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CORPO E DESPOSSESSÃO: A PEDAGOGIA DO MEDO EM

HOLLYWOOD

A introdução como ruína

Introduzir um tema é, antes de tudo, saber ouvir os mortos, é sentir o


atravessamento das vozes que emudeceram antes de nós e, acima de tudo,
reconhecer que alguns ecos restam abafados – suspensos no tempo. As linhas de
força do automovimento dialético vão constituindo-se a partir das fissuras dessa
historiografia. Requerer para si esses resíduos não é meramente uma forma de
cooptar as energias negociáveis para as modificações, mas incorporar a
autodestruição da fixidez relegada pelo subproduto do ser ao não-ser.
O modo pelo qual as formas de não-existência se alimentam da existência
já se conduzia na intensa potencialidade narrativa para construção coletiva do
imaginário do homem. A maioria das lendas, estórias e epopeias nasceu da fria
carne de fatos deteriorados, e eram repassadas oralmente pelos anciãos das
comunidades pré-literárias para os demais membros. Elas eram indistintamente
dirigidas a qualquer faixa etária, até porque a diferenciação entre crianças e adultos
não existia. Como sustenta Philippe Ariès (1986), somente a partir do século XV é
que a noção de infância começou a se delinear.
A fase superior dessas narrativas orais se realizou na forma dos contos
de fada (ou contos maravilhosos), que eram difundidos pelos camponeses pobres
para os jovens, não só para dissipar o tédio dos trabalhos domésticos, mas também
tendo em vista uma edificação moral e uma disciplina de advertência (DARNTON,
1986). As histórias, por vezes, eram contadas sem despudor quanto às cenas de
extrema violência e de sexo, além de absoluta indiferença ao linguajar obsceno.
Através do que se pode chamar de pedagogia do medo, essa brutalidade explícita
visava alertar os mais jovens dos perigos que o mundo reservava, com seus lobos
maus que seduziam e machucavam mocinhas traquinas. Algo que foi apropriado e
transposto para um âmbito escrito e propriamente literário, em 1697, no famoso
Contos da mamãe ganso, por Charles Perrault (1628-1703), combinando a
elegância das elites, pedagogia do medo e tratado de civilidade francesa, como nos
é mostrado na moral, no final de cada estória, a exemplo do conto da Chapeuzinho
Vermelho:
Aqui se vê que os inocentes,/Sobretudo se são mocinhas/Bonitas,
atraentes, meiguinhas,/Fazem mal em ouvir todo tipo de gente./E não
é coisa tão estranha/Que o lobo coma as que ele apanha./Digo o
lobo porque nem todos/São da mesma variedade;/Há uns de grande
urbanidade,/Sem grita ou raiva, e de bons modos,/Que,
complacentes e domados,/Seguem as jovens senhorinhas/Até nas
suas casas e até nas ruinhas;/Mas todos sabem que esses lobos tão
bondosos/De todos eles são os mais perigosos (PERRAULT, 2015,
p. 29).

No prefácio dos Contos da Mamãe Ganso, Perrault deixa claro as


intenções de suas historietas: apontar para uma moralidade instrutiva, mostrando
que a virtude é sempre recompensada e o vício é sempre punido. Nessa versão do
conto, p. ex., o final se resume na desobediente Chapeuzinho Vermelho sendo
devorada pelo Lobo Mau, sem caçador para salvá-la, diferentemente da canônica
versão dos irmãos Grimm, que busca edificar com uma maior polidez. Daí por
diante, as narrativas foram seguindo cada vez mais por um caminho de alegria e
regozijo infantil, tendo uma ou outra adversidade, mas com a eterna promessa de
um final feliz. Já em 1937, a Walt Disney lança a animação Branca de Neve e os
Sete Anões, uma adaptação do conto dos Grimm com uma atmosfera mágica
agradável, retirando completamente os elementos de pesadelo dos contos
camponeses1. É interessante notar que, na mesma época, os estúdios da Universal
Pictures investiam nas adaptações da literatura de horror (Frankenstein, Drácula, O
Homem Invisível, O Fantasma da Ópera etc.). Não demorou muito para os resíduos
desses subgêneros convergirem no paradigmático O Exorcista (1973).
Como veremos adiante, o terror inaugurado com o filme de William
Friedkin reúne a pureza dos personagens protagonistas da Disney, a atmosfera
onírica dos filmes de horror, a pedagogia do medo dos primeiros contos de fada e o
imaginário medieval do demônio e da caça às bruxas. Assim, este artigo foca sua
análise na forma como o corpo feminino e suas manifestações são representados e
despossuídos pela dominação masculina na cinematografia. Como não se trata de
uma explicação cientificista, senão de um estudo dialético, é preciso aceitar a
linguagem do cinema, com seus corpos flutuantes, suas deformações instantâneas e

1
Segundo o historiador francês Robert Darnton (1986), na versão primitiva, o príncipe encantado, que já era
casado, estupra a princesa adormecida. Após ter filhos como resultado desse ato de violação, a princesa só
desperta quando um dos bebês morde seus seios durante a amamentação.
espíritos demoníacos, entendendo-os como signos de uma forma de narrativa
disciplinar, para finalmente confrontá-la internamente.
Para constituir o corpus deste artigo, serão analisados alguns dos
principais filmes de terror com temática de exorcismo, a saber, O Exorcista (1973),
O exorcismo de Emily Rose (2005), O último exorcismo (2010) e o recente e bem-
sucedido Invocação do Mal (2013). Todos esses filmes, de alguma forma, encarnam
os processos ideológicos que legislam sobre os corpos as normas de seu
funcionamento no capitalismo tardio.

1 Das coisas que se escondem no porão

É extremamente sintomático que os filmes analisados tenham sempre as


mulheres como os personagens que serão receptáculos da possessão demoníaca.
Sejam elas cristãs fervorosas (Emily Rose e Nell) ou ateias (Regan e Carolyn), o
demônio é indiferente às suas cosmogonias, ele é um intruso, um alienígena que
opera invadindo os seus corpos, diferentemente do que acontece no filme A
possessão do mal2, um raro caso em que o personagem possuído é um homem.
Entretanto, nessa situação, Michael King convida o demônio a entrar em seu corpo,
i. e., o homem tem total controle sobre seu corpo e só perde isso mediante sua
própria autorização, enquanto a mulher aparece como se tal autonomia estivesse
revogada desde sempre. Essa desautoridade resulta na reificação corporal da
mulher. Como nos lembra Simone de Beauvoir:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,


psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no
seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse
produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de
feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um
indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não
pode apreender-se como sexualmente diferençada. Entre meninas e
meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma
subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo
(BEAUVOIR, 2008, v. 2, p. 9).

Esse constructo nomeado de “mulher” se configura no modo como os


mecanismos civilizatórios concebem a relação com o corpo. É isso que produz as

2
THE POSSESSION of Michael King. Direção: David Jung. Los Angeles, California: Gold Circle Films, 2014. 1 DVD
(83 min.).
condições subjetivas para constituição do ser, e é exatamente por isso que a
subjetividade feminina é entendida de forma tão precária. Diante do
desenvolvimento histórico da civilização, principalmente a partir do surgimento da
propriedade privada e da necessidade de sua perpetuação através das heranças, o
homem se impôs como o sujeito que determina a posição de objeto da mulher.
Ambos os papéis sociais se compreendem subjetivamente através de seus corpos,
mas o corpo feminino é decomposto, em diversos níveis de violência material e
simbólica, até ser submetido aos ditames da dominação masculina e apartado da
sua transcendência egóica, mantendo-se marcadamente como objeto.
Nesse sentido, a personagem feminina é mantida, nas representações
cinematográficas, em sua situação de opressão social na medida em que se efetiva
como não-personagem, como o Outro, como objeto de uma ação intrusiva. Haja
vista que não passa de um invólucro que abriga a verdadeira personalidade
diabólica. Assim, a consciência da mulher possuída conhece somente essa
deterioração subjetiva.
As narrativas de horror sempre permitem que o espectador sinta certa
ansiedade através de uma aura de desconfiança em torno da mulher: qualquer
atividade fora da ordem, um mal-estar ou comportamento irritadiço, isto é, qualquer
perturbação que interfira no sorriso leve, na docilidade infantil ou no ânimo materno
é o prenúncio de que, a qualquer momento, o demônio irá emergir. O interessante é
que somente no instante em que a mulher encarna o Diabo no corpo é que ela pode
ser reconhecida como sujeito, como personagem em si. Isso ocorre simplesmente
porque o demônio é uma entidade masculinizada no imaginário coletivo.
É desta forma que devemos encarar a cena em que a pequena Regan
MacNeil gira a cabeça em 180º e fala com uma voz de um homem de 40 anos, pois
o que isso realmente representa é uma inversão subjetiva no procedimento da
verdade. Esse é, inclusive, o evento que faz a mãe recorrer ao padre Karras. Não se
trata meramente de uma descrente passar a crer que sua filha está possuída pelo
demônio, talvez seja exatamente o oposto: Chris MacNeil procura o padre exorcista
porque o abismo a olha de volta, porque finalmente se depara com o eco dos
desejos e dos impulsos libidinais da filha na voz diabólica. E, nessa experiência, há
um fio de humanidade que resiste.
Em outro filme, há uma cena em que a mãe de Emily Rose, numa
conversa informal com a advogada de defesa, diz que a “sua” Emily era muito mais
feliz antes de entrar para a faculdade, o que parece apontar para a ideia de que,
antes dos ambientes universitários e do conhecimento “afastá-la de Deus”, o
demônio não fazia parte da vida de Emily. Em ambos os casos, afirmar o demônio é
uma forma de negar a filha.
Regan e Emily possuídas representam claramente o que Sigmund Freud
denomina de O Inquietante (Das Unheimliche), não tanto pela aparência horripilante,
e sim pela presença fantasmagórica de um Ser que não poderia ser em plenitude,
mas apenas em certo nível de desbotamento ontológico. Basicamente, a possessão
encarna aquilo que deveria manter-se na ordem do reprimido e volta à tona
(FREUD, 2010, p. 269). Esse objeto infamiliar é já conhecido, e assombra assim
mesmo (ou por isso mesmo) a mãe castradora.

2 O útero é do tamanho de uma fábrica

Como visto, a produção da consciência da mulher é extremamente


precária, uma vez que a percepção alienada do seu corpo impede que o reconheça
como constitutivo de sua própria formação ontológica, por decorrência de um longo
processo histórico de disciplina e de dispositivos sociais de despossessão. Isso
acarretará diversas problemáticas, proibições e riscos em relação ao livre exercício
de suas funções corporais. Despossessão aqui sugere um sinônimo para o conceito
hegeliano de negação. Vale ressaltar que negar não é anular o Outro, e sim
subjugá-lo. A existência da mulher continua inteiramente necessária aos interesses
da dominação masculina, bem como o proletário é imprescindível para o burguês, o
que não é permitido para ambos é que se compreendam como sujeitos, como
agentes históricos, ficando reservados à categoria de ente, de coisa, à passividade
da pedra. O Outro é sempre objeto, e o objeto é sempre propriedade do Sujeito.
Há uma instância no corpo feminino que foi afetada mais que qualquer
outra pela dominação masculina: o útero. A função reprodutiva é o que escancara
mais nitidamente certa gramática da violência contra o feminino, já que a decisão de
ser ou não ser mãe é sempre uma questão legislativa de Estado, não uma decisão
autônoma da própria mulher. Mesmo com todos os tímidos avanços da posição da
mulher na sociedade civil, ainda há uma vigilância espectral flutuando sobre seus
corpos.
Por exemplo, quando o debate acerca da legalização ou mesmo da
descriminalização do aborto vem a público, eclode também um enorme engodo
moralista, seja em países centrais ou naqueles da periferia do capitalismo. É que
mesmo as sociedades capitalistas mais avançadas em termos de produção e
tecnologia precisam de serviçais e consumidores, e de corpos que os gerem.
Segundo Silvia Federici (2017), a história nem sempre foi essa. Houve
uma época até a Alta Idade Média que a Igreja concedia certa condescendência em
relação a mulheres pobres que abortavam. Foi principalmente após a Peste Negra,
evento que coincide ao período de acumulação primitiva do capitalismo, que a
criminalização das práticas contraceptivas se estendeu a todo corpo feminino. Isso
ocorre devido a duas oposições solicitantes: 1/3 da população europeia foi dizimada
pela peste, ao mesmo tempo que a contrarrevolução capitalista necessitava de mão-
de-obra para consolidação de sua hegemonia como modelo de produção. O útero
então se torna território econômico, pois produzia proletários emergentes, a classe
de despossuídos cuja única atribuição, seus corpos, precisava ser vendida para
autoconservação. Nesse sentido, a função biológica reprodutiva se torna também
função produtiva, já que a força de trabalho é também uma mercadoria.
O despontamento do regime capitalista exigia não só a expropriação das
terras comunais e a ofensiva do assalariamento laboral, que alienava os
camponeses e artesãos do contato com seus produtos e meios de produção; era
também necessário que se inaugurasse uma espécie de cercamento dos corpos
travestido de disciplina. Foi a partir daí que se realizou a caça às bruxas.
As câmaras de tortura, os enforcamentos e linchamentos públicos e as
condenações à fogueira nos mostram que a pedagogia do medo é essencialmente
ideológica, pois tem tanto um suporte discursivo quanto um material. Não era
apenas uma questão de realizar tais atos violentos, mas também de demonstrá-los
publicamente para criar um ambiente de terror, uma doutrina de choque que
conseguisse lidar com a resistência.

O que quer dizer que os caçadores de bruxas estavam menos


interessados no castigo de qualquer transgressão específica do que
na eliminação de formas generalizadas de comportamento feminino –
que já não toleravam e que tinham que se tornar abomináveis aos
olhos da população (idem, ibidem, p. 306).
Interessante notar como esse episódio histórico está diretamente ou
indiretamente marcado nas narrativas de terror numa estruturação traumática. Em O
exorcismo de Emily Rose, p. ex., o cheiro de algo queimando que curiosamente só é
sentido por duas mulheres, Emily e a advogada Erin Bruner, e pelo padre Richard
Moore evoca essa cumplicidade partilhada sobre os estilhaços trans-históricos
desse evento. Mas a simbologia que abrange todos os filmes de possessão é a
mulher enquanto a forma em que o conteúdo demoníaco se entrincheira.
Tomemos agora o filme Invocação do Mal. Toda sua topologia narrativa é
disposta sob uma tessitura temporal de caráter messiânico, a saber, a presença
diabólica que oprime a família Perron, o espírito de Bathsheba, é descendente de
uma bruxa enforcada nos eventos tardios de Salem 3. Notavelmente, isso irá
despontar na problemática que reveste todo o longa-metragem: a questão da
maternidade.
Além de se fixar no centro do enredo, a maternidade se irradia para as
regiões periféricas do filme: aqueles diálogos que, de tão saturados de emoção, se
tornam pontos cegos. Assim, a mãe, Carolyn, é sobrecarregada com as
observações da protagonista Lorraine Warren sobre como “crianças são uma
benção” ou “as bruxas usam a dádiva que Deus lhe deu para ofendê-Lo”. Por isso,
após ser possuída pelo espírito da bruxa, a tentativa de Carolyn assassinar sua filha
mais nova tem um significado mais complexo. Se pararmos para observar, o ato do
infanticídio é basicamente uma versão perversa do aborto, um aborto pós-natal.
Obviamente, a indústria cultural não perderia tempo com admoestações acerca do
infanticídio – prática que já se tornou inquestionavelmente repulsiva; sua função,
nesse caso, é intervir narrativamente em um processo em disputa. Ou seja, o que o
filme articula ideologicamente é que o aborto é tão ruim quanto o infanticídio,
corroborando com aqueles que acreditam que o feto é uma vida. Isso exprime como
a pedagogia do medo infesta a consciência coletiva por meio dos aparelhos
ideológicos do capitalismo avançado. Talvez sermões em capelas já não produzam
mais o mesmo efeito que há quinhentos anos, mas o alcance do cinema na atual era
da reprodução técnica pode substituí-los muito bem.

3 As mãos ensinam a desaprender


3
Os acontecimentos de Salem mostram como a pedagogia do medo é eficaz. Os protestantes, essa dissidência
da Igreja Católica que sofreu com a tortura e o assassinato promovidos pela Inquisição, agora exerciam as
mesmas penas e métodos assombrosos para as mulheres de sua comunidade.
O medo como pedagogia sentencia nossas energias a esse vácuo
libidinal. Não é que a sexualidade seja anulada, muito pelo contrário. A longa história
de disciplinamento repressivo sexual é correspondente direta do hedonismo
contemporâneo. A instauração da lei convida nossas pulsões libidinais a infringi-la.
O uso da proibição desenvolve, através da nossa economia libidinal, um subproduto
fetichizado e autônomo que, longe de subverter a ordem, se incorpora a esta. Afinal,
a antissexualização é o outro lado da hipersexualização, existe uma dialética de
forças solicitantes e solicitadas em jogo.
No entanto, é preciso localizar a situação da mulher nessa dinâmica de
transgressão. Como alerta Federici (2017), foram nos anos de maior repressão
sexual da mulher e de imposição de sua castidade que as autoridades francesas
descriminalizaram o estupro de camponesas pobres. Há um índice de similitudes
nos dias atuais com essas práticas, i. e., uma continuidade histórica. Nesse sentido,
a conservação dialética incorpora os elementos da ideologia religiosa nas relações
societárias, mesmo em ambientes supostamente laicizados e seculares. A forma
como apontam para a relação entre comportamentos femininos adequados e
inadequados como justificativa em casos de abusos e violência sexual só atesta
essa conservação dialética, posto que

a necessidade de manter as mulheres veladas implica um universo


extremamente sexualizado, em que o próprio encontro com uma
mulher é considerado uma provocação a que nenhum homem é
capaz de resistir. A repressão tem de ser intensa, porque o sexo em
si é extremamente forte (ZIZEK, 2015, p. 19).

Toda a atmosfera dos filmes de possessão está permeada por essa


presença espectral da castidade feminina. Mas, das escolhas que compõem o
corpus deste artigo, o longa que melhor articula a narrativa da pureza corrompida
pelo demônio é O último exorcismo. Assim que o espectador se depara com a jovem
protagonista Nell e com seu pai privativo, nota-se que há a constituição de um
ambiente claustrofóbico e repressivo sexualmente. Logo, qualquer sacudida nessa
organização casta é redutível a uma situação de advento demoníaco. Não obstante,
a personagem se apresenta inicialmente como mais um caso de histeria que seria
desmentido pelo cético pastor Cotton, até o momento em que aparece no hotel onde
estavam hospedados os envolvidos no documentário fictício, se insinuando para a
câmera e tentando seduzir a produtora. Qualquer dissonância libidinal acaba
tombando sobre a feminilidade uma aura de desconfiança. Conforme Mladen Dolar,

a pulsão não é apenas o que preserva uma certa ordem social. Ao


mesmo tempo, ela é a razão pela qual tal ordem não pode se
estabilizar e fechar-se sobre si mesma, pela qual ela não pode se
reduzir ao melhor arranjo entre sujeitos existentes e instituições, mas
sempre apresente um excesso que o subverte. (2008 apud
SAFATLE, 2018, p. 49).

Na continuação da franquia, a saber, O último exorcismo - parte II,


encontra-se uma representação desse excesso pulsional que desordena o mundo.
Primeiro, a personagem, num episódio que funde transe onírico e autoerotismo, se
vê recordando fragmentos do passado, ao mesmo tempo em que experimenta
intensa volúpia e excitação às carícias dedicadas por suas mãos. No entanto, ela
sempre recua, por algum tipo de presença estranha de culpa que acompanha seus
sonhos. Isso se repete mais uma vez, todavia, ela é interrompida pela figura do
rapaz enamorado que rapidamente se transfere à imagem do pai. Para confrontá-lo,
Nell fantasia sua nova colega de quarto matando-o. Na cena seguinte, a
personagem volta para a cama e a mão, esse objeto autônomo, dança pelo seu
corpo até finalmente transformar o desejo em realização do prazer. É como se
houvesse um momento de oclusão das restrições do Supereu, representado pela
autoridade paterna, e irrompesse uma crise narcísica na garota.
Na verdade, o que nessa cena se concentra tão fortemente é a tensão
irregular do Outro gozo, algo que não só não se pode falar como também é
impossível falar, pois está fora do jogo simbólico de nomeação. Como afirma Lacan
(1985, p. 80), “há um gozo dela sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não
ser que o experimenta - isto ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando
acontece.” No exemplo do episódio descrito, a garota precisa estar na solidão de um
estado letárgico para experimentar o excesso pulsional do gozo feminino, pois este
advém de um além desconhecido, lá onde as palavras são insignificantes e a língua
é crivada pelo delírio: para alguns o inferno, para outro o sonhar. Por isso, o cinema
talvez seja a arte que melhor consegue se aproximar da forma representacional do
desconserto desse Outro gozo, precisamente por sua linguagem desconstituir a
necessidade da língua.
Mais adiante na película, quando Nell está prestes a morrer, por causa de
um novo exorcismo mal sucedido, o demônio se apresenta para a garota,
respectivamente, nas figuras do rapaz, do pai e, por fim, de si mesma, ofertando sua
mão e a discursar sobre a unidade entre ambos. A única forma de se desvencilhar
desse objeto alienígena atormentador, ou seja, o demônio em sua mão, é operar um
alto grau de desidentificação sobre o Eu para se tornar o próprio objeto. Evidencia-
se, nessa cena, que o demônio, longe de ser representação da instância do Id, como
comumente é associado, na verdade, é a passagem da dupla articulação do
Supereu: da dimensão proibidora (o pai) ao imperativo de gozo lacaniano (a própria
Nell enquanto escolha objetal narcísica). Afinal, “nada força ninguém a gozar, senão
o superego. O superego é o imperativo de gozo – Goza!” (idem, ibidem, p.11). E,
assim, todo mundo acaba e começa em um espelho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao compreendermos que a subjetividade é constituída a partir da relação


que se tem com o corpo, pode-se concluir porque a ideologia capitalista brutaliza a
representação do feminino através do cinema de terror. Pelo longo processo de
censuras e punições, a mulher permanece alienada de sua própria corporeidade. O
demônio, esse divino perverso, esse inumano que habita todos os homens, é a
própria sexualidade em seu estado de estranhamento. O sexo é uma entidade-
Outra. Por isso, no corpo feminino, o estranho em si mesmo é a própria essência
forjada pelo tempo e o fogo.
Há entrelaçado a isso um cinismo antigo dos rituais de exorcismo nos
filmes de terror que se manifesta em enunciados aparentemente direcionados ao
demônio, quando na verdade seu receptor é a própria subjetividade feminina, como
a clássica frase “sai desse corpo que não te pertence” ou “eu o comando”. São
fantasmagorias do trauma histórico deixadas pela caça às bruxas, pelos
cercamentos e pelo controle reprodutivo. A diferença primordial entre espíritos
demoníacos e essas fantasmagorias é que fantasmas são resíduos daquilo que
nunca foi embora das nossas relações humanas.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. 2 ed. Rio
de Janeiro: Guanabara, 1986.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: a experiência vivida. v. 2. Trad. Sérgio Millet. Rio


de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

DARNTON, R. O grande massacre de gatos e outros episódios da história


cultural francesa. Trad. Sonia Coutinho. Rio de janeiro: Graal, 1986.

FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad.


coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

FREUD, S. Obras completas: história de uma neurose infantil (1917-1920). Trad.


Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 14.

LACAN, J. O seminário, livro 20. Mais, ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985.

PERRAULT, C. Contos da Mamãe Ganso ou histórias do tempo antigo. Trad.


Leonardo Froés. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

SAFATLE, V. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do


indivíduo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

ZIZEK, S. O absoluto frágil. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2015.

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