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th if hs (Ae fo. CAPITULO IV A Santissima Trindade presente em nds, fonte incriada de nossa vida interior Depois de ter falado da vida da graca/e do organismo espiri- tual das virtudes infusas e dos dons/convém considerar a fonte incriada de nossa vida interior, que é a Santissima Trindade pre- sente em todas as almas justas da terra, do purgatorio e do céu. Vejamos primeiramente o que nos diz a Revelacéo divina, contida na Escritura, sobre esse mistério tao consolador; em seguida, consideraremos brevemente o testemunho da Tradi- cao; por fim, veremos as precisdes trazidas pela Teologia, par- ticularmente por Sao Tomas de Aquino", e as consequéncias espirituais dessa doutrina. 6 aC pF tui, GrQK Can CAAA é a absoluta de Cristo nao diminuia a sua perfeita liberdade de obedecer aos pre- ceitos de seu Pai. Ele nao podia desobedecer, ele obedecia infalivelmente, mas livremente, ao preceito de morrer, pois guardava a indiferenca do julgamento ¢ da escolha diante da morte dolorosa da Cruz, que nio atraia invencivelmente sua vontade, como a atraia a bondade divina vista de forma imediata. Nos 0 explicamos mais longamente em O Salvador, pag. 204-218. 156 Esse assunto foi bem tratado pelo Pe. FROJET, O. P., em seu livro De 'ha~ bitation du Saint-Esprit dans les ames justes, Lethielleux, Paris, 3* Ed. 1900. Mais recentemente pelo Pe. GARDEIL, O. P., em La structure de l'ame et l'ex- périence mystique, Paris, Gabalda, 1927, t. Il p. 6-60. Também nés o expuse- mos longamente em L'Amour de Dieu et la Croix de Jésus, t. I, p. 163-206, e t. I, p. 657-686. 117 R. GARRIGOU-LAGRANGE O testemunho da Escritura AEscritura nos ensina que Deus esta presente em toda cria- tura, com uma presenga geral, frequentemente chamada presena de imensidade, Lemos, em particular, no Salmo 138,7: “Para onde irei, Senhor, para esconder-me do teu Espirito? Para onde fugir, para escapar ao teu olhar? Se subo aos céus, ali estas; se des¢o 4 regio dos mortos, ali estas também”. E 0 que leva Sao Paulo a dizer, pregando no Areépago: “O Deus que fez o mundo eéo0 Senhor do céu e da terra... nao esta longe de cada um de nés, pois énele que temos a vida, o movimento e 0 ser” (At 17, 24.27-28), Deus, com efeito, tudo vé, conserva todas as coisas na exis- téncia e leva cada criatura a acao que lhe convém. Ele € como 0 foco do qual emana a vida da criagao, e a forga central que tudo atrai a si. “Rerum Deus tenax vigor immotus in te permanens’. Mas a Sagrada Escritura nao nos fala somente da presenca geral de Deus em todas as coisas, ela nos fala também de uma presenca especial de Deus nos justos. Com efeito, j4 no Antigo Testamento, o Livro da Sabedoria (1,4) diz: “A Sabedoria divina nao entrara em uma alma perversa, nem habitara em um corpo entregue ao pecado”. Seria somente a graca criada, ou o dom criado de sabedoria que viria habitar na alma do justo? As palavras de Nosso Senhor nos trazem uma nova luz e nos mostram que sao as proprias Pessoas divinas que vém habitat em nds: “Se alguém me ama ~ diz ele - guardara a minha pala- vra, e meu Pai o amara, e nés viremos a ele e nele faremos noss4 morada” (Jo 14,23). Todas essas palavras siio importantes: “Nos viremos” ~ Quem vir? Seriam somente os efeitos criados: # Braga santificante, as virtudes infusas, os dons? - Nao; 0s que vem, séo aqueles que amam, as pessoas divinas, o Pai e 0 Filho, de quem 0 E pirito Santo nunca esta separado - ele que foi, de resto, prometido por Nosso Senhor e visivelmente enviado e™ Pentecostes. Nos viremos a ele, ao justo que ama a Deus, € vire mos nao somente de uma forma transitoria, passageira, mas fare 118 PRIMEIRA PARTE 2 As fontes da vida interior e a sua finalidade mos nele a nossa morada, isto é, habitaremos nele, enquanto ele permanecer justo, ou em estado de graga, enquanto conservar a caridade. Assim fala Nosso Senhor. Essas palavras sao confirmadas pelas da promessa do Espi- rito Santo: “Eu rogarei ao meu Pai, ele vos dara um outro Con- solador, para que permanega sempre convosco; é 0 Espirito da verdade, que o mundo nao pode acolher, porque nao 0 vé, nemo conhece; mas vés o conheceis, porque ele permanece convosco e estaré em vos... Ele vos ensinara todas as coisas, e vos recor- dara tudo o que eu vos disse” (Jo 14, 16-17.26). Essas palavras nao sao ditas somente aos Apéstolos; elas se verificaram neles no dia de Pentecostes, que é renovado por nés na Confirmacao. Esse testemunho do Salvador é claro, ele precisa admiravelmente o que dizia o livro da Sabedoria. Sao realmente as trés Pessoas divinas que vém habitar nas almas justas. Assim o compreenderam os Apéstolos. Sao Joao escreve (1Jo 4, 16): “Deus € amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele”. Ele possui Deus em seu coragao, mas, mais ainda, Deus 0 possui e o contém, conservando-lhe nao somente aexisténcia natural, mas a vida da graca e a caridade. So Paulo também diz: “A caridade de Deus foi derramada em nossos coracoes pelo Espirito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Nao foi somente a caridade criada que nés recebemos, foi o pr6- prio Espirito Santo que nos foi dado. Sao Paulo fala especialmente dele, porque a caridade nos assimila mais ao Espirito Santo, que €0amor pessoal, do que ao Pai e ao Filho. Eles também estado em nés, segundo o testemunho de Jesus, mas nds somente lhes sere- mos perfeitamente assimilados ao receber a luz. da gloria, que nos marcard com a semelhanga do Verbo, que € 0 esplendor do Pai. etoma essa consoladora dou- Em muitas ocasides Sao Paulo r trina: “Nao sabeis que sois 0 templo de Deus, e que © Espirito de Deus habita em vés?” (1Cor 3,16). “Nao sabeis que vosso corpo € templo do Espirito Santo, que habita em vés, 0 qual recebes- tes de Deus, e que ja nado pertenceis a vs mesmos? Pois fostes 119 << R. GARRIGOU-LAGRANGE resgatados por um alto prego. Glorificai, pois, a Deus em Voss corpo” (1Cor 6,19-20). Portanto, a Escritura ensina muito explicitamente que as trés pessoas divinas habitam em toda alma justa, em toda alma em estado de graga. O testemunho da Tradigao A Tradigao, pela voz dos primeiros martires, pela dos Padres e pelo ensinamento oficial da Igreja, mostra, além disso, que é assim mesmo que devemos entender o que diz a Escritura’”, No inicio do 2° século, Santo Inacio de Antioquia, em suas Cartas, diz que os verdadeiros cristaos trazem Deus em si; ele os chama “theophoroi” ou portadores de Deus. Essa doutrina esta bem difundida na Igreja primitiva, os martires a proclamamem alta voz diante de seus juizes. Santa Luzia de Siracusa responde a Pascdsio: “As palavras nao podem faltar aos que tém em sio Espirito Santo”. - “Entao o Espirito Santo esta em ti?” - “Sim, todos os que levam uma vida casta e piedosa so templos do Espirito Santo”. Entre os Padres gregos, Santo Atandsio diz que as trés Pes- soas divinas estao em nés'®. Sao Basilio declara que o Espirito Santo, por sua presenca, nos torna cada vez mais espirituais ¢ conformes a imagem do Filho tinico"™, Sao Cirilo de Alexandria fala também dessa unio intima do justo com o Espirito Santo™. 157 Bem se vé, no presente caso, a importancia da Tradigdo propriament® divina, que nos transmite, pelos pastores legitimos da Igreja, uma doutrin? revelada oralmente, tenha ela sido, ou nao, consignada na Escritura. Todos ° 6140s da Tradicao divina podem ser invocados no presente caso: 0 mag oats solene da Igreja, eo seu magistério ordinario expresso péla pregacio ™" mente unanime dos bispos, pelo consenso dos Padres e dos tedlogos ¢ P* senso cristéo dos fi¢is, 158 Ep. Lad Serap., 31, P.G., t. 26, c. 601. ° 159 De Spiritu Sancto, cap. IX, n’ 22 sq; cap. XVII, n° 47. 160 Dialog., VII, P. G., t. 75, c. 1085. 120 PRIMEIRA PARTE X93 As fontes da vida interior ea sua finalidade Entre os Padres latinos, Santo Ambrésio ensina que nds 0 rece- bemos no batismo, e mais ainda na confirmagao"', Santo Agos- tinho mostra que, segundo o testemunho dos Padres anteriores, nao é somente a graga, mas Deus mesmo que nos foi dado, 0 Espirito Santo e seus sete dons’. Essa doutrina revelada nos é, finalmente, lembrada pelo ensi- namento oficial da Igreja. No simbolo de Santo Epifanio, que os adultos deviam recitar antes de receber o batismo, se diz: “Spiri- tus Sanctus, qui... in apostolis locutus et in sanctis habitat”. Eo Concilio de Trento diz por sua vez: “A causa eficiente da nossa justificagao é Deus, que, em sua misericérdia, nos purifica gra- tuitamente e nos santifica, ungindo-nos e marcando-nos com 0 selo do Espirito Santo, que nos foi prometido e que é o penhor da nossa heranga” (Ef 1,13)'*. Mas 0 ensinamento oficial da Igreja sobre este ponto nos é apresentado hoje de uma forma ainda mais precisa na Enciclica de Leo XIII, Divinum illud munus (9 de maio de 1897), sobre o Espirito Santo, na qual a habitagao da Santissima Trindade na alma dos justos é assim descrita: “Importa recordar as explicag6es dadas pelos Doutores, a par- tir dos ensinamentos das Sagradas Letras: Deus esta presente em todas as coisas por seu poder, na medida em que tudo lhe esta submetido; por sua presenga, na medida em que tudo esta a descoberto diante de seus olhos; por sua esséncia, na medida em que ele esta intimamente em todos os seres como causa de sua existéncia (Sao Tomas, I, q. 8, a. 3). Mas Deus nao esta no homem somente da maneira como esta nas coisas; ele é, além disso, conhecido e amado por ele, pois nossa propria natureza nos faz amar, desejar, buscar o bem. Deus, por sua gra¢a, reside 161 De Spiritu Sancto, t. I, c. 5-6. 162. De Fide et symbolo, c. IX, e De Trinitate, XV, c. 27. 163 DENZINGER, Enchiridion, n° 13. 164 Ibid. n° 799. R. GARRIGOU-LAGRANGE na alma justa como em um templo, de uma forma muito intima e especial. Dai 0 lago de amor que une estreitamente a alma Deus, mais do que um amigo pode estar unido a seu melhor amigo, e a faz desfrutar dele com uma suavidade plena, “Essa admiravel unido, chamada inabitagdo, da qual o estado de bem-aventuranca dos habitantes do céu nao difere sendo pela con. dicgdo, é produzida muito verdadeiramente pela presenca de toda a Trindade: ‘Nés viremos a ele e nele faremos nossa morada’ (Jo 14, 23), Ela é atribuida, contudo, de uma forma especial ao Espirito Santo... Assim o Apéstolo, chamando aos justos templos de Deus, nao os chama expressamente templos do Pai ou do Filho, mas do Espirito Santo: ‘Nao sabeis que 0 vosso corpo é templo do Espi- rito Santo, que esta em vos, e que recebestes de Deus?’ (1Cor 6,19). “A abundancia dos bens celestes que resulta da presenca do Espirito Santo nas almas piedosas se manifesta de muitas manei- ras... Entre esses dons estao as secretas adverténcias, esses miste- riosos convites que, por uma mogio do Espirito Santo, sao feitos as almas e sem os quais nao se pode nem decidir-se pelo cami- nho da virtude, nem progredir, nem chegar a salvacao eterna” Tal é, em substancia, o testemunho da Tradigaio expresso pelo magistério da Igreja em suas diferentes formas. Vejamos agora que a teologia acrescenta para nos ajudar a entender melhor esse mistério revelado. Seguiremos 0 que sobre isso nos diz. Sao Tomés. A explicagao teolégica desse mistério Diversas explicagées foram propostas". 165_Nés as expusemos em outro lugar (O Amor de Deus e a Cruz de Jesus P. 167-205), € comparamos a do Doutor angélico, tal como a compreender®® Joao de Sao Tomas, ¢, mais recentemente, o Pe. Gardeil, com as de Vasque? © Suarez. Basta, aqui, recordar brevemente essas opinides. Vasquez reduz tod $ presenga real de Deus em nos presenga geral de imensidade, segundo 2 Deus esta presente em todas as coisas que ele conserva na existéncia. A wiul? 122 PRIMEIRA PARTE 9 As fontes da vida interior ea sua finalidade Entre essas manciras de ver, a de Sio Tomas, conservada por Leo XII em sua Enciclica sobre o Espirito Santo, parece a mais verdadeira; ela contém, de resto, tudo 0 que ha de Positivo nas plicagdes, 4 maneira de uma sintese superior’, Muito outras se escreveu nestes ultimos tempos sobre este assunto, e é impor- tante voltar ao proprio texto do artigo principal de Sao Tomas, que tem sido por vezes um pouco esquecido. de objeto conhecido e amado, Deus nao estaria realmente presente no justo, € sim, somente representado a maneira de uma pessoa ausente, mas muito amada. Suarez, ao contrrio, sustenta que, mesmo que Deus ja nao estivesse presente nos justos pela presenca geral de imensidade, ele se tornaria realmente e subs- tancialmente presente neles, por causa da caridade que nos une a Ele. Essa opinigo encontra uma forte obje¢o: embora, pela caridade, nés amemos a humanidade do Salvador e a Santissima Virgem, dai no se segue que eles estejam realmente presentes em nds, que habitem em nossa alma. A caridade por si mesma constitui uma unido afetiva e faz desejar a uniéo real, mas como poderia ela constituir essa uniao? Joao de Sao Tomas (in lo., q. 43, disp. XVIL, n° 8-10) e o Pe. Gardeil (op. cit., tI pag. 7-60) fizeram ver que o pensamento de Sao Tomas domina as duas con- cepgdes opostas de Vasquez e de Suarez. Segundo 0 Doutor angélico, ao con- trario do que disse Suarez, a presenga especial da Santissima Trindade nos justos supde a presenga geral de imensidade; contudo (e foi o que Vasquez nao viu), pela graca santificante Deus se tornou realmente presente de uma nova maneira, como objeto experimentalmente cognoscivel, do qual a alma justa pode desfrutar. Ele nao esta ali somente como uma pessoa ausente muito mada, mas esta ali realmente, e por vezes se faz sentir a nés. Assim sendo, mesmo que fosse possivel Deus nao estar jé presente no justo como causa con- servadora de seu ser natural, ele se tornaria especialmente presente nele como causa produtora e conservadora da graca e da caridade, e como objeto quase experimentalmente cognoscivel, e, de quando em quando, conhecido e amado. 166 Os sistemas que nao chegam a uma sintese superior sao geralmente ver dadeiros naquilo que afirmam, ¢ falsos naquilo que negam; € o que ha de ver~ dadeiro em cada um deles se encontra na sintese superior, quando 0 espirito mite conciliar diversos aspectos do real. que a presenga espe- almente cognoscivel, descobre o principio eminente que per No presente caso, Vasquez parece estar errado ao negar Cial seja a de um objeto realmente presente € experiment © Suarez parece estar errado ao negar que essa presenga especial supde a pre~ senga geral de imensidade pela qual Deus conserva todas as coisas na existéncia. R. GARRIGOU-LAGRANGE Com efeito, o Doutor comum da Igreja nos diz (I, q. 43, a, 3), supondo a presen¢a geral de Deus que conserva todas as coj. sas na existéncia: ; ; “Uma pessoa divina nos € enviada enquanto existe em nds de uma nova maneira; ela é dada enquanto nés a possuimos. Ora, nenhuma dessas duas coisas € possivel senao pela graca santifi. e. Deus, com efeito, ja estéem_ todas as coisas de uma maneira sua presenga, como a causa cant geral, por sua esséncia, seu poder, nos efeitos que participam de sua bondade. Mas, além dessa pre- senga geral, ha uma presenga especial em nds, enquanto Deus estA em nés como um objeto conhecido e amado naquele que o conhece e o ama. E como por sua opera¢ao, isto é, pelo conhe- cimento e o amor (sobrenaturais), a criatura racional atinge o proprio Deus, ao invés de dizer que, de acordo com este modo especial de presenca, Deus esta na alma justa, dizemos que ele habita nela como em seu templo. Assim, nenhum outro efeito seniio a graca santificante pode dar razao desse fato de que uma pessoa divina esteja de uma nova maneira presente em nés... “[gualmente, para possuir uma coisa é preciso poder usufruir ou servir-se dela. E nés nao podemos usufruir de uma pessoa divina senao pela graca santificante e pela caridade” Sem a graca santificante e a caridade, com efeito, Deus nio habita em nés; nao basta conhecé-lo por um conhecimento natu- ral, filos6fico; nem mesmo pelo conhecimento sobrenatural dafé informe unida a esperanca, como o do fiel em estado de pecado mortal (Deus esta, por assim dizer, distante de um crente que esta afastado dele). E preciso poder conhecé-lo pela fé viva € dons do Espirito Santo em conexdo com a caridade. Este ultimo conhecimento, sendo quase experimental, atinge Deus, no como uma realidade distante e simples mente representada, mas como uma realidade presente, P°* suida, e da qual podemos usufruir desde ja. £ manifestamen"® © que quer dizer Sdo Tomas no texto citado (I, q. 43, 21° ead 1m, ad 2m). Trata-se, diz ele, de um conhecimento 4% 124 PRIMEIRA PARTE 8 As fontes da vida interior e a sua finalidade atinge 0 proprio Deus, attingit ad ipsum Deum, e permite possui-lo e desfrutar dele, ut creatura rationalis ipsa divina persona fruatur (ibid., ad 1m). Para que as pessoas divinas habitem em nés, é preciso que possamos conhecé-las de uma forma quase experimental e amo- rosa, fundada na caridade infusa, que nos da uma conaturali- dade ou simpatia com a vida intima de Deus’, Para que a Santissima Trindade habite em nés, contudo, nao é necessario que esse conhecimento quase experimental seja atual, basta que o tenhamos em potencial pela graca das virtudes e dos dons. Assim, a habitagao da Santissima Trindade perma- nece, no justo, mesmo durante o sono, enquanto ele permane- cer em estado de graca'®. Mas, de tempos em tempos, Deus se faz sentir ands como a alma de nossa alma, a vida de nossa vida. E 0 que diz Sao Paulo na Epistola aos Romanos: “Vés recebestes um Espirito de ado- ao, no qual clamamos: Abba! Pai! O Espirito mesmo da testemu- nho ao nosso espirito de que somos filhos de Deus” (Rm 8,15-16). Sao Tomas, em seu comentario sobre esta epistola, diz: “O Espi- rito Santo da esse testemunho ao nosso espirito pelo efeito de amor filial que ele produz em nés”. Foi assim que os discipulos 167 Sao Tomas ja 0 havia dito em seu Comentario sobre as Sentencas, I dist. 14, q. 2, a. 2, ad 3: “Non qualiscumque cognitio sufficit ad rationem missionis, sed solum illa quae accipitur ex aliquo dono appropriato personae, per quod efficitur in nobis conjunctio ad Deum, secundum modum proprium illius personae, scilicet per amorem, quando Spiritus Sanctus datur, unde cognitio ista est quase experimenta- lis’. Item, ibid., ad 2m. Este conhecimento quase experimental de Deus, fundado sobre a caridade, que nos da uma conaturalidade com as coisas divinas, procede sobretudo do dom de sabedoria, como diz SAO TOMAS, Ila Tae, q.45, a.2. 168 Assim nossa alma esta sempre presente a si mesma, como um objeto ©perimentalmente cognoscivel, mesmo sem ser sempre atualmente conhe- Cida, como por exemplo durante 0 sono profundo. 169 “Spiritus testimonium reddit spiritui nostro per effectum amoris filialis, quem in nobis facit” (Sao Tomas, in Ep. ad. Rom., VIII, 16). ~ Iter, Ta Hae, 9- 112, a. 5: “Ille qui accipit gratiam, per quamdam experientiam dulcedinis novit, quam non experitur ille, qui non accipit’. & um sinal que permite conjecturar € 125 4 R. GARRIGOU-LAGRANGE de Ematis disseram, depois que Jesus desapareceu: “Nao ardia © nosso coracaio enquanto ele nos falava pelo caminho, e nos explicava as Escrituras?” (Le 24,32). Ao dar a explicacao que acabamos de citar, Sio Toms nio faz sendo mostrar-nos 0 sentido profundo das palavras de Nosso Senhor que citamos mais acima: “Se alguém me ama, guardar4a minha palavra, e meu Paio amara, ends viremos a ele, e nele fare- mos nossa morada’ (Jo 14,23); “O Espirito da verdade, que meu Pai vos enviara em meu nome, estara em vés; ele vos ensinara todas as coisas e vos recordara tudo 0 que eu vos disse” (Jo 14,26). Segundo essa doutrina, a Santissima Trindade habita na alma justa mais e melhor, em certo sentido, do que 0 corpo do Salvador em uma héstia consagrada. E verdade que ele esta real e substancialmente presente sob as espécies eucaristicas, mas essas espécies néo o conhecem, nem o amam. A Santis- sima Trindade habita na alma justa como em um templo vivo que conhece e que ama em graus diversos. Ela habita nas almas bem-aventuradas que a contemplam sem véu, sobretudo na santissima alma do Salvador, a qual o Verbo esta pessoalmente unido. E deste mundo, na penumbra da fé, a Santissima Trin- dade, sem que a vejamos, habita em nés para vivificar-nos cada vez mais, até 0 momento da entrada na gloria, quando ela se manifestara a nds. Essa presenca intima da Santissima Trindade em nés nao nos dispensa, é claro, de aproximar-nos da Eucaristia, de ir rezat junto ao tabernaculo, pois, muito mais intimamente do que em nés, a Santissima Trindade habita na santa alma do Salvador pessoalmente unida ao Verbo. Se somos beneficiados a0 90S aproximarmos de um santo inteiramente possuido por Deu como um santo Cura d’Ars, quanto mais ao nos. aproximarmos do Salvador! Podemos dizer-Ihe:“Vem tomar posse de nds ca? vez mais, mesmo com tua cruz; que cada vez mais seja aten” ter uma certa certeza moral de que se est em estado de graca. 126 A PRIMEIRA PARTE 5 As fontes da vida interior e a sua finalidade dida a stiplica: Tu em nés e nés em Ti”. Pensemos também na habitacdo da Santissima Trindade na alma da Virgem Maria, na terra e no céu. Consequéncias para a espiritualidade Disso decorre uma importante consequéncia: se a habitagao da Santissima Trindade em nés nao se concebe sem que 0 justo possa ter um “conhecimento quase experimental” de Deus pre- sente nele, segue-se que esse conhecimento, longe de ser algo de extraordinaério em si mesmo, como as visées, revelagées ou estigmas, esta dentro da via normal da santidade™. Esse conhecimento quase experimental de Deus presente em nos deriva da fé iluminada pelos dons do entendimento e da sabedoria, que esto em conexdo com a caridade. Segue-se dai que esse conhecimento deve aumentar normalmente com 0 pro- gresso da caridade, seja sob uma forma nitidamente contempla- tiva, seja sob uma forma mais diretamente orientada para a acao. Assim, como diremos mais adiante, a contemplacao infusa, onde essa quase experiéncia desabrocha, come¢a, segundo Sao Joao da Cruz, coma via iluminativa e se desenvolve na via unitiva’”. Esse conhecimento quase experimental de Deus e de sua bon- dade crescera juntamente com o do nosso nada e de nossa misé- ria, conforme a palavra divina que foi dita a Santa Catarina de Sena: “Eu sou aquele que é, e tu és aquela que nao é&. 170 O Pe. Gardeil se exprime como nos sobre esse assunto e diz (op. cit, t. Il, p. 89): “O melhor de nosso esforgo nesta quarta parte sera consagrado a mostrar que a experiéncia mistica é 0 desabrochar final da vida do cristio em estado de graca..”, e também (p. 368): “O conhecimento mistico, desabrochar supremo, mas normal, do estado de graga”. 171 Cf. Sao Joao da Cruz, Noite Escura, Livro I, cap. XIV: “Os proficientes ou adiantados se encontram na via ilu iva; é nela que Deus alimenta e forta- lece a alma pela contemplagio infusa” 127 ON R. GaRRIGOU-LAGRANGE Segue-se também que, quando ha emnés um aumento Cong, deravel da caridade, as pessoas divinas at novamente envia diz Sio Tomas", pois elas se tornam mais intimamente Presen, tes em nés, segundo um novo modo ou grau de intimidade. Iss acontece, por exemplo, no momento da segunda Conversio, Que marca a entrada na via iluminativa. Enfim, elas estao em nés, nao somente como objeto de conhe. cimento e de amor sobrenaturais, mas como principio de Ope. racées sobrenaturais. Jesus disse: “Meu Pai trabalha sempre, ¢ eu também trabalho”, sobretudo na intimidade do coracio, no centro da alma. Apenas, na pratica, é preciso nos lembrarmosde uma coisa: Deus nao se comunica normalmente a criatura senio na medida de suas disposigdes. Quando estas se tornam mais puras, as pessoas divinas se tornam mais intimamente presen- tes e operantes. Entao Deus é nosso e nés somos dele, e deseja- mos sobretudo progredir em seu amor. “Esta doutrina das Misses invisiveis das pessoas divinasem nos é um dos mais poderosos motivos de crescimento espiritual, diz o Pe. Louis Chardon”, porque mantém a alma sempre dedi- cada ao seu progresso, atenta em produzir constantemente atos mais fortes e mais ardorosos de todas as virtudes, a fim de que, crescendo em graca, esse novo crescimento traga Deus nova" mente a ela...em uma unio... de maior intimidade, mais pure € mais vigor” Quais sao os nossos deveres para como héspede divin nos diz: “Meu filho, dé-me €stou 4 porta e bato: se Porta, entrare on: 1e teu coragio"(Pv 23,26). Est : alguém ouvir a minha voz e me a ) tem sua casa e ceareicom ele, e ele comigo” (AP 3,2 172 1,q.43,a. 6,ad 2m, 173 ACr a "uz de Jesus, edisSo original, p. 457, IL entretien, cap. IV. | PRIMEIRA PARTE %8 As fontes da vida interior e a sua finalidade A alma do justo é como um céu, embora nublado, ja que a Santissima Trindade esta nele, e um dia ele a vera claramente. Nossos deveres para com 0 héspede interior podem ser assim resumidos: pensar nele com frequéncia, repetir para si mesmo: “Deus vive em mim”; consagrar as Pessoas divinas 0 nosso dia, nossas horas, dizendo: “Em nome do Pai, do Filho e do Espirito santo”; lembrar-se de que o Héspede interior é para nés fonte de luz, de consolagao, de forga; invoca-lo segundo a palavra do Senhor: “Ora a teu Pai que est oculto (em tua alma), e ele te recompensara” (Mt 6,6); adorar o héspede interior, dizendo: “Magnificat anima mea Dominum”, crer Nele, confiar inteira- mente Nele, e ama-Lo com um amor cada dia mais puro, mais generoso e mais forte. Ama-lo imitando-o, sobretudo em sua bondade, segundo as palavras do Senhor: “Sede perfeitos, como 0 Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48); “Que todos sejam um, como Tu, Pai, estas em mim e eu em Ti” (Jo 17,21). Tudo isso leva a pensar, como veremos cada vez melhor na sequéncia, que a vida mistica, caracterizada pela atualidade do conhecimento quase experimental de Deus presente em nds, longe de ser extraordinaria em si mesma, é a unica plenamente normal. Apenas os santos, que a vivem todos, estao inteiramente dentro da ordem. Antes de ter chegado a esta uniao intima com Deus presente em nds, somos um pouco como almas meio adormeci- das, que ainda nao despertaram espiritualmente. Nosso conhe- cimento do mistério tao consolador da habitagao da Santissima Trindade em nés permanece ainda muito superficial e tedrico, longe da vida transbordante que se oferece a nés. Antes de entrar na intimidade da uniao com Deus, nao temos para com Ele toda a adoracao e todo 0 amor que deveriamos, e com frequéncia consideramos “a unica coisa necessaria” como Se nao fosse para nds 0 principal. E ainda nao tomamos real e profundamente con ia do dom que nos foi feito na Euca- tistia, nem conhecemos senao de modo muito superficial o que €0 Corpo Mistico de Jesus Cristo. 129 R. GarrIGOU-LAGRANGE O Espirito Santo é a alma do Corpo mistico de que Cristo éa cabega. E assim como, em nosso corpo, a alma esta toda &M todo ocorpoe toda em cada parte, e exerce suas funcdes superiores ng cabega, assim também o Espirito Santo esta todo inteiro em todg © Corpo mistico, todo inteiro em cada justo, e exerce suas fun. des mais elevadas na santa alma do Salvador, e por ela em nés, Oprincipio vital que assim realiza a unidade do Corpo mistico é singularmente mais unitivo que a alma que realiza a unidade de nosso corpo, e que o espirito de uma familia ou de uma nagio, E espirito de uma familia é uma certa maneira de ver, de julgar, de sentir, de amar, de querer, de agir. O espirito do Corpo mis- tico é infinitamente mais unitivo; é 0 Espirito Santo santificador, fonte de todas as gragas, fonte de 4gua viva jorrando para a vida eterna. O rio de graca que vem do Espirito Santo retorna inces- santemente a Deus em forma de adoragao, de oragio, de mérito e de sacrificios; é a elevacdo até Deus, preliidio da vida do céu. Tais sao as realidades sobrenaturais de que devemos cada vez mais tomar consciéncia, e é somente na via mistica que a alma desperta totalmente, e tem do dom de Deus a consciéncia viva, profunda e luminosa que é preciso ter para responder ple- namente ao amor de Deus por nés. 130

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