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MANA 18(1): 213-224, 2012

ENTREVISTA

aNTROPOLOGIA COM EMOÇÃO

Catherine Lutz

Catherine Lutz aceitou ser entrevistada, que leva boa parte dos norte-americanos
respondendo simpaticamente aos a passar tanto tempo dentro de viaturas
nossos emails, ainda antes de chegar ao tem a ver com concepções sociais de tempo
Congresso da SIEF em Lisboa, sobre o tema e espaço. Eles consomem frequentemente
“People make places – ways of feeling the os seus carros como espaços encapsulados
world“, que ocorreu em abril de 2011 e que os privam dos contatos complexos e
no qual ela viria a figurar como keynote heterogêneos com um mundo social que
speaker.1 Recebeu-nos nas instalações da concebem como perigoso e ameaçador.
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas É claro que não poderia faltar o paradoxo:
da Universidade Nova de Lisboa, onde o risco de fato surge, afinal, associado ao
tínhamos preparadas várias questões sobre automóvel e a toda essa cultura que a
sua obra e sua trajetória. Não era a sua indústria norte-americana promove desde
primeira vez em Lisboa. Nesta cidade, entre o pós-guerra e que se expande sem cessar
convites para a participação em seminários no mundo contemporâneo.
e simpósios, Lutz tem tido a missão de Nesta entrevista, Lutz nos fala sobre
nos últimos anos ser consultora científica sua formação, expondo a importância que
externa em instituições como o Instituto de determinados autores e obras tiveram
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. para a formulação de suas inquietações
Em sua conferência, Lutz falou de um de intelectuais, discorrendo sobre as sínteses
seus projetos mais recentes (em colaboração teóricas produzidas e as cenas acadêmicas
com sua irmã Anne Lutz Fernandez) de que participava nessas ocasiões.
e que envolve o estudo das culturas
automobilísticas como reprodutoras de
***
desigualdade nos EUA. O estudo deu
origem à obra Carjacked: the culture of
the automobile and its effect on our lives O estudo das emoções ganhou um forte
(2010). Na conferência, primeiro fomos por impulso na cena antropológica norte-
ela levados às geografias e aos engenhos americana nos anos 1980. Datam dessa
da globalização capitalista que faz do década trabalhos seminais, como o
carro – e de todos os sistemas viários a estudo de Lila Abu-Lughod (1986) sobre
ele associados – um dos objetos mais a poesia amorosa entre os Awlad ‘Ali e
consumidos no contexto norte-americano. as reflexões de Michelle Rosaldo (1984)
Em seguida, Lutz nos propôs interpretações sobre as emoções como “pensamentos
das micropráticas e das percepções dos incorporados”, baseadas em trabalho
cotidianos, explorando a ideia de que o de campo realizado junto aos Ilongot.
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Unnatural emotions, primeiro livro de sendo marcada pela preocupação com os


Catherine Lutz (1988), surgiu naquela época outros e referida a situações concretas.
em que se ampliava a discussão sobre as Duas temáticas atravessam assim a
formas de construção das emoções como descrição desta etnopsicologia ocidental: o
objeto de estudo antropológico. Nele, a gênero e o controle. Dois anos depois, Lutz
autora explora as emoções entre os Ifaluk organiza, em parceria com Lila Abu-Lughod,
na Micronésia, esboçando a partir daí um uma coletânea de estudos em antropologia
conjunto de reflexões acerca da maneira das emoções intitulada Language and
como a experiência emocional é entendida the politics of emotions, que guarda uma
no “Ocidente”.2 relação de continuidade com esse primeiro
O livro traz uma importante contribuição trabalho, ao mesmo tempo em que traz
para a antropologia das emoções: a uma nova contribuição teórica.
investigação minuciosa dos eixos em torno No artigo de sua autoria aí publicado,
dos quais se organiza a percepção da vida Lutz dá prosseguimento à investigação sobre
emocional predominante no Ocidente a relação entre representações da emoção
em vários planos – o senso comum, o e concepções de gênero, com base em um
discurso acadêmico, as obras de ficção. conjunto de entrevistas realizadas com
Esta investigação é construída com base na homens e mulheres norte-americanos. Em
noção de “etnopsicologia”, entendida como sua análise, um terceiro tema vem se juntar
o conjunto de ideias compartilhadas por um ao gênero e ao controle: o poder. Para
grupo acerca das emoções. Lutz propõe que ela, “toda fala sobre controle emocional
a etnopsicologia “euro-americana” estaria seria uma fala sobre o poder” (1990:70). E,
estruturada em torno de duas oposições: comparando esses discursos sobre a emoção
emoção versus pensamento e emoção versus com o estudo de Michael Taussig (1984)
distanciamento. Em ambos os casos, haveria sobre as relações colonizador-colonizado,
uma marca de gênero nestes pares de Lutz conclui que “os discursos sobre a
opostos, com a emoção sempre associada ao emoção podem ser um dos mais prováveis e
feminino e o pensamento/distanciamento poderosos instrumentos por meio dos quais
associado ao masculino. se exerce a dominação” (1990:77, tradução
A forma de valorar estas oposições, nossa). É aí, então, que o tema do poder
contudo, seria distinta: quando oposta ao vem formar, juntamente com o gênero
pensamento, a emoção é o polo negativo; e o controle, uma “tríade” temática que
se oposta ao distanciamento, ganha o marcará esse momento fundador.
sinal de positivo. Esta valoração estaria O tema do poder dá ainda a tônica
associada ao tema do autocontrole: oposta das reflexões teóricas propostas por
ao pensamento, a emoção seria o locus do Lutz e Abu-Lughod na “Introdução”
descontrole, fazendo das mulheres seres a esta coletânea. As autoras traçam um
ao mesmo tempo perigosos e frágeis. Por mapeamento do campo dos estudos sobre
outro lado, na oposição ao distanciamento, emoções, identificando três vertentes
o controle masculino “escorregaria” para teóricas principais: o “essencialismo”
a frieza, e a emoção seria a via de acesso (baseado na crença na existência de
para a criação de empatia para com o outro. uma “essência universal” das emoções);
Surge daí uma terceira ideia importante: o “relativismo” (ancorado na noção de
a elaboração da dimensão moral das que as emoções seriam “construções
emoções, desenvolvida por Lutz novamente culturais”); e o “historicismo”, de “espírito
em torno da problemática do gênero, com intelectual” semelhante ao relativismo, ou
a moral masculina sendo descrita como uma seja, desconfiado da atitude essencialista,
questão de aplicação de princípios abstratos porém voltado para a análise das variações
a casos particulares e a moral feminina diacrônicas das emoções.
antropologia com emoção 215

Tendo este quadro como pano de fundo, desenvolvendo a relação entre linguagem,
Lutz e Abu-Lughod propõem uma quarta nomeação e política no campo da vida
forma de analisar as emoções, que batizam emocional. Seu trabalho pode assim ser
de “contextualismo”. Esta proposta teórica é aproximado daqueles de outros estudiosos
baseada na noção foucaultiana de discurso, contemporâneos, tais como Judith Butler e
entendida como “uma fala que forma aquilo Arthur Kleinman que, apesar de partirem de
sobre o que fala”. As autoras postulam formações distintas, com ela compartilham
a existência de discursos emocionais e de a inquietação mais ampla acerca da
discursos sobre as emoções, advogando a ideia desigualdade primordial que atravessa o
de que tais discursos só podem ser entendidos reconhecimento social dos dramas vividos
em relação ao contexto do qual emergem. pelos indivíduos em situações de guerra.
Esta proposta guarda assim uma ligação que é Certas perguntas cruciais formuladas
tanto de continuidade quanto de refinamento por Butler, como em que situações uma
no que diz respeito ao relativismo, na medida morte pode ser pranteada (2009), ou de que
em que a “desessencialização” da emoção é, modo o luto e a sensibilidade às mortes são
evidentemente, uma condição de possibilidade vedados a alguns em nome da sensibilidade
para seu entendimento contextualizado. de outros (2004), ecoam aquilo que Lutz
A ênfase no contexto, contudo, faz com destaca na entrevista como as disputas pelo
que as duas vertentes se afastem, a emoção direito de nomear as emoções. Ou mesmo
perdendo, além de sua “essência”, qualquer configurá-las em “linguagens emocionais”
natureza fixa e estável, restrita ao self de quem no quadro da guerra. Em ambas as
a sente e para além de contextos específicos. propostas, fica claro que a “guerra” implica
Este recurso a Foucault, permitindo também um embate político e moral crucial
assim pensar a emoção como um discurso, em torno das linguagens sobre as dores, os
insere sua análise nas preocupações com danos e os custos pessoais e coletivos.
a “micropolítica”, ou seja, com o trabalho As narrativas de cunho psiquiátrico
realizado pelas emoções na vida pública. teriam aqui lugar complexo, como Lutz
Esta síntese teórica que vincula os estudos também indica ao falar da produção de
sobre a emoção aos temas do poder e diagnósticos sobre os veteranos. De modo
da moral atravessa a obra de Catherine semelhante, Arthur Kleinman, ao trabalhar
Lutz, construindo uma ponte entre esses com um caso de paciente “em depressão”,
primeiros trabalhos e seus últimos estudos mostra-nos o quanto sua resistência ao
sobre o militarismo. Sua obra mais recente tratamento – e ao próprio diagnóstico – era,
acompanha assim o movimento que vem há antes de mais nada, fruto de uma grande
alguns anos ampliando o leque de objetos crise em função da definição moral de seus
possíveis para a antropologia das emoções, atos durante a guerra, e não de seu estado
que volta seu olhar, antes concentrado clínico ou daquilo que se poderia relacionar
em temas associados à vida íntima/privada às suas emoções pessoais. Ao lutar para ver
(tais como as relações amorosas ou de reconhecido como assassinato um de seus
amizade e a saúde/doença), para temáticas atos cometidos durante os confrontos, o
da esfera pública, como os movimentos veterano encontrou não apenas negativas,
sociais (Goodwin; Jasper & Polletta 2011), mas uma verdadeira incongruência moral
a violência urbana (Coelho 2010a; Jimeno e, consequentemente, a incompreensão
2004, 2010) ou as transformações em absoluta de sua forma de ver o mundo da
regimes políticos (Svasek 2006).3 guerra. O que ele fizera era heroico, e não
Nesta entrevista, Lutz comenta a forma criminoso. Ou, ainda, apenas parte da rotina
como tal preocupação teórica aparece da guerra (Kleinman 2006:27-45).
em seu trabalho sobre os veteranos de Tal caso parece remeter diretamente
guerra (em parceria com M. Gutmann), ao que Lutz destaca na entrevista como
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parte dos indizíveis da guerra, não porque norte-americanas, nomeadamente a


inconfessáveis pelos indivíduos, mas porque AAA. Exceção à regra, Catherine Lutz,
jamais reconhecidos em sua dimensão acompanhada por antropólogos como
profundamente moral. A profusão de William Beeman, Roberto González,
diagnósticos teria também, nesse sentido, Hugh Guterson, David Price e o próprio
efeito de silenciamento dessas angústias e Marshal Sahlins, tem falado publicamente e
desses dilemas morais, apartando o plano assumido com coragem uma posição contra
das supostas consequências pessoais da as guerras. Tais posicionamentos contribuem
guerra de sua dimensão política maior. para evidenciar a imensa tragédia e a
Em outro nível, tal silenciamento atingiria, forma como recursos materiais, humanos
como Butler também apontou, a própria e simbólicos vêm sendo despendidos em
possibilidade de discutir o militarismo e a nome da guerra pelo governo norte-
gigantesca maquinaria norte-americana de americano e outros governos do mundo.
guerra. Ao contrário do contexto da guerra Mas ao colocarmos em perspectiva
do Vietnã, que Lutz viveu muito jovem a obra de Lutz, compreendemos mais
ainda, marcado pelas disputas abertas em claramente o impacto de sua contribuição
torno dos significados e da legitimidade intelectual. Em seu já mencionado trabalho
do confronto, no cenário contemporâneo em parceria com Matthew Gutmann,
imediato impera a produção de uma Breaking ranks: Iraq veterans speak out
aquiescência não apenas sobre os conflitos against the war (2010), a autora permite-
militares em curso, mas sobre a própria se testar formas narrativas da etnografia,
reprodução institucional gigantesca e abrindo o campo de difusão do saber
cotidiana dentro dos EUA. antropológico em sentidos imprevistos. Lutz
Apesar de sempre ter existido oposição talvez se aproxime daquilo que Van Maanen
generalizada entre os antropólogos em recentemente apelidou de advocacy tales
relação às guerras que nos envolveram (2010). Este tipo de narrativa etnográfica
emocionalmente nos últimos anos, isto não que não esconde o seu engajamento,
tem implicado senão o seu engajamento tradição das teorias críticas, tem um lugar
tímido e desconfortável, como aponta no mundo da antropologia, sobretudo a
Robben (2009) no editorial da revista norte-americana. Veja-se também o notório
Anthropology Today. A questão, segundo o exemplo de Hugh Gusterson (1996) e do seu
autor, é que tais sentimentos, ao contrário retrato aterrador da indústria de design de
do que seria de esperar, não se traduziram armas dos EUA. No mesmo sentido, surge
em protestos políticos. Este recuo quanto o trabalho de Teresa Caldeira (2003), ao
ao engajamento provocado pela guerra combinar a análise da violência cotidiana
do Vietnã pode ser explicado de múltiplas e a falência institucional na cidade de São
formas, mas o apertado cerco moral da Paulo dos anos 80 e 90. Com estas novas
parte dos governos, alegado por razões de formas narrativas os temas da antropologia
segurança, e do silêncio em virtude de um das emoções, da antropologia política e das
bem maior – patriótico ou humanitário – instituições articulam-se através de uma
têm reduzido as vozes dos antropólogos e série de coordenadas teóricas, empíricas e
a complexidade do que estes podem dizer estilísticas sem precedentes. Catherine Lutz
na esfera pública, como bem adverte Butler é seguramente uma das acadêmicas que
(2004). Outro aspecto mais concreto passa mais têm contribuído para tal.
pela contratação de antropólogos pela
CIA e comissões militares dos EUA, algo Maria Claudia Coelho
que não chegou a ser frontalmente Susana Durão
contestado pelos representantes das Adriana Vianna
maiores associações de antropólogos
antropologia com emoção 217

Notas GUSTERSON, Hugh. 1996. Nuclear rites:


a weapons laboratory at the end of
1
A entrevista foi concedida a Maria Claudia the Cold War. Berkeley: University of
Coelho, professora do Departamento de California Press.
Ciências Sociais – UERJ (mccoelho@bighost. GUTMANN, Matthew & LUTZ, Catherine.
com.br) e Susana Durão, investigadora auxiliar 2010. Breaking ranks: Iraq veterans speak
do Instituto de Ciências Sociais da Universidade out against the war. Berkeley: University
de Lisboa (ssbdurao@gmail.com). Transcrição of California Press.
da entrevista: Thaddeus Blanchette. Tradução: JIMENO, Myriam. 2004. Crimen pasional –
Maria Claudia Coelho. contribución a una antropología de las
emociones. Bogotá: Universidad Nacional
2
Lutz define como “euro-americanas” as de Colombia.
concepções acerca da experiência emocional __. 2010. “Emoções e política: a vítima e a
a que aqui nos referimos como “ocidentais”. construção de comunidades emocionais.”
Mana – Estudos de Antropologia Social,
3
Para uma discussão sobre a emergência 16(2):99-121.
destes novos objetos de pesquisa no campo KLEINMAN, Arthur. 2006. What really
da antropologia das emoções, ver Coelho matters. Living a moral life amidst
(2010b). uncertainty and danger. Oxford/New
York: Oxford University Press.
LUTZ, Catherine & FERNANDEZ, Anne
Lutz. 2010. Carjacked: the culture of the
automobile and its effect on our lives.
Referências bibliográficas New York: Palgrave Macmillan.
ROBBEN, Anthonius. 2009. “Anthropology
BUTLER, Judith. 2004. Precarious life: and the Iraq War. An uncomfortable
the powers of mourning and violence. engagement. Guest editorial”.
London/New York: Verso. Anthropology Today, 25(1):1-3.
__. 2009. Frames of war: when life is SAHLINS, Marshall. 2009. “Te teach-ins: anti-
grievable? London/New York: Verso. war protest in the Old Stoned Age. Guest
CALDEIRA, Teresa. 2003. Cidade de muros. editorial”. Anthropology Today, 25(1):3-5.
Crime, segregação e cidadania em São SVASEK, Maruska (org.). 2006. Postsocialism –
Paulo. São Paulo: Ed. 34/Edusp. politics and emotions in Central and
COELHO, Maria Claudia. 2010a. As emoções Eastern Europe. New York: Berghahn
e a ordem pública: uma investigação Books.
sobre modelos teóricos para a análise VAN MAANEN, John. 2010. “A song for
socioantropológica das emoções. my supper. More tales of the field”.
Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Organisational Research Methods,
Brasileira de Antropologia, realizada 13(2):240-255.
entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010,
Belém, Pará, Brasil. Ms.
__. 2010b. “Narrativas da violência: a
dimensão micropolítica das emoções”.
Mana – Estudos de Antropologia Social,
16(2):265-285.
GOODWIN, J.; JASPER, J. M. & POLLETTA, F.
(orgs.). 2001. Passionate politics –
emotions and social movements. Chicago
and London: University of Chicago Press.
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Susana Durão: Como começou o seu que há formas alternativas de viver que
interesse pela antropologia? a antropologia pode nos apresentar, e
se há diferenças sociais e políticas em
Eu costumava ler a National Geographic outros lugares, há sociedades que talvez
na época em que morava em um subúrbio tenham formas de resolver as coisas, e
de Nova York. Eu era adolescente e a que são de, algum modo, menos injus-
região era muito homogênea, com uma tas. Bom, tudo isso era uma boa notícia.
população predominantemente branca. Eu entendi a antropologia como geradora
Acho que o choque do exótico moldou a de uma mensagem otimista nesse sentido.
minha aproximação com essa disciplina. Eu fui apresentada à antropologia
Ver aquela revista me fez perceber que o através da antropologia psicológica. Meu
mundo era muito mais colorido do que primeiro professor foi Steven Piker – ele
eu imaginava. E a National Geographic era desta linha. Foi por esse caminho que
tem uma visão muito positiva do resto do entrei na pós-graduação. Fui trabalhar
mundo, por isso acho que fui realmente em Harvard com John Whiting, que
apresentada ao campo através desta re- também trabalhava nesta área e era um
vista de uma maneira muito marcante. dos nomes principais. Os pós-estrutura-
Mas também teve importância a expe- listas haviam chegado a Harvard, onde
riência social de tentar entender o que eu estava fazendo minha pós-graduação.
mais havia lá fora. Então, essa combinação da antropologia
Acho que uma outra razão está re- psicológica com o pós-estruturalismo
lacionada à Guerra do Vietnã. Crescer produziu Unnatural emotions, que foi
em meio à turbulência dos anos 60 nos minha tese de doutorado e meu primeiro
Estados Unidos e ter, tanto dentro da livro, que é uma desconstrução da ideia
minha família quanto na comunidade de “psicológico”, da noção de uma vida
mais ampla, esses conflitos de valores. emocional humana universal. Acho que
As pessoas discutiam – muito raivosa- isso é bastante previsível: quando você
mente – por causa das profundas divisões aproxima duas grandes vertentes teóricas
em torno da guerra. Ao mesmo tempo, ou paradigmas, os estudantes muitas
tudo estava mudando nos Estados Uni- vezes produzem algo que é um novo
dos: o movimento feminista, os direitos amálgama dos dois.
civis, todas essas mudanças. Essas brigas
aconteciam também dentro da minha SD: A antropologia cognitiva estava
família – se essas mudanças culturais e muito desenvolvida nos anos 90. De que
essas instituições políticas eram corretas. forma você vê, olhando retrospectivamen-
Acho que eu pensava que a antropologia, te, essa forma de reaproximação entre a
na época em que eu fui para a faculdade psicologia e a antropologia?
e a descobri, era uma maneira de en-
tender como as pessoas podiam pensar Sim, essa era uma das coisas que esta-
de formas tão diferentes e ainda assim vam acontecendo na época da minha
serem pessoas boas e humanas, como formação. A revolução cognitiva havia
meu pai e minha mãe. Era e é importante acontecido e estava chegando à antropo-
para mim não desumanizar a diferença logia, após ter reorganizado a psicologia.
nos conflitos políticos, os atores nos con- Ela chegou à disciplina de várias formas.
flitos políticos. Acho que eu apreciava Nos anos 80, eu havia tido contato com
isso, que a antropologia oferecesse um psicólogos que estavam interessados, a
caminho para evitar isso. E a ideia de partir de uma perspectiva cognitivista,
antropologia com emoção 219

no que a antropologia tinha a dizer sobre psicológica, tentando refazer, remodelar


as emoções, porque, é claro, estavam um pouco a discussão de que havia um
tentando programar emoções usando ser humano “essencial” – onde a cultura
um tipo muito racionalista de modelo ainda permanece somente como o signi-
do pensamento humano no mundo da ficado que é desenvolvido na moldura da
inteligência artificial. Assim, a ideia de psicodinâmica humana universal. Mas aí
introduzir emoções seria esta coisa nova os autores que eu estava lendo, os que
e revolucionária que iria tornar o compu- mais me interessaram nos anos 80 foram
tador realmente humano. Michel Foucault, a crítica do Writing
Acho que esta influência cogniti- culture sobre a ideia de que podíamos
vista estava muito entranhada no que repensar nossa própria disciplina como
eu estava fazendo. Uma das críticas uma produção histórica – eu já estava
feitas aos meus primeiros trabalhos foi fazendo isso com a crítica da psicologia,
de que eles eram em alguma medida mas queria levá-la mais a fundo na an-
“desencarnados” e de que talvez faltasse tropologia, dizer que não somos imunes
algo do aspecto psicodinâmico... Mesmo aos tipos de limites culturais e aos enqua-
apreciando de fato essa literatura e ten- dres políticos que eu estava descobrindo
do lido muito nessa área, vindo de uma na psicologia enquanto campo – e Eric
tradição freudiana (e também da crítica Wolf, que eu também estava lendo, que
feminista), acho que ao final das contas começou a tentar contar uma história
segui em uma direção diferente. Tentei mais ampla na qual algumas narrativas
de fato apenas lidar com aquela pergunta eram apagadas – as narrativas dos gru-
original: “E se imaginássemos a emoção pos que “não têm história”. Eu tive esse
e a cognição de forma menos dualista?”. tipo de experiência clássica de trabalho
Se questionássemos essas categorias e de campo, de ir para uma ilha e aí achar
os tipos de nós analíticos com que nos que estava olhando para uma espécie
prendemos quando tentamos distingui- de sistema cultural. Eu estava tentando
las como um tipo de coisa ao invés de reposicionar essa história.
encará-las como discursos com os quais
as pessoas tentam fazer coisas? O que as Maria Claudia Coelho: No seu livro
pessoas estão tentando fazer ao identifi- Unnatural emotions esta noção de “cons-
carem algo como emocional em oposição trução cultural das emoções” parece ser
a racional ou cognitivo? Quais são as am- central para a discussão da etnopsico-
bições ou os conflitos políticos gerados logia americana. Como você vê as con-
por isto e qual o seu propósito? tinuidades e as descontinuidades entre
esta abordagem teórica e a perspectiva
SD: Que tipo de incentivo intelectual você contextualista, a antropologia das emo-
recebeu nos Estados Unidos quando era ções que você desenvolveu em Language
estudante? Quais foram suas influências and the politics of emotions?
principais? Quem você teria gostado de
conhecer e de ter tido chance de trocar Eu não as vejo como opostas, mas sim
ideias? como complementares. Nesse meio tem-
po, li Foucault de forma mais extensa,
Nossa, acho que tem tanta coisa para di- questionei mais alguns daqueles proble-
zer sobre isso. Eu vinha desta tradição em mas mais amplos. Meu ensaio publicado
que eu dedicava muito tempo a conversar na Cultural Anthropology em 1986 foi
com as pessoas da área de antropologia uma tentativa de indagar sobre aqueles
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contextos maiores do pensamento euro- por isso eles não se machucariam. Você
americano e de ir além do tipo de compa- vê relação entre esta passagem e a emer-
ração e contraste cultural entre os modos gência do seu interesse pelo militarismo
de pensar norte-americano e ifaluk sobre como um objeto de pesquisa?
as emoções, e de me colocar algumas
questões mais gerais... de indagar sobre Com certeza. Claro. Você sabe, o fato de
os contextos mais amplos da vida emo- que nós havíamos começado esse projeto
cional, que são políticos e econômicos. sobre a National Geographic e aí vem
Esses trabalhos foram publicados muito essa guerra, certo? O que realmente traz
próximos: apenas dois anos de intervalo. à tona a questão de como é possível que
Penso neles como muito próximos em uma produção cultural popular como
termos do que eu estava tentando fazer. essa, que é tão popular, que está lá fa-
Repensei e reescrevi muito da minha zendo seu trabalho, criando uma visão
tese original, que era bem mais limitada positiva do mundo e por aí vai... Como é
quanto às formas de refletir sobre os possível que estas duas nações possam
temas ligados à linguagem. entrar em guerra? Que os Estados Uni-
dos possam levar seu povo à guerra sem
MCC: Em Unnatural emotions, a temática maiores protestos (risada irônica). Então,
do gênero já está presente, principalmen- acho que isso realmente aguçou a minha
te quando você discute a etnopsicologia percepção não apenas do que estava
euro-americana. E dois anos depois o seu acontecendo com a National Geographic
texto publicado em Language and the em particular – seu evolucionismo social,
politics of emotion se chama “emoções no fundo, é uma espécie de imperialismo
generificadas” (engendered emotions). amistoso – mas tornou claro que a revista
Isto sugere algum tipo de continuidade? não estava questionando algumas noções
Porque neste texto a temática do poder em básicas sobre desigualdade e poder no
relação com o gênero é muito forte. mundo.
Mas o meu interesse pela ética
Bem, sim. Naquela época, na década militarista de fato remonta à época da
de 80, eu estava trabalhando na State Guerra do Vietnã. Ver essas imagens na
University of New York at Binghamton televisão e ter uma percepção gráfica de
e havia um grupo de feministas ma- como a guerra é horrível. Meu pai foi do
ravilhoso, muito forte, como Margaret exército. Ele lutou na Segunda Guerra
Conkey, Joan Smith e Jane Collins, com e foi também um veterano da Guerra da
quem mantive muitas conversas. Acho Coreia e, em seguida, ficou muitos anos
que foi daí que veio esse movimento tão na reserva. Então, durante a Guerra do
forte de trazer isso inteiramente para a Vietnã, uma vez por mês ele vestia o
linha de frente. uniforme e ia para o seu posto de serviço.
Minha mãe era uma pessoa crítica em
MCC: No seu livro Reading national relação à guerra, com base na teoria da
geographic há uma passagem na qual guerra, mas basicamente tínhamos essa
você discute a reação de uma professora discussão em casa sobre se essa guerra
norte-americana às preocupações de seus era uma boa ideia. Acho que parte do
alunos quanto ao sofrimento das crianças meu interesse pelo militarismo vem
no Iraque devido à guerra. A professora desse início precoce. Mas nunca levei
diz a eles que não se preocupem porque isso adiante porque não parecia ser um
isto está acontecendo muito longe e que objeto de estudo: parecia mais objeto de
antropologia com emoção 221

uma ansiedade enorme (risada). E um Sim! Exatamente isso (risada). A prin-


objeto de trabalho político. De algum cípio não havia ninguém com quem
modo, eu ainda não havia integrado isso conversar. Havia alguns sociólogos, mas
plenamente em minha concepção de que tendiam a ser sociólogos militares
antropologia, de que há uma política da que estavam trabalhando, e que muitas
emoção. Mas é possível estudar de fato vezes eram até mesmo financiados pelo
algo que está no âmago de uma coisa exército americano. Eles muitas vezes
que, no mundo contemporâneo, é ainda fazem esse trabalho.
realmente indizível?
Uma crítica ao militarismo nos Es- MCC: No seu trabalho com Matthew
tados Unidos ainda é, hoje, indizível. Gutmann sobre veteranos de guerra e
Mesmo hoje, acho que falo de um lugar o diagnóstico psiquiátrico da síndrome
situado nas margens da vida política. do estresse pós-traumático, você dis-
O que digo é quase incompreensível para cute o trabalho moral feito na esfera
muitas pessoas. “O que há com você?” pública norte-americana pela recusa
[risada]. Então eu acho que… eu só me dos soldados veteranos em aceitar este
aproximei disso mais tarde. Eu estava diagnóstico, sugerindo, em vez disso, um
na Carolina do Norte (me transferi para entendimento deste sofrimento como algo
a UNC, University of North Carolina normal em situações que poderiam, elas
at Chapel Hill) e disse: “Acho que meu mesmas, ser descritas como patológicas.
próximo projeto aqui, bem, quero estudar Existe alguma relação entre esta forma
os militares”. Era o fim da Guerra Fria, de interpretar o sofrimento dos solda-
em meados dos anos 90. Parecia que a dos proposto pelo movimento IVAW e o
guerra havia terminado, mas eu percebia conceito de “micropolítica das emoções”
que não: ainda havia esse imenso aparato discutido em Language and the politics
militar. Por isso comecei meu projeto lá. of emotion?
Fort Bragg fica a uma hora e meia do meu
escritório em Chapel Hill. A base estava Com certeza. Nunca parei de procurar
bem ali e, da primeira vez em que a vi, as linguagens emocionais, certo? Então,
eu disse: “Poxa! Ok. É isso que eu tenho com este projeto sobre os veteranos, mas
que fazer ”. Era um entre mil lugares também com o projeto sobre o carro, es-
existentes na paisagem americana que tive interessada na política das emoções,
são invisíveis para a maioria das pessoas: definitivamente a noção de que há uma
esta rede de bases militares em que a disputa em torno de quem detém o direito
preparação para a guerra continua dia de nomear estas emoções, o que se quer
a dia. Então eu disse: “Quero entender dizer quando se tem uma reação emocio-
isso”. A parte oculta e rotinizada disso nal à guerra. E existe algum lugar mais
tudo. Oculta e rotinizada. A reprodução importante para o Estado estar envolvido?
institucional rotinizada. É gigantesco: o Então, há financiamentos enormes para
orçamento anual do Exército americano a pesquisa sobre a síndrome do estresse
é de 1 trilhão de dólares. Inclui fontes pós-traumático e não dá para não encarar
variadas em meio aos gastos federais. isso como uma tentativa, no nível macro,
de estruturar a discussão sobre a política
SD: Impressionante. Então você tinha das emoções associadas com o ir para a
dois problemas para resolver: o militaris- guerra e a ideia de que estas são “feridas
mo na antropologia e o militarismo como de guerra”, de que são feridas psiquiá-
o assunto de uma nação. tricas. Quero dizer, os soldados também
222 ENTREVISTA

definiram isto como uma agenda, porque Estou agora mesmo escrevendo um texto
não querem que isso seja ignorado, certo? sobre a moral da guerra para um volume
Mesmo que tenha sido um movimento sobre etnologia e moral e voltei àquele
dos veteranos da época da Guerra do texto de 1986 (que também é um dos
Vietnã que conseguiu que esta síndrome capítulos de Unnatural emotions). E lá
fosse reconhecida, que fez com que essas havia uma discussão sobre moral. Mas
feridas psíquicas fossem reconhecidas, a me lembrei desta ideia sobre as contra-
ideia de que você não está se fingindo dições, como você disse. Moral, por um
de doente... O estrago feito pela guerra lado, é a antítese da natureza primeva,
nem sempre é físico. Então, essa foi uma física, quase impulsiva das emoções,
conquista de um movimento político. Por certo? Por outro lado, é a fonte do valor.
outro lado, ver em seguida a forma como A racionalidade técnica do cognitivo é
isso esvaziou a dimensão política da dis- destituída de qualquer sentido moral.
cussão sobre a guerra é o que o IVAW está É preciso aquele senso de indignação
questionando. Eles são dissidentes de um justificada ou de compaixão ou do que
movimento mais amplo em favor da defi- quer que seja para tornar morais, por
nição da síndrome do estresse pós-trau- sua vez, as capacidades humanas. Então,
mático como uma ferida psiquiátrica e fim esta tensão sempre esteve ali.
da história, em oposição a fazer com que
esta síndrome levante as questões morais MCC: Enquanto uma antropóloga norte-
e políticas que eles sentem, no fundo da americana que já participou de processos
alma, que são o que está em jogo; que eles de avaliação de instituições acadêmicas
participaram de coisas horríveis e que, portuguesas, o que você destacaria como
entre outras coisas, há aspectos morais traços específicos das cenas antropológi-
com os quais eles nunca poderão fazer as cas lusófonas?
pazes; quem eles mataram ou quem eles
viram ser morto. Isto não inclui apenas Eu só estive lá por alguns dias, em en-
civis, mas seus próprios amigos e outros contros e conversas com antropólogos
temas, como a culpa e a ansiedade quanto portugueses. Mas o que realmente me
a se fizeram ou não o suficiente. Parte impressionou nesta avaliação externa foi
disso é incentivada pela noção de que seu a ideia de que há um tipo de antropologia
dever básico como soldado é para com os de enorme energia colaborativa. Se você
seus companheiros de armas, e parte da examinar os periódicos de antropologia
armadilha emocional que há aí vem do americanos, você vai ver que a norma
treinamento básico em torno da ideia de ainda é a autoria individual. Em geral,
que, se alguma coisa dá errado, a culpa as disciplinas, os financiadores nos
é sua. Você tem que assumir uma parte Estados Unidos estão há anos tentando
da responsabilidade por não ter salvo a incentivar o trabalho em colaboração, em
vida do homem a seu lado. Vocês todos equipe, interdisciplinar, mas, conforme
são enviados pelo Estado para fazer este você mencionou, realmente as barreiras
trabalho de invadir outro Estado cuja entre as disciplinas são tão fortes e tão
relação com você era... naturalizadas que ainda é difícil ver esse
processo deslanchando. Quero dizer, isso
SD: Em seus trabalhos, de que forma tem que acontecer, mas... Acho que os
você vê a conexão entre “moralidade” e portugueses já avançaram mais nisso.
“emoções” (às vezes em relação, às vezes Talvez seja a estrutura da instituição.
em oposição, por assim dizer)? Neste instituto de pesquisa que eu ava-
antropologia com emoção 223

liei, eles trazem todos esses pesquisado- salários subiram também e todos par-
res de outras disciplinas, têm dinheiro ticipamos desse processo. Há cada vez
e montam os projetos de determinadas mais e mais trabalho a ser feito no lado
maneiras. Não sei exatamente como financeiro das coisas com o qual você tem
isso acontece, mas parece ser mais bem que se envolver ou se sente compelido a
sucedido em derrubar as fronteiras. Mas se envolver. É preciso conseguir dinheiro,
posso estar errada (riso). seja junto às estruturas mais tradicionais,
como a National Science Foundation e as
MCC: No Brasil, a sociologia e a antropo- fontes do governo federal ou fundações
logia muitas vezes estão juntas na forma como a Wenner Gren Foundation, seja
como os departamentos e os programas de junto a essas novas fontes que estão
pós-graduação são constituídos. Esse mo- surgindo, tais como doações particulares
vimento às vezes aparece em uma espécie ou corporações privadas. E a crítica está
de emparelhamento das abordagens obviamente bem desenvolvida: a ideia de
sociológica e antropológica em relação que há uma mercantilização da univer-
ao mesmo objeto de estudo, ao contrário sidade. E que o trabalho interdisciplinar,
do que acontece nos Estados Unidos, em na medida em que ele vende bem junto
que as fronteiras disciplinares são muito a esses novos patrocinadores, tem essa
mais claras. Como você vê a relação – se estrutura de isenção de impostos, creio.
é que ela existe – entre a antropologia e Acho que nem sempre é assim. Mas
a sociologia das emoções? ainda temos essas tradições diferentes
de disciplinas mais ou menos críticas,
Quando eu era membro da ISRE, a So- de que a antropologia é algo meio
ciedade Internacional de Pesquisa sobre inócuo. Acho que podemos dizer que a
Emoções, havia sociólogos, psicólogos, antropologia e a ciência política não têm
antropólogos e historiadores envolvidos – necessariamente a mesma orientação cé-
somente europeus e americanos (não sei tica em relação ao Estado: um ceticismo
se ainda é assim). Mas não tenho tido profundo versus a questão de, você sabe,
muito contato com eles. Mas na época “Diga-nos como ajudar. Onde assino?”.
havia ótimas conversas com os sociólogos Acho que isso é um estereótipo, mas
e... era um tipo de sociologia histórica e ainda reconhecemos essas tendências
microssociologia que eu achava muito diferentes e isso às vezes é variável, às
interessante e apropriada. vezes útil na orientação interdisciplinar:
“Vamos nos juntar pra fazer isso, pode-
SD: Qual é a importância da pesquisa in- mos cada um trabalhar em um pedaço”.
terdisciplinar segundo o estilo antigo nos Não tenho certeza quanto ao resultado
dias de hoje, com todas as transformações final. O resultado final é às vezes uma
no campo da ciência e da produção de espécie de solução de compromisso.
conhecimento? Há esta urgência em se
conseguir verbas de pesquisa. O que isto SD: Na sua opinião, qual poderia ser o
significa para a antropologia? papel principal da antropologia no futuro
próximo?
Isto é perturbador no sentido de que as
universidades cada vez mais buscam Bem, acho que a antropologia ainda
financiamentos junto à iniciativa priva- esboça de forma única este quadro con-
da. O custo de uma universidade e as textualizado que está sempre recuando
anuidades aumentaram tanto... mas os um passo e dizendo que há algo maior
224 ENTREVISTA

e mais sistêmico em jogo. Há algo que que está em preparação para o décimo
não podemos ver – cultural, histórica aniversário da reação militar ao 11 de
ou politicamente – com o rosto colado Setembro. Reunimos cerca de 20 pesqui­
no presente, nas poderosas instituições sadores de diversas disciplinas e tenta-
que estruturam o conhecimento. Somos mos dizer “Vamos pesquisar a guerra
capazes de, em alguma medida, fazer inteira. O que sabemos sobre os custos
esse trabalho de crítica. Isto nos vem financeiros, humanos, políticos, so-
mais prontamente e temos diversos ciais?”. O relatório recebeu um bocado
instrumentos de crítica que nem todas de atenção da mídia e temos um website
as outras disciplinas têm. E, mais uma muito elaborado (www.costsofwar.org) à
vez, o ponto é de certa forma questionar disposição de jornalistas e outras pessoas
essas fronteiras que construímos em tor- para pesquisarem quando escreverem
no das disciplinas e dos departamentos suas histórias sobre as guerras. Espero
ao invés de construí-las em torno de um que todos alcancem uma visão mais
projeto, o que poderia ser igualmente crítica e integral diante do público, ao
vitalizante, desenvolvido e rico metodo- invés de apenas medo e celebração do
logicamente. heroísmo.

SD: Na sua opinião, qual o espaço da SD: Como você lida com este sentimento,
antropologia no Watson Institute? esta emoção? Porque este tema é inega-
velmente muito delicado.
O Watson Institute é um centro inter-
disciplinar. Acho que o Watson Institute Bem, você sabe, “trabalhe duro e siga em
é muito particular. Muitas pessoas que frente”. Que emoções? (riso)
vêm de outros centros de estudos inter-
nacionais apontam isto: “Nossa! Vocês SD: Alguém tem que fazer isso, certo?
têm tantos antropólogos aqui!”. E temos
historiadores; acabamos de contratar um Certo. Esta é a minha teoria.
historiador este ano como um de nossos
principais pesquisadores. Acho que, de
certa forma, essa é a “marca Watson”,
embora eu deteste nos transformar em
uma mercadoria. É a nossa marca no
mercado intelectual. Estou lá há oito
anos.

SD: Você acha que no Watson Institute


você tem liberdade para pensar como
uma antropóloga, a liberdade intelectual
de fazer críticas?

Mas lá, no Watson Institute, eu realmente


encontro espaço para “pensar ” como
uma antropóloga e olhar criticamente.
Desenvolvi um projeto lá com Neta
Crawford, da Boston University, chama-
do “Os Custos do Projeto de Guerra”,
Mana. Estudos de Antropologia Social

ERRATA

No volume 18 n 1, pp. 213–224: Entrevista com Catherine Lutz, foram feitas as


seguintes alterações:

Autoria do texto introdutório à entrevista: Maria Claudia Coelho, Susana Durão e


Adriana Vianna.

A transcrição da entrevista foi feita por Thaddeus Blanchette e sua tradução por Maria
Claudia Coelho.

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