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O lugar da arte na meméria social ena identidade cultural Sergio Luiz Pereira da Silva De cada época de nuestra vida, guardamos algunos recuerdos sin cesar reproducidos, y a través de los cuales se perpetia como efecto de filiacién continua, el sentimiento de nuestra identidad (HALBWACHS, 1968, p. 111). Introducio © conceito € um instrumento com o qual podemos operar andlises € avaliagdes, tendo como parimetro seu poder de definigao, de cassificagao e sintese. Porém como definir ¢ classificar os objetos do campo da abstracao, da subjetividade, do imaginério e fandamentalmente da memoria, como objetos de arte?. Para isso temos que langar mao do conceito de transdisciplinaridade que nos ajudaré a fazer esse cruzamento conceitual e epistemolégico entre memoria ¢ arte. A abstragéo conceitual nos ajuda a entender esse processo, ¢ nos habilita a entender o lugar da arte como 0 lugar poético, do extraordinario e do eterno. Seja esse extraordindrio externo, material, abstrato ou simbilico. Em sintese, 0 “conceit” évizinho da “Sintese” e a arte vizinha do “extraordinario”, ‘Nos resta indagar qual seja o lugar da memoria? A memoria é uma ilha de edigio e ela nos serve como processo de selecio, avaliagio e identidade da experiéncia. Nesse sentido, a memoria é uma espécie de “Devir" histérico, entendendo o “Devir” como um locus de experiéncia possiveis dentro de um horizonte de expectativa. ‘A arte tem sua prépria meméria, que é 0 da experiéncia esttica da iberdade. Quanto maior for a experiencia da arte maior seréo Valor da liberdade, ‘Ao nos perguntarmos sobre 0 conceito de espago expositivos para a conservacio da meméria em arte, nos indagamos sobre o devir da memoria e sua ligacdo com o campo da arte. E para isso precisamos definir tanto 0 conceito de arte | | & quanto 0 conceito de meméria, que a priori, sio campos distintos, para langarmos mio de elementos conceituais interdisciplinares como modelo de analise que nos permita aproximar a memoria da arte e suas formas de conservagio e preservagio. Mas arte ¢ memoria, dentro de seus préprios campos, por si s6 j& possuem vrios tipos de conceitos e classificasées que por suas naturezas comprometem-se com bases formas idealizadas de nomeacio de cada um desses elementos. Por exemplo a ‘memoria ¢ um campo temético que tem uma variagao de aportes dos mais variados. Isso ¢ feito a partir de valores investigativos conceitualmente que podem ser: coletivos, subjetivos e/ou pessoais; politicos, culturais e/ou sociais, enfim; valores de ordem epistemol6gica, metodoldgicae tedrica que se desdobram em abordagens da memoria. Poréim em relagio a meméria, hé uma questdo que & premente e esta indiscutivelmente presente nas varias nuances da memoria, que & 0 conceito de identidade, Em outras palavras, onde quer que haja elementos de meméria ha indicios de elementos de identidade. Isso nos leva a uma perspectiva antropolégica da meméria, qual definimos ser uma estética da identificagao de uma experiencia que promove um horizonte de expectativa com base num testemunho, ‘Meméria, estética ¢ identidade: arte ¢ visualidade como elementos culturais, Se toda memoria tem uma estética da identidade podemos com isso nos aproximar de uma relagio proficua com a arte e seu campo de variacio igualmente plural e difuso, A firmamos com isso que arte e meméria tem em si o elemento ontoldgico nas suas formagoes ¢ origens. A arte assim como a meméria, tem uma variagio de valores estéticos que a torna ontologicamente determinada pela sua singularidade e autenticidade. A ontologia da arte é assim, como afirma Heidegger! ‘uma fundamentagio do humano abstrato em obra, no caso obra de arte como criagio ontoldgica e teenicamente livre, Liberdade como ato de criagdo e a estética como ato de percepgio, sio dois dos elementos que nos permitiria aproximar a arte como elemento da memoria. 0 quadro Guernica, obra realizado por Pablo Picasso em forma de painel é um bom exemplo desse processo formado entre liberdade criativa eestética perceptiva de uma ‘memoria politica. ‘A obra de arte tem sua aura e sua autenticidade, como afirma Benjamin cultivada em sua originalidade e singularidade. Ela nasce como identidade estética demarcada por essa singularidade aurdtica e com isso se eterniza na meméria cultural T HEIDEGGER, Martin. A origem da obra dearte, In: Caminhos de Floresta Lisboa: Fundacio Calouste Gulbenkian, 2004, 88 | | & oa | das sociedades. Nesse sentido a obra de arte jé nasce como um icone, que serve como valor de cultuo e valor de exposigao, também como afirma Walter Benjamin, com base em suas leitura sobre arte grega da antiguidade (Os gregos foram obrigado, pelo estigio de sua técnica, a produzir valores eternos. Devem a essa citcunstincia 0 seu lugar privilegiado na historia da arte e sua capacidade de ‘marcar, com seu proprio ponto de vista , toda a evolugio artistica posterior (BENJAMIN, 1996 p. 175) A liberdade na forma de criagio e a percepgio como elemento de identidade estética, sfo elementos que permitem a eternizagio da obra de arte, que ¢ atemporal mas, paradoxalmente serve como icone de meméria, de um povo de um tempo ou cde um lugar. A arte e tem como elemento de singularidade a sua autenticidade que define a sua aura. Esses elementos perduram historicamente como testemunho da ‘memoria ¢ da estética fundadas na liberdade criativa, ‘A.autenticidade de uma coisa éa quintesséncia de tudo o que foi transmitido pela tradiglo, a partir de sua origem, desde sua duracio material até o seu testemunho histérico, Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodusio, também otestemunho se perde [uuk: © conceito de aura permite resumir essas caracteristicas: que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte &a sua aura (BENJAMIN, 1984, p. 168). Nesse sentido, quanto maior for as formas de autenticidade e liberdade tanto da arte como da meméria, maior ser 0 horizonte de percepgao e expectativas das suas identidades culturais e artisticas, A meméria assim como aarte, esto ambas situadas entre o campo da vivencia e ovalor da experiencia, sejam essas, espirituais ou materiais de significagao criativas, a partir dos seus testemunhos. Porém ambas resistem a0 tempo e se afirma como valor de culto ou valor de exposigao. A meméria e a arte coexiste nessa encruzilhada de identidade e se transforma em elementos da cultura permanente nas sociedades. Nomeamos a arte ¢ a meméria, com base nos processos conceituais da identidade, porque damos a ambas um valor de identificacdo partir de uma dlassificagio conceitual, com a qual nos permitimos conserva-las dentro de espacos especificos, sobretudo em espacos relativos a cultura e seu campo. ‘A meméria e a identidade nesse sentido, sio elementos importante para esse processo de formagao dos valores das tradigdes, que sto ressignificados pelos FBENJAMIN, Walter. A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In, Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e politica, Sio Paulo, Brasliense. Pag. 175, 1996, 89 ®& | | & processos culturais, quando compartilhados numa sociabilidade coletiva, Na visio de Jaques Le Goff (1984)? uma das preocupagées dos grupos sociais, € culturais na historia € tornarem-se senhores da memoria e do esquecimento, pois 0 processo de construgao e dominio da meméria coletiva funda uma estruturagio de uma identidade de poder. J4 para Paul Ricoeur (2000)* as dimensdes da memoria se inscrevem nas relagdes das formas de reconhecimento, individualidade e coletividade dentro das culturas. Ble afirma que a meméria esta diretamente ligada a linguagem eao contetido do conhecimento que é produzido socialmente, sobretudo 0 contetido das riquezas culturais das sociedade. A meméria, nesse sentido, é pensada em bases coletivas ¢ demanda o entrecruzamento entre relagdes individuais e coletivas, naquilo que Ihe é particular € que esté préximo de forma comum na sociedade compartilhada pela arte e pela cultura Dentro desse contexto, a meméria é um dispositive que é ativado como mecanismo de afirmagio identitéria no campo cultural mediado pela arte. Esse dispositive funciona como um modo de auto-reconhecimento, disponibilizando elementos do passado para atuar no presente e criando, formas de representasio social dos valores da tradicio que podem ser emblemiticos para a difusio das culturas e dos saberes Tocais nos processos futuros. Com isso, a meméria além de set um mecanismo de auto referéncia, também permite que o contetido histérico € testemunhal recuperado pelos grupos sociais seja valorizado culturalmente, sendo assim apresentado para fora de seu circulo social, como um simbolo de identidade, Numa perspectiva mais antropolégica, Gilberto Velho (1994) afirma que meméria, identidade, formam-se num contexto de projeto e sio assim, faces singularizadas de um mesmo prisma que reflete realidades de processos individuais ¢ sociais dentro da cultura, sobre a qual as formas de arte sio fundamentais. Os trés elementos, meméria, identidade e projeto estio articulados de modo seminal €.a partir deles a meméria constitu’ uma forma de identidade e encerra um projeto de futuro com base numa configuragio cultural. Da mesma forma toda formacio identitiria se alicerga em bases de memérias coletivas e negocia com a realidade por meio de projetos afirmativos, Nesse sentido ha, para Gilberto Velho, uma retro- alimentagdo entre identidade e meméria que leva as formas de expresses culturais, nas quais asartes de uma maneira geral servem como elemento de afirmacio histérica. LE GOFF, Jacques. “Documento/monumento” In Memdria e Historia. SP: Ed. Unicamp, 1984, "RICOEUR, Paul, La mémoire, Lhistoire. Loubli, Paris: Seuil, 2000 5 VELHO, Gilberto. “Meméria, identidade e projeta” Projetoe metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994 90 ®& ‘Vemos com isso uma aproximagio entre a perspectiva antropolégica de Gilberto ‘Velho com a perspectiva filoséfica de Benjamin, anteriormente citado. ‘Com base nessas referéncias sobre a relagio entre meméria coletiva identidade argumentamos que a construcio de artefatos culturaise visuais fundados na meméria coletiva transcende uma representagio estética dos grupos ¢ adquire uum caréter politico de afirmagio ¢ reconhecimento identitério. Uma vez que a construcio dos conjuntos simbélicos da identidade tem se expressado cada vez. mais, através desses elementos de diversidade visual, defendemos que se torna necessirio investigar sociologicamente o desenvolvimento desse processo de publicizagio da imagem da cultura e do saber local, através das artes, A ideia de conjuntos simbélicos relativos & imagem, expressa uma ratificagio dos simbolos mais fortes, ou seja, os simbolos com maior poder significante no espago cultural, tornando possivel a caracterizagéo dos icones da identidade dessa cultura, Se observarmos 0 quadro Guernica de Picasso, obra prima do pintor, que até hoje serve de icone simbélico da diversidade politica e cultural espanhola, a partir de seus variado elementos identitérios, veremos que © conjunto simbélico presente nesse painel, exposto no museu reina Sofia em Madri, tem um cardter agregador de uma identidade em processo, com icones simbélicos e representagoes visuais de ‘lementos identitirios, como pode ser visualizado pela foto do quadro abaixo,* que afronta a tentativa de estabelecimento de um signo nacional nacionalista que tenta ser imposto, como identidade tinica da Espanha, pelo fascismo espanol representado pelo poder militar Franquista. com base nisso que as imagens das formaySes identitérias ganham forga politica e, assim, de representario ideol6gica se solidificando a partir da meméria coletiva dos grupos culturas, © Foto do quadro Guernica, exposto no Museu Reina Sofia, Madrid 1 ®& | | & Seo poder da liberdade é constitutivo tanto da arte como da meméria, o lugar de sua conservagio tem inevitavelmente que atender esse mesmo critério, sob pena de perder a identidade igualmente constitutiva a arte e a meméria. © que é identidade dentro desse contexto? Definimos por identidade o valor epistemolégico que caracteriza um projeto, um reconhecimento ou uma afirmacao, nna busea do seu proprio locus em relacao ao reconhecimento outro. Nesse sentido a nocio de identidade empregada aqui compreende o valor da alteridade. Ou seja, © valor do outro, do diferente, do que nao se limita ao uno, ¢ sim a0 miltiplo e 20 diverso Na arte, o papel da vanguarda € 0 de delimitar 0 lacus esético da sua propria indentidade em relagio ao contexto cultural vigente. Nesse sentido, a estética e a diversidade identitria da arte tem um papel fundamental na valorizagio do processo de se reconhecer no presente os elementos valorativos do futuro. A arte de vanguarda, projeta uma identidade futura, com elemento do passado, vejamos por exemplo o modernismo brasileiro e sua estética vanguardista presente nos anos vinte, onde sua recepgio foi um tanto quanto revolucionaria no contexto da identidade cultural e artistica brasileira. Vejamos os impressionistas franceses e todo contexto de incompreensio inicial da critica europeia, quanto as inovagies estéticas que eles propuseram. A identidade estética da arte estd a frente do tempo, mas se constitui no seu presente olhando o seu pasado, Um quadro representativo desse movimento entre futuro, presente e pasado, & 0 Angelus Novus, pintado pelo artista, Paul Klee. No qual imagem de um anjo se precipita para o futuro, empurrado por uma tempestade muito forte que prende suas asas, mas ele mantém um olhar fixo para o passado, no qual vé a destruigio da qual ele ¢ afastado pela tempestade que o empurra para a frente. © anjo contempla a destruigio histérica e a meméria dos processos da modernidade. Uma espécie de testemunho de meméria projetada através da pintura moderna. Com isso arte ¢ meméria tem suas sinteses contidas nas suas mudancas, € no valor que cada qual ao seu modo permite transformarem-se em novas coisa a cada interpretacao critica, O critico nomeia, classifica e identifica, o que a arte ao seu ‘modo, transforma e liberta, A meméria cristaliza o que a experiencia testemunhou € a imaginagZo criou. Os processos de liberdade em ambos é fundamental para suas existéncias ontolégicas. A questo importante a esse respeito é saber se as instituigdes formais, como galerias, museus, bibliotecas, arquivos, e outros dispositivos de preservacio € conservacio, estioaptosaambientarem aliberdadeda arte e dameméria vivaem forma 92 ®& | | & de expressées simbélica, abstratas ou materiais. Creio haver uma indeterminagio contemporanea relativas ao conceito de “preservagio” e “conservagio’, pois cada ver mais conservar e preservar esté associado a nao mudar. Ou seja, negar 0 “Devir” das coisas, Dentro desse contexto, uma das preocupasdes dos grupos institucionais, seja do ponto de vista social, cultural, histdrico ou politico é tornarem-se senhores ‘da meméria, pois 0 processo de construgdo e dominio da meméria, se funda numa estruturagio de poder. © dominio de meméria ¢ em certa medida o dominio dos registros da experiéncia e da busca relativa ao reconhecimento dessa experiéncia alheia, ou propria. Nas artes visuais isso é fundamentalmente verdade e na fotografia esse aspecto fica ainda mais evidente. A afirmagao de que a fotografia como uma forma de arte nio tem nenhuma fungao aprioriaisenta, porum ado, de um essencialismo funcional queaacompanhou durante 0 século XIX ¢ inicio do século XX, e, por outto lado, the confere liberdade para se valer de qualquer sentido artistico estabelecido a posteriori ‘A fotografia em si se presta a expressar através de uma linguagem artistica 0 conteiido de uma imaginacio visual livre. Com isso, a fotografia pode se tornar um documento social com os mesmos critérios estéticos de um documento de arte, um, documento/monumento com diria Le Goff (1984, op. cit.), na medida em que passa a ocupar um espago piblico nos periddicos, jornais e nos arquivos e bibliotecas, se valendo de um certo poder de formacio e informagio cultural e politica da opiniao piiblica e da meméria social. Da mesma forma que a literatura contribuiu para 0 imaginario ficcional dos séculos XIX e XX, a fotografia e as artes visuais, de uma maneira geral, vém contribuindo para a construgéo do imaginério visual no século XXI, sobretudo as artes digitais presentes no contexto contemporaneo. Sem diivida esse processo serve ainda para a formagio de meméria social compartilhada, que hoje se encontra digitalizada e disponivel na WEB e na paginas sociais ou exposta nos muros da cidades em forma de arte grafite. Quando pensamos numa tomada das artes através da imagem, estamos querendo nos referir também a modos alternativos de exposigdo e circulagio da experiéncia artistica, no qual se insere a experiencia de producio e divulgacéo de imagens feitas pelos diferentes protagonistas de artes, divulgadas através das diversas redes sociais, (witters, instagrams, flickr, vimeo, youtubes, facebooks), numa situasao € conjuntura que Ihes conferem um carter de autenticidade, autonomia ¢ de circunstancialidade, promovida pelas artes visuais em particular a fotografia 93 ®& | | & Conforme Gisele Freund (2011),’ no século XIX a fotografia, como um documento social, foi uma forma de expressio e comunicacio artistica que possibilitou a representagio da realidade politica, social e de classe pelo caréter de cengajamento que os artistas deram as suas expresses fotogréficas. Segundo Freund: “Con los inicios de la conciencia de classe de los trabajadores y el acenso de las capas pequeno burguesas, se formaba una generacion de artistas que figura en los inicios de una critica social consciente”, (2011, p. 68). Nesse contexto histérico, a fotografia se prestou a agir como instrumento de luta politica e a arte fotogrifica deu os primeiros passo no contexto do engajamento politico e social. Esse é um dos fatores que Freund (2011) advoga para o reconhecimento da fotografia com documento sociale histérico de arte A documentagio fotogrifica organizada em forma de narrativa imagética nos convida a sentir a experiéncia do olhar através dos registros fotogrificos que testemunharam a histéria e, a0 mesmo tempo, colaborar no entendimento dos significados de determinados fatos ou processos importantes historicamente Segundo Lowy (2009)."as fotos relativas a processos revolucionérios “revelam. ao olhar atento do observador uma qualidade magica, ou profética, que as torna sempre atuais, sempre subversivas. Flas nos falam sempre de um passado e de um futuro possivel” (p. 19). dessa forma que podemos entender as fotografias de guerra, por exemplo, como um género fotogréfico da historia que visa interpretar um contexto de conflito bélico e transportar o leitor para o momento retratado pelo exercicio da imaginagio histérica, Sem entrarmos em termos comparativos, mas apresentando um carster de significagdo das artes visuais, poderemos afirmar que através da arte testemunho, 0 Quadro Guernica, feito por Picasso para retratar sua posigio frente a Guerra Civil Espanhola ¢ 0 conjunto de documentagao fotografia de Robert Capa, Chim e Gerda Taro, sobretudo constituido pelo conjunto de 4500 negativos fotograficos perdido por mais de setenta anos na maleta mexicana, como esses abaixo, feitos em Cierro ‘Murano, durante a ofensiva dos milicianos contra o exército franquista em 1936. TREUND, Gisele. La Fotografia como Documento Social. Editorial Gustavo Gil Barcelona, 2011. * LOWY, Michael (Org,) Revolugdes, Séo Paulo, Bointempo. 2011 94 ®& Sao expressdes testemunhais de uma documentagao visual de vanguarda, através dos quais se afirmam um projeto de identidade politica para a Espanha dos anos trinta através de uma guerra. Essas fotos em seu conjunto expressam o inicio de uma estética fotografica de guerra, produzindo nao s6 imagens mais também uma estética de memoria testemunhal de um periodo sombrio da modernidade europeia, ( testemunho dramitico das fotografias de guerra, como expressio artistica, busca provocar no observador uma explosio de sentimentos ¢ 0 convencimento coletivo acerca do absurdo que envolve a guerra. A documentagio fotogréfica organizada em forma de narrativa imagética nos convida a sentir a experiéncia do olhar através dos registros fotograficos que testemunharam a histéria e, a0 mesmo tempo, colaborar no entendimento dos significados de determinados fatos ou processos importantes historicamente. f dessa forma que podemos entender as fotografias de guerra, por exemplo, como um género fotografico que visa interpretar tum contexto de contflito bélico e transportar o leitor para o momento retratado pelo exercicio da imaginagao histérica Todas essas obras de arte visuais sio patriménios artisticos e culturais guardados como artefato visual de meméria, no Museu Reina Sofia, em Madri e no Center International of Photography em New York. 95 | | & [As artes visuais sio formas de representasio e identificagio dos contetidos simbélicos das sociedades e através das quais os icones de significacio culturais ganham tum valor de exposigio acentuado, Segundo Barthes (1989),’ a ideia de conjuntos simbélicos relativos & imagem expressa uma ratificagio dos simbolos mais fortes, ou seja, 0s simbolos com maior poder significante no espaco cultural, tornando possivel a caracterizagao dos icones da identidade dessa cultura. & com base nisso que as imagens das formagdes identitirias ganham forga politica e, assim, de representagio ideolégica, solidificando-se a partir da meméria coletiva dos grupos culturais. Nesse sentido ha uma gramatica visual nesse contexto de arte e essa serve ‘muitas vezes para apresentar um conteiido ideolégico através do discurso estético. A fotografia é, indiscutivelmente, uma forma de expresso no campo da arte visual, universalmente acessivel e relativamente fécil em sua dimensio pritica, mas seguramente a sua forma de estruturagio estética e 0 seu processo de interpretacio imagético se inscrevem dentro do campo simbélico da arte. Esse campo é estruturado pelo processo de representagio e significagio da realidade na produgio de determinados tipos de saberes estéticos e valores criticos. Segundo Bourdieu," a fotografia, em sua dimensio pritica, €acessivel como bem cultural, universalmente consumido; complemento essa assertiva afirmando que tal prética cultural proporciona a constituicao de um banco de memoria visivel, disponivel no campo das artes visuais ¢ em particular na cultura visual. Ha algo que tangencia a fotografia e a meméria; ambas sio um processo de edigao em que a escolha do que vamos ver e memorizar é definida por um esquema de selegio, No caso da fotografia, esses critérios sao definidos a partir do que se quer mostrar com base na a¢io social do olhar; percebo, escolho, fago a medigio da luz, componho ¢ registro fotograficamente em forma de arte. No ato fotogrifico, hé uma relacio dialética entre realidade e representagio na qual a sintese é quase sempre a representagio da representagio, ou seja, no processo de ancoragem da percepgao fotogrifica, a escolha do recorte do real imagético registra uma representacdo esteticamente instrumentalizada que descontextualiza o real a partir da experiéncia da luz, através do claro/escuro. A imagem fotogrifica € uma criagio cultural das formas sociais do olhat. ‘A construgio social da imagem e da imaginagio sdo fenémenos préximos A construgio social da meméria; em todos esses casos, hi aquilo que chamamos anteriormente de processo de selesio (escolha) edigio (corte); tanto um como * “BARTHES, R. 1989, Mitologias. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil '© BOURDIEU, Pierre. 1979. La definicion de la fotografia, em Bourdieu, P. (org), La Fotografia: Um Arte Intermédio, México, Editorial Nueva Imagem, 96 ®& | | & oa | ‘outro irdo compor a percepsao (estética) da coisa a ser vista dentro de um suporte fisico (imagem fotogrifica) ou imaginada (projegdes mentais) Se memorizar ¢ criar um registro de imagem, fotografar € memorizar um momento em forma de presenga € auséncia de luz, ou seja, registrar com luz € sombras uma imagem em um suporte fisico, seja esse um filme, um sensor eletrénico ‘ou mesmo diretamente um papel fotossensivel, como se faz na fotografia pinhole. Isso faz com que a fotografia assim como a meméria sejam residuos imaginados da realidade € ao mesmo tempo, afirmagio visual ¢ imaginativa da propria realidade criada. Uma vez que a construgio simbélica da identidade tem se expressado cada vex mais através desses elementos de diversidade visual, defendemos que se torna necessério investigar de forma transdisciplinar 0 desenvolvimento desse processo cultural da imagem e da identidade através das artes. Considerages Finais Dentro desse contexto,o conceito de cultura visual, relativo & arte, & meméria © & identidade, toma proficua a proposta analitica transdisciplinar ao valorizar a relagio que os artefatos visuais estabelecem com outras linguagens e/ou sentidos, a0 mesmo tempo em que destaca os valores ¢ identidades que sio difundidos através dessa forma de mediagéo, que podem estar representados por uma tela a dleo ou _mesmo as arte visuais eletrdnicas contemporineas mediadas pela internet. Nessa perspectiva, o visual & um lugar de construgio e de discussio de significados, ou seja, um fendmeno cultural e social que expressa, através de suportes formais, significagées sobre uma dada realidade social e, por isso, mostra-se pertinente captar seus sentidos. A anilise das formas de construcio, fruicio e reprodugio dos elementos que compoem os artefatos visuais, através das artes, produzidos e disseminados pelas varias formagées culturais ehistéricas, torna-se uma forma deacessaras ensibilidades © 0s contetidos simbélicos das identidades culturais. E com isso, identificar seus cédigos, redes de sociabilidades, linguagens e pertencas identitarias para que se possa, reconstruir a meméria politica ¢ cultural das sociedades contemporaneas. 97 | | & oa | Referéncia BARTHES, R. 1989, Mitologias, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil BENJAMIN, W. A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e politica. Sao Paulo, Brasiliense, 1996, BOURDIEU, P. 1979. La definicién de la fotografia, em Bourdieu, P. (Org), La Fotografia: Un Arte Intermédio. México, Editorial Nueva Imagem. FREUND, G, La Fotografia como Documento Social. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2011 HALBWACHS, M. La mémoire collective. Paris: PUR, 1968, 215 p. HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundagéo Calouste Gulbenkian, 2004 LE GOFF |. Documento/monumento. Meméria e Historia. Sio Paulo: Ed. Unicamp, 1984, LOWY, M. (Org,) RevolugGes. Sio Paulo: Boitempo, 2011 RICOEUR, P. La mémoire. Lhistoire. Loubli. Paris: Seu, 2000. VELHO, G, Meméria, identidade ¢ projeto, Projeto ¢ metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, 98

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