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Ficha Técnica:
Título: Retratos de Gerações
Autor: Eduarda Gireli Galon
Editor: Eduarda Gireli Galon
Formato: 14,8 x 21cm
Edição: 1ª/2020
Páginas: 61
Capítulos: cinco
Revisão: Andre Lulio
Diagramação: Lara Roldi
Capa: Micael Moura

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AGRADECIMENTOS

Sempre pensei que escrever um livro com data marcada


para acabar era uma ousadia e um risco. Por isso, a produção deste
livro-reportagem não teria sido possível sem a colaboração de
muitas pessoas que me ajudaram de inúmeras formas. Seja com o
apoio, com as entrevistas, sugerindo fontes, disponibilizando
arquivos ou revisando textos. Sou imensamente grata a todos que
agarraram esse sonho comigo e me ajudaram a torná-lo real.

Agradeço aos meus pais, Edimara Gireli Galon e Mauro


Eider Galon, por nunca duvidarem do meu potencial e respeitarem
os meus momentos de anseios e incertezas, os quais sei que foram
muitos. Obrigada pelo companheirismo, pelo apoio e,
principalmente, por terem sido os primeiros a acreditarem em
mim.

Sou grata também a todos os personagens do livro e a cada


família que tirou um pouco do seu tempo para ouvir as minhas
perguntas, responder as minhas dúvidas e, claro, por se colocarem
disponíveis para ajudar na produção deste livro-reportagem.

Agradeço ao meu amigo e também professor orientador,


Valmir Matiazzi, pelas dicas, sugestões, elogios e conselhos no
momento em que eu mais precisava. Obrigada por ter acreditado
na minha capacidade, por não me deixar desistir e por me

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estimular a buscar sempre mais. Sem as suas orientações, tudo
teria sido muito mais complicado.

Por último, não menos importante, agradeço ao Senhor


meu Deus por ter permitido que eu crescesse em um lugar repleto
de histórias lindas e inesquecíveis. Por me fazer ter orgulho das
minhas raízes e, principalmente, por me abençoar em todas as
minhas escolhas e me iluminar a cada passado dado. Obrigada,
Senhor, por mais uma graça alcançada.

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ÍNDICE

Capítulo I
São Roque do Canaã: uma história de
fé.................................................................................................. 8

Capítulo II
Em memória de
Regattieri.................................................................................... 18

Capítulo III
Mãos milagrosas em São
Roque......................................................................................... 34

Capítulo IV
Mulheres do Canaã: O que dinheiro nenhum no mundo é capaz
de comprar................................................................................ 40

Capítulo V
Era uma vez, cinco
casinhas.................................................................................... 49

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INÍCIO DE UMA JORNADA

A ligação de uma comunidade com o passado sempre é


preciosa, mais ainda quando preciosa e rica é a sua própria
história. Para compreender o processo de evolução do município
de São Roque do Canaã, foi preciso buscar fontes e relatos de
pessoas que deixaram o seu legado na cidade.

O lugar, que hoje se destaca pelo cultivo de café, cana-de-


açúcar, hortifrutigranjeiros, goiaba, tomate, banana e criação de
gado, também é repleto de memórias e relatos de moradores que
deixam a história de São Roque ainda mais especial e respeitada.

O livro-reportagem, produzido com o apoio da população,


se divide em cinco capítulos e conta com fotos e arquivos
disponibilizados tanto pelas famílias participantes quanto pela
Prefeitura Municipal e a Igreja Matriz da cidade.

A arte utilizada na capa tem como objetivo representar a


relação dos personagens, a tradição e o amor entre cada um deles.
A cor predominante, juntamente com o estilo retrô da capa
pretendem relembrar um sentimento que decorre por todo o livro:
a felicidade. Afinal, a verdadeira alegria está presente nos
momentos vividos com a própria família.

O nome do livro foi pensando em homenagem a cada


personagem incluso nele. Cada um traz consigo fatos, lembranças
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ou acontecimentos marcantes sobre o passado. E, por isso, a
intenção principal é apresentar histórias de vida contadas pelos
personagens mais velhos e os mais novos de uma mesma família,
descobrindo e entendendo, assim, quais os traços mais marcantes
foram herdados por eles. Afinal, todas as recordações possuem um
grande valor, principalmente porque as histórias contadas jamais
serão esquecidas.

Brasão do município de São Roque do Canaã

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Arquivo Prefeitura Municipal de São Roque do Canaã
Vista de cima de São Roque no 4º ano de emancipação política da cidade

Arquivo: Igreja Matriz de São Roque do Canaã

Vista do centro de São Roque nos primeiros anos de emancipação política

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Capítulo I

C
olonizado por imigrantes italianos e uma minoria
alemã, São Roque está localizado na Microrregião
Geográfica Serrana (lei nº 5120, de 01/12/1995),
junto com os municípios de Santa Teresa, Santa Leopoldina, Santa
Maria de Jetibá, Itarana e Itaguaçu.

A história da cidade começa, segundo os antepassados,


quando alguns imigrantes ficaram perdidos por muitos dias na
mata ao descerem a Serra do Canaã. Tratava-se da família Bosi.

Com medo, preocupados e com um destino incerto, os


imigrantes fizeram uma promessa à Nossa Senhora das Graças:
quando encontrassem uma saída, construiriam ali um oratório.
Dias depois, quando alcançaram a graça, cumpriram a promessa e
construíram um modesto oratório que guarda até hoje um ato
grandioso.

Outro relato ancestral conta que, com o passar dos anos,


uma grave epidemia assolou a região. Diante disso, os povos
passaram a fazer novenas diárias pedindo graças a São Roque,
Santo Padroeiro dos Inválidos e Doentes, para que livrasse a todos
do mal que os apartava. Novamente a fé agraciou os desprotegidos
e em pouco tempo não havia mais ninguém doente.
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Arquivo: Igreja Matriz de São Roque do Canaã

Imagem de São Roque, santo padroeiro do município

Como forma de agradecimento e tendo em vista a proteção


e o milagre concedidos, um outro oratório foi construído, agora em
homenagem a São Roque, onde hoje está situada a Igreja Matriz
da cidade.

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Arquivo: Igreja Matriz de São Roque do Canaã
Vista atual da Igreja Matriz de São Roque, situada no centro da cidade

No entanto, antes de se tornar um município, o povoado de


São Roque pertenceu, durante 120 anos, a Santa Teresa, conforme
a Lei Estadual nº 137/81, assinada no ano de 1982. Foi somente
em 1995, após uma consulta plebiscitária, que o processo de
emancipação do município começou a seguir os trâmites
legislativos e burocráticos.

Finalmente, em 25 de julho de 1995, o município foi criado


e se desmembrou de Santa Teresa, sendo constituído, então, pelos
atuais distritos de São Jacinto e Santa Júlia, com sede no distrito
de São Roque do Canaã.

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A partir de então, São Roque começou, aos poucos, a crescer
e prosperar. Dentre os primeiros moradores da cidade, têm-se as
famílias Dalla Bernardina, Roldi, Cassani, Regattieri, Spalenza,
Brunetti, Capatto, Bosi, Luppi, Guaitolini, Dalcomune, Torezani,
Locatelli, Boschetti, Mariani, Luchi, Folador, Maestri, Caglieri,
Valvassori, Lopes, Rosado e Bonatto.

Ao chegarem na região, algumas dessas famílias se


instalaram nas proximidades da igreja, hoje centro da cidade.
Porém, a grande maioria buscou a área rural para a cultivo de café
e para a produção de açúcar, cachaça, milho, feijão, arroz, cereais,
hortigranjeiros, suínos e pecuária.

Um lugar na memória, por Levi Bosi


Aos 92 anos de vida e cheio de vitalidade, Levi Tavino Bosi
nasceu na região de Picadão, em São Roque do Canaã, e por lá
morou durante muitos anos. Com um
sotaque italiano e que soa como música aos
ouvidos, Levi jamais apaga da memória todas
as histórias que sabe sobre o surgimento e a
evolução do município.

Mesmo tendo uma infância difícil e


sendo educado por pais muito rígidos, Levi Levi Bosi

sempre sonhou em estudar e conseguir um bom emprego. Filho de

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José Bosi e Maria Bosi, ele lembra que naquela época, o destino de
todos era trabalhar na roça para ajudar os pais e os irmãos.

As lembranças da infância ficam guardadas dentro do


coração de Bosi, mas uma delas ganhou um espaço mais especial:
a sua imensa vontade de estudar.

“Infelizmente, consegui frequentar a escola apenas por 2 anos. A


minha maior paixão era conseguir ser professor. Então, assim que eu
chegava da roça, sempre recebia pessoas na minha casa para ensinar o
que eu sabia. Quem entendia um pouquinho mais, aprendia com o
outro, era uma felicidade sem tamanho. Me lembro que aos domingos
meu pai tinha costume de comprar jornal, esse era o meu maior
presente. Só de saber que eu estava conseguindo ler as notícias era uma
festa para mim. Estudar nunca é demais e essa foi a minha escola”

Quando saiu de Picadão, Levi migrou para o bairro Cinco


Casinhas, hoje um dos bairros mais movimentados da cidade e que
carrega consigo uma história muito significativa.

Ao chegar no novo lar, Levi fez amizade com José


Regattieri, um dos principais empresários da época, e passou a
trabalhar em sua oficina. Com o passar dos anos, Levi também teve
a oportunidade de ajudar Regattieri com o teatro da Vida Morte e
Ressureição de Cristo, que será apresentado no próximo capítulo.
Somente ele era o responsável por cuidar de toda a instalação
elétrica e sonoplastia das apresentações. Bosi revela que ele
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também era o único da cidade que, além do padre, tinha a chave
da igreja.

Ele conta que, como cuidava do som do teatro, não


conseguia assistir ao espetáculo. Mas, na opinião dele, todas as
cenas tocavam o coração de quem assistia e não era possível
acompanhar a encenação sem derramar lágrimas. Ele mesmo
sempre ficava emocionado, principalmente na cena da
crucificação de Cristo.

As cinco casinhas que não saem da memória


Durante a conversa, Levi conta que o pai de seu avô, italiano
nato, decidiu abandonar a Itália devido à falta de alimentos e às
péssimas condições sociais e econômicas enfrentadas na época. Ao
chegar aqui, juntamente com outros imigrantes, situou-se na
região de Lombardia, em Santa Teresa, local onde tentou ganhar a
vida plantando arroz, café e feijão.

Sem sucesso, decidiu ir em busca de um outro lugar para


viver. Foi quando ficou perdido na mata e nela permaneceu
durante três dolorosos dias, sobrevivendo graças ao córrego
encontrado por ele e pelos demais imigrantes que o
acompanhavam. Sem perceber, acabaram descobrindo o Rio Santa
Maria.

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Foi quando, já sem esperança, decidiram fazer a promessa
à Nossa Senhora das Graças, a qual concebeu a benção e hoje está
homenageada em forma de igreja logo na entrada do bairro São
Roquinho.

Arquivo: Igreja Matriz de São Roque do Canaã


Igreja de Nossa Senhora das Graças recém construída em São Roque do Canaã
Arquivo: Igreja Matriz de São Roque do Canaã

Atual Igreja de Nossa Senhora das Graças, em São Roquinho

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Arquivo: Igreja Matriz de São Roque do Canaã
Altar da igreja. A cabeça e os braços da imagem da padroeira são de madeira. As
roupas são vestidas sobre uma armação (não há corpo)

Bosi conta que seus antepassados, logo quando


encontraram a região de São Roque, a apelidaram de “Volta de
Santa Maria”, justamente por conta do rio a volta.

Outra curiosa e exclusiva história relembrada por Levi a


respeito da construção do oratório é que, antes mesmo de
construí-lo, uma mulher, desconhecida por todos e nunca mais
vista em São Roque, subiu pela mata e profetizou o local que a
Igreja de Nossa Senhora das Graças seria construída. Bosi afirma
que por muitos e muitos anos alguns moradores do município
tentaram encontrar a mulher, entretanto, nenhum deles teve êxito.

Com o passar do tempo, São Roque do Canaã começou a


prosperar e desenvolver novas oportunidades de trabalho para a

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população. Muitas pessoas que antes se ocupavam somente com
os serviços na roça, puderam passar a trabalhar na cidade graças
ao apoio de grandes homens.

Um deles, relembrado com muito carinho por Levi, é


Lourenço Roldi. Bosi conta que Lourenço foi um dos homens mais
bondosos e piedosos que ele já conheceu, e que mesmo com tanto
dinheiro, sempre buscou ajudar quem mais precisava, inclusive na
construção de casas para a população carente da região.

Naquela época, nem todas as famílias tinham condições


suficientes de contratar pedreiros ou ajudantes para construir as
moradias. Lourenço, por sua vez, em um ato grandioso, mandou
contratar vários pedreiros para construir cinco casinhas idênticas
para os cinco funcionários dele.

Atualmente, duas dessas casinhas ainda permanecem com


a mesma construção, sofrendo alterações somente de pinturas e
reformas devido ao tempo. As outras viraram prédios, foram
demolidas ou deram espaço para a construção de novos lares. No
entanto, o feito de Lourenço Roldi para São Roque jamais cairá no
esquecimento. Inclusive, o bairro Cinco Casinhas hoje é um dos
mais movimentados, conhecidos e admirados pelos moradores do
município.

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As duas casas que ainda permanecem erguidas em Cinco Casinhas

Ao fim da conversa, quando questionado sobre tudo o que


aprendeu no passado e o que guarda de lição para o presente, Levi,
sem hesitar, preferiu dar preferência a uma única frase, mas que
carrega um grande significado:

“Prefiro deixar o meu passado guardado no coração e ficar feliz com o


hoje. Para mim, o presente é muito mais valioso. É uma dádiva”

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Capitulo II

U
m nome marcante e que faz muita falta para a
população são-roquense. José Regattieri, nascido
em 1º de janeiro de 1925, prestou Serviço Militar,
chegando à patente de Reservista de 1ª categoria, mas deixou o
exército e decidiu ser seminarista. Morou por um tempo em um
bairro de São Roque chamado Santa Luzia, conhecido por todos da
região como Picadão. Depois, mudou para a sede de São Roque,
onde abriu comércio e passou a realizar o teatro da Vida, Morte e
Ressurreição de Jesus Cristo.

Narrando com fidelidade a história de vida de Regattieri,


Roberta Fachetti, no livro “A Paixão Segundo São Roque”, deixa
registrado os principais feitos por José em São Roque do Canaã.
Portanto, é com muita honra e alegria que a parabenizo pela obra
e a agradeço por todas as informações disponibilizadas.

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Quem pergunta sobre a
Arquivo família Regattieri

história de José em São Roque


sempre escuta a mesma expressão:
“um homem muito guerreiro”. Essa
é a principal definição de Regattieri
para muitos que tiveram a honra de
conhecê-lo. E até mesmo quem não
teve a oportunidade, sabe do que
Regattieri fez.

Ele foi uma das principais


pessoas que lutou para trazer água,
José Regattieri energia, calçamento e melhora nas
estradas da cidade. Grandes exemplos das contribuições de
Regattieri para São Roque são o Ginásio Poliesportivo e a
Associação Beneficente e Cultural (ABC).
Arquivo: Igreja Matriz de São Roque do Canaã

Primeiros anos de fundação da Associação Beneficente Cultural

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Embora Regattieri tenha feito inúmeras contribuições para
a cidade, a história dele passou a ser construída de uma outra
forma a partir de 1959. Na época em que era seminarista, José viu
a representação dos fatos principais da vida de Jesus, desde o seu
nascimento até a sua ressurreição. Desde então, um nobre projeto
envolvendo um número expressivo de pessoas transformou para
sempre o período da Quaresma à Semana Santa em São Roque do
Canaã. Nascia, então, o teatro da Vida, Morte e Ressurreição de
Jesus Cristo.

O Teatro
Até 1958, a população são-roquense celebrava a Semana
Santa como a maioria dos lugares colonizados por italianos. Além
da procissão do Domingo de Ramos, havia também a procissão do
encontro de Jesus carregando a cruz, a missa de lava-pés e vigília,
a celebração e narração da Paixão de Jesus Cristo e, aos sábados,
havia uma missa na sede da paróquia, assim como no domingo,
em memória a Ressurreição de Cristo.

No entanto, a partir de 1959, a população de São Roque


passou a enxergar a cidade com outros olhos. Separados por uma
tela devido as condições atuais enfrentadas pela pandemia do
COVID-19, Antônio Carlos Regattieri, de 64 anos, conhecido por
todos como “Toninho”, relembra, emocionado, as principais

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lembranças da época em que São Roque do Canaã foi destaque
nacional graças ao teatro idealizado pelo pai.

“Meu pai foi um homem que esteve sempre além do seu tempo.
Ele sonhou, ousou e realizou. Se eu pudesse usar palavras para defini-lo,
acredito que atitude e determinação são os
termos certos. O teatro era a vida dele,
meu pai vivia em função das
apresentações. E por amor a ele, após seu
falecimento continuei realizando as
encenações durante nove anos e ainda hoje
sigo dando o meu máximo para realizar os
Antônio Carlos sonhos que ele deixou para trás”

Toninho conta também que o teatro acontecia sempre em


frente à Igreja Matriz, onde as pessoas se fixavam abaixo da
escadaria da igreja para observar as cenas enquanto ouviam, na
voz de Regattieri, a narrativa comovente da Vida, Paixão, Morte e
Ressureição de Jesus Cristo. Mesmo tendo como principais
personagens duas imagens de gesso, a emoção e a fé não perdiam
o valor.

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Arquivo: Igreja Matriz de São Roque do Canaã
Apresentação do Teatro da Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo

Arquivo família Regattieri)

Jesus Cristo representado por uma imagem de gesso no início das encenações

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Foi apenas no ano de 1961

Arquivo família Regattieri


que o teatro estreou com um grupo
de figurantes e atores que
deslumbraram os olhos de quem
assistiu à peça. As palavras de José
Regattieri apresentando a
encenação ao vivo da Via-Sacra
tinham uma emoção ainda mais
especial: José concretizava um
sonho que por muitos anos ficou
guardado no coração.
Cartaz de divulgação do teatro
Ao longo de todos os anos, 40
encenações aconteceram. José Regattieri, iniciador e grande
animador da maior parte delas, organizou 33 apresentações no
decorrer de 20 anos. A maioria delas ocorria nas Sextas-feiras
Santas e, muitas vezes, também aos sábados seguintes devido ao
excesso de público.

Com o passar dos anos, calcula-se que mais de 250.000


pessoas assistiram ao espetáculo santo que, por mérito, foi
transformado em filme em 1970, contando, inclusive, com a
participação da grande artista brasileira Fernanda Montenegro, a
qual fez o papel de Samaritana.

São Roque do Canaã foi muito mais do que um palco de


teatro. O teatro envolvia respeito, religiosidade, reflexão, talento e
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muita admiração. O comportamento da população local sempre
esteve intimamente relacionado à religião. Ir à igreja aos
domingos, jejuar de carne vermelha na Semana Santa e o próprio
luto pelo sofrimento e a morte de Jesus são costumes ainda típicos
dos moradores da região. E, para as pessoas da cidade, esse
sentimento é ainda mais forte.

Depois de muitos e muitos anos seguidos de apresentações,


que começavam, geralmente, quando o sol estava indo embora,
dando espaço para a noite chegar, a sequência foi quebrada em
1979 devido às fortes chuvas que caíram em todo o Espírito Santo,
atingindo São Roque com uma violenta tromba d’água. Em
compensação, nos anos de 1980 e 1981, as duas apresentações
receberam aproximadamente 15.000 pessoas no total.

Regattieri sempre fez de tudo para que as encenações


acontecessem da melhor maneira possível. Até mesmo a falta de
estrutura não era motivo para acabar com o teatro, já que o
número de espectadores de diversos estados brasileiros
aumentava consideravelmente a cada ano.

Após os calorosos aplausos e felicitações, José enchia o


coração de emoção. Ao fim da apresentação, ele costumava reunir
os atores na igreja, tirava o dinheiro das despesas e dava o que
sobrava para quem ajudou. Os melhores atores recebiam um
pouco mais.

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E por falar em emoção, uma das cenas que sempre fazia
José chorar era no momento em que o personagem de Jesus Cristo
caminhava em direção ao personagem que interpretava Pedro e o
Senhor dizia:

- “Em verdade vos digo que tudo que ligardes na terra será ligado
no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu”.
(Mateus, 18:18).

A música de fundo, comandada por Levi Bosi, aumentava


ainda mais a emoção e contribuía para a chuva de aplausos, com
todos de pé. Ao ver milhares de pessoas, José não conseguia conter
o choro e derramava, em cada gota de suor e de lágrima, a gratidão
por mais uma apresentação.

Infelizmente, quando tudo estava preparado para a


encenação de 1982, não foi possível realizá-la devido ao péssimo
estado de saúde de Regattieri, que, por ironia do destino ou não,
faleceu justamente no dia 10 de abril, Sábado de Aleluia, daquele
mesmo ano. Ao recordar os valores aprendidos com o pai, Toninho
fez questão de destacar o maior deles:

“Dizem que amor de pai é diferente do amor de filho para mãe.


Eu posso afirmar que herdei do meu pai grande parte dos seus
ensinamentos, aprendi a ter caráter, respeitar o próximo e ser
perseverante. Eu cultivo a memória do meu pai muito além do que as

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pessoas imaginam. Admiro e agradeço a ele pela vida que me deu e serei
eternamente grato por tudo”

No dia em que José


Arquivo família Regattieri

Regattieri faleceu, diversas pessoas


destacam que “até as pedras
choraram”. Somente em pensar que
os aplausos que marcavam o
término do teatro ficariam mudos
para sempre, e que ninguém nunca
mais ouviria José apresentar a
encenação, doeu e ainda dói em
grande parte da população são-
roquense.
Regattieri e Antônio Carlos juntos

Vítima de um infarto fulminante, Regattieri faleceu aos 57


anos de idade e teve um dos enterros mais tristes da história de
São Roque do Canaã. Com marcha fúnebre e com crianças
caracterizadas de jogadores do Flamengo, time que ele torcia, a
tristeza invadiu a cidade e tirou o sorriso de praticamente todos os
moradores. Para muitos, a morte de Regattieri representou,
também, o fim da felicidade dos personagens do teatro.

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Admiração que vai além do tempo, por Clarice
Sampaio Regattieri (neta)
“José Regattieri, muito mais que um nome, um legado. Quando
ouço esse nome, o primeiro sentimento que destaco é orgulho. Orgulho
por quem ele foi e por tudo que fez. Orgulho por ter sido muito mais do
que apenas um nome em minha
cidade, mas alguém que lutava por
tudo aquilo que acreditava. Alguém
que ajudou muita gente. Alguém que
criou uma família incrível e deu voz a
uma cidade que poucos conheciam.
Eu amo quando me contam histórias
do que ele fazia e a forma como
pensava. Todos dizem: ‘seu avô Clarice Sampaio Regattieri

sempre esteve à frente do tempo dele’. E eu não consigo deixar de


pensar em como seria incrível tê-lo conhecido. Ele era um homem
simples que carregava em si sonhos, força de vontade e muita fé em
Jesus Cristo”

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A busca pelo retorno
Está claro que o teatro ficou na memória de todos os que
tiveram a oportunidade de vê-lo, nem que tenha sido por uma
única vez. A geração mais antiga não consegue apagar da memória
e quem participou não esquece a emoção que sentia diante do
espetáculo. Quem somente assistiu, até hoje lembra a
profundidade das cenas e a reflexão que elas provocavam.

E por mais que esse ano (2020) a celebração tenha ficado


apenas na memória devido a pandemia do novo coronavírus,
Paulo Henrique Bolsoni, de 51 anos, é uma das pessoas mais
dedicadas para a retomada do teatro em São Roque.

Ele diz que sente orgulho de ter participado do primeiro


momento do teatro e lembra que, ainda criança, ficava ansioso
para subir e descer os morros em cena. Segundo ele, no dia do
teatro, o público jogava dinheiro, simbólico, em sacos e o valor
arrecadado era destinado para melhorias do lugar, que podem ser
vistas até hoje.

“Eu era muito novo, mas me recordo muito bem. Lembro muito
da voz forte e maravilhosa que José tinha. Uma pessoa brilhante e de
uma luz que irradiava toda a cidade. Ele é fonte de inspiração para
qualquer pessoa de São Roque do Canaã. Foram momentos muito
lindos, dos quais tive a honra de participar como personagem, dos

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bastidores, dos ensaios e das reuniões para o encontro maravilhoso.
Todo o sucesso foi muito merecido”

Crianças costumam guardar na memória acontecimentos


que para sempre serão lembrados. No caso de Paulo, o teatro
marcou tanto a sua vida que hoje ele faz de tudo para que essa linda
tradição seja retomada. Grato por ter a oportunidade de relembrar
esses momentos vividos, Paulo fica emocionado ao falar sobre a
época em que o falecido irmão representou o menino Jesus, em
1973.

Arquivo família Bolsoni

Paulo Henrique ao lado dos pais e do irmão em uma das encenações

Ele declara ainda que, após a morte de Regattieri, Toninho,


juntamente com uma equipe, trouxeram de volta o teatro durante
alguns anos, no qual também teve a oportunidade de participar já

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na fase adulta, representando Simão Cirineu, homem que ajudou
Jesus a carregar a cruz. Com o passar do tempo, ele também
representou Judas.

Depois de alguns anos e por motivos internos, o teatro


parou de ser realizado. Mas após 24 anos, Paulo, em companhia
da prima Renata Rachel Boscheti, tiveram a ideia de retomar as
encenações.

O retorno aconteceu em 2015 com uma Via Sacra Encenada


na Semana Santa. A partir desse ano foi surgindo a ideia de fazer
as cenas. No ano seguinte, com os membros da comunidade
vizinha, em São Dalmácio, Paulo teve a ideia de convidar alguns
personagens para fazer a apresentação. E, em 2018, após 24 anos,
o teatro foi retomado com a participação de diversos atores da
chamada velha guarda, que compunham o antigo teatro, como:
Izaú Marcos Vago, Ana Marta Lamborguini, Liliana Roldi,
Valentim Vago e Marcos Mariani.

Atualmente, o elenco é formado tanto por personagens da


nova geração, que não conheceram o teatro, quanto por
personagens antigos que participaram desde a primeira edição.
Este ano, o teatro não pôde ser realizado, mas Paulo já está cheio
de ideias para 2021.

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“Quando a pandemia acabar, pensamos em retomá-lo com
cenas novas, que não aconteciam na época do teatro de José Regatierri
e nem na época em que o Toninho retomou a tradição. Fico
imensamente feliz em poder contribuir para a história do município.
Mesmo com tantas dificuldades, não vou me abater. A ideia de
retomada foi extraída diante de uma Via Sacra muito simples realizada
na comunidade de São Dalmácio, mas foi graças a ela que conseguimos
resgatar a tradição herdada por Regattieri. Hoje, denominada de Teatro
Paixão de Cristo na Comunidade de São Dalmácio”

Arquivo de Paulo Bolsoni

Renata Rachel Boschetti e Paulo Henrique Bolsoni junto aos atores Ana Marta
Lamborguini e Izaú Vago na preparação do teatro “Paixão de Cristo”, em 2019

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Arquivo de Paulo Bolsoni
Paulo e os demais organizadores preparando o cenário no ano de 2019
Crédito: Heitor Schulz fotografia

Arquivo de Paulo Bolsoni

Jesus Cristo, representado por Izaú Vago, carregando a cruz no teatro de 2019
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Arquivo de Paulo Bolsoni
Crédito: Heitor Schulz fotografia

Momento da cena em que Jesus Cristo é crucificado na apresentação de 2019


Crédito: Heitor Schulz fotografia

Arquivo de Paulo Bolsoni

Atores agradecendo e saudando o público após a encenação realizada no ano de 2019

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Capítulo III

“M
ãos milagrosas ou mãos de anjo”. Assim
é conhecida Emília Locateli Torezani, de
85 anos, chamada carinhosamente por
todos de Dona Miúda. Famosa dentro e fora do município por
curar a dor de quem tem problema ortopédico, enfermidades na
coluna ou nas articulações do corpo, Emília trabalha fazendo
massagem há 70 anos.

Ao relembrar a infância, Dona Miúda conta que começou a


vida trabalhando na roça para ajudar os pais: Angelo Roque
Locatelli e Jonoveva Fachetti Locatelli. Mesmo na adolescência,
quando já fazia massagens, não tinha coragem de abandonar a
lavoura.

“Eu nasci com muitos problemas. Os médicos diziam até que eu


não iria sobreviver e isso afetava muito os meus pais por medo de me
perder. Mas sempre acreditei que acima das mãos de qualquer
profissional, tem a mão de Deus. Foi ela quem me curou e me permitiu
continuar ajudando os meus pais e seguir a vida dando massagem”

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Apesar de não ter conhecimentos de Ortopedia ou
Fisioterapia, Dona Miúda afirma que sabe perfeitamente
identificar os ossos, aplicando nas pessoas massagens específicas
para cada situação. Em suas sessões, costumava usar pomadas ou
unguentos e sempre rejeitou qualquer ideia de que seja possuída
por alguma entidade espiritual durante o atendimento. Admite
apenas sentir que não está sozinha quando atende uma pessoa.

“Eu nunca me senti sozinha para nada. Quando eu era jovem e


escurecia, e precisava sair, eu sentia passos do meu lado. Nunca vi nada,
mas sempre senti, até mesmo na porta da minha casa. Continuo
sentindo até hoje”

Com a fala meio engasgada, ela relembra, com muita


emoção, os ensinamentos que aprendeu com o pai. Dona Miúda
considera que herdou o mesmo dom do avô e do pai, que já
consertavam ossos antes mesmo de ela nascer.

Quando questionada sobre como aprendeu a fazer


massagem, Muída faz um agradecimento ao cunhado Geraldo que,
segundo ela, foi quem a fez descobrir não só o trabalho, mas o
dever da própria vida.

“Um dia precisamos atravessar um córrego e o meu cunhado


sentiu uma forte dor nas costas. Essa dor chegou com força, ele caiu no
chão e não conseguia mais se mexer. Naquele momento, fiquei
desesperada. Peguei a pomada e fui até ele. Fiz uma massagem e o
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levantei. Imediatamente a dor passou, melhorou como um sopro. Foi
naquele momento em que eu encostei a mão nele que eu aprendi a fazer
tudo. Foi quando eu conheci o corpo humano e reconheci o meu
trabalho”

A partir desse dia, Dona Miúda passou a ser procurada


incansavelmente por todas as pessoas que precisavam de
curativos, injeção ou massagem. Os atendimentos em São Roque
eram feitos por ela e, antes mesmo de procurar alguma ajuda
médica, as pessoas preferiam ir até Emília.

Das pessoas que já receberam o atendimento de Dona


Muída, uma em especial, relembrada por ela, é a de um homem
que fraturou o pé em um acidente de trabalho. Ela contou que ele
foi ao médico e fez o tratamento indicado e, depois de recuperado,
teve que fazer fisioterapia, mas, mesmo com 30 sessões, de nada
adiantou. Foi só procurá-la para nunca mais sentir dificuldade ao
andar.

Desde então, Dona Muída nunca mais procurou uma nova


forma de levar a vida. Os atendimentos sempre ocorreram na casa
dela, na comunidade de Vila Verde, onde vive há 52 anos.
Infelizmente, por conta da pandemia enfrentada e por motivos de
saúde, Dona Miúda precisou parar com o trabalho no ano de 2020.

Ao final da conversa, já cansada, Dona Miúda fez questão


de deixar uma última mensagem para a geração de hoje:
36
“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei, isso é o que prega
o Senhor. E eu digo: tenham amor dentro de si e olhem o outro com
compaixão”

Dom passado entre gerações


Nas primeiras décadas do século passado, o atendimento
médico em São Roque do Canaã era precário. Por essa razão,
Angelo Roque Locatelli, pai de Emília, era muito requisitado
quando alguém tinha problemas
ortopédicos.

Angelo, já falecido, era


conhecido como “O Consertador de
Ossos”, segundo Dona Miúda. Ela
destaca que herdou toda a técnica do
pai. Hoje, os novos “consertadores de
ossos” da família são o filho de Miúda,
Robério Torezani, e o neto, Igor
Torezani.

Apaixonado por carros desde Robério e Igor

criança, Robério começou a vida trabalhando em uma oficina. Não


satisfeito, aos 19 anos, teve a decisão de chegar até a mãe e falar
que queria trabalhar com ela. Dona Miúda, feliz em buscar as
memórias do passado, lembra que Robério, desde que entrou para
a sala de massagem, nunca mais quis sair dela.
37
Dona Miúda conta que pessoas do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Bahia, além de diversas cidades capixabas, já procuraram
os atendimentos de Robério e, hoje isso representa muito, ao ver o
neto seguindo o mesmo caminho.

“Deus nos deu tanta coisa boa. Se existe uma coisa boa no
mundo é o trabalho. O pouco que você ganha é muito para o outro. Me
lembro que quando criança, ao invés de comprar uma peça de roupa
cara, preferia comprar duas mais acessíveis e dar uma para outra
pessoa. Hoje, só consigo agradecer a Deus por me dar dois filhos e
quatro netos que me enchem de orgulho. Nada do que eu construí foi
eu quem fiz. Tudo foi feito pelas mãos Dele”

Todos da família são conhecidos por algum apelido e com o


neto Igor, de 28 anos, não poderia ser diferente. Grato em poder
expressar o amor pela avó, Igor admite que, mesmo tendo uma
cobrança maior por ser conhecido por todos os cidadãos da cidade
como “o neto da Dona Miúda”, o orgulho e a inspiração por ela e
pelo pai são as heranças mais importantes guardadas por ele.

“Escolhi a fisioterapia por ser a profissão que mais parecia com


o que minha família fazia na época. Tanto a minha avó quanto o meu pai
sempre foram exemplos para mim. Por isso é até difícil falar algo
específico que eles me ensinaram. O que mais me marca e que posso
afirmar com grande certeza é que diferente do que pude aprender com

38
a faculdade, minha avó me ensinou a cuidar do outro com dedicação,
cuidado e, principalmente, com amor”

Para Igor, a lembrança mais marcante da infância era


quando brincava no quintal da própria casa e, de repente, via que
diversas pessoas chegavam machucadas com braços, pernas ou
outras partes do corpo fraturadas e, depois de algumas horas, as
via saindo de lá perfeitamente curadas.

“O que sempre me deixou muito impressionado é o tato dela.


Somente de encostar em uma pessoa, minha avó já sabe falar o que ela
tem. Ela sabe reconhecer quando o osso está quebrado ou trincado. O
que até hoje, depois de anos

Arquivo família Torezani


formado, eu ainda não
consigo fazer isso. Minha
avó é realmente uma
grande fonte de inspiração”

Igor, em sua formatura, ao lado de Dona Miúda

39
Capítulo IV

O
s talentos femininos da cozinha típica rural de São
Roque são os responsáveis por gerar renda,
orgulho e muita independência para as mulheres
do distrito de Santa Júlia, localizado a poucos quilômetros do
centro da cidade.

Fundada em 22 de agosto de 2015, a Associação Mulheres


do Canaã é formada por um grupo de 10 mulheres, sendo elas:
Catarina Zupelli Dipré, Arlene Mônico Margon, Aline Carla
Zanetti, Maria Aparecida Sperandio, Franciela Colombo, Sidinéia
Tamanini, Rubia Helena Gasparini, Janente Aparecida Daltoé,
Joyce Aparecida Zanetti e Zenaide Capatto.
Arquivo Associação Mulheres do Canaã

As dez associadas trabalhando em ano de pandemia

40
Ambas com o propósito de trabalhar com a agricultura
familiar e com artesanato, todas as mulheres pertencentes à
Associação sonham em alcançar as metas trabalhando em prol de
conciliar a independência financeira e o empoderamento
feminino.

“Jamais desistiremos de lutar pelos nossos objetivos porque


sabemos que somos exemplo de garra e coragem para muitas da região.
Nós estamos aqui para mostrar que, mesmo com inúmeras dificuldades,
é possível ganhar espaço e representação na sociedade. Palavras de
preconceito não nos calam”, diz Joyce, uma das associadas.

A comercialização dos produtos que antes era restrita


apenas ao município de São Roque, hoje já acontece em diversas
partes do Estado. Entre pães, roscas, doces de leite, goiabada,
cocada, suspiros, pipoca gourmet e o tradicional doce cremoso de
goiaba, os produtos fabricados no interior de São Roque podem
ser encontrados tanto nos municípios vizinhos, como Colatina e
Santa Teresa, quanto na capital Vitória.

Logomarca da Associação

41
Arquivo Associação Mulheres do Canaã
Produtos artesanais comercializados pelas associadas

Arquivo Associação Mulheres do Canaã

Doce de goiabada cremosa produzido no Sítio Brunow, em Santa Júlia

42
O início de um sonho
Entre os anos de 2013 e 2014, São Roque enfrentou uma
grave crise hídrica, o que acabou afetando diretamente no cultivo
agrícola do município. Pensando, então, em uma outra opção de
manter a renda familiar e garantir um faturamento extra no fim do
mês, as dez mulheres tiveram a iniciativa de se juntar para
encontrar outra forma de conseguir um apoio financeiro.

Empolgadas em adquirir conhecimento, foi por meio do


Programa Mulheres em Campo do Serviço Nacional de
Aprendizagem (SENAR) que todas as agricultoras passaram a
realizar cursos na área de processamento de alimentos. Elas
aprenderam a reaproveitar as frutas, matéria-prima das próprias
propriedades, e comercializá-las de uma forma diferente do
tradicional.

Durante a conversa, Joyce Zanetti, que é a tesoureira da


Associação, lembra que foi durante um curso de pães e biscoitos
que a grande ideia surgiu. Contudo, mal sabiam elas que muitos
obstáculos surgiriam pelo caminho. As agricultoras precisaram se
reunir com diversas entidades do município para dialogar sobre os
principais programas disponibilizados pelo governo que poderiam
favorecê-las com equipamentos agroindustriais e fornecimento de
alimentos.

43
Depois de muitos dias de reuniões, encontros semanais e
mensais, a realização do sonho estava cada vez mais próxima.

“Todas as dificuldades e os impedimentos nos fizeram enxergar


que mulher pode conquistar o que quiser, independentemente da
situação. Sempre soubemos que a caminhada seria longa e que nela
encontraríamos altos e baixos. Não é à toa que muitas parceiras
desistiram pelo meio do caminho, mas, mesmo assim, seguimos com 10
agricultoras até o momento da fundação da nossa Associação”

Hoje, após 5 anos de Associação, as Mulheres do Canaã


continuam aprimorando os conhecimentos e participam de cursos
em diversas áreas de atuação. Seja sobre associativismo,
empreendedorismo, finanças, comercialização ou culinária, todas
as associadas fazem questão de buscar aprendizado dia após dia.

E está enganado quem pensa que o talento das agricultoras


está destinado apenas à culinária. Muitas delas, além de cozinhar
e fazer deliciosos doces, também demonstram as habilidades
manuais na confecção de bordados, artesanato e tudo o que pode
ser transformado em arte pelas mãos.

44
Arquivo Associação Mulheres do Canaã

A responsável pela confecção é comercialização das peças artesanais é Aline Zanetti

45
Derrubando barreiras
As agricultoras de Santa Júlia, por meio da fundação, têm a
oportunidade de participar de experiências grandiosas envolvendo
agricultura familiar. O que antes não passava de um sonho, hoje é
realidade.

Com muita responsabilidade e disposição, as associadas


não só representam, como participam e ainda organizam eventos
voltados para a agricultura familiar e social em todo o Brasil. Para
elas, um dos momentos mais marcantes foi poder participar da
Feira da Agricultura Familiar e Economia Solidária no Rio Grande
do Sul (FEICOOP).

De acordo com Joyce, colaborar com esse tipo de evento as


deixa mais unidas e faz com que todas continuem lutando em
busca do mesmo objetivo.

“Dentro desses eventos conseguimos aprender valores que vão


além da comercialização dos produtos. Entendemos que é necessário
ser solidário com o outro para que assim possamos caminhar e
conquistar novos clientes e parceiros”

46
Arquivo Associação Mulheres do Canaã
Joyce, Sidineia, Cleunice e Catarina no evento da FEICOOP, no Rio Grande do Sul

Antigamente, as mães das agricultoras trabalhavam na roça


ao lado dos maridos e, além de zelar pelos afazeres domésticos,
tinham que ter força para cuidar do plantio e da colheita, muitas
vezes com os filhos ainda no colo.

Hoje, as agricultoras compreendem o trabalho, mas, para


elas, conquistar um espaço longe do lar, dos filhos e das tarefas de
casa é uma vitória. No entanto, a falta de reconhecimento e o
preconceito ainda estão muito presentes no cotidiano e na vida das
associadas.

O preconceito da mulher dentro do agronegócio está


atrelado à desvalorização da produtora rural até mesmo vindo de
pessoas que elas jamais esperariam. Durante a conversa, as
associadas lembraram de uma cena marcante e que jamais será
apagada da memória.
47
Um dia, quando procuraram uma advogada para resolver
questões burocráticas e ajustar os registros da Associação, ficaram
surpresas com o que ouviram:

“O preconceito feminino ainda existe e nós podemos provar.


Durante a conversa, a advogada nos questionou inúmeras vezes se
teríamos mesmo a coragem de fundar uma associação com a presença
somente de mulheres. No momento, ficamos estarrecidas, mas
preferimos continuar acreditando que o trabalho de uma mulher jamais
deverá ser desmerecido, independente de quem diga o contrário”,
contaram.

Cinco anos se passaram e mesmo com todas as


adversidades enfrentadas, o grupo continua trabalhando
diariamente para favorecer a agricultura familiar e levar orgulho à
população de São Roque do Canaã. Afinal, são elas as responsáveis
por fundar a primeira associação registrada com 100% de
participação feminina.

“Nós estamos aqui para mostrar que lugar de mulher é onde ela
quiser e deve estar, seja nas representações das entidades, nos partidos
políticos, nas lideranças religiosas e até mesmo na administração
familiar. É assim que nós conseguimos conciliar tudo com muito esforço
e dedicação”, finaliza Joyce.

48
Capítulo V

N
o início da década de 90, as primeiras indústrias
implantadas em São Roque, ainda que em
processo rudimentar e artesanal, foram as
fábricas de aguardente. Os tradicionais alambiques com altas
chaminés perfumavam os arredores com o sugestivo odor do
álcool e da garapa fermentada.

O tempo passou, São Roque progrediu e o município, que


teve início com a construção de pequenas cinco casinhas, hoje
colhe os frutos de um duro e imenso trabalho deixado pelas
gerações passadas. Para a maioria da população, a maior herança
que ficou é a de poder relembrar com carinho tudo o que foi
construído por quem deixou um legado na cidade.

Reconhecido nacionalmente como a Capital da Cachaça


Capixaba, o município começou a fabricar a bebida em 1921,
sendo, desde aquela época, produzida nos moldes da agroindústria
familiar. Hoje, São Roque possui 9 alambiques e todos são
responsáveis por gerar grande parte da economia local.

Ângelo Afonso Locatelli, de 59 anos, atualmente um dos


maiores produtores de cachaça de São Roque, conta que os sonhos
dos antigos produtores da bebida na cidade estão eternizados na
49
memória de todos, em especial, daqueles que, de alguma forma,
fazem parte da história dele.

“Lembro-me muito bem do meu pai, Primo Locatelli e do meu


tio, Rodolfo Torezani. Eles foram os responsáveis por fundar a cachaça
Santa Terezinha, uma das primeiras a existir em São Roque. Minha
história com a cachaça começou quando eu tinha apenas 12 anos graças
a eles, que me ensinaram a ter responsabilidade, ser honesto e
desenvolver um amor sem tamanho pela produção de cachaça”

Arquivo família Locatelli

Primo Locatelli

50
Arquivo família Locatelli
Euzelio Tolentino, Adão Pelonha, Paulo Torezani e Ailton Locatelli no engenho

Ângelo, chamado por todos de Afonso, lembra que mesmo


tendo uma infância difícil, foi necessário abdicar das brincadeiras
com os colegas para trabalhar na lavoura ajudando o pai, que
dedicava todo o tempo que tinha para a
fabricação da cachaça Santa Terezinha.

Em 1951, Primo e Rodolfo


decidiram desfazer a sociedade. Desde
então, a cachaça Santa Terezinha recebeu
um novo nome: cachaça São Bento, em
homenagem ao Santo Padroeiro da
comunidade, onde Afonso mora até hoje. Afonso Locatelli

51
"Durante toda a minha infância, adolescência e parte da
juventude trabalhei na fábrica ajudando o meu pai. Depois de um tempo
decidi sair para trabalhar e ganhar experiência em outra empresa da
região, mas, logo, retornei para a cachaça São Bento como sócio junto
com meus irmãos, onde fiquei até 1990”

De Santa Teresinha à Suprema


Com muito trabalho e dedicação, Afonso Locatelli decidiu
seguir os passos do pai e fundou, em 2007, às margens da Rodovia
ES 080, a Cachaça Suprema. Hoje, a empresa conta com um dos
mais bem equipados alambiques do Estado e é fruto de um desejo
que se realiza e eterniza a cada dia em todos da família Locatelli.

Entre vales e pedreiras rodeadas pela Mata Atlântica, a


cana-de-açúcar é plantada, em grande parte, na comunidade de
São Bento, ao lado da casa de Afonso. Para ele, todo esforço que
via no pai serviu de lição para que ele jamais desistisse de lutar por
tudo o que almeja.

“A Cachaça Arte Suprema é para mim um grande orgulho. Sinto-


me motivado a melhorar cada vez mais para colocar no mercado uma
cachaça artesanal de qualidade e que agrade os apreciadores de uma
bebida suave e envelhecida em tonéis de madeira neutra para que não
perca o sabor original”

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Depois de inaugurada a fábrica, Afonso percebeu que ele
não foi o único a herdar os traços e costumes do pai. Locatelli
notou que a filha, Larida, hoje seu “braço direito”, como ele mesmo
afirma, também herdou um amor exclusivo e muito especial pela
bebida.

Produzida para fazer amigos e brindar a vida


Há quem acredite que o dom de fabricar cachaça possa estar
instaurado dentro das tradicionais famílias são-roquenses. Outras,
no entanto, preferem acreditar que são os acontecimentos da vida
que as fazem aprender e reconhecer o que pra elas foi deixado de
melhor.

É assim com Larida Locatelli,


de 32 anos, filha de Afonso, que afirma
ter aprendido com o pai o que hoje tem
como profissão.

“O sentimento que mais


representa a relação com meu pai é a
gratidão. Ele influenciou diretamente na
escolha do trabalho que hoje exerço com Larida Locatelli

tanto amor. Aprendi com ele a me encantar pelo produto que


produzimos, aprendi a ver a cachaça com outros olhos e a querer mudar
a forma como ela é vista pela maioria das pessoas. Ele me ensinou a lutar

53
para valorizar esse produto tão representativo para nosso município e
país”

Larida conta que a produção anual da empresa não passa de


30 mil litros. A quantidade que, segundo ela, é certa pra atender a
um público especial que exige uma bebida de qualidade acima da
média.

Larida e Afonso brindam a cachaça Arte Suprema

Assim como Afonso, Larida é ousada e carrega dentro de si


uma imensa fé em Deus. Ao ouvir as histórias do município e
contar a trajetória de vida do pai e do avô, ela afirma com
perseverança que o medo de investir, inovar e de lutar para
conquistar os objetivos nunca existiu dentro da família.

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“Com eles aprendi que, com determinação, podemos realizar
tudo o que sonhamos. Para os dias difíceis, basta contar com a fé. Ela é
suficiente para renovar as nossas esperanças”

Sem dúvidas, a ética e a honestidade são os principais


valores herdados pelos moradores de São Roque do Canaã. O que
antes era uma cidade com poucas casas, hoje evoluiu. E até mesmo
a construção de novos prédios, empresas e imóveis não é capaz de
apagar do coração as pequenas cinco casinhas que não saem da
memória da população.

Arquivo Prefeitura Municipal de São Roque do Canaã

Vista atual da cidade de São Roque do Canaã, agora evoluída e repleta de casas

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ENTREVISTAS
Afonso Locatelli: 19/10/2020
Empresário

Antônio Carlos Regattieri: 13/10/2020


Comerciante

Clarice Sampaio Regattieri: 22/09/2020


Estudante

Emília Locatteli Torezani: 23/09/2020


Aposentada

Igor Torezani: 13/10/2020


Fisioterapeuta

Joyce Zanetti: 30/08/2020


Produtora rural e comerciante

Larida Locatelli: 21/10/2020


Comerciante

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Levi Bosi: 26/10/2020
Aposentado

Paulo Henrique Bolsoni: 24/08/2020


Professor

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conhecer a minha história e a origem da minha cidade foi


importante, primeiramente, porque tive a oportunidade de
entender mais a respeito da cultura do meu município de origem e
também tornar conhecida a história de muitos cidadãos são-
roquenses.

Iniciei a faculdade de jornalismo com dois desejos: o primeiro era


fazer o Trabalho de Conclusão de Curso envolvendo a minha
comunidade, contando histórias memoráveis através de
depoimentos de pessoas que fazem parte da minha vida, e o
segundo era fazer um trabalho que não tivesse apenas o intuito de
concluir o curso, mas também fazer a diferença na vida de alguém.

Sendo assim, o desejo de escrever um livro-reportagem surgiu pela


grande vontade de estudar além do que foi passado em sala de
aula. Embora as aulas do curso fossem extremamente proveitosas,
sempre senti que precisava ir além, e com a produção do livro,
pude aprofundar temas e assuntos antes pouco explorados.

Sem dúvidas, o período mais marcante para mim foi durante a


realização das entrevistas. Mesmo que remotamente, cada
momento com os entrevistados foi realizado de forma que

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atendesse o conforto de cada pessoa, tornando cada instante
marcante e especial.

No entanto, por mais que a maioria dos momentos tenham sido


extremamente prazerosos, muitos foram os instantes de anseios e
incertezas. Produzir um livro-reportagem sem sair de casa não foi
uma tarefa fácil e me exigiu muita disposição e conduta
profissional.

Por fim, produzir este livro-reportagem se tornou uma experiência


gratificante que levarei para o resto da vida. Espero que este
trabalho cumpra muito além de uma formação acadêmica e
desperte o interesse em mais pessoas de produzir, ler, criar e
propagar histórias.

Como jornalista, escrever um livro serviu para testar e provar todo


o meu conhecimento adquirido durante os 4 anos de curso, afinal,
foram dias e noites longas de trabalho, os quais me dediquei
arduamente. Hoje posso afirmar com grande certeza: tudo valeu a
pena e esta é primeira realização de um sonho enquanto
profissional de comunicação.

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