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RODOLFO VIANA PEREIRA

BERNARDO GONÇALVES FERNANDES


COORDENADORES

LUCAS AZEVEDO PAULINO


ALÉXIA DUARTE TORRES
ORGANIZADORES

30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO

8818
CIDADÃ
DEBATES EM
SUA HOMENAGEM

20
A PROMESSA DEMOCRÁTICA: UM
BALANÇO DAS PROPOSTAS DE
INICIATIVA POPULAR LEGISLATIVA
NA ASSEMBLEIA NACIONAL
CONSTITUINTE E NOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO DE 1988
Suellen Moura1
Thiago Burckhart2

Resumo
A Constituição cidadã de 1988 marcou história no constitucionalismo
brasileiro por ter sido redigida com uma expressiva participação popular reali-
zada por diversos instrumentos. A promessa democrática resultante deste
processo encontrou uma série de entraves, problemas e dificuldades ao longo
dos 30 anos de sua implementação. A falta de confiança nas instituições
políticas é um dos elementos que marcam a crise da democracia representa-
tiva e demonstra as contradições da promessa democrática. Nesse sentido,
o objetivo deste capítulo é de realizar um balanço da participação popular,
por meio de iniciativas legislativas, na Constituinte de 1988 e no período de

1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD/


UFSC. Bolsista CAPES. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito
Constitucional. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pesquisadora no Grupo de
Pesquisa em Constitucionalismo Político – PPGD/UFSC. Contato: spmoura14@gmail.com.

2 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa


Catarina, UFSC. Bolsista CAPES. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político,
GConst-UFSC. Pesquisador do Centro Didattico Euroamericano Sulle Politiche Costituzionali (Cedeuam,
Itália-Brasil). Email: thiago.burckhart@outlook.com
MOURA,Suellen; BURCKHART, Thiago. A promessa democrática um balanço das propostas de iniciativa popular legislativa na
assembleia nacional constituinte e nos 30 anos da constituição de 1988. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; FERNANDES, Bernardo
Gonçalves (coord.). PAULINO, Lucas Azevedo; Duarte, Alexia (org.). 30 anos da constituição cidadã: debates em sua homenagem. Belo
Horizonte: IDDE, 2018. p. 259-284. Disponível em: https://doi.org/10.32445/978856713409311
vigência da Constituição de 1988, apontando as potencialidade e fragilidades
político-institucionais desses processos. Conclui-se, em síntese, que há a
necessidade de construir uma cultura política essencialmente democrática no
país. O capítulo divide-se em duas partes: I – A Constituinte e a construção
da promessa democrática; II – Iniciativa popular e direito de participação.

Introdução
O ideário democrático passou a fazer parte mais consistentemente do discurso
político logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, a democracia contem-
porânea passou a ser gestada logo após o fim da ditadura militar, tendo por um de
seus maiores símbolos a Assembleia Nacional Constituinte que resultou na elaboração
da Constituição de 1988. A Assembleia Nacional Constituinte, portanto, se insere na
dinâmica de construção política e jurídica de uma promessa democrática, assentada
numa concepção substancial de democracia que corresponde à positivação e efetivação
de novos direitos, tendo sido reconhecida a participação popular como elemento
fundamente da soberania popular.

Nesse sentido, a Assembleia Nacional Constituinte contou com a participação


de grande parte da sociedade civil organizada, no qual a população pôde participar, e
interferir no jogo político, de forma direta por meio da elaboração de emendas popu-
lares. A promessa democrática densificou-se com a possibilidade de iniciativa popular
de leis prevista no então novo texto constitucional, no qual a população também
pode redigir propostas de lei e encaminhar para os respectivos órgãos legislativos
para trâmite interno e deliberação. Ao longo de 30 anos de vigência da Constituição,
entretanto, a participação popular por meio deste instrumento encontrou uma série de
entraves político-institucionais, que resultou no dado de que apenas 4 projetos foram
aprovados nas instâncias políticas nacionais, em processos contudo relativamente
contraditórios, o que demonstra uma fragilidade político-institucional para lidar com
a participação cidadã.

Este capítulo tem por objetivo fornecer subsídios teóricos pare refletir sobre a
construção da promessa democrática no Brasil por meio da Constituição de 1988.
Para tanto, será realizado um balanço da participação popular realizada por meio
das propostas de iniciativa popular legislativas no âmbito da Assembleia Nacional
Constituinte e ao longo dos 30 anos de vigência do texto constitucional. O estudo

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insere-se no campo do direito constitucional, colmando elementos de história cons-
titucional e de sociologia jurídica e divide-se em duas partes: I – A Constituinte e a
construção da promessa democrática; II – Iniciativa popular e direito de participação.

1. A CONSTITUINTE E A CONSTRUÇÃO DA PROMESSA


DEMOCRÁTICA
Historiadores, cientistas políticos e antropólogos da política dos mais variados
espectros políticos concordam que a segunda metade do século XX foi marcada pela
ascensão de um ideal: a democracia3. Desde então, países de todo o globo passaram-se
a autodenominarem-se como “democráticos” em seus textos constitucionais. A demo-
cracia, então, deixa de ser uma categoria pejorativa, para se posicionar na centralidade
do debate político-institucional. A construção das democracias, nesse contexto, deu-se
em dois momentos. O primeiro deles, a partir da elaboração de novos textos constitu-
cionais que previam formalmente a democracia enquanto regime político. E o segundo
a partir de uma construção paulatina no campo político-cultural, na medida em que a
democracia também pode ser compreendida como uma cultura. Essas duas dimensões,
todavia, são interdependentes.

O historiador britânico Eric Hobsbawn aponta que a democracia tornou-se uma


palavra pela qual demonstra “entusiasmo”. De acordo com ele, “hoje [...] é impossível
encontrar, com exclusão de algumas teocracias islâmicas e monarquias hereditárias
asiáticas, qualquer regime que não renda homenagens oficiais, constitucionais e
editoriais a assembleias e presidentes pluralmente eleitos”, de modo que os Estados
que não possuem esse atributo são oficialmente considerados “inferiores” aos outros4.
Pela primeira vez na história, a “República Democrática, constitucional, representa-
tiva e moderna” torna-se verdadeiramente um “modelo” de Estado e regime político
dominante5.

3 Para aprofundamentos, ver: SARTORI, Giovanni. Democrazia: cosa è? Roma: Rizzoli Libri, 2006; MIGUEL,
Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora UNESP, 2014; DAHL,
Robert. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora da UnB, 2001; PATEMAN, Carole.
Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

4 HOBSBAWN, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 97.

5 “Com efeito, na oratória política do nosso tempo, que em sua quase totalidade pode ser descrita, nas
palavras do grande Leviatã de Thomas Hobbes, como “discurso insignificante”, o termo “democracia”
tem como significado esse modelo-padrão de Estado; e isso significa um Estado constitucional, que
oferece a garantia do império da lei e de vários direitos e liberdades civis e políticas e é governado

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Em efeito, o processo de difusão universal do ideal “democrático” plasmou-se na
produção de novos textos constitucionais em diversas partes do mundo6–inclusive em
países que não tinham tradição de Constituições escritas, como é o case de vários
Estados asiáticos. A Constituição passou a ser dotada de um valor simbólico, para além
de sua conotação restritamente político-jurídica7. Isso porque o processo elaborativo
das novas Constituições8, por meio de Assembleias Constituintes participativas – pelo
menos nos países latino-americanos e europeus – se posicionam no cerne do redesenho
dos respectivos Estados, da reconfiguração dos direitos fundamentais numa dimensão
progressiva e da inclusão do ideário democrático como promessa, potencialidade e
possibilidade.

1.1. A Constituinte de 87-88 como ressignificação do campo Político no


Brasil: participação e cidadania
Nesse sentido, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 pode ser
compreendida como o símbolo do processo de ressignificação da política tanto na
sua dimensão institucional, quanto no campo político como um todo 9. Isso porque
tratou-se do processo constituinte com a maior participação popular da história do
constitucionalismo brasileiro. Os trabalhos iniciaram no dia 1º de fevereiro de 1987. No
discurso de instalação, realizado pelo Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal,
José Carlos Moreira Alves, relata-se que “[...] em momentos como este, reacendem-se

por autoridades, que devem necessariamente incluir assembléias representativas, eleitas por sufrágio
universal e por maiorias numéricas entre todos os cidadãos, em eleições realizadas a intervalos regulares
entre candidatos e/ou organizações que competem entre si. Os historiadores e os cientistas políticos
podem recordar-nos, e com razão, de que esse não é o significado original de democracia e de que com
certeza não é o único”. HOBSBAWN, Eric. Globalização, democracia e terrorismo, p. 98.

6 Para aprofundamentos, ver: ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutionalism. Yale Law School,
1997.

7 HÄBERLE, Peter. Teoría de la Constitución como ciencia de la cultura. Madrid: Tecnos, 2000.

8 Para uma análise crítica, ver: ELSTER, Jon. Forças e mecanismos no processo de elaboração da
constituição. In BIGONHA, Antonio Carlos Alpino; MOREIRA, Luiz (orgs). Limites do Controle de
Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

9 Nesse sentido, utiliza-se a distinção realizada por Chantal Mouffe entre “político” e “política”. De acordo
com a autora, o termo “político” se refere a uma dimensão maior, marcada pelas relações de poder em
uma sociedade. Já o termo “política” designa a política institucional realizada no âmbito de cada Estado.
Cfe. MOUFFE, Chantal. El retorno de lo político: comunidade, ciudadanía, pluralismo, democracia radical.
Buenos Aires: Paidós, 1999.

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Thiago Burckhart
as esperanças e, de certa forma, devaneios utópicos”10 de um povo que havia recém-
-saído de um regime militar ditatorial e que exigia a concretização da democracia e
da cidadania enquanto ideais a serem preservados e fomentados por um novo texto
constitucional, fundante de um novo Estado11.

A Assembleia Nacional Constituinte, portanto, não pode ser compreendida como


uma medida política “ofertada” à sociedade brasileira por alguns parlamentares compro-
metidos com a redemocratização do país. A decisão de convocação da Assembleia
respondeu a um amplo movimento social, que recolheu experiências e iniciativas por
todo o país, mobilizando entidades e pessoas as mais diversas12. Trata-se da primeira
vez na história do país em que a produção de uma Constituição propiciou uma oportu-
nidade inédita de participação política ao povo brasileiro, haja vista que “em nenhuma
das constituições brasileiras anteriores houve a participação da sociedade como na
elaboração da Constituição de 1988”13.

Nesse sentido, João Baptista Herkenhoff afirma que a convocação e funciona-


mento da Constituinte foram uma “vitória da opinião pública”. Isso porque houve em
todo o território nacional um grande esforço de participação popular, “não apenas
antes e durante a elaboração da Constituição Federal, como também antes e durante
o processo de votação das Constituições estaduais”. Nas palavras do autor, esse
período “foi riquíssimo para o crescimento da consciência política do povo brasileiro”14,

10 ALVES, José Carlos Moreira. Discurso de instalação da Assembleia Nacional Constituinte. Revista
Ciência Jurídica, v. 3, n. 26, p. 33-39, mar/abr. 1989, p. 08.

11 O período anterior à abertura democrática e à instauração da Assembleia Nacional Constituinte pode


ser entendido como “período de crise”, assim “A crise profunda, em que se debatia o Estado brasileiro,
nas décadas de setenta e oitenta, tinha sua origem na ruptura das tendências populares para um regime
democrático de conteúdo social, que se delineava fortemente sob a Constituição de 1946. Ao opor-se a
essa tendência, o regime instaurado em 1964 provocou grave crise de legitimidade, ao impor um sistema
constitucional desvinculado da fonte originária do poder, que é o povo. As constituições daí resultantes,
por consubstanciarem uma ordenação autoritária, romperam o sistema de equilíbrio, ou seja: a) equilíbrio
entre o poder estatal e os direitos fundamentais do homem; b) equilíbrio entre poderes, especialmente
entre os poderes legislativo e executivo; c) equilíbrio entre o poder central e os poderes regionais e
locais.” SILVA, José Afonso da. O processo de formação da Constituição de 1988. In: LIMA, João Alberto
de Oliveira. A gênese do texto da Constituição de 1988. Brasília: Senado Federal, 2013, p. XX.

12 VERSIANI, Maria Helena. Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão. Revista Democracia Viva, n.
40, setembro de 2008.

13 SENADO FEDERAL. Jornal da Constituinte. Brasília, de 29 de outubro a 8 de novembro de 2013, p. 01.

14 HERKENHOFF, João Baptista. Gênese dos Direitos Humanos. 2. ed. Aparecida, SP: Santuário, 2002.

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que pôde – pela primeira vez na história do país – participar efetivamente e em de um
processo constituinte15.

O processo de escrita da nova Constituição contou, portanto, com a participação


de uma série de movimentos sociais que tiveram, em grande medida, suas pautas
reivindicativas atendidas pelo novo texto constitucional, dessa forma:

O movimento cívico que conduziu aos trabalhos da Assembleia Nacional


Constituinte, há mais de vinte anos, foi o grande marco democrático da
história recente do país. Em seus corredores e galerias, o Congresso
recebeu a presença ativa da população, que, nas manifestações de rua
e em seus movimentos sociais, despertada para as possibilidades de
realização propiciadas pela democracia.16

Como assinala José Murilo de Carvalho, o esforço de reconstrução do país posi-


cionou a palavra “cidadania” na centralidade dos debates políticos, de modo que “a
cidadania, literalmente, caiu na boca do povo”17, substituindo o próprio povo na retórica
política. Havia, naquele momento, um genuíno entusiasmo em prol da positivação de
novos direitos e garantias, como muito bem descreve o documentário intitulado “Cartas
ao País dos Sonhos” organizado pela TV Senado e dirigido por Renata de Paula, e que
analisa a participação popular na Assembleia Constituinte18.

Logo no dia 1º de fevereiro de 1987, quando da instauração da Constituinte, cerca


de 50 mil pessoas ocuparam os gramados de Brasília. Organizados principalmente pelas
centrais sindicais e pelo movimento sem-terra, as milhares de pessoas se uniam em
torno de um extenso rol de reivindicações, dentre elas, a reforma agrária, liberdade e
autonomia sindical, salário mínimo real, revogação das leis de exceção (lei de Greve, lei
de Imprensa, lei de Segurança Nacional), democratização dos meios de comunicação,

15 “Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de
trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de
estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e
autenticidade social do texto que ora passa a vigorar.” Trecho do discurso de Ulysses Guimarães na
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988.

16 CHINAGLIA, Arlindo. A reconquista da cidadania. In. BACKES, Ana Paula; AZEVEDO, Débora Bithiah de. A
sociedade no parlamento: imagens da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Brasília: Câmara
dos Deputados, 2008, p. 09.

17 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 7.

18 DE PAULA, Regina. Documentário Cartas ao País dos Sonhos. Brasília: TV Senado, 2013.

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estabilidade de emprego, ensino público e gratuito em todos os níveis, e, dentre outras,
eleição direta para Presidente da República19.

Tratou-se de uma mobilização que abarcou inúmeros grupos sociais (mulheres,


povos indígenas, movimentos em prol das crianças e adolescentes, movimentos em prol
dos direitos dos idosos, movimentos em prol dos direitos de deficientes físicos, dentre
outros) que puderam entrar em diálogo direto com as representações que estavam
na Assembleia Constituinte e, a partir disso, reivindicar o reconhecimento político e a
projeção jurídica de suas causas. Observa-se, portanto, uma abertura da participação
popular logo após a dinâmica de queda de um regime autoritário.

Entre novembro de 1986 e setembro de 1988 é possível de se identificar 225


eventos diferentes de ações coletivas relacionadas ao processo constituinte, ou seja,
uma média mensal de 9,78 mobilizações sociais em torno da ANC durante seu funciona-
mento20. Esses dados permitem conceber a dinâmica de participação ao longo da ANC
e o modo pelo qual a sociedade buscava projetar juridicamente uma série de anseios
sociais negados nos últimos vinte anos. Uma dinâmica das mobilizações representada
por meio de gráfico é possível de ser analisada abaixo21:

19 Paráfrase de BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte


de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular. Dissertação de Mestrado em
Sociologia. Universidade de São Paulo, 2011.

20 BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988:


entre a política institucional e a participação popular, Op. Cit., p. 80.

21 Gráfico extraído de: BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte
de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular, Op. Cit., p. 82.

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O cenário político de abertura para manifestações e participação social ao longo da
Constituinte “não foi constante e tampouco uniforme”. Luiz Coelho Brandão aponta que
os obstáculos à mobilização não foram poucos: o palco principal era o inóspito planalto
central; a mobilização social após a ditadura militar foram marcadas por momentos de
abertura e de fechamento, tendo em vista que ainda não havia ocorrido uma profunda
ruptura com a ordem anterior. Apesar do crescimento das mobilizações dos últimos
anos da ditadura, Coelho Brandão afirma que ainda era incipiente e baixo o grau de
organização de grande parte dos movimentos sociais que surgiram nas periferias das
principais cidades em torno da luta e dos processos de reivindicação pelas condições
básicas de existência, que compunha um vasto leque de direitos sociais. Assim, as
pautas reivindicativas “de grupos temáticos que apenas começavam a atuar como
movimentos nacionais ainda não estavam amadurecidas interna e externamente; com
isso, a identidade e os quadros interpretativos de muitos movimentos ainda estavam
em processo de formação”22.

Como José Afonso da Silva afirma, o processo de elaboração do texto que resultou
na Constituição de 1988 foi permeado por uma dinâmica de embate entre conservadores
e progressistas. Tanto a Comissão Afonso Arinos (Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais) como a Assembleia Nacional Constituinte, como um todo, eram
compostas de maioria conservadora que entraram em constante embate com a minoria
progressista. No entanto, foram produzidos resultados razoavelmente progressistas23
ao longo da Assembleia Constituinte. Os conflitos também se mostraram presentes
nos processos de crise da Constituinte, como foi o caso do “Centrão”, a inatividade
da Comissão e Sistematização em 1987, a interrupção dos trabalhos da Constituinte
entre 18.11.1987 a 28.1.1988, o processo de realização de acordos políticos, dentre
outros24. No entanto, prevaleceu na Assembleia Nacional Constituinte, como resultado,
a elaboração de um documento essencialmente progressista que primou pela cidadania
enquanto fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso II), e pela forma
democrática, inscrita na noção de “Estado democrático de direito” (art. 1º, caput),

22 BRANDÃO, Luis Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988:


entre a política institucional e a participação popular, Op. Cit., p. 81.

23 SILVA, José Afonso da. O processo de formação da Constituição de 1988. In: LIMA, João Alberto de
Oliveira. A gênese do texto da Constituição de 1988. Brasília: Senado Federal, 2013, p. XXIV – XXV.

24 Para aprofundamentos sobre as dinâmicas da Constituinte, bem como sobre o processo de modernização
do direito, ver: KOERNER, Andrei; FREITAS, Lígia Barros de. “O Supremo na Constituinte e a Constituinte no
Supremo”. Lua Nova, São Paulo, 88: 141-184, 2013; e, QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. A modernização do
direito penal brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

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rompendo com o passado recente e assegurando a participação de grande setores da
sociedade em seu procedimento, o que lhe confere ainda mais grau de legitimidade
popular.

Tal participação ocorreu sobretudo por meio das chamadas “emendas populares”25.
Assegurado pelo art. 24 do Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte,
as emendas teriam que ser subscritas por pelo menos trinta mil eleitores, em listas
organizadas por, no mínimo, três entidades associativas legalmente constituídas,
responsáveis pela idoneidade das assinaturas. Ao todo foram recebidas 122 emendas
populares, apresentadas à Comissão de Sistematização. Elas foram marcadas por
uma heterogeneidade temática, variando de termas desde esportes até desarmamento
nuclear, além de uma heterogeneidade de entidades responsáveis, o que demonstra a
pluralidade de atores e perspectivas que tentaram influenciar o processo político na
Constituinte –entidades sindicais, associações profissionais, técnicas, científicas ou
acadêmicas; entidades religiosas; entidades patronais ou empresariais; entidades civis
(defesa dos direitos humanos, consumidor, de minorias, de mulheres, associações de
moradores, entidades estudantis, etc.) e instâncias ou entidades ligadas aos poderes
executivo ou legislativo (associações de municípios, câmaras de vereadores, assem-
bleias legislativas, prefeituras, dentre outros).

Através das emendas populares também foram incluídos mecanismos de parti-


cipação popular na Constituição de 1988. Houveram três emendas populares que
previam a inclusão de iniciativa popular legislativa, que estavam direcionadas para
o próprio desenvolvimento do processo democrático e do exercício da cidadania. As
emendas populares PE00021-1, PE00022-9 e PE00056-3, conduzidas respectivamente
pelo Plenário Pró-Participação Popular de São Paulo, Movimento Gaúcho da Constituinte
e Comitê Pró-Participação Popular na Constituinte de Minas Gerais somaram juntas
379.076 assinaturas.

Das 122 emendas populares formalmente apresentadas, apenas 83 preen-


cheram os requisitos do artigo 24 do RIANC e tramitaram normalmente, contando,
inclusive, com suas defesas em plenário, por representantes das entidades que se
responsabilizaram pela coleta das assinaturas26. Destas emendas, apenas dezenove

25 Para aprofundamento, ver: MICHELS, Carlos. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

26 CARDOSO, Rodrigo Mendes. A iniciativa popular legislativa da Assembleia Nacional Constituinte


ao regime da Constituição de 1988: um balanço. Dissertação de Mestrado em Direito. Pontifícia

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 267


receberam, na Comissão de Sistematização, parecer favorável pela sua aprovação,
total ou parcial, vindo a integrar os dispositivos da Constituição Federal de 1988.
Entre os temas tratados por essas emendas estavam: reforma agrária, saúde pública,
direitos trabalhistas, cooperativismo, livre iniciativa, populações indígenas, ciência
e tecnologia, manutenção de entidades profissionalizantes, e uma série de direitos
coletivos e individuais. As emendas populares que tratavam da inclusão da iniciativa
popular de leis no texto final da Constituição receberam pareceres desfavoráveis na
Comissão de Sistematização, com exceção da emenda PE00063-6, que admitia, entre
seus dispositivos, a iniciativa popular no âmbito municipal.

1.2. Um projeto de país em construção democrática


A Assembleia Nacional Constituinte de 87-88 pode ser compreendida como o
ensaio de um projeto de construção democrática. A história da democracia brasileira
é marcada por um baixo ou baixíssimo nível de participação popular nas decisões
políticas tomadas institucionalmente27, de modo que Bouventura de Sousa Santos
denomina as democracias latino-americanas como de “baixíssima” intensidade28.
Nesse sentido, o processo de democratização do país, que teve a Assembleia Nacional
Constituinte como resultado inexorável, abriu o caminho para novas experimentações
democráticas, dentre elas a participação no bojo deste mesmo processo.

A ANC pode ser entendica, nesse contexto, como a construção de uma promessa
democrática que redefine os limites até então estabelecidos do que era – e do que podia
ser – a democracia e a cidadania. O desenho de Estado estabelecido na Constituição
ampliou a possibilidade efetiva da construção de um novo modelo de sociedade,
baseado e fundado na cidadania. As emendas populares, por terem sido um mecanismo
de participação popular bem sucedido, demonstram empiricamente a vontade popular
por mudanças estruturais na ordem da política estatal, indicado pela homogeneidade
de temáticas incluídas nas propostas recebidas.

Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2011, p. 130.

27 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Op. Cit.

28 Cfe. SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminos da democracia


participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

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Apesar de suas fragilidades, que não foram poucas ao longo de praticamente
dois anos, a ANC foi um passo importante na construção de um projeto democrático
com base cidadã.

2. INICIATIVA POPULAR E DIREITO DE PARTICIPAÇÃO


O constituinte de 88 inseriu a possibilidade de iniciativa popular na Constituição
Federal dentro do título reservado aos direitos fundamentais, no Capítulo IV, cujas
normas regulamentam as condições para o exercício dos direitos políticos (arts. 14 a
17). Esses direitos objetivam disciplinar a participação dos cidadãos na vida política
do país, e compreende um sentido mais amplo do que os atos de votar e ser votado ou,
ainda, de se filiar a partidos políticos: a participação popular integra o pleno exercício
da cidadania e, portanto, constitui pressuposto básico da democracia.29

O princípio constitucional democrático estabelece para a democracia duas


dimensões que estão ligadas às noções de legitimidade e legitimação. A dimensão
substancial (legitimidade) é orientada para a concretização dos direitos fundamentais;
enquanto a dimensão formal (legitimação) diz respeito ao processo de eleição de
representantes, na forma da democracia representativa, e às formas de exercício de
poder que contemplam a participação e o controle popular, na forma de democracia
participativa. A iniciativa popular integra, pois, as formas de exercício da democracia
participativa, na medida em que enuncia que a soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos
da lei, mediante plebiscito, referendo ou iniciativa popular (art. 14, CF/88).

A soberania popular constitui, assim, o fundamento para o exercício de partici-


pação popular. Como salientado por Nadia Urbinati, na soberania pré-democrática
somente a categoria da decisão integrava a definição do poder soberano; em uma
democracia, o processo da tomada de decisão tem uma inevitável relação com a
opinião do povo. Assim, “a tarefa de procedimentos democráticos se desdobra em
duas: permitir aos cidadãos jogar o jogo político e participar, direta e indiretamente, da
tomada de decisões, e exigir e confiar que o jogo é honesto, pois se desenrola de acordo
com regras e em condições iguais para todos, a todos tratando de forma igualitária.”30

29 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 186.

30 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 06.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 269


Uma atribuição de soberania popular consiste em uma questão de juízo. Ou seja,
é preciso avaliar quais são as decisões que contam no sistema constitucional e qual
a relevância dessas decisões, desenhando hipóteses dos efeitos dessas decisões
nas práticas constitucionais, especialmente porque são aceitáveis pela maioria dos
membros da sociedade. Nesse sentido, direitos políticos implicam uma ação coletiva,
como frisava Karl Marx, não só pela forma que são estabelecidos e garantidos, mas
também pela forma em que são entendidos e exercidos. Logo, é evidente que há um
elemento coletivo na forma em que são entendidos os direitos do cidadão, sendo “el
derecho a participar” o termo utilizado para descrevê-lo.31

2.1. Direito de participação: o direito dos direitos


De acordo com Jeremy Waldron, “participar é compartilhar ou participar de uma
ação, algo que necessariamente supõe que um não é a única pessoa que compartilha ou
participa na atividade em questão”32. Compartilhar na participação se refere, então, “ao
fato de que todo indivíduo reclama o direito de participar em um governo da sociedade,
na mesma medida em que participam o resto dos indivíduos”. Ou seja, “a forma em que
se realiza essa demanda – um direito de participação – reconhece por si mesma que
a sua não é a única voz na sociedade, que referida voz não deveria contar mais que a
voz de qualquer outro portador de direitos no processo político”.33

Ao discorrer sobre esse direito, o autor elucida a participação como o direito dos
direitos, não exatamente por ser um direito moralmente superior, mas, precisamente,
porque consiste em um direito apropriado no caso em que os indivíduos divergem
sobre os direitos que possuem. Aludindo à concepção de Karl Marx sobre ser o direito
de participação um direito negativo34, o autor traça uma via alternativa de encarar esse

31 WALDRON, Jeremy. Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 281, (tradução nossa).

32 Ibidem, p. 281.

33 Ibidem, p. 281.

34 Karl Marx dividiu direitos do homem de direitos do cidadão, estabelecendo, em síntese, que o primeiro é
o direito do homem egoísta, separado dos demais homens da sociedade e, o segundo, direitos políticos
que só podem ser exercidos em comunidade com outros homens. Nesse sentido, Waldron defende que
o direito de participação não constitui um direito negativo, pois o direito ao voto, por exemplo, não pode
ser garantido pela legislação – esta apenas impõe limites ao governo executivo. Ainda, também não
consiste em uma liberdade negativa para expressar uma preferência por um político favorito. O direito
ao voto vai além e requer muito mais que uma abstenção; requer instituições e operações de sistemas
administrativos, mão-de-obra, recursos, pessoal para executar ações do governo, etc. WALDRON, Jeremy.
Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 279, (tradução nossa).

270 Suellen Moura


Thiago Burckhart
direito, considerando sua convergência para um direito positivo. Ora, “se os indivíduos
possuem deveres de cooperação em sociedade, se esses deveres são melhor cumpridos
quando dirigidos pelo Estado ao invés de individualmente e se os deveres dos indivíduos
são os que orquestram a máquina do governo, então os indivíduos possuem o direito
de decidir sobre os mecanismos de decisão que os controlam.”35

Os direitos políticos implicam, assim, em uma ação coletiva, em que o elemento


popular deve ser decisivo e não apenas um elemento democrático em um regime misto.
Em um viés de justiça comparativa, o direito de participação deve ser avaliado por uma
descrição do que está em jogo no exercício do poder político. Waldron exemplifica
com a seguinte situação: um determinado indivíduo possui um sentido de justiça e
tem o necessário para participar das decisões em que seus direitos e dos demais
estão em jogo; se este indivíduo é excluído da decisão ele se sentirá menosprezado,
não só porque sua noção de justiça não foi considerada, mas também porque não
foi considerada em relação a direitos seus que estão em jogo.36 Isso quer dizer que
eleger, monitorar, criticar e influenciar de qualquer outra forma os legisladores, e até
mesmo opor-se a eles integra o exercício do direito de participação, de modo que este
indivíduo ou grupo, assim como os demais, deve ser tratado como igual nos assuntos
que afetam seus interesses, seus direitos e suas obrigações.

A democracia, sobretudo quando implementada por eleições e representação, não


pode ignorar o que pensam e dizem os cidadãos quando atuam na sociedade e não
como eleitores, quando não se manifestam por intermédio da decisão (ou seus votos),
mas por meio de sua opinião. Nessa perspectiva, destaca Nadia Urbinati:

Os cidadãos formam suas opiniões e criticam quem detém o poder; sua


expressão de ideias pública e livremente é a condição para a elaboração
e mudança de todas as decisões. Essa é uma forma de participação ou
cidadania ativa na democracia representativa, embora não se converta
diretamente em leis e não possa exercer autoridade. Os cidadãos assim
usam todos os meios de informação e comunicação disponíveis, de
maneira a manifestar sua presença – algo que não é menos valioso

35 Ibidem, p. 280, (tradução nossa).

36 Cf. WALDRON, Jeremy. Derechos y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 285, (tradução nossa).

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 271


que os procedimentos e as instituições, apesar de carecer de poder de
comando.37

Projetos de iniciativa popular têm o condão de incorporar, pois, esse compromisso


democrático de um governo com base na opinião, ou seja, um fórum público que
mantém o poder do estado aberto às críticas, seja porque a lei assim o exige, sob os
olhos do povo, seja porque ele não pertence a ninguém. Assim, considerando que “o
fórum de opinião se destina a difundir informação, checar e monitorar instituições,
expressar dissensão pública e crítica, e observar o que os políticos fazem”38, o direito
de participação constitui, além de um direito fundamental, um instrumento importante
de exercício de cidadania, salutar para o aprimoramento da democracia.

2.2. Projetos de iniciativa popular no Brasil


A Lei 9.709, de 18 de novembro de 1988, disciplina a execução do disposto nos
incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal. A iniciativa popular consiste na
apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, 1%
do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de
0,3 % dos eleitores de cada um deles (art. 13). O projeto de lei de iniciativa popular
deverá circunscrever-se a um só assunto e não poderá ser rejeitado por vício de forma,
cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção
de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação. A Câmara dos
Deputados, verificando o cumprimento das exigências estabelecidas no art. 13 e
respectivos parágrafos, dará seguimento à iniciativa popular, consoante as normas
do Regimento Interno (art. 14).

Observando-se as regras estabelecidas pela respectiva lei, os quatro projetos de


iniciativa popular que se tornaram leis desde 1988 consistem na Lei 8.930/ 1994 – o
caso Daniella Perez; Lei 9.840/1999 – combate à compra de votos; Lei 11.124/2005 –
Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social; e Lei Complementar 135/2010 – a
Lei da Ficha Limpa. Os projetos aprovados no Congresso chegaram ao Legislativo
cumprindo os requisitos exigidos pela lei e ostentavam mais de 1 milhão de assinaturas

37 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 07.

38 Ibidem, p. 07.

272 Suellen Moura


Thiago Burckhart
de cidadãos comuns; contudo, todos foram “adotados” por parlamentares, que se auto
apresentaram como autores.

A Lei 8.930/1994, originalmente a Lei de Crimes Hediondos (8.072, de 1990) foi


apresentada em 09/09/1993, constando no Portal do Senado Federal39 como Projeto
de Lei da Câmara n° 113, de 1994, de autoria da Câmara dos Deputados, iniciativa da
Presidência da República. O nº na origem (PL 4146/1993) consta no portal da Câmara
dos Deputados40, que apresenta o projeto como de autoria do Poder Executivo. Essa lei
dá nova redação ao art. primeiro da Lei 8072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre
os crimes hediondos, nos termos do art. quinto, inciso XLIII, da Constituição Federal,
caracterizando chacina realizada por esquadrão da morte como crime hediondo. O
projeto apresentado nos termos do § 2º do artigo 61 da Constituição Federal para
tramitar como projeto de iniciativa popular, chamado “Daniela Perez ou Gloria Perez”. 41

A Lei originariamente não previa em seu rol o crime de homicídio qualificado que
trata de crimes de maior gravidade, cujo delito compreende a incidência da intenção de
matar aliado a algum fator que tornou o crime ainda mais grave (motivo fútil ou torpe,
meios cruéis, acobertamento de outro crime e dificultação de defesa). Em dezembro de
1992, a atriz Daniella Perez, filha da autora de telenovelas Glória Perez, foi brutalmente
assassinada por Guilherme de Pádua, e sua esposa, Paula Nogueira Thomaz. Daniela
era protagonista de uma novela da Rede Globo naquele ano, motivo pelo qual o episódio
causou profunda comoção popular. Além disso, a mãe da atriz denunciou as “regalias”
a que os autores do crime tinham direito, ou seja, mesmo sendo acusados de homicídio
qualificado, os acusados tiveram direito a fiança e, quando condenados, cumpriram
parte da pena em regime semiaberto.

O segundo projeto emplacou a Lei 9.840/1999 que dispõe sobre o combate


à compra de votos. O Projeto de Lei da Câmara n° 45, de 1999 (Nº na origem PL
1517/1999), teve registro de autoria da Câmara dos Deputados com iniciativa do

39 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n. 113, de 1994. Dá nova redação ao art. Primeiro da Lei 8072,
de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. Quinto, inciso XLIII,
da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/
web/atividade/materias/-/materia/22214, Acesso em 01 ago. 2018.

40 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=219155>.


Acesso em: 01 ago. 2018.

41 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=219155..


Acesso em: 01 ago. 2018.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 273


Deputado Federal Albérico Cordeiro (PTB/AL) e outros.42 Transformado na Lei Ordinária
9840/1999, foi apresentado em 18/08/1999 e tinha o objetivo de modificar a Lei nº
9.504, de 30 de setembro de 1997 e alterar dispositivos da Lei nº 4.737, de 15 de
julho de 1965–Código Eleitoral, incluindo a possibilidade de cassação do registro do
candidato que doar, oferecer ou prometer bem ou vantagem pessoal em troca do voto
(crime de compra de votos).43

De acordo com o projeto, a Iniciativa Popular de Lei foi promovida e patrocinada


pela Comissão Brasileira Justiça e Paz–CBJP, da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil – CNBB, com o apoio de mais de trinta entidades nacionais, cujos nomes estão
indicados na Justificativa que acompanha o Projeto. Inúmeras outras entidades, de
caráter nacional, regional ou local, associaram-se à Iniciativa posteriormente ao seu
lançamento. A apresentação de um Projeto de Lei visando combater a corrupção elei-
toral constituiu a terceira etapa de um plano elaborado pela CBJP para dar continuidade
à Campanha da Fraternidade da CNBB de 1996, cujo tema foi “Fraternidade e Política”.
Segundo a CBJP, a reflexão feita durante essa Campanha identificou na “compra” de
votos de eleitores uma das maiores distorções da democracia brasileira, como uma
prática que explora a pobreza e a miséria e desvirtua os resultados eleitorais.44 No
documento de tramitação do projeto, a apresentação realizada pelo então presidente
da Câmara dos Deputados, Michel Temer, assim dispõe:

No dia 10 de agosto de 1 999 recebi na Câmara dos Deputados


representantes da Sociedade Civil – CNBB, OAB, CUT, Força Sindical
entre tantas outras. Elas traziam mais de um milhão de assinaturas
de eleitores em apoio a Projeto de Iniciativa Popular no combate
a corrupção eleitoral. É um dia que trago na memória, marcado não
apenas pelo conteúdo do projeto mas sua forma: a iniciativa popular,
a legítima pressão de diversos setores da sociedade ao lado de seus
representantes no Congresso Nacional. As assinaturas representavam

42 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei da Câmara n° 45, de 1999–LEI DA CORRUPÇÃO ELEITORAL. Disponível
em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/41854>. Acesso em: 01 ago.
2018.

43 CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 1517/1999. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/


fichadetramitacao?idProposicao=38166. Acesso em: 01 ago. 2018.

44 Ibidem, p. 13.

274 Suellen Moura


Thiago Burckhart
cada canto deste País e reforçavam dentro das nossas instituições
políticas os anseios e aspirações do eleitorado.45

O terceiro projeto, que originou a Lei 11.124/2005, do Fundo Nacional de Habitação


de Interesse Social, corresponde ao Projeto de Lei da Câmara n° 36, de 2004 (Nº na
origem: PL 2710/1992), registrado como autoria da Câmara dos Deputados, por inicia-
tiva do Deputado Federal Nilmário Miranda (PT/MG)46. Apresentado em 19/01/1992,
o Projeto de Lei dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social–
SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social–FNHIS e o seu Conselho
Gestor. Conforma informações de tramitação, o projeto apresentado nos termos do
§ 2º do artigo 61 da Constituição Federal, que trata de iniciativa popular de lei, sob
o patrocínio do movimento popular de moradia.47 Foi apresentado à Câmara Federal
pelo Movimento Popular por Moradia, com mais de 1 milhão de assinaturas, no ano de
1992. Entre 1997 e 2001, foi aprovada de maneira unânime em todas as comissões da
Câmara. Entretanto, ainda esperou até 2005 para ser sancionada.48

Por fim, o quarto projeto de lei de inciativa popular corresponde à Lei Complementar
135/2010: a Lei da Ficha Limpa. O Projeto de Lei da Câmara n° 58, de 2010 (comple-
mentar) (Nº na origem: PLP 168/1993) foi registrado como autoria da Câmara dos
Deputados, inciativa do Presidência da República.49 Apresentado em 22/10/1993,
o projeto pretendeu alterar a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que
estabelece, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegi-
bilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses
de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no

45 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Combatendo a corrupção eleitoral. Biblioteca Digital da Câmara dos
Deputados–Centro de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca, Brasília, 1999. Disponível
em: <http://bd.camara.gov.br>.

46 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei da Câmara n° 36, de 2004. Disponível em: <https://www25.senado.leg.
br/web/atividade/materias/-/materia/68396>. Acesso em: 01 ago. 2018.

47 CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 2710/1992. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/


fichadetramitacao?idProposicao=18521. Acesso em: 01 ago. 2018.

48 ANDRÉ, Daniela. Moradia: Proposta de iniciativa popular. Câmara Agência Notícias, 07 ago. 2002.
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/agencia/noticias/21644.html>. Acesso em: 01 ago. 2018.

49 SENADO FEDERAL. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/


materia/96850>. Acesso em: 01 ago. 2018.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 275


exercício do mandato, dispensando o trânsito em julgado da sentença para os casos
que especifica.50

O projeto foi encabeçado por entidades que fazem parte do Movimento de Combate
à Corrupção Eleitoral (MCCE), e mobilizou vários setores da sociedade brasileira, entre
eles, a Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais
(Abramppe), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), organizações não governamentais, sindicatos, associações e confederações
de diversas categorias profissionais, além da Igreja católica. Foram obtidas mais de 1
milhão e 600 mil assinaturas em apoio.51

Dos quatro projetos que se originaram da iniciativa popular, três deles versam
sobre pontos de forte apelo popular: corrupção e penas para crimes hediondos. Dois
desses projetos versaram sobre temas relacionados à corrupção, tema que vem à
mente de grande parte dos brasileiros quando o assunto é política. Esse contexto
demonstra, em alguma medida, que há uma preocupação, em tese, a com a lisura dos
agentes públicos. Se essa preocupação é parte de um projeto maior de criminalização
da própria política já é um assunto que não cabe refletir neste artigo52. Outro projeto
tratou de uma questão penal muito importante e ainda teve respaldo em um episódio
trágico, que causou comoção nacional, além de contar com a iniciativa de uma pessoa
conhecida pelo público, Glória Perez. Por fim, dos quatro projetos, pode-se dizer que o
mais peculiar é o que criou Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que teve
interesse popular por tentar resolver o problema da moradia no país. Ele também foi
o projeto que mais demorou para ser aprovado (14 anos, ao todo).53

Uma nova forma de participação por iniciativa popular tem sido pensada. A coleta
de assinaturas de apoio a projetos de lei de iniciativa popular poderá ser feita pela
Internet, sendo que a mudança está entre as sugestões da comissão especial da

50 CÂMARA DOS DEPUTADOS. PLP 168/1993. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/


fichadetramitacao?idProposicao=21571. Acesso em: 01 ago. 2018.

51 LADEIRA, Beatriz Maria do Nascimento. Compreendendo a Lei da Ficha Limpa. Tribunal Superior Eleitoral,
Revista eletrônica EJE n.4, ano 5. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/
publicacoes/revistas-da-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-4-ano-5/digressoes-sobre-as-doacoes-de-
campanha-oriundas-de-pessoas-juridicas>. Acesso em: 01 ago. 2018.

52 Para aprofundamento: ROSANVALLON, Pierre. La contre-démocratie: la politique à l’âge de la défiance.


Paris, Seuil, 2006.

53 4 PROJETOS de iniciativa popular que viraram leis. Politize. Disponível em: < http://www.politize.com.
br/4-projetos-de-iniciativa-popular-que-viraram-leis/>. Acesso em: 01 ago. 2018.

276 Suellen Moura


Thiago Burckhart
reforma política. A Câmara já trabalha no desenvolvimento de tecnologia para implantar
a medida. A comissão especial que discutiu a matéria no ano passado aprovou relatório
sobre os mecanismos de democracia direta e sugeriu projeto de lei com novas regras
para plebiscitos, referendos e projetos de lei de iniciativa popular.54

2.3. Balanço e desafios nos 30 anos da Constituição Cidadã


A participação popular na forma direta, embora com quantidade expressiva de
assinaturas, não logrou êxito originalmente como projeto de lei de iniciativa popular,
seguindo, portanto, o rito prescrito para leis ordinárias. Em 30 anos de vigência
da Constituição Federal é possível observar que a legitimação, tanto na forma da
democracia representativa quanto na forma de democracia participativa, sofreu uma
desfiguração importante. Dois grandes fatores podem ser apontados: a desconfiança
nas instituições políticas; e um sentimento compartilhado na comunidade de que os
indivíduos não conseguem identificar a relevância ou importância de sua participação
na vida política. Nesse sentido, Jeremy Waldron ressalta que se a participação na
autoridade política é pequena, é difícil identificar sua conveniência.55

Alguns dados, obtidos de pesquisas sobre a confiança nas instituições podem ser
destacados. “Retratar a confiança do cidadão em uma instituição significa identificar
se o cidadão acredita que essa instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz
isso de forma em que benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e
se essa instituição é levada em conta no dia-a-dia do cidadão comum”56.

Dados coletados pelo ICJBrasil (Índice de Confiança na Justiça), no relatório do


primeiro semestre de 2017, produzido pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas (Direito SP), revelaram queda na confiança da população em pratica-
mente todas as instituições analisadas, na comparação com o relatório de 2016. As

54 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Coleta de assinaturas de apoio a projetos de lei de iniciativa popular poderá
ser feita pela Internet. Câmara dos Deputados, 09 fev. 2018. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/
camaranoticias/noticias/POLITICA/553306-COLETA-DE-ASSINATURAS-DE-APOIO-A-PROJETOS-DE-LEI-
DE-INICIATIVA-POPULAR-PODERA-SER-FEITA-PELA-INTERNET.html>. Acesso em: 03 ago. 2018.

55 WALDRON, Jeremy. Derecho y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 295, (tradução nossa).

56 Relatório ICJBrasil 1º semestre/2017. FGV Direito SP. Disponível em: <https://direitosp.fgv.br/sites/


direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf>. Acesso em: 06 ago. 2018.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 277


que sofreram as quedas mais acentuadas foram o Poder Executivo (45%) e Congresso
Nacional (30%).57

Em pesquisa registrada no Tribunal Superior Eleitoral com o número BR


05110/2018, referente ao levantamento realizado do dia 06 ao dia 07 de junho de 2018
pelo Datafolha58, dentre 10 instituições, três relacionadas ao universo da representação
política lideram empatadas como as menos confiáveis do país. Sete em cada dez (68%)
declararam não ter confiança nos partidos políticos, 67% declararam não ter confiança
no Congresso Nacional (o índice mais alto da série histórica), e 64%, na Presidência
da República.59

Esses percentuais que indicam a queda progressiva de confiança em instituições


políticas revelam um problema ainda maior que a sociedade brasileira precisa enfrentar,
cujos percalços englobam uma crise generalizada da democracia representativa. A
construção de qualquer ordem democrática desvela uma série de desafios, seja em
uma democracia “direta” ou indireta. O primeiro deles diz respeito aos interesses dos
indivíduos e grupos e a formação de uma pretensa “vontade coletiva”.60 Isso significa
conseguir manter uma unidade imprescindível a toda sociedade aliado a permitir que
os conflitos produzidos sejam livremente expressados e considerados. Nesse sentido,
conforme afirma Lefort, “o gesto inaugural da democracia é o reconhecimento da
legitimidade do conflito”.61

O segundo desafio circunscreve-se na disparidade entre a igualdade formal e


as desigualdades reais. Ou seja, é preciso lidar com “a capacidade diferenciada dos

57 ICJBRASIL 2017: Confiança da população nas instituições cai. FGV, 24 out. 2017. Disponível em: <https://
portal.fgv.br/noticias/icjbrasil-2017-confianca-populacao-instituicoes-cai>. Acesso em: 03 ago. 2018.

58 Foram realizadas 2.824 entrevistas presenciais em 174 municípios, com margem de erro máxima 2 pontos
percentuais para mais ou para menos considerando um nível de confiança de 95%. Isto significa que se
fossem realizados 100 levantamentos com a mesma metodologia, em 95 os resultados estariam dentro
da margem de erro prevista. Disponível em: < http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/06/15/
e262facbdfa832a4b9d2d92594ba36eeci.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2018.

59 DATAFOLHA. Partidos, Congresso e Presidência são instituições menos confiáveis do país. Datafolha
Instituto de Pesquisas, São Paulo, 15 jun. 2018. Disponível em: <https://datafolha.folha.uol.com.br/
opiniaopublica/2018/06/1971972-partidos-congresso-e-presidencia-sao-instituicoes-menos-confiaveis-
do-pais.shtml>. Acesso em: 03 ago. 2018.

60 MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp,
2014.

61 LEFORT apud MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo:
Editora Unesp, 2014., p. 13.

278 Suellen Moura


Thiago Burckhart
indivíduos de determinar suas próprias preferências e interesses de acordo com a
posição em que se encontram na sociedade.”62 A isso não corresponde uma defesa de
inutilidade de direitos formais, como sinaliza o autor. Esses direitos são instrumentos
importantes que carregam um ideal de equidade e lançam um horizonte normativo
capaz de ampliar as possibilidades, especialmente para aqueles que se encontram em
posições subalternas. Contudo, não possuem o condão de assegurar que os espaços
de participação política sejam apropriados igualmente. As assimetrias sociais, cuja
dinâmica interfere nos potenciais de apropriação da participação, interfere também
na produção das próprias preferências.

E, um terceiro desafio, corresponde à possibilidade de manipulação da “vontade


coletiva” através do que Luis Felipe Miguel denomina de uso estratégico das normas
de agregação de preferências. “Há uma vasta literatura, na ciência política, dedicada
– a partir do paradoxo de Condorcet e do teorema da impossibilidade de Arrow – a
demonstrar que qualquer decisão é influenciada pelas regras que levam a ela”.63

Esses desafios se tornam ainda mais acentuados dentro de um sistema de demo-


cracia representativa, em que se observa uma separação considerável entre governantes
e governados, a formação de uma elite política distanciada da massa da população, a
ruptura do vínculo entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes e
a distância entre o momento em que se firmam os compromissos com os constituintes
(a campanha eleitoral) e o momento do exercício do poder (o exercício do mandato).64

Atentos a isso, é preciso uma construção não apenas de uma cultura democrática,
mas também “investigar o próprio sentido de democracia”65. Isso porque,

[...] embora a democracia não nos dê a certeza de excelentes ou boas


decisões (na verdade, às vezes suas decisões são ruins ou pouco
inteligentes), ela nos dá a certeza de podermos reformular ou mudar
todas as decisões sem questionar ou revogar a ordem política; isto é,

62 Ibidem, p. 14.

63 “Condorcet demonstrou, já no século XVIII, que, na presença de mais de duas alternativas e mais de duas
pessoas votantes, há sempre o risco de que escolhas de indivíduos racionais levem a resultados coletivos
irracionais. A partir dele, Kenneth Arrow estabeleceu, no século XX, que a soma das racionalidades
individuais não produz uma racionalidade coletiva”. Ibidem, p. 14.

64 Cf. MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora
Unesp, 2014., p. pp. 15-17.

65 Ibidem, p. 27.

A PROMESSA DEMOCRÁTICA 279


sem perder nossa liberdade. Decisões democráticas requerem emendas
por meios democráticos; exigem mudanças mediante estratégias diretas
e indiretas (ou procedimentos e jogo de opiniões) com o fito de reduzir ao
máximo possível o risco de desfiguração ou de servir a outros objetivos
que não a garantia de uma igual liberdade política.66

Quando uma democracia se encontra fragilizada, quase nada é tão frágil quanto
defender seu fim ao invés de tentar aprimorá-la. Democracia e representação são
territórios em disputa e são formas de exercício de poder. É verdade que autorização e
accountability (obrigação que os poderes públicos têm de se responsabilizar por seus
atos) são instrumentos que promovem a incerteza quanto ao exercício do poder, que,
como dizia Przeworski, é a marca da política democrática67. Mas, se são insuficientes,
como de fato são, nem por isso são descartáveis. “Formas de representação que deles
prescindem, como porta-vozes auto instituídos, quase com certeza estarão em pior
situação no que se refere a seu caráter democrático”68.

Considerações finais
A promessa democrática inscrita na Constituição de 1988 é marcada por uma
série de contradições. Em efeito, apesar do processo participativo da ANC ter resultado
em uma Constituição cujo texto é marcadamente progressista, em que sua plena
realização teria a potencialidade de transformar uma realidade ainda marcada pela
desigualdade – das mais variadas naturezas, política, social, econômica, cultural,
dentre outras – é fato, entretanto, que o processo de aplicação e concretização da
Constituição é marcado por uma série de conflitos de natureza política. O fato de
que em 30 anos de vigência somente tenham sido aprovados 4 projetos de iniciativa
popular em âmbito nacional demonstra a frágil cultura política de grande parte do povo
brasileiro, que por desconhecimento ou desinteresse não participa da vida política
ativamente da vida política nacional.

66 URBINATI, Nadia. Crise e Metamorfoses da democracia. Tradução de Pedro Galé e Vinicius de Castro
Soares. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 82, jun. 2013, p. 6.

67 PRZEWORSKI, Adam. Ama a incerteza e serás democrático. In: Novos Estudos, São Paulo, n. 9, p. 36-46,
1984 [1983].

68 MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp,
2014.

280 Suellen Moura


Thiago Burckhart
A desconfiança nas instituições políticas é um grave problema para a democracia
contemporânea, haja vista que o bom funcionamento da democracia representativa
exige um acentuado grau de confiança entre governantes e governados, além da
aceitação do conflito político e dos direitos fundamentais, como adverte Marilena
Chauí69. Observa-se, portanto, um baixo grau de participação popular nos 30anos de
vigência da Constituição de 1988, o que evidencia de modo mais abrangente uma crise
da democracia representativa que inexoravelmente leva ao rebaixamento do grau de
compromisso democrático no campo político e na política institucional.

Mostra-se evidente, desta forma, a necessidade de aprofundar a experiência


democrática. Isso perpassa indubitavelmente pela ampliação da possibilidade de
participação e influência de segmentos sociais na política, ou seja, democratizar a
democracia70. Mas não fala-se de qualquer participação, é preciso uma participação
esclarecida, daí a necessidade de pensar a democracia na sua dimensão substancial
como um elemento essencial para o desenvolvimento e aprimoramento da nossa
sociedade. Nesse sentido, a promessa democrática não está morta ou foi superada, mas
permanece viva e mantém-se no horizonte como ideal de sociedade a ser perseguido.

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