também um patriménio das Forgas Armadas icius Mariano de Carvalho, Doutor em Literaturas Roménicas - Universidade de Passau — Alemanha = Regente e Music6logo, membro da Jnternationale Gesellschaft ur Erforschumg und Forderung der Blasmusik. 2°. Tenente Temporirio do Exército Brasileiro Vinicius@acessa.com Neste artigo pretendemos apontar brevemente a importancia da misica na historia e na tradigao militares brasileiras, nao apenas cumprindo suas fungdes na tropa, mas retratando a historia nacional, em geral, e das Forgas Armadas, em particular, também queremos ressaltar como a preocupagiio em sua conservagao material, através da catalogagio ¢ preservagio de partituras, da manuteng’o de instrumentos em uso ¢ também os em desuso, e do arquivamento de documentos outros, ndo deve ser negligenciada na tarefa historiografica e museolégica das Forgas Armadas, ¢ por iltimo, mas nao menos importante, apresentar sugestdes quanto a viabilidade de difustio deste material, articulando a pesquisa musicolégica, a pratica da mtisica e o diflogo desta com a cultura museolégica ¢ historiografica das Forgas Armadas. O artigo apresentara sugesties de atividades neste campo, no apenas teorizando o assunto, mas demonstrando realidades possiveis e com resultados muito satisfatérios que podem representar mndangas no tratamento dado ao material musical das Forgas Armadas A tradicao da musica militar no Brasil Os miisicos militares esto presentes na sociedade brasileira de forma contundente e cabal nao apenas em sua obrigacao formal junto a tropa, mas também em um Ambito social mais amplo. ‘Nas Minas Gerais dos séculos XVII a XIX, periodo de maior esplendor aurifero, um grande niimero de misicos que atuavam em orquestras principalmente para o servigo religioso era recrutado do Regimento de Dragdes e das Companhias de Infantaria, especialmente os que tocavam instrumentos de sopro, genericamente chamados de choromelfeyros, um dos instrumentos, a charamela, destes conjuntos'. Mesmo nas itmandades e confrarias tipicas da sociedade mineira colonial, a presenga de Miisicos da Tropa no servigo da musica da Igreja é grande, conforme comprovam os livros de registros das referidas inmandades. Francisco Curt Lange, nos volumes que publicou de seu projeto de uma Histéria da Misica na Capitania Geral da Minas Gerais transcreve estes livros e lista os mitisicos com suas respectivas ocupagies prineipais. Podemos citar como exemplo a relagaio dos mnisicos constante no Volume II do referido projeto de histéria da miisica da capitania das Minas Gerais, que trata da musica na Irmandade de Sao José dos Homens Pardos ou Bem Casados. Muitos sao identificados como “tambor do Regimento dos Pardos”, “Miisico do Regimento”, “Trombeta do Primeiro Regimento de Milicianos”, “Musico das Milicias Pagas”, ou mesmo como “vive de tocar pifano dos melissianos”.? Isso é prova da integragao destes miisicos com a sociedade em geral, nao apenas ocupando-se da miisica da tropa. Com a decadéncia do ouro no século XIX jé nao havia mais tanto dinheiro para 0 pagamento dos servigos musicais das igrejas, 0 que provoca uma diminnigao no mimero de instrumentistas, dificultando a formagto de orquestras. Possivelmente estes mnisicos assumiram como heranga o servigo eclesiastico antes executado pelas orquestras (prova disto é 0 fato de se encontrar um imenso mimero de transcrigdes para banda de composigdes feitas anteriormente para orquestras’). Apesar de j haver misicos nas tropas do periodo colonial brasileiro, ¢ destes até se reunirem em conjuntos de formagdes variadas, pode-se dizer que a primeira banda militar propriamente dita, com dotagao de miisicos proprios, organizados e com repertério especifico, organizada como conjunto em territério brasileiro, se apresenta em 1808 com a vinda da familia real para o Brasil, quando chega com esta a “Miisica Marcial da Brigada Real da Marina” de Portugal, que depois vai dar origem a Banda dos Fuzileiros Navais*. Ainda no esteio de reorganizagio das instituigbes aps a chegada do Rei, foram criadas em 1810 as bandas para os regimentos de infantaria e cavalaria da corte (a Banda das Reais Cavalarigas). ‘ Cf. LANGE, Francisco Curt. As dangas eoletivas piblieas no perfodo colonial brasileiro e as dangas das corporagies de oficios em Minas Gerais. In: Revista Barroco, Centro de Estudos Mineitos, UFMG. no.1 1969. p 31. Cf. LANGE, F. C. A miisica na Irmandade de Sao José dos Homens Pardos ou Bem Casados. Volume II da Histria da Musica na Capitania Geral das Minas Gerais. In: Revista Barroco. Centro de Estudos Mineiros, UFMG. No. 6.1979, pp 11-231. > Desconhego algum estudo mais sistemitico que se ocupe destras transerighes para Banda de miisica produzida ‘no Brasil colonial. Muito se procura por um material “original” de orquestra e deixam-se de lado as transcricoes, usadas, ruitas vezes apenas como material de apoio quando falta alguma parte orquestral. Pode-se descobrir aspectos muito interessantes de instrumentagao ¢ também de estética musical com este material + Esta corporacdo celebrard seu bicentendio no ano vindouro, Esperamos ser esta uma ocasido para divulgasa0 de sua historia, com concertos e gravagSes, mas também com bea documentagao musicolégica destes 200 anos. Desde entao as Bandas militares esto presentes em todos os momentos fortes da historia militar brasileira. Na Guerra da Triplice Alianga, bandas compunham os Batalhoes de Voluntirios da Patria. Em 23 de janeiro de 1865, a Banda de Musica da Policia Militar do Estado da Baba, fundada em 17 de setembro de 1849 pelo maestro Lourengo José de Aragiio, parte junto com o 10° Corpo de Voluntirios para a guerra do Paraguai. Sabe-se que os componentes da banda atuavam como padioleiros e tocavam para alegrar os soldados, nos intervalos das lutas, Também na Campanha de Canudos a presenga das bandas ¢ atestada pelas fotografias do fotégrafo expedicionario Flavio de Barros (fotos de 1a 4°). ‘Nao foi diferente com as tropas da FEB, que dispds de uma banda nos campos de Batalha da Italia na Ia. Guerra Mundial, nao apenas para atuar marcialmente (fote 5 ¢ 6), mas também como parte do Servigo Especial da FEB, tocando em festas e momentos de descontragio dos soldados (foto 7). Por fim, no desfile das tropas brasileiras vitoriosas na Campanha da Itilia, também destaca-se a participacao de uma banda de grandes proporgées (fotos 8 ¢ 9). ‘As bandas militares tm em seu repertério um vastissimo mimero de pegas, compostas especialmente para elas, que so um verdadeiro retrato da historia nacional traduzido para a linguagem musical. Dobrados, hinos e marchas que homenageiam fatos e vultos histéricos garantem que a meméria nacional permanega viva e em dialog com nosso tempo, o que faz das bandas militares talvez um dos mais poderosos instrumentos da conservagio e divulgagiio da historia militar brasileira, dado seu imenso apelo popular e aprego ptiblico. Em um ambiente cultural de consumo ripido e importagaio de valores alheios, velhas tradigdes como as bandas sofrem seus danos. Mais uma vez, sto as Forgas Armadas quem garantem uma importante continuidade deste elemento mareante da cultura brasileira, fazendo das bandas atualizadas e a0 mesmo tempo guardis das mais antigas tradigdes mareiais. Como combinar esta conservagiio de patriménio com a pemmanéneia viva desta mnisica nos repertérios das bandas militares? E disso que se ocupam os dois tpicos subseqtentes. Da conservacio do patriménio musical militar brasileiro Normalmente, os acervos das Bandas Militares brasileiras estio sob os cuidados de seus proprios miisicos, seja no que diz respeito ao instrumentarium, seja no que se refere as partituras e Cf Jornal A Tarde, Caderno Cultural, Salvador. Sabado - 25/12/2004 . Fotos 1 e 2: 12°. Batalhio de Infantaria em um funeral em Canudos. Fotos 3 e 4: Missa em Cansanedo, durante 2 Campanha de Canudos, com a presenga do ministro da Guerra, Marechal Carlos Machado Bittencourt, em 5 de setembro de 1897, In:: Almeida, Cicero Antonio F. de, Canudos ~ Imagens ca Guerra. Os ‘itimos dias da Guerra de Canudos pelo fotdgrafo expedicionirio Flavio de Barros. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997 outros documentos de interesse histérico. Isso tem um lado positivo e um negative, O lado positive que ninguém melhor do que o proprio mmisieo se interessaria pelo zelo de seu material de trabalho. No entanto, e aqui o lado negativo, muitas vezes os miisicos das bandas nao tem treinamento apropriado para 0 cuidado com este material e amitide nao tem a consciéneia do valor historic deste patriménio, selecionando sem critérios musicolégicos definiveis o que conservar e como fazé- Jo, Poueas sto as bandas que tem um arquivo de partituras organizado segundo critérios arquivisticos que pemmitam 0 acesso a seu conteiido ¢ mais raras as que se preocupam com 0 contetido musicolégico do mesmo. No affi de “atualizar” sen repertério com arranjos de misicas populares ¢ contemporaneas (0 que é necessério e motivador para as bandas e seus miisicos), desconsideram o rico patriménio de que sao guardadoras, chegando, as vezes, a menosprezi-lo. Ouvimos, diversas vezes, unisicos militares, que tém por fingao ¢ vocagao a conservagao do patriménio musical militar brasileiro. desconsiderar esta muisica, deixando-o em segundo plano. Muitas vezes conhece-se e elogia-se 0 repertério de John Philip Souza, mas ignora-se Francisco Braga, por exemplo. Talvez por jé estarem profundamente arraigados @ rotina da vida na casena e por isso acabarem pasando desapercebidos no dia-a-dia, os toques de cometa e clarim, que sio parte importante do patriménio da misica militar, também merecem uma atengao especial, ja que registram os processos de comunicagio sonoros das Forgas Armadas, evoluindo de acordo com as novas necessidades e realidades militares. Um cuidado no sentido de conservagio dos toques ja nao mais em uso revelaria um pouico mais da historia militar e ajudaria inclusive na manutengao de uma das tradigdes mais marcantes da miisica militar’, O mesmo pode-se aplicar aos toques de tambor, que guardam estrita relagao com as cometas e clarins, muitas vezes constituindo juntos os timicos meios musicais de muitas unidades militares. Resgatar estes toques 6 precioso e mareante como valor histérico da miisiea militar brasileira E necessaria, neste sentido, uma uniformizagio minima de procedimentos de arquivamento ¢ documentagao do material musical das bandas militares, de modo que se possa ter uma nosiio, a0 menos geral, de todo o patrimSnio musical depositado em seus arquivos Além disso, seria extremamente enriquecedora a auticulagao da pritica musical militar com atividades de carter educative e museolégico, visto a perenidade das bandas em todos os momentos da vida militar brasileira. Elaboragao de concertos tematicos relacionados a exposigdes permanentes de museus militares ou mesmo de Unidades Historicas das Forgas Armadas seriam também extremamente enriquecedores para as Bandas, para o piiblico e para a conservagao da memiéria militar brasileira. No t6pico anterior apontamos alguns momentos de nossa historia militar nos quais as bandas estiveram presentes, documentalmente comprovados. porém qual o repertério Seria no minimo curioso resgatar os toques especifices da Forea Aérea do Exército, anterior @ criagao da FAB, ¢ correlacionar-los a moderna Aviagao do Exército, que executaram em cada um desses momentos? Qual era a paisagem sonora destes eventos? Como se expressavam musicalmente as Forgas Armadas nestas ocasides? O euidado com o repertorio das bandas militares se toma assim uma wgéneia, para que uma surdez antiga nao se tome uma modema mudez No tépico seguinte sugerimos algumas possiveis formas de envolvimento entre miisica € museologia, de modo que seja possivel encontrar o devido valor e espago para a miisica militar histérica brasileira, no apenas como elemento curioso, mas parte valiosa da presenga das Forgas Armadas na vida do pais, Quando a misica histérica faz historia ‘No ano de 2004 tivemos a oportunidade de visitar algumas bandas de misica da 4°, Bda. Inf. Mtz.. Nestas visitas interessou-nos muito conhecer as condigdes de arquivamento das mnisicas e a variedade de repertorio das bandas. Qual nao foi nossa surpresa ao encontrar um bom mimero de obras valiosas ¢ importantes, conservadas de acordo com as possibilidades de eada banda (nao ideais, mas ao menos mantendo este material) Sem dispor de um procedimento sistemético e de tempo suficiente para uma completa catalogacao, levantamos o material que aparentemente poderia ser de interesse histérico e musicoldgico e com esta musica montamos um programa de concerto com a Banda da 4*, Bda. Inf. Miz, de Juiz de Fora. © concerto visou mostrar um breve panorama da riqueza da misica militar brasileira, articulando a miisica com a propria histéria militar do Brasil. Assim, apresentamos pega praticamente desconhecida de Francisco Braga, uma fantasia para Banda de miisica chamada Tarde «'Estio; wn dobrado celebrando os /8 do Forte, escrito para Banda de miisica acrescida de banda de cometas ¢ tambores; um poema sinfonico para Banda deserevendo a historia da Fortaleza Sao Todo, Imagens sonoras sobre a implantagdo da Fortaleza de Séo Jowo (pega que articula narragio com unisica). Isso citando apenas parte do programa, Muitas outras obras registramos e editamos para a conservagaio de seu contetido, uma vez que a fragilidade do material original nao permitia sua manipulagao constante. Entre estas podemos citar o Hino dos Cadetes da Escola Militar de Realengo, de Francisco Braga, hino este particulamente integrado a histéria do Exéreito Brasileiro ¢ praticamente esquecido, © que propomos a partir dessa experigncia ¢ a integragio de apresentagdes das bandas de misica a exposigdes tematicas dos museus militares, fazendo com que a miisica histérica mostre também sua capacidade de ser historia e ajudar ao piblico a construir um quadro abrangente do contetido das exposigdes. Note-se que nao se trata simplesmente de se fazer um concerto em abertura de exposigtio, mas de verdadeiro didlogo entre musicologia e museologia, Entre misica e histéria. Para isso, faz-se necesséria uma pesquisa mais sistemética dos arquivos musieais. Ievantando a viabilidade de editoragao de seu repertério e difustio deste material’, Seguido a isso tum estudo musicolégico que nos apresente um quadro amplo do patrimdnio musical militar brasileiro e por fim, a elaboragio de concertos temiaticos em didlogo com a pritica museoligica, O registro deste repertirio em CDs seria também de grande valia, pois pemitiria no apenas o registro de uma miisica que vem gradativamente se perdendo, como também servitia de rico material para pesquisadores e educadores. Em outras palavras, este repertorio conservado em edigdes atualizadas e registrado em CD daria uma ampla percepgio da presenga militar no Brasil. Procedimentos estes simples e pouco dispendiosos seriam enriquecedores tanto para as bandas de misica quanto para os museus militares ¢ deixariam muito evidente que miisica para musen nao é mmisica morta, mas viva e rica, como a historia. Fotos 1 ¢ 2: 12%, Batalhgo de Infantaria em um funeral em Canudos. (fonte: Almeida, Cicero Antonio F. de. Canudos ~ Imagens da Guerra. Os iiltimos dias da Guerra de Canudos pelo fotografo expedicionario Flavio de Barros. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997.) A exemplo da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro que ja tomou disponivel online boa parte de seu arquivo historico. Cf. o site: htp:/wwww.memoriamusical.com br/bombeitos.asp STE 0 Fos 3 e4: Misa em Cansangio, durante # Campanha de Canadas, com a presengt do ministre da Guerra, Mivcchal Gavts hincade Bikcccows tu dr otcabie ae lOST, (ontes“Aimlde, Clee macio Bde Canudos ~ Imagens da Guerra. Os iiltimos dias da Guerra de Canudos pelo fotografo expedicionario Flavio de Barros. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997. Foto 5: desfile do 1° batalhao do 6°RI, 30 dias apés a ibertagao da Italia - Voglera 25 de maio de 1948. (Foto: ‘Museu Capitao Pitaluga ~ Valenca —RJ) Foto 6: Banda Brasileira da FEB na Italia em lugar ndo identificado. (Foto: Museu Capitao Pitaluga ~ Valenga — RD) Foto 7: Uma banda das Tropas da FEB em local nao identificado. (Foto: Museu Capitao Pitaluga ~ Valenga — RJ) y r Foto 9: Desfile no Rio de Janeiro das Tropas da FEB Vitoriosas na Italia, (Foto: Museu Capitao Pitaluga — Valenca RJ) DEFESA www.ufjf.edu.br/defesa

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