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SOBRE VERDADE E MENTIRA no sentido extra-moral T Em algum remoto recanto do universe, que se desigua fulgurantemente em inumerdveis sis- temas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso ¢ hipéerita da “histo- ria universal”: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Apds alguns respiros da natureza, 0 astro congelou-se, ¢ os astuciosos animais tiveram de morrer. Alguém poderia, desse modo, inventar uma fabula ¢ ainda assim nao teria ilustrado sufi cientemente bem quao lastimavel, quéo sombrio e efémero, quia sem rumo e sem motivo se des taca o intelecto humano no interior da natures houve eternidades em que ele nao estava presente; quando cle tiver passado mais uma vez, nada tera ocorrido. Pois, para aquele intelecto, no ha nenhuma missao ulterior que conduzisse para além da vida humana. Ele é ao contrario, hu mano, sendo que apenas seu possuidor ¢ gerador 0 mo se os eixe toma de maneira tao patética, c 26 | SOBRE VERDADE MENTIRA mundo girassem nele. Mas se pudéssemos pér-nos de acordo com o mosquito, aprenderiamos entao que ele também flutua pelo ar com esse pathos ¢ sente em. si o centro esvoagante deste mundo, natureza, nado ha nada tao ignobil e insignificante que, com um pequeno sopro daquela forga do conhecimento, nao inflasse, de siibito, como um saco; e assim como todo carregador de peso quer ter seu admirador, 0 mais orgulhoso dos homens, o filésofo, acredita ver por todos os lados os olhos do universo voltados telescopicamente na direcaio de seu agire pensar! curioso que isso seja levado a efeito pelo inte lecto, precisamente ele, que foi outorgado apenas ome instrumento auxiliar aos mais infelizes, fra- geis © evanescentes dos seres, para conservé-los um minuto na existéncia; da qual, do contrario, sem essa outorga, eles teriam todos os motives para fu- gir to rapidamente quanto o filho de Lessing* 4 Friedrich Nietzsche, Cher Hakrhett und Liige an ausser Werke. Kritische Studie nausgabe, Giorgio Collie Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, pp. 873-890 2 ‘ido por Nietssche como um “erudito ideal” (Cf, B. Ni moralischen Sinne. Fan Séertlic etzsche, Fragmento péstumo do inverno de 1869 ¢ da pri 70, n® 2 [12 m Samtliche Werke. Kritis che Smudienausgabe, Giorgio Colli « Mazzino Montinari, Ber lim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, vol. 7, p. 44), Gorthold Ephraim Lessing (1720-1781) pandera, muma re mavera de 1 NIETZSCHE Aquela auddcia ligada ao conhecer © sentir, que se acomoda sobre os ollos ¢ sentides dos homens qual uma névoa ofuscante, ilude-os quanto ao va- lor da existéncia, na medida em que traz em si a mais envaidecedora d valorativas so- apreciagde: bre o proprio conhecer. Seu efeito mais universal é engano — todavia, os efeitos mais particulares tam- bém trazem consigo algo do mesmo carter. Como um meio para a conservagio do indivi duo, o intelecto desenrola s1 forcas na dissimulagao; pois esta constitui o meio pelo fax isso de uma mar ind vidualista ¢ ainda por cima nociva, en ciedade nao confiard mais nele ¢, com isso, tra lo. N tanto ser ludibriados quanto lesadas pelo engano. tara de exch so, os homens nao evitam Mesmo nesse nivel, o que eles odeiam fundamen talmente nao é o engano, n as conseqiiéncias ruins, hostis, de certos géneros de enganos. Num sentido sermelhantemente limitado, o homer tam bém quer apenas a verdade. Ele quer as conseqiién cias agradaveis da verdade, que conservam a vida; frente ao puro conhecimento sem conseqiiéncias cle ¢ indiferente, frente as verdades possivelmente prejudiciais e destruidoras ele se indispée com hos- ulidade. las cony , inclusive. E mais até: como ficam aque- ngdes da linguagem? Sao talvez produtos do conhes nento, do sentide de verdade: as desig- nagdes © as coisas se recobrem? Entao a lingua sas realida gem é a expressdo adequada de tod: des? Apenas por esquecimento pode o homem al guma vez chegar a imaginar que detém uma ver dade no g 1 ora mencionado. Se ele nao espera contentar-se com a verdade sob a forma da tauto logia, isto 6, com conchas vazias, entdo ira permu- lar etername! te ilusdes por verdades, O que é uma NIETZSCHE palavra? A reproduciio de um estimulo nervoso em sons. Mas deduzir do estimulo nervoso t ma causa fora de nds ja ¢ 0 re lado de uma aplicagao fals © injustificada do principio de razto. Come pode- jamos, caso tdo-somente a verdade fosse decisiva na génese da linguagem, caso apenas o ponto de vista da certeza fosse algo decisério s designa ges, como poderiamos nos, no obstante, diz a pedra é dura; como se esse “dura” ainda nos fosse conhecido de alguma outra maneira € niio s6 como um estimulo totalmente subjetivo! Seccionamos as coisas de acordo com géneros, designamos a ar vore como feminina e 0 vegetal como masculino: mas que transposigdes arbitrarias! Quao longe vo. an os para além do canone da certeza! Falamos sobre uma serpente: a designagao nao tange se nao ao ato de serpente: servir e, portanto, poderi também ao verme. Mas que demareagoes arbitra- rias, que preferéncias unilaterais, ora por esta, ora Dis- postas lado a lado, as diferentes linguas mostram por aquela propriedade de uma dada cois que, nas palavras, 0 que conta nunea é a verdade, jamais uma expressio adequada: pois, do coutré rio, nao haveria t “coisa em si” ntas linguas. A (ela seria preci amente a pura verdade sem qua quer conseqiiéncias) também é, para o criador da linguagem, algo totalmente inapreensivel e pelo qual nem de longe vale a pena esforgar-se. ¥ le de- 34 SOBRE VERDADE signa apenas as relagdes das coisas com os homens ©, para expressa-las, serve-se da ajuda das mais ou- sadas metiforas, De antemao, um estimulo ner- ‘i sO (ransposto em uma imagem! Primeira meta- fora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metifora. E, a cada vez, um com pleto sobressalto de esferas em diregao a uma ou- tra totalmente diferente « nova. Pode-se conce- ber um homem que seja completamente surdo e que jamais tenha tide uma sensagio do som e da mitsica: da mesma forma que este, um tanto es- pantado com as figuras sonoras de Chladni sobre a arcia,? encontra suas causas na vibragio das cordas 2 © texto faz meno ao experimento levado a cabo pelo fi sic alemio Ernst Chladni (1756-1827) que se destina a ve rificar a ocorréncia de certas formas vibratérias e que con vém, aqui, explicitar. Basicarnente, trata-se de cobrir a su perficic de uma placa circular de madeira, vidro ou metal, com leves particulas de areia — em realidade, cortiga em po para, com o auxilio de um arce de violino, provecar vibra gies em lugares especificos na borda do disco assim disposto. Em consegiiéneia das vibragdes, as particulas da plaea ter minam por se dividir em diversas segdes, movimentando-se aqui ¢ acoli, para cima e para baixo, formando tragas limi trofes ¢ linhas nodais entre as areas mais agitadas ¢ as xonas com menor intensidade vibratil. Ao longo de tal proceso, as particulas polvilhadas tendem a espalhar-se em meio as extensdes mais Vibrantes ¢ acumularse | onde a vibra menor, de sorte que, de acorda com a forma do disco e conforme local em que nele é provocade 6 movimente vi bratério, diferentes figuras sonoras vém A superficie, Aqui e jurara que agora nfo pode mais ignorar aquilo que os homens chamam de som, assim também sucede a todos nés com a linguagem. Acreditamos saber algo acerca das préprias coisas, quando fa- lamos de arvores, cores, neve e flores, mas, con isso, nada possuimos senda metiforas das coisas, que nao correspondem, em absoluta, as essenc o melhor mesmo ¢ recorrer as palavras do préprio fisico ale mao, Em sua principal obra, f aciustica, ele diz: pod Pode-se servir, inclusive, de plas ‘As placas m ser de vidre ou de um metal bastante sonoro {...) as de madeira, mas, nesse caso, as figuras nao serio regulares, ja que a clasticidade nia éa mesma nos diferentes sentidos, Normalmente, sirvo-me el encontra-las facilmente de placas de vidre, ja que ¢ pos sols a iesma espessura e porque sua transparéncia permite enxergar os locais nos quais so tocadas, com os dedos, por debaixe”. (Erust Chladni, Die Akustit, Leipzig, Breitkopt u, Hiriel, 1802, p. 118-19). Mais adic sobre as placas circalares, ele esclarece: “No que tange aos ti ate, especificamente pos de vibracie de uma placa cire diametrais on circulares|. jar, as linhias nodais sao ou .] Exprimirei o mimero de linhas PO: sicionande o ntimero atinente as linhas nodais nas diregdes diametrais antes do trago qu nodais da mesma forma que os das placas retangulare: separa os dois nimeros por mim indicades, ¢, depois de trago, © niimero de linbas no: dais paralelas 4 borda, sendo que estes tiltimo em algarismas romanos, A: a serio escritos im, por exemplo, 2/0 ira indicar fipo de vibragdo no qual nado ha sendo duas linhas diame trais; 0/1 ag [...] 2/0.em que duas linhas diametr: [figura 99) é, dentre tod: vale ao som mais grave” je que n@o apresenta sendo mina linha circular am no centro se erur as figuras possiveis, aquela equi 33 SOBRE VERDADE EB MENTIBA lidades originais. ‘Tal como o som sob a forma de figura.de-2 reia, assim se destaca 0 enigmatico da coisa em si, uma vez como estimulo nervoso, em segu a como it gem, ¢, por fim, como som.* De qualquer modo, o surgin “nto da linguagem nao (lbid.p. 156-157.) * As figuras de Chladni sto oportunas a Nietzsche, porque servem para indicar, a partir do Ambito sonore, a tmpossibili dade de expressar adequadamente a “verdadeira™ realidade do mundo. Assim como tais figuras se incumbem de editar cépias dos sons noutre meio — na areia, no caso, assim tam bém se relacionariam as palavras cont as coisas, a saber, a par tir da transposigao de um estimulo nerves em imagem ¢, de is, em som. O homem, inflexivel em relagio ao enigmatico “x” por detras do que fala © escuta, contemplaria em vio os desenhos sonoros sem neles descerrar qualquer passagem ao legitimo “ser” das coisas. Afinal, come di ietesche alu res: “Nie podemos pensar as coisas tais como elas sao, pois nao deveriamos justamente pensi-las. ‘Tudo permanece as sum, tal como : iste é, todas as qualidades revelam uma ma térin indefinida ¢ absoluta. A relagio aqui se dé como aquela que as figuras sonoras de Chladni estabelecem cam as vibra goes” (F, Niewzsche, Fragmento péstumo do verio de 1872 e inteio de 1875, n° 19 [140], Em Sa@miliche Werke. Kritische teiro ma- procede, pois, logicamente, sendo que 0 i terial no qual e com © qual o homem da verdade, © pesquisador, o filésofo, mais tarde trabalha e ed fica, tem sua origem, se nado em alguma nebulo a, em todo caso nao na esséncia das cud sas. Ponderemos ainda, er especial, sobre a forma- cao dos conceitos: toda palavra torna-se de imedi- ato um conceit 4 medida que nao deve servir, a titulo de recerdagae, para a vivéncia primordial completamente singular e individualizada a qual deve seu surgimento, sendo que, ao mesmo tempo, deve coadunar-se a inumeraveis casos, mais ou me nos semelhantes, isto é, munca iguais quando to- or mados a risea, a casos nitidamente desiguais, tanto. ‘Todo conceito surge pela igualagdo do nao igual. Tao certo como uma folha nunea é total- mente igual a uma outra, é certo ainda que o con- ceito de folha é formado por meio de uma art traria abstragdo dessas diferengas individuais, por um esquecer-se do diferenciavel, despertando en lo a representacao, como se na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folha”, tal come uma forma primordial de acordo com a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, contormadas, coloridas, encrespadas e pintadas, mas por méos Studrenausgabe, Giorgio Galli ¢ Mazzino Montinari, Berlim Nova York, Walter de Gruyter, 1999, vol. 7, p. 464 SOBRE VERDADE E, MENTIBA ineptas, de sorte que nenhum exemplar resultasse correto e confiavel como copia auténtica da forma primordial. Denominamos um homem honest perguntamos er fio: por que motivo ele agiu hoje de modo tao honesto? Nossa resposta costuma ser a seguinte: em fungdao de sua honestidade. A ho a folha é a causa das folhas. Nada sabemos, por certo, a na vex vw nestidadet U 8, isso signi respeito de uma qualidade essencial que se cha masse ho: de intime- stidade, mas, antes do ma ras acdes individualizadas e, por conseguinte, de- siguais, que igualamos por omissao do de: gual e passamos a designar, desta feita, como agdes hones tas; a partir de as formulamos, finalmente, uma quatitas occulta com 6 nome: honestidade. do individual e efetivo nos for A inobservanei nece o cor eito, bem como a forma, ao passo que a natureza desconhece quaisquer formas ¢ conce tos, ©, portanto, também quaisquer géneros, mas tao-somente um “x” que nos é inacessivel e inde- finivel. Pois até mesmo nossa oposigio entre in dividuo e género é antropomérfica, e ndo advém da essén tia das coisas, ainda que no arrisquemos dizer que ela nio Lhe corresponde: isso seria, efeti- vamente, wma assercdo dogmatica e, como tal, to indemonstravel quanto o seu contrario. 1 exército mével © que é, pois, a verdade? U de metaforas, metonimias, antropomortismos, NIETZSCHE numa palavra, uma soma de relagées humanas que foram realgadas podtica e retoricamente, transpostas ¢ adornadas, e que, apés uma longa flo, parevem a um pove consolidadas, cant utiliza > ilusées das nicas © obrigatérias: as verdades quais se esqueceu que elas assim o siio, metaforas que se tornaram desgastadas e sem forga sensivel moedas que perderam seu troquel e agora sao levadas em conta apenas como metal, e nao mai como moedas, Ainda nao sabemos donde provém © impulso a verdade: pois, até agora, ouvimos falar apenas da obrigagdo de ser veraz, que a isto é, de utilizar « sociedade, para existir, institu as metaforas habituais; portanto, dito moralme: da obrigagao de mentir conforme uma convengio ; mentir em rebanho num estilo a to consolidad dos obrigatério. O homem decerto se esquece que é assim que as coisas se lhe apresentam; ele mente, pois, da maneira indicada, inconscientemente e conforme habites seculares — e precisarmente por meio dessa inconsciéncia, justamente mediante esse esquecer-se, atinge o sentimento da verdade. No sentimento de estar obrigado a in r uma coisa como vermelha, outra como fria e uma ter- ceira como muda, sobrevém uma emogio moral atinente a verdade: a partir da contraposicgio ao mentiroso, Aquele em quem ninguém confia e que todos excluem, o homem demonstra para si o SOBRE VERDADE EF. M IRA que ha de veneravel, confiavel e util na verdade. Como ser racional, poe seu agir sob o império das abstragdes: j4 nao tolera mais ser arrastado por mpressies repentinas, pelas i igdes, sendo que universaliza, antes, todas essas ipressdes em con ceitos mais desbotados ¢ frios, para neles atrelar 6 veiculo de seu viver e agir. Tudo aquilo que sobreleva o homem ao animal depende dessa capa- cidade de volatilizar as metaforas intuitivas num esquema, de disselver uma imagem mum cenceito, portanto; no ambito daqueles esquemas, torna-se possivel algo que nunca poderia ser alcangado sob a égide das primeiras impressdes intuitivas: erigir uma ordenag: (0 piramidal segundo castas © gradagées, criar um nove mundo de leis, p vilégios, subordinagdes, deli itagoes, que agora fax frente ao outro mundo intuitive das primeiras impressties como o mais consolidado, universal, conhecido, humano e, em virtude disso, como o indo regulador e imperativo. Enquanto cada metafora intuitiva é indivi inal © desprovida de seu correlata, e, por isso, sabe sempre eludir a todo rub ‘ie r, 0 grande edificio dos conceitos exibe a inflexivel regularidade de um columbario romano xala na légica aquela du za e Frieza que s o proprias 4 mateméatica, Aquele que é baforado por essa frieza mal acreditaré que mesmo o canceito, ossificado ¢ octagonal como um dado e tao rolante NIETZSCHE como este, permanece tio-somente o residuo de uma metéfora, sendo que a ilusio da transposigao artistica de um estimulo nervose em in gens, se nao é a mae, é ao menos a avé de todo conceito. Mas, no interior des denomina-se “verdade jogo de dados dos conceitos, a utilizagtio de cada dado tal como ele é designado; comtar seus pontos con acuidade, formar rubri Ss corretas ¢ jamais aten- tar contra a ordenagao de castas, bem como contra a seqti@ncia das classes hic rquicamente organ zadas. ‘Tal como os romanos e etruscos dissecavam o céu através de firmes linhas matematicas e relegavam um deus num espaco assim demareado, come num templo, assim cada povo tem sobre si um equivalente céu conceitual matematicamente dividido ¢, sob a exigéncia da verdade, agora en tende que cada deus conceitual deve ser buscado apenas em sua esfera, Aqui, cabe muito bem admirar 0 homem como um formidavel génio da construgio, capaz de erguer sobre fundamente instaveis ¢ como que sobre agua corrente um domo de conceitos infinitamente complicado; por certo. a fim de manter-se firmemente em pé sobre tais fundamentos, cumpre ser uma construgao como que feita com teias de aranha, suficientemente delicada que possa ser levada pelas ondas ¢ firme o bastante para no ser despedacada pelo sopro do » da constr vento. Como gé Jo, o homem eleva- 30 SOBRE VERDADE E ME se muito acima da abelha na seguinte medida: esta tltima const si a partir da cera, que ela recolhe da natureza, ao passo que o primeire a partir da matéria muito mais delicada dos conceitos, que precisa fabricar a partir si mesmo. Aqui, cumpre admira-lo muito, mas ndo somente por causa de thecime! seu impulso 4 verdade, ao ca to puro das coisas. Quando alguém esconde algo detras de um arbusto, volta a procura-lo justamente lA onde o A muito escondeu e além de tudo 0 encontra, nao | do que se vangloriar nesse procurar e encontrar: ea m que se dé com © procurar e encontrar da “verdade” no interior do dominio da razio. Se erio a definigio de mamifero e, af entdo, apds inspeci- onar um camelo, declaro: veja, eis um mamifero, com isso, uma verdade decerto é trazida 4 plena luz, mas ela possui um valor limitado, digo, ela € antropomoérfica de fio a pavio e nfo contém um (mice ponto sequer que fesse “verdadeira em si”, efetivo e universalmente valido, deixando de lado o homem, Em principio, o pesquisador dessas verdades procura apenas a metamorfose do mundo nos homens; esforga-s¢ por uma compreensio do mundo visto como uma coisa propria ao homem ©, na melhor das hipéteses, granjeia para si o sentimento de uma assimilagio. A semelhanga do astrélogo que observa as estrelas a servigo dos homens € em conformidade com sua felicidade TZSCH, e sofrimento, assim também um tal pesquisador observa o mundo inteiro come conectado ao ho- mem, como o ressoar infinitamente fragmentade de um som primord al, do homem, como a cbf reduplicada de uma imagem primordial, do ho- mem, Eis seu procedimento; ter o homem por medida de todas as coisas. ilgo que el partindo do erro de acreditar que teria tais coisas 2, porém, como objetos puros diante de si. Ele se esquece, pots, das metaforas intuitivas origmais tais como sdo, metaforas, e as toma pelas proprias coisas. Somente pelo esquecimento desse mundo me taférico primitive, apenas pelo enrijecimento ¢ petrificagio de uma massa imagéti ra que, qual um Hquido fervente, desaguava originalmente em torrentes a partir da capacidade primitiva da fantasia humana, tdo-somente pela crenga imbativel de que este sol, esta janela, esta mesa sao uma verdade em si, em stima, apenas por que o homer se esquece enquanto sujeito ¢, com efeito, enquanto sujeito artisticamente criador, cle vive com certa tranqiiilidade, com alguma seguranga © consegiiéncia; se pudesse sair apenas por un instante das redomas aprisionadoras dessa crenga, entao sua “autoconsciéncia™ de pareceria de ime- diato. Exige-lhe esforco, inclusive, admitir para si mesmo o fato de que o inseto ou o passaro per cebem um mundo totalmente dife: ente daquele Ww SOBRE VERDADE E MENTIRA pereebido pelo homem, sendo que a pergunta por qual das duas percepgdes de mundo é a mais correta néo possui qualquer sentido, haja vista que, para respondé-la, a questio teria de er previa mente medida com o critério atinente a percepgdo correta, isto é, de acordo com um eritério que nao esté a disposicao, A mim me parece, em todo caso, que a percepedo correta — que significaria a expressfio adequada de um objeto no sujeito — & S uma contraditéria absurdidade: pois, entre du esferas absolutamente diferentes tais como entre sujeito ¢ objeto nao vigora nenhuma causalidade, nenhuma exatidae, nenhuma expresso, mas, acima de tudo, uma relagdo estética, digo, uma transposigao sugestiva, uma tradugao balbuciante para uma lingua totalmente estranha. Algo que requer, de qualquer modo, uma esfera interme- diaria manifestamente poética e inventiva, bem como uma forca mediadora. A palavra aparéncia contém muitas tentagdes, dai eu evita-la sempre que possivel: pois nao é verdade que a esséncia das coisas aparece no mundo empirico. Um pintor im, cujas maos Ihe faltassem ¢ quisesse, ainda as expressar pelo canto a imagem por ele visionada, sempre revelara, nessa troca de esferas, muito mais sobre a esséncia das coisas do que aquilo que revela o mundo empirico. A propria relago de ulo nervoeso com a il um est aagem gerada nao é, em si, algo necessdrio; mas, quando justamente a mesma imagem foi gerada milhd ss de vezes © foi herdada por muitas geragées de homens, até que, por fim, aparece junto 4 humanidade inteira sempre na seqiiéncia da mesma ocasiao, entao ela termina por adquirir, ao fim e ao cabo, o mesmo significado para o homem, como se fosse a imagem exclusivamente necessiria ¢ como se aquela relagao da estimulo nervoso original com a imagem gerada constitu ma firme rel causal; assim como um sonho que se repete eterna- mente seria, sem duvida, sentido e julgado como efetividade. Mas 0 enrijecimento e a petrificagao de uma metafora nao asseguram coisa alguma & sua necessidade e justificagao exclusiva Se 1 divida, todo homem que possui familia ridade com tais consideragdes ja sentiu uma pro funda desconfianga frente a todo idealismo desse tipo, logo que se convenceu de maneira suficiente me e clara da eterna conseqiiéncia, onipresenga e infalibilidade das leis naturais; dai rai a sc guinte conclusdo: desde que penetremos em dire cdo as alturas do mundo telescopico ¢ ruma as pro fundezas do mundo micresedpico, aqui tudo ¢ se- guro, completo, infinite, regular e sem lacunas; a ciéncia cavara eternamente com éxito nesses po cos, sendo que todo seu achado concordara consigo mesmo € née ira contradt r-se. Quo pouco isso 13 SOBRE VERDADE E MENTIRA se assemelha a um produto da fantasia: pois, se fo: lugar, a aparéncia e a irrealidade. Em contraposi- esse o caso, teria de tornar pate: em algum © a isso, cumpre dizer: se cada um de nés tivesse para siu a percepedo sensivel diferente, poderia- mos par nés mesmos perceber ora como passaro, ora como verm ora como planta, ou, entio, se al- gum de nos visse 0 mesmo estimulo como verme- Iho, outro como azul e um terceiro o escutasse até mesmo sob a forma de um som, entio ninguém falaria de uma tal regularidade da natureza, mas, de maneira bem outra, trataria de apreendé-la ape nas como uma criagao altamente subjetiva. A ser za? Ela assim: o que é, para nés, uma lei da nature: nao se da a conhecer em si mesma, mas somente em seus efeitos, isto ¢,em suas relagées com outras leis naturais, que, uma vex mais, so se déo a co- nhecer como relagées. Por conseguinte, todas essas relacgdes referem-se sempre umas as outras, sendo que, quanto @ sua esséncia, elas nos sao incompre- ensiveis de ponta a ponta: apenas aquilo que nos Ihes acrescentamos se torna efetivamente conhe cido para nds, a saber, o tempo, o espago e, portanto, as relagdes de sucesso e os ntimeros. Mas, tudo o que ha de maravilhoso, que precisame @ nos as- sombra nas leis da natureza, que exige nosso escla recimento ¢ que poderia conduzir-nos & desconfi- anga frente ao idealismo, assenta-se (nica € exclu- NIETZSC) sivamente no rigor matematico, bem como na invi- page. Estas, no entanto, sao produzidas em nds e a partir olabilidade das representagde: s de tempo € es de nés, com aquela necessidade com a qual a ar nha tece sua tela; se somos compelidos a apreender todas as coisas apenas sob tais formas, entio nao i de se admirar que, em todas as coisas, apre- endemos tao-somente essas formas: pois todas clas devem trazer consigo as leis do niimere, sendo que é exatamente o nimero o mais assombroso das coi- sas. ‘Toda regularidade que tanto nos impressiona na trajetoria dos planetas e no processo quimico coincide, no funde, com aquelas propriecdades que los nas © nés mesmos introdu: as, de sarte que, com isso, impressionamos a nés mesmos. Disso se segue, por certo, que aquela formagao artistica oa toda sen: de metaforas, que, em nas, da inict (Ao, ja pressupde tais formas, e, portanto, realiza-se nelas; somente a partir da firme persisténcia des sas formas primordiais torna-se possivel esclarecer como péde, assim como outrora, ser novamente cri gido um edificio de conceitos feito com as proprias metaforas. ‘Tal edificio , pois, uma imitagio das relagdes de tempo, espago e niumeros sobre o solo das metafor 5 SOBRE RDADE FE ME IRA i Como vimos, a finguagem trabalba na constru gio dos conceitos desde 0 principio, ¢, em periodos posteriores, a ciéneia, Assim como a abelha cons- tri os favos ¢, ao mesmo tempo, enche-os de mel, assim também opera a ciéncia irrefreadamente so- bre aquele enorme columbarie de conceites, ce- ério das intuigdes, sempre construindo novos ¢ 1ais elevados pavimento: escorando, limpando e renoyando os antigos favos, esforgande-se, sobre tudo, para preencher essa estrutura colossalmente armada em forma de torre e ordenar, em seu in- terior, o mundo empirico inteiro, isto ¢, o mundo ant aa vida ppornértice. Se o homem de agao u a razao € a seus conceitos, para nao ser arrastado e nao se perder a si mesmo, o pesquisador, de sua parte, constréi sua cabana junto a torre da ciéneia, para que possa prestar-lhe assisténcia e encentrar, ele proprio, amparo sob 0 baluarte a sna disposigio. 3, com efeito, cle necessita de amparo: pois ha for- gas terriveis que lhe irrompem constantemente e as verdades cientificas “verdades” de que opéen um tipo totalmente diferente com as mais diversas espécies de emblemas. ‘Tal impulso a formagio de metaforas, esse im pulso fundamental do homem, ao qual nao se pode renu ciar nem por um in tante, ja qu , Com : renunciar-se-ia ao préprio homem, nao é, em ver- dade, subjugado c minimamente domado pelo fato de um nove mundo firme e regular ter-lhe sido construido, qual uma fortificagio, a partir de seus izados, o mesmo é dizer, os concei- produtos vol tos. Ele busca um novo ambito para sua agio e um outro regat em linha: . sendo que o encontra no mito e, gerais, na arte, Perpetuamente, mistur as rubricas e as divisorias dos conceitos ao intro- duzir novas transposicées, metaforas, metonimia! perpetuamente, demonstra 0 dvido desejo de con- figurar o mundo a disposigaio do homem desperto sob uma forma tao coloridamente irregular, incon seqiientemente desarménica, instigante e eterna mente nova como a do mundo do sonho, Em si, 0 homem desperto adquire clara conseiéneia de que estA acordado somente por icio da firme e regular teia conceitual, ¢, precisamente por isso, chega as vezes A crenga de que esté a sonhar, caso alguma vez aquela teia conceitual seja despedagada pela arte, Pascal tem razdo ao afirmar que, se féssemos acometidos pelo mesmo sonho toda noite, iriamos ocur r-nos dele tanto quanto das coisas que vemos todo dia: “Se um artesaio tivesse certeza de que a cada noite sonha, doze horas sem parar, que é rei, creio” diz Pascal “que seria to feliz quanto um rei que tod. noites sonhasse, 10 longo de doze 0”. O dia desperto de um horas, que 6 um arte: povo miticamente inspirado, como, por exemplo, az 48 SOBRE VERDADE & MENTIRA os antigos gregos. é, de fato, mais semelhante ao sonho do ue o dia do pe sador que se tornou ci- entificamente sdbrio, devide ao milagre constan temente atuante tal como é reito pelo mito, cada arvore & capaz de falar como ninfa, ou, entao, um deus, b a aparéncia de um t uro, pode raptar donzelas, se a propria deusa Avena é subilamente vista ao passar, na companhia de Pisistrato, pelos mercados de Atenas com um belo par de cavalos € nisso acreditava o ateniense honesto —, entio, como no sonho, tudo ¢ possivel a cada momento. sendo que a inteira natureza se alvoroca em torno do homem como se fosse somente a mascarada dos deuses | Maskerade der Gétter], que, enganando os homens sob todas as formas, pregava-lhes apenas uma pega, No entanto, o proprio homem tem uma inelin. Gao imbativel a deixar-se enganar e fica como que encantado de felicidade quando o rapsodo narra icos como se estes fosserm verdadeiros, Ihe contos éy senta, ou, entdo, quando o ator, no espetacule, repr da mai o rel ai soberanamente do que o exibe a efetividade. © intelecto, esse mestre da d a lagfio, acha-se, pois, livre e desobrigado de todo seu servigo de escravo sempre que pode enganar sem causar prejuizo, © festeja, entao, suas Satur nais; nunca ele é mais opulento, rico, orgulhoso, til © arrojado. Com satisfagao criativa, bara- NIETZSCHE lha as metaforas e desloca as pedras demarcatorias da abst agio, de sorte que, por exemple, designa 0 rio como o caminho que se move e que carrega o 1, do con homem em diregio ao local rumo ao qu trario, ele teria de caminhar. Agora, ele apartou de sia marca da subserviéneia: antes, dedicando-se com afineo 4 mérbida oc io de mostrar a um pal pobre individu, avido de existéncia, o caminho e as ferramentas e, qual um servigal, empenhadoem roubar e saquear para o seu senhor, ele agora se to nou senhor ¢ lhe é permitide remover de seu rosto a expressao de indigéncia, Em comparagée com o que fazia antes, agora tudo o que faz traz em si a dissimulagio, assim como sua conduta anterior trazia em si a deformagao. Copia a vida humana, mas a toma por uma coisa boa ¢ parece estar ple hamente satisfeito com ela. Aquele enorme ent blamento e andaime de conceitos, sobre o qual o homem necessitado se pendura ¢ se salva ao longo da vida, é para o intelecto tornada livre apenas um cadafalso ¢ um brinquedo para sets mais audacio sos artificios: e quando ele o estragalha, embaralha © ironicamente 0 reagrupa, emparelhando o que ha de mais diverso ¢ separando o que ha de mais proximo, ele entio revela que mio necessita daque- les expedientes da indigéncia ¢ que agora no é conduzide por conceitos, mas por intuigdes. A par- vhum eaminho regular da 49 SOBRE VERDADE BE. MENTIRA smagoricos, das avesso A terra dos esquemas fan! a palavra nao é feita para ¢ s, senda abstragde: que o homem emudece quando as vé, ou, entao, fala por meio de metaforas nitidamente proibidas inagdes conceituais inauditas, para ao me- nos corresponder criativamente, mediante o des limi- mantelamento e a ridicularizagao das antigas tagdes conceituais, 4 poderosa intuigao atual. Ha épocas em que o homem racional e o homem intuitive colocam-se lado a lado, um com medo da intuigao, outro ridicularizando a abstragdo; o Ultimo é tao irracional quanta o primciro é inartistico. Ambos contam imperar sobre a vida; este sabendo encarar as mais basicas necessidades mediante precaugdo, sagacidade ¢ regularidade, aquele, como “herdi sobreexaltado”, passando ao largo de tais necessidades e tomando por real somente a vida di mulada em aparéncia e beleza. Onde 0 homem intuitive, tal como na as armas antiga Grécia, alguma vez manipula mais violentamente c mais vitoriosamente do que reunstancias favoravei: seu oponente, entao, sob pode tomar forma uma cultura e fundar-se o dominio da arte sobre a vida; quela dissimulagao, aquele reptidio A indig@ncia, aquele brilho das intuigdes metaforicas e, em linhas gerais, aquela imediatez do engano seguem todas as manifesta- de tal vida. em a casa, nem a maneira de PZSCHE, andar, nem a vestimenta, nem a jarra de argila inventou; evidenciam que foi a necessidade que os tudo se passa como se em todos eles devesse ser declarada uma felicidade sublime ¢ um olimpico desanuviamento, berm como uma espécie de jogo com a seriedade, Enquanto o homem conduzi por coneeitos e abstragdes apenas rechaga, por meio destes, a infelicidade, sem granjear para si mesmo uma felicidade a partir das abstragdes, en quanto ele se esfe ca ao maximo para libertar-se da dor, o homem intuitive, situade no interior de ‘jes, além da uma cultura, j4 colhe de suas intuig defesa contra tudo que é mal, wma iluminagao continua e canudalosa, jubilo, redengao. Por certo, sofre com mais intensidade, quando sofre; sim, sofre até com mais assiduidade, porque nao sabe aprender a partir da experiéncia, voltando a cair sempre no mesmo buraco em que ja havia caido. Ele é, assim, tao irracional no sofrimento quanto na felicidade, grita alto e no dispée de qualquer consolo. Quao diferentemente ali se coloca, sob o o homem es mesmo revés, bico versado na expe riéncia, que se governa através de conceitos! Ele, que de mais a mais s6 busca probidade, verdade, liberdade frente aos enganos ¢ protegdo contra as incursées ardilosas, executa agora, na infelicidade, a obra-prima da dissimulagao, tal como aquele na nulo elicidade; nao carrega um rosto humano, tré 51 52 | SOBRE VERDADE © movente, mas uma espécie de mascara com digna simet de tragos, nfo grita © tampouco muda sua voz uma vez sequer. Se uma vultosa nuverr » chuva desigua sobre cle, enrola-se em seu manto e, passo a passo, caminha lentamente para debaixe dela.

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