Você está na página 1de 2

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

FACULDADE DE ARTES, LETRAS E COMUNICAÇÃO


AUDIOVISUAL // ​Vídeo
​Docente​: Rodrigo Sombra
Discente​: Gabriel Monteiro

Atividade Avaliativa 1
Análise do filme ​“​Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos​” ​(2018),
de João Salaviza e Renée Nader Messora

Tocado pelo espírito de seu falecido pai, Ihjãc é tocado, também, pelo dever de
desenvolver sua espiritualidade e tornar-se um pajé. No entanto, longe de direcionar os
próximos passos da vida do jovem Krahô, este chamado o lança em um estado de caos
emocional, permeado por uma série de incertezas. Neste texto, procuro analisar de que forma
a linguagem cinematográfica adotada pela obra lida com as relações de ruptura, dúvida e
contradição vividas pelo protagonista, sobretudo, com base em algumas sequências
específicas situadas na primeira metade do filme.
Subentende-se que cenas de abertura costumam situar e estabelecer os caminhos por
onde um filme seguirá e a forma como o fará. Apesar da singularidade com que ​Chuva… é
construído e se articula, esta máxima é reforçada aqui. Na cena inicial, a iluminação azulada
da Lua, que banha a imagem enquanto Ihjãc caminha pela mata, confere um tom onírico à
sequência, antes mesmo que qualquer elemento fantástico (para o espectador estrangeiro) seja
apresentado, como a voz e presença de seu finado pai, que mais tarde o convida a entrar na
água. Vemos Ihjãc em plano médio de costas, mas com o rosto virado. Em negação, mas não
absolutamente. Uma pequena queda d’água preenche todo o quadro ao seu fundo, evocando
um sentimento de constância, como um lembrete de que certos ciclos não podem ser
simplesmente interrompidos. Após recusar o convite, o espírito de seu pai deixa de
respondê-lo. Ihjãc arremessa um galho que, ao entrar em contato com a água, acende uma
labareda na superfície do rio. Esta reação química quase inconcebível, talvez faça um bom
trabalho em pontuar a complexidade de tal conflito mal resolvido e antecipar o tom de como
a trama se desenrolará.
A perturbação sofrida pelo protagonista segue a repercutir conforme Ihjãc, com a
ajuda de outros membros da comunidade, se ocupa com os preparativos para o ritual de
passagem de seu pai. No caminho para a roça, ao atravessar um riacho e encher uma cabaça,
o garoto contempla sua imagem refletida na água. ​Mecarõ é o termo usado pelos Krahô para
denominar, sobretudo, os espíritos. Todavia, trata-se de um conceito intricado e que também
se relaciona, grosso modo, com a ideia de ​duplo,​ a imagem de alguém replicada em um
reflexo ou fotografia, por exemplo. Um pajé, naturalmente, possui forte ligação com os
mecarõ, pode vê-los e ouví-los. Mas esta ideia não só contraria os anseios de Ihjãc, ela o
adoece. Em um plano geral onde vemos seu familiares trabalhando a terra, o garoto se afasta
deles. Observa-os ofegante, à distância, após beber água da cabaça. Todos seguem capinando;
Kôtô se detém por um momento e mira com preocupação o companheiro ━ que agora está
fora de quadro ━ sentindo o afastamento de alguém tão próximo. Um pouco adiante, Ihjãc
espreita algum animal por debaixo das árvores. Sua concentração é interrompida pela
presença de uma arara. Segundo outro pajé local, a Arara seria como a entidade “mestre” que
persegue o protagonista por seus dotes espirituais. Ihjãc a encara, de costas para a câmera,
negando o contato. O grasnido da ave atordoa seu já cansado corpo. Seu rosto lentamente se
vira para baixo, como uma lenta e dolorosa renúncia. Um plano detalhe do olho da arara toma
conta do quadro, a presença da entidade é agigantada, alargando também a iminência do
dever em Ihjãc que, já excedido pela pressão, colapsa no chão da floresta.
Embora minha análise possua enfoque nas encenações que precedem a ida de Ihjãc
para a cidade, vale ressaltar a importância das sequências finais, que se relacionam
diretamente à abertura da obra. Durante o ritual para o pai de Ihjãc, uma integrante mais
velha da aldeia explica a importância de chorar em cima da tora, homenageando o falecido
por uma última vez antes de sua passagem para a aldeia dos mortos. Ihjãc se aproxima, mas
apenas observa, não exprime nenhuma emoção, não derrama lágrima alguma. Apesar de ter
voltado da cidade e preparado a festa tal como seu pai o pedira, há uma sensação de
ambiguidade em relação ao seu futuro na aldeia como pajé. Contudo, na sequência seguinte,
uma intensa chuva começa a cair, como se toda suas emoções represadas pudessem,
finalmente, rebentar-se. O jovem volta à cachoeira do início. Não há ninguém aqui, nem
mesmo no reflexo da água ━ ou, talvez, apenas não possamos enxergar ou ouvir. Dessa vez
Ihjãc adentra a água, com passos calmos e convictos, até que seu corpo esteja completamente
submerso. Um longo plano da cachoeira encerra o filme com uma certeza: a água continua a
cair.

Você também pode gostar