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REVISTA BRASILEIRA DE ANÁLISE DO COMPORTAMENTO / BRAZILIAN JOURNAL OF BEHAVIOR ANALYSIS, 2007, VOL. 3, N .

2, 181-190 O

O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE METACONTINGÊNCIA


THE DEVELOPMENT OF THE METACONTINGENCY CONCEPT

RICARDO CORRÊA MARTONE


UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, BRASIL

JOÃO CLAUDIO TODOROV


INSTITUTO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE BRASÍLIA E UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS, BRASIL

RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar o desenvolvimento do conceito de metacontingência. Identificou-se três
reformulações subseqüentes à idéia primeiramente apresentada por Sigrid Glenn no artigo Metacontingencies in
Walden II, de 1986: 1) ênfase no processo seletivo do entrelaçamento de muitos operantes e, conseqüentemente, na
transmissão de padrões comportamentais através do tempo; 2) a descrição das funções de diferentes efeitos ambientais
produzidos pelo entrelaçamento; e 3) diferenciação entre processos de variação e seleção que ocorrem em nível
individual (relações de macrocontingência) e processos de variação e seleção que ocorrem em nível cultural (relações
de metacontingência).
Palavras-chave: seleção por conseqüências, metacontingência, contingências comportamentais entrelaçadas,
produto agregado, macrocontingência.

ABSTRACT
This article describes the development of the concept of metacontingency. Three further complementations of
Glenn’s original proposal in 1986 are identified: 1) emphasis on the selective process of many interlocking behavioral
contingencies and on the transmission of behavior patterns through time; 2) the description of different environment
effects produced by a set of interlocking behavior contingencies and 3) a distinction between processes of variation
and selection occurring at individual level of analysis (macrocontingencies) and processes of variation and selection
occurring at cultural level of analysis (metacontingencies).
Key words: selection by consequence, metacontingency, interlocking behavioral contingencies, aggregated
product, macrocontingency.

A publicação do artigo Selection by O presente artigo tem como objetivo de-


Consequences, em 1981, de B.F. Skinner, des- monstrar o desenvolvimento do conceito de
pertou aumento do interesse, entre alguns ana- metacontingência. O conceito foi inicialmente
listas do comportamento, pela investigação das proposto por Sigrid Glenn em 1986 e, desde
relações entre princípios comportamentais e fe- então, vem sendo reelaborado no sentido de
nômenos que ocorrem no nível cultural (Biglan, descrever melhor parte das complexas formas
1995; Guerin, 1994; Lamal, 1991, 1997; de relações estabelecidas entre um conjunto de
Mattaini, 1996; Todorov, 2005a; Todorov, contingências comportamentais entrelaçadas e
Martone & Moreira, 2005), assim como pela seus efeitos ambientais. Assim, após a leitura
evolução, por intermédio da seleção, de entida- de todos os textos da autora que abordam a
des culturais e do comportamento individual noção de metacontingências, selecionamos três
(Andery, Micheletto & Sério, 1999; Andery, artigos, subseqüentes ao artigo seminal de 1986,
Micheletto & Sério, 2005; Glenn & Malott, que julgamos terem apresentado contribuições
2004; Malott & Glenn, 2006). significativas para o desenvolvimento do con-

Endereço para correspondência com os autores: Ricardo Corrêa Martone, e-mail rcmartone@gmail.com; e João Claudio Todorov, e-mail todorov@unb.br.

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R. C. MARTONE & J. C. TODOROV

ceito: 1) uma ênfase no processo seletivo do entrelaçamento específico de muitos compor-


entrelaçamento de muitos operantes e, conse- tamentos ao longo do tempo, desencadeando a
qüentemente, na transmissão de padrões transmissão do que Glenn & Malott (2004)
comportamentais através do tempo, reforçan- denominam de “linhagem cultural”.
do também a idéia de que a unidade de análise O termo “linhagem cultural” deve ser
pode ser a relação entre o entrelaçamento e o compreendido paralelamente ao termo “linha-
produto agregado (Glenn, 1988); 2) a descri- gem operante”. Malott & Glenn (2006) utili-
ção das funções de diferentes efeitos ambientais zam “linhagem operante” ao invés de “classe de
produzidos pelo entrelaçamento (Glenn & respostas” para denominar a recorrência de ins-
Malott, 2004); e 3) uma diferenciação entre tâncias comportamentais de um organismo in-
processos de variação e seleção que ocorrem em dividual e os eventos ambientais funcionalmente
nível individual (relações de macrocontingência) relacionados a essas instâncias. O termo “linha-
e processos de variação e seleção que ocorrem gem operante” parece realçar ainda mais o sen-
em nível cultural (relações de tido, também implícito na noção de “classe de
metacontingência, Malott & Glenn, 2006). respostas”, de continuidade de instâncias
O desenvolvimento do conceito de comportamentais em um organismo individu-
metacontingência (Glenn, 1986, 1988, 1991, al através do tempo. Por outro lado, o termo
2004; Glenn & Malott, 2004; Malott & “linhagem cultural” denomina relações
Glenn, 2006) representa tentativa de formular comportamentais mais complexas, pois uma
uma estrutura conceitual unificada para a aná- “linhagem cultural” agrega mais do que uma
lise do comportamento social, propiciando tam- “linhagem operante” de um único indivíduo.
bém possibilidades para o planejamento de Linhagens culturais compreendem contingên-
práticas culturais e, por conseguinte, de mu- cias operantes entrelaçadas de pelo menos dois
dança social. Ao tentar descrever parte das com- indivíduos que produzem, juntas, um produto
plexas relações comportamentais que ocorrem agregado. Tais contingências são selecionadas
no terceiro nível de variação e seleção, o concei- pelo seu produto agregado e, assim, perpetua-
to de metacontingência coloca-nos frente a das ou não através do tempo. Por exemplo, a
importantes questões conceituais e produção contínua de determinado tipo de
metodológicas com implicações diretas sobre a automóvel (produto agregado) envolve o entre-
análise de contingências sociais, seja ela experi- laçamento do comportamento de muitos indi-
mental ou não. Por exemplo, duas questões in- víduos – operários, engenheiros, administrado-
trinsecamente relacionadas, uma conceitual e res, publicitários, vendedores, etc. Se o entre-
outra metodológica, são exemplos da impor- laçamento de todos esses comportamentos per-
tância e pertinência do desenvolvimento de es- manecer estável, então, o carro poderá ser con-
tudos experimentais e descritivos sobre tinuamente produzido, originando, assim, a
metacontingências: o problema da unidade de propagação de uma linhagem cultural de pro-
análise no nível cultural e, em se tratando de duzir aquele tipo de automóvel.
análise experimental, a variável crítica a ser Faz-se necessário, entretanto, que aborde-
manipulada no sentido de produzir, em condi- mos primeiramente, de maneira breve, o mode-
ções controladas de laboratório, a seleção de um lo causal de seleção por conseqüências. O pleno

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METACONTINGÊNCIA

entendimento do desenvolvimento da noção de filogenéticas (ou inatas) das espécies; 2)


metacontingência só será possível se observarmos, ontogenético, compõe características individu-
atentamente, como ocorre a atribuição de cau- ais dos organismos; e 3) cultural, possibilita o
salidade para o Behaviorismo Radical. surgimento e transmissão de práticas culturais.
O primeiro nível, chamado por Skinner de
O MODELO DE SELEÇÃO POR CONSEQÜÊNCIAS E A filogenético, equivale ao processo descrito por
DETERMINAÇÃO DO COMPORTAMENTO Darwin como seleção natural das espécies. Esse
processo ocorre quando características biológi-
O modelo de causalidade assumido pela cas ou comportamentais favoráveis à sobrevivên-
análise do comportamento foi descrito explici- cia e/ou reprodução da espécie são selecionadas
tamente por B.F. Skinner em 1981. Em e transmitidas de geração a geração, por inter-
Selection by Consequences, Skinner propôs que médio da dotação genética dos organismos.
tanto características biológicas quanto caracte- O segundo nível, ontogenético, descreve
rísticas comportamentais e culturais evoluem a história de aprendizagem individual do orga-
por intermédio dos processos de variação e se- nismo. Nesse nível, variações comportamentais
leção. Influenciado pelas proposições de que produzem conseqüências reforçadoras para
Darwin a respeito de como as espécies evolu- o indivíduo são selecionadas, aumentando, as-
íram, Skinner cunhou o termo seleção por con- sim, a probabilidade futura da ocorrência de
seqüências para descrever o processo pelo qual certas classes de respostas. Por intermédio do
o comportamento é determinado (Andery, condicionamento operante, o meio ambiente
1999). A decorrência direta deste princípio para modela o repertório de cada indivíduo. Assim,
a formulação do modelo de seleção por conse- mudanças ambientais podem levar a ajustes
qüências é clara, uma vez que, para Skinner, os comportamentais rápidos, com a aquisição de
organismos não são imutáveis, mas estão em novas respostas, a extinção de antigas ou o au-
transformação a todo instante devido à sua re- mento da eficiência de alguns comportamen-
lação com o ambiente. tos. Esse segundo nível de variação e seleção
Dois processos fundamentais, implicados possibilita a descrição do processo de surgimento
no modelo de seleção por conseqüências, são os de características individuais que dão singula-
processos de variação e seleção (Micheletto, ridade às respostas de um organismo, possibi-
1999). Lembrando sempre que o objeto de es- litando o estabelecimento de repertórios
tudo para Skinner é o comportamento, varia- comportamentais idiossincráticos.
ções comportamentais no repertório de um or- O terceiro nível de seleção por conseqü-
ganismo são selecionadas na sua relação com o ências descreve as formas pelas quais indiví-
ambiente, possibilitando, assim, a atuação de duos de um grupo aprendem por intermédio
contingências seletivas. É por intermédio do de seus pares de gerações atuais ou passadas,
processo de seleção por conseqüências que as produzindo e acumulando conhecimento ao
espécies, os indivíduos e as culturas evoluem. longo de várias gerações de indivíduos. Nesse
Assim, podemos identificar três níveis de de- nível, os entrelaçamentos dos comportamen-
terminação do comportamento: 1) filogenético, tos de indivíduos e os efeitos produzidos por
estabelece características denominadas esses entrelaçamentos sobre o ambiente se tor-

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nam também fonte de determinação do com- estabelecidas entre um conjunto de indivíduos


portamento, possibilitando o desenvolvimen- que se comportam, e não a partir de “forças so-
to de repertórios comportamentais que trans- ciais” (Skinner, 1953) ou mesmo de um Zeitgeist
cendem o período de vida do próprio indiví- (Skinner, 1981). Ao contrário, o que determi-
duo. Uma unidade de análise, nesse caso, que nará o “espírito de uma época”, ou até mesmo
descreve a relação comportamento-ambiente o surgimento de uma “força ou lei social”, será
parece ser a metacontingência. a relação existente entre os entrelaçamentos dos
Se para a Análise do Comportamento o comportamentos de indivíduos e os efeitos que
comportamento é determinado pela relação do tais entrelaçamentos produzem sobre o ambi-
organismo com o ambiente, parte fundamen- ente social e não social e, ainda, a continuida-
tal do ambiente de uma pessoa é composta por de, através de várias gerações de indivíduos,
outras pessoas – ou seja, seu ambiente social desses entrelaçamentos e de seus efeitos. De
(Skinner, 1953). O comportamento de uma acordo com Skinner (1981), “é o efeito sobre o
pessoa pode exercer tanto a função de estímulo grupo, e não as conseqüências reforçadoras aos
discriminativo quanto a função de conseqüên- indivíduos membros do grupo, o responsável
cia (estímulos reforçadores ou punitivos) no pela evolução da cultura” (p.502).
controle do comportamento de outra, ou mes-
mo qualquer outra função comportamental. METACONTINGÊNCIAS
Skinner (1953) ressaltou que o compor-
tamento social não consiste exclusivamente no O conceito de metacontingência descre-
controle do comportamento de um indivíduo ve a relação entre um conjunto de contingênci-
sobre o outro, mas também, dada a complexi- as comportamentais entrelaçadas e os efeitos
dade observada nas relações estabelecidas en- causados no ambiente em função de tal entre-
tre o comportamento de muitas pessoas em laçamento, permitindo, assim, o desenvolvi-
relação a um ambiente comum, duas ou mais mento de estrutura conceitual que amplia o
pessoas podem se organizar de forma a con- instrumental teórico da análise do comporta-
trolar o comportamento de outra(s), originan- mento em direção à mudança cultural.
do, assim, uma forma de controle pelo grupo.
Um sistema social pode surgir quando o gru- METACONTINGÊNCIA (1986) – IDENTIFICANDO E
po se organiza de forma a controlar eficiente- DELIMITANDO A UNIDADE DE ANÁLISE
mente o comportamento de seus componen-
tes. As agências de controle descritas por A primeira descrição do conceito de
Skinner (1953) podem ser tomadas como metacontingência feita por Glenn (1986) é
exemplos desses sistemas sociais. a seguinte:
Fenômenos tradicionalmente abordados
pela psicologia social, tais como: facilitação so- A metacontingência é a unidade de análise que
cial, comparação social, aprendizagem descreve as relações funcionais entre uma classe
observacional, atitudes, atribuições sociais, com- de operantes, cada operante possuindo suas con-
petição, cooperação e obediência social (Guerin, seqüências únicas e imediatas, e uma conseqüên-
1994) são originados a partir das interações cia de longo prazo comum a todos os operantes

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METACONTINGÊNCIA

na metacontingência. Metacontingências devem


ser mediadas por contingências de reforçamento
socialmente arranjadas. (p. 2)

Nota-se que a preocupação da autora,


nesse início, é muito mais com a identificação
e delimitação da unidade de análise, diferenci-
Figura 1. Representação de uma metacontingência e seus
ando contingências operantes, que possuem suas componentes, onde contingências comportamentais
próprias conseqüências, das relações de contin- entrelaçadas (A) produzem um produto agregado (B).
gência estabelecidas entre uma classe de
operantes e uma conseqüência de longo prazo. ligados por contingências sociais, produzem
Embora a autora fale em “conseqüência de lon- efeito específico sobre o ambiente, independen-
go prazo”, deixando subjacente em sua descri- temente de sua repetição ao longo do tempo.
ção que processos seletivos também ocorreriam O processo seletivo parece estar, nesse caso, em
em nível diferente daquele observado nas con- segundo plano, uma vez que o entrelaçamento
tingências operantes, a ênfase acaba sendo dada comportamental ainda não é descrito como uma
ao arranjo de comportamentos que, juntos, pro- unidade funcional que se propaga devido às
duzem algo que não poderia ser alcançado so- conseqüências que produz.
mente com o comportamento de um único in- Essa primeira formulação do conceito es-
divíduo (ver Figura 1). O exemplo dado pela timulou o surgimento de alguns trabalhos des-
autora é esclarecedor: critivos cujo objetivo foi analisar contingências
sociais de natureza mais ampla, que envolviam
Tome, por exemplo, os diversos comportamen- a articulação de milhares de pessoas (ver, por
tos envolvidos na produção de uma conseqüên- exemplo, Kunkel, 1991; Lamal & Greenspoon,
cia de longo prazo associada à redução da polui- 1992; Rakos, 1991, 1992; Todorov, Moreira
ção atmosférica. Engenheiros devem empenhar- & Moreira, 2005). Todorov (2005b) forneceu-
se nos vários operantes que envolvem o planeja- nos exemplo da aplicação desta primeira versão
mento de catalisadores para automóveis; traba- do conceito de metacontingências em fenôme-
lhadores da linha de montagem devem aprender nos sociais de grande escala, analisando o mo-
a construí-los e integrá-los aos outros componen- vimento pela redemocratização do Brasil que
tes do automóvel; consumidores devem comprar possibilitou a mudança de um governo militar
esses carros e abastecê-los com gasolina sem chum- para um governo civil nos anos 80. Nesta aná-
bo; trabalhadores de refinarias devem desenvol- lise, a conseqüência a longo prazo (produto
ver e utilizar processos que retirem o chumbo da cultural) seria a saída dos militares e dos políti-
gasolina. (Glenn, 1986, p. 2-3) cos diretamente ligados a eles do governo e a
passagem do poder a um partido civil. A tran-
Pode-se observar nessa primeira descrição sição para a democracia ocorreu como o resul-
de metacontingência que eventos tado de movimentos sociais que envolveram
comportamentais que podem estar dispersos milhões de pessoas e muitas entidades respon-
espacialmente e temporalmente, embora inter- sáveis pela organização da sociedade civil. Com

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a abertura política, iniciada pelo governo do pecificados empiricamente. Por exemplo, o nú-
General Geisel, abandonou-se paulatinamente mero de crianças que podem ler com um certo
o uso da força que impunha governos sem legi- nível de proficiência é o resultado das práticas edu-
timidade popular. Todorov sugeriu que as con- cacionais. A quantidade de leite disponível para se
tingências que envolviam o comportamento beber é o resultado de práticas de criação e das
político começavam a se alterar, tornando pos- fábricas de laticínios. O número de crianças nasci-
síveis grandes manifestações como o movimen- das é o resultado das práticas de controle de sexo e
to pelas eleições diretas, conhecido como “Di- nascimento. A relação funcional entre as práticas
retas Já”, que mobilizou milhões de pessoas em culturais e seus produtos retroage às culturas por meio
todo país - políticos, artistas, cantores e cida- do processo de seleção. (p. 168, ênfase nossa)
dãos comuns - e amplos setores da sociedade
civil organizada – entidades de defesa dos di- Além do entrelaçamento de contingênci-
reitos humanos, sindicatos e entidades repre- as operantes, o elemento crítico enfatizado pela
sentantes de classes profissionais. Pode-se no- autora é a ação seletiva do ambiente externo
tar, na análise realizada por Todorov, que a arti- sobre o entrelaçamento, possibilitando a
culação dos comportamentos de pessoas de vá- recorrência da relação entre um conjunto de
rios setores da sociedade teria possibilitado a contingências comportamentais entrelaçadas e
passagem do poder militar para um poder ci- seu efeito agregado (ver Figura 2).
vil. Todavia, tal articulação não pode ser consi-
derada como unidade funcional que se propa-
ga através do tempo, uma vez que o efeito
ambiental produzido por ela (a saída dos mili-
tares) ocorreu uma única vez, impossibilitando
assim a incidência do processo seletivo sobre a
articulação dos vários setores sociais responsá-
veis pela mudança de poder.
Figura 2. Representação de uma metacontingência e seus
componentes, onde contingências comportamentais
PRIMEIRA COMPLEMENTAÇÃO (1988): ÊNFASE NO entrelaçadas (A) produzem um produto agregado (B)
selecionador do entrelaçamento, permitindo assim a
PROCESSO SELETIVO DO ENTRELAÇAMENTO DE recorrência deste entrelaçamento (C).
MUITOS OPERANTES
A prática cultural associada à alfabetiza-
A ênfase no processo seletivo do entrela- ção é um dos exemplos fornecidos por Glenn
çamento de muitos operantes foi dada em (1988). Tal prática envolveria o entrelaçamen-
1988. Glenn (1988) afirma que to dos comportamentos de grande número de
metacontingência é: pessoas. Muitas delas, entretanto, nunca entra-
ram ou entrarão em contato direto umas com
(...) a unidade de análise que circunscreve uma as outras. Para Glenn, o comportamento de cada
prática cultural, em todas as suas variações, e o participante é mantido por contingências in-
efeito agregado de todas as atuais variações. Os dividuais, as quais, tomadas em conjunto, cons-
efeitos das práticas culturais devem, claro, ser es- tituem a própria prática cultural. Os elemen-

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METACONTINGÊNCIA

tos constituintes das contingências ver demanda pelos seus produtos. (Glenn &
comportamentais entrelaçadas envolvem o com- Malott, 2004, p. 100)
portamento dos professores que ensinam os alu-
nos a ler, o comportamento dos alunos de ler, o O elemento adicionado pelas autoras nes-
comportamento dos planejadores do material ta segunda complementação é o que elas deno-
didático utilizado para alfabetização, o compor- minam de “sistema receptor” (Glenn & Malott,
tamento dos dirigentes educacionais e as polí- 2004). Da mesma forma como ocorre com o
ticas educacionais planejadas por eles e tantos reforçamento do comportamento individual, o
outros que, quando articulados, produzem de- ambiente externo às contingências fornece con-
terminado índice de crianças alfabetizadas. A seqüências que poderão selecionar ou não o con-
recorrência do entrelaçamento do comporta- junto de contingências comportamentais
mento de todos esses agentes e a sobrevivência entrelaçadas em questão (ver Figura 3).
da prática cultural dependerá da eficiência da
alfabetização (por exemplo, maior número de
pessoas alfabetizadas).

SEGUNDA COMPLEMENTAÇÃO (2004): DIFERENTES


EFEITOS AMBIENTAIS PRODUZIDOS PELO
ENTRELAÇAMENTO DE MUITOS OPERANTES
Figura 3. Representação de uma metacontingência e seus
componentes, onde contingências comportamentais
A segunda complementação ao conceito de entrelaçadas (A) produzem um produto agregado (B),
seguido pela injeção de recursos vindos de um ambiente
metacontingência enfatizou as funções de dife- selecionador externo (C, sistema receptor) permitindo,
rentes efeitos ambientais produzidos pelo entre- assim, a recorrência desse entrelaçamento (D).
laçamento de contingências operantes (Glenn &
Malott, 2004). As autoras afirmam que: Glenn & Malott (2004) descrevem os
componentes de uma metacontingência toman-
Metacontingências são relações entre contingên- do como exemplo um restaurante. O produto
cias comportamentais entrelaçadas e um ambi- agregado das contingências comportamentais
ente selecionador. Juntamente às contingências entrelaçadas observadas no restaurante seria a
comportamentais, metacontingências respon- comida servida e o sistema receptor os consumi-
dem pela seleção cultural e pela mudança dores. O restaurante sobreviverá somente se sua
evolucionária em organizações. Em organizações, comida e suas características físicas suprirem as
metacontingências apresentam três componen- exigências necessárias do ambiente selecionador
tes: contingências comportamentais entrelaçadas, (as pessoas que costumam comer neste restau-
um produto agregado e um sistema receptor. O rante). A comida pode ser modificada caso o
sistema receptor é o recipiente do produto agre- ambiente externo ao restaurante se modifique
gado, e, assim, funciona como o ambiente (as preferências dos consumidores ou até mes-
selecionador das contingências comportamentais mo competição com outros restaurantes). Servir
entrelaçadas. As contingências comportamentais refeições é um conjunto de contingências
entrelaçadas cessarão sua recorrência se não hou- comportamentais entrelaçadas que envolvem o

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comportamento de muitas pessoas: o garçom é uma macrocontingência. Este termo indica uma
anotar os pedidos dos clientes, o chefe de cozi- relação entre o comportamento de muitas pesso-
nha dar instruções sobre o preparo da comida, o as e o produto agregado daquele comportamen-
cozinheiro prepará-la e colocá-la de forma que o to. Isto não significa que o produto funcione
garçom possa pegá-la e levá-la até o cliente. Neste como uma conseqüência que mantém o com-
caso, os comportamentos dos indivíduos estão portamento constituinte da prática. (Malott &
relacionados uns aos outros e organizados em Glenn, 2006, p. 37)
contingências comportamentais entrelaçadas. O
produto agregado destas contingências é a co- Consideremos, por exemplo, uma inter-
mida servida. A linhagem cultural em questão venção cujo objetivo seja alterar as relações
pode ser observada quando da continuidade tem- comportamentais na seguinte
poral da relação entre 1) o entrelaçamento de macrocontingência: dirigir alcoolizado produz
todos os comportamentos envolvidos na prepa- alto índice de acidentes e mortes (Malott &
ração da comida; 2) o produto agregado, a pró- Glenn, 2006). O comportamento que consti-
pria comida; e 3) o comportamento do consu- tui a prática é dirigir sob a influência do álcool.
midor (avaliando positivamente a comida servi- Tal comportamento, então, transforma-se no
da, frequentando o restaurante). alvo de intervenção, pois todo indivíduo que
apresentá-lo será afetado pelas ações planejadas
TERCEIRA COMPLEMENTAÇÃO (2006): para coibi-lo. A conseqüência comportamental
METACONTINGÊNCIAS E MACROCONTINGÊNCIAS (pesadas multas, por exemplo) poderá ser exa-
tamente a mesma a todos que se engajarem em
Malott & Glenn (2006) avançaram ain- tal comportamento. Uma vez que um produto
da mais quando diferenciaram processos seleti- agregado (diminuição de acidentes e mortes em
vos que ocorrem em nível individual (relações uma comunidade) determine o sucesso ou fra-
de macrocontingência) de processos seletivos casso da intervenção, pode-se considerar tal in-
que ocorrem em nível cultural (relações de tervenção como cultural1. Entretanto, as auto-
metacontingência). ras esclarecem:

Quando as linhagens operantes de um número Devido ao fato da prática cultural não ser coesa
de pessoas são suficientemente similares em for- como um todo, mas sim um grupo de comporta-
ma ou produto, tais linhagens podem ser deno- mentos funcionalmente não relacionados, a sele-
minadas uma prática cultural. Se o comporta- ção da prática não deve ocorrer. Ou seja, o pro-
mento que constitui uma prática cultural tem duto agregado de todos os motoristas alcoolizados
um produto que afeta outras pessoas, então, o na comunidade não pode servir como uma con-
produto agregado do comportamento pode tor- seqüência funcional para a prática e, mesmo se
nar-se um problema social. (...) A relação entre as pudesse, o lócus de mudança no comportamen-
linhagens operantes de todas as pessoas que par- to que constitui a prática são as linhagens
ticipam da prática cultural e o produto agregado operantes dos organismos individuais. As linha-

1 Intervenções, para serem denominadas “culturais”, sempre requerem mudanças no comportamento de mais de uma pessoa. Entretanto, segundo Malott
& Glenn (2006), “não é o número de pessoas, cujo comportamento é alvo, que define uma intervenção como cultural ou comportamental, mas sim, se o
produto de interesse dos experimentadores (ou de qualquer outro) for o resultado do comportamento de uma ou mais pessoas.” (p. 34-35)

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METACONTINGÊNCIA

gens individuais de várias pessoas podem ser contram, na noção de metacontingência, ins-
selecionadas por contingências operantes, mas elas trumental teórico para a descrição de relações
devem ser modificadas uma a uma como o resul- comportamentais complexas que envolvem:
tado de contingências locais aplicadas sobre o comportamentos de muitos indivíduos, os re-
comportamento relevante. (Malott & Glenn, sultados ambientais da interação desses indiví-
2006, p. 37) duos e a transmissão de padrões
comportamentais através do tempo. A identifi-
Nesse caso, o comportamento de moto- cação das três reformulações propostas desde o
ristas de dirigir sob influência do álcool não pode artigo seminal de 1986 permite que olhemos
ser considerado uma unidade funcional única, para questões culturais com a abrangência que
passível de ser selecionada e propagada como um a área exige, pois tais reformulações refletem
todo. A prática cultural em questão congrega tentativa de refinar o instrumental teórico da
comportamentos funcionalmente e topografica- análise do comportamento no sentido de fazer
mente semelhantes que não precisam, necessa- com que essa ciência seja capaz de abranger,
riamente, estar relacionados uns aos outros. descrever e explicar cada vez mais dimensões
Embora a intervenção apresente caráter cultu- do complexo ambiente de seres humanos.
ral, o lócus de mudança ainda é o comporta-
mento individual. Não estaríamos, neste caso, REFERÊNCIAS
diante de relações que se caracterizem como re-
lações de metacontingência, uma vez que os com- Andery. M. A. (1999). O modelo de seleção por conse-
portamentos dos indivíduos que compõem a qüências e a subjetividade. Em R. A. Banaco (Org.),
prática não estão entrelaçados (ver Figura 4). Sobre comportamento e cognição: Aspectos metodológicos
e de formação em análise do comportamento e terapia
cognitivista (pp. 199-208). Santo André: ARBytes.
Andery, M. A., Micheletto, N., & Sério, T. M. (1999).
O conceito de metacontingências: Afinal, a velha
contingência de reforçamento é suficiente? Em R.
A. Banaco (Org.), Sobre comportamento e cognição:
Aspectos metodológicos e de formação em análise do com-
Figura 4. Representação de uma macrocontingência e seus
componentes. Os comportamentos dos indivíduos 1, 2 e 3 portamento e terapia cognitivista (pp. 106-116).
apresentam topografia e função semelhantes. Tomados em Santo André: ARBytes.
conjunto (uma prática cultural), tais comportamentos
produzem o problema social. Após a intervenção cultural Andery, M. A., Micheletto, N., & Sério, T. M. (2005). A
(representada pela chave) o comportamento de cada análise de fenômenos sociais: Esboçando uma pro-
indivíduo é modificado, contribuindo assim para a
mudança da prática cultural. posta para a identificação de contingências
entrelaçadas e metacontingências. Em J. C. Todorov,
CONCLUSÃO R. C. Martone, & M. B. Moreira (Org.),
Metacontingências: Comportamento, cultura e socie-
Analistas do comportamento, interessados dade (pp. 129-147). Santo André: ESETec.
na relação entre princípios comportamentais e Biglan, A. (1995). Changing cultural practices: A
fenômenos que ocorrem no nível cultural, en- contextualist framework for intervention research.

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R. C. MARTONE & J. C. TODOROV

Reno, NV: Context Press. Mattaini, M. (1996). Envisioning cultural practices. The
Glenn, S. S. (1986). Metacontingencies in Walden Two. Behavior Analyst, 19, 257-272.
Behavior Analysis and Social Action, 5, 2-8. Micheletto, N. (1999). Variação e seleção: As novas pos-
Glenn, S. S. (1988). Contingencies and sibilidades de compreensão do comportamento
metacontingencies: Toward a synthesis of behavior humano. Em R. A. Banaco (Org.), Sobre comporta-
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