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Coordenagao Editorial Irma Jacinta Turolo Garcia Assessoria Administrativa ‘rma Teresa Ana Sofiatti Coordenagao da Colegio Histria Luiz Eugénio Véscio Método hist6rico e ciéncia social Francois Simiand. Tradugio José Leonardo do Nascimento INTRODUGAO |AS inquietagbes metodolégicas que se manifestam | entre 0s historiadores nos dias atuais resultam, em larga ‘medida, das relagdes proximas, de rivalidade e de confli- ‘to que opdem @ historia tradicional e a nova ciéncia so- cial. Em que sentido método hist6rico e ciéncia social conflitam-se e divergem-se? ‘Considerado em sua esséncia, 0 chamado método historico € um processo de conhecimento experimental indireto no tempo ou no espago, de conhecimento de um fato obtido por intermédio de um outro espirito. Ele pode set indireto no espago ou no tempo, embora 0 processo logico seja 0 mesmo nos dois casos.’ E desta forma que 0 1 Denomina-se, 3s veves, de conhecimento indireto © vonnecimento ‘de um fendmeno por meio de seus efeitos ou trags (0 conhecimen- {odo fogo pea fumaga ou peas cinzas) De fato, précesso & distin. to. nto se deve design-lo pelo mesmo termo. Poderis mais corre tamente ser chamado de conhecimento mediato. Ver mais a frente fro eapiulo 5, tem a, uma sonseqiéncia importante desta distingio. 7 Pete Inétodo éentendido e empregado em todas as ciéncias po- sitivas, mas com a particularidade que, nestas tiltimas, cle mo € 0 tinico ¢ comporta um procedimento seguro de controle do inicio do trabalho ou da constatacio prime’. 2. Por que este método foi definido como histético? Por. Aue no que conceme aos acontecimentos passados — que Sto produzidos uma tinica vez e que nao se repetem —este modo de conhecimento € 0 tinico possivel, excetuando-se_ 08 fatos constatados diretamente pelo priprio historiadon Actescente-se ~ € 0 “método hist6rico” compreende habi.. tualmente este significado suplementar —. que, com rarissi- zmas excegies, os elementos sobre os quals se funda 0 co- thecimento indireto, os documentos, nio se constituem em “observacdes” no sentido cientifico do termo, mas no- {agoes de fatos realizadas sem método bem definido e, em Beral, com finalidade distinta da propriamente cientifica, Pata se exttair de um documento uma nogto legitima do fato, uma série de precaugdes criticas precisa ser tomada, uja formula {01 elaborada pela metodologia histérica.? Passemos & nogao de ciéncia social Sem liscutir as definigdes mais controvertidas, a irmemos, simplesmente, hea ciéncia social ¢ 4 disciplina que estuda os fenomenos peed Fg & GE Langhis eSeignobos, Inrduction aus tudes hiriques,* parte. 3, Seigobos, ax obra citada na nota acima,confee is “idncias 49, ais" um signiticado restrito que nin parece, nem de ft eens do to, sucientementejastiado €, por isso, ndo send aeado no Presente trabalho, Suas observagoes alem disso,referem.se aeclen ‘as sociis em um sentidaarmpl,abrangendo as clench, econe, Incase demografcas, res sociais, que caracterizam a vida do homem em sociedade. Para que esta disciplina seja positiva e estude os fendme- nos pela observagaio e pela experimentacao, deverd recor- rer, obrigatoriamente, a0 conhecimento indireto porque a experiéncia artificialmenté provocada e que se desearola- ria sob os olhos do pesquisador ¢ rara e dificil em matéria social. Os fendmenos sociais, por sua extensio e por sua natureza, nao podem ser alcangados pela observagio indi- vidual direta, restando ao cientista buscar 0s fatos e os ca- sos de experiéncia na relacio do passado da humanidade € empregar, necessariamente, o método histérico, (Chet social positiva,ya medida que recorre ao conhecimento do passado, refina-se sobre a mesma ma- ‘éria ou objeto da disciplina hist6rica, Mas trabalharia de forma diferestte? No trabalho com os documentos, visan- do o estabelecimento dos fatos, devers empregar 0 mes- ‘mo processo de conhecimento, © método histérico (ex- cetuando-se as observagées que serio apresentadas mais A frente), e aproveitar-se dos progressos alcancados pelo método que segue as regras, a consciéncia clara, as aqui- sigGes seguras ¢ as praticas aperfeigoadas pelos historia. dores.* O historiador nao se limita, entretanto, ao estabe- lecimento dos fatos, que sao, em seguida, agrupados, o- denados, construidos, procurando constituir um sistema de conhecimento, com pretensio a cientificidade, que se- tia a histéria. B justamente neste estigia, na elaboracao dos dados em um conjunto, no modo ¢ no espirito da | | 4 Yer mais iente capital 3, iter a, 29 utilizagto dos fatos para a constituisao da ciéncia, que se ‘manifesta uma divergencia de atitude e uma oposicao entre a ciéncia social ¢a histéia tradicional, O problema nascido deste confito atrai,fortemente, os metodologis- tas de uma e de outra parte. Nao tenho, no momento, a bretensdo nem de resolvé-lo, nem de estuda-lo em todas f as suas dimensdes. Proponho-me simplesmente, € penso star sendo assim de alguma forma itil, a fixar os pontos essenciais do debate, referindo-me, sobretudo, a dois li vros de metodologia escritos por historiadores.* A construgio dos fatos humanos, empreendida pela ciéncia social, tem por finalidade a constituigéo de {uma ciéncia dos fendmenos sociais andloge as ciettcias Positivas, jd constituidas, dos fendmenos naturais, A maioria dos estudiosos nao esté familiarizada com a concepsao cientifica que se comtrapée aos habitos de Pensamentos solidificados da histéria tradicional, O es- || Pitito dé“*historien historisant’"aplicado as questoes apresentadas pela ciéncia social, tende, tendo ou ndo consciéncia, & negagao desta ciéncia, Procurarei esclare- cer ¢ examinar as teses basilares desta oposicio, 5 LACOMRE 2 2e PHistote considerée ome science, Pats [..], 1894, SEIGNOBOS, C. La Méthode historique apliquée ez sioncts sociales, Paris (6, 1901 © termo “historia historicizant” sera de emprego cotrente ne es: “ola dos Arma vsendo caractritar 0 tipo de hstoiaempreen: Ado por Langlois Seignobos. A expressio de Simiand & sobret. ‘to, “historiador historicizante’, referindo-se aos historiadores se- undo ele thdicionais. Os adversiios de Simiand c os dos Anas les sero, deste ponto de vst, os mesmes. (NT) | al CaPITULo 1 “0 fato social é psicolégico por natureza; sendo Psicologico, € subjetivo™A primeira parte da proposi- slo est, plenamente, acatada e aceita: se certos fend- menos sociais, como os da habitagao, das praticas ma- teriais, da propriedade dos objetos corporais, implicam uma relagao com 08 objetos do mundo exterior, € fcil coucluir que o fendmeno social ¢ constitutdo pela rela- 580 do homem com objetos ou pela relagao dos ho- ‘mens entre si a propésito dos objetos, Nas relagoes hu- manas costumeiras ou regradas pelo direito mutua- mente reconhecido, é 0 elemento psicol6gico, portanto nao exterior ao homem, que conta. A segunda proposicio (a redugio do psicolégico 0 subjetivo) exige uma atengao mais detida, Faz-se ne- cessirio, a principio, constatar 0 seu aleance, Seo fato so- cial for subjetive por natureza, sera impossivel a consti- tuigdo de uma ciéncia social nos moldes das ciéncias po- 31 } Sitivas existentes, que trabalham sobre um dominio ob- jetivo. A. irportincia desta proposigao nao é claramente petcebida por todos. O senhor Seignobos émprega indi- ferentemente “psicolégico” e “subjetivo’, e passa de um 0 outro como se a sinonimia dos termos fosse evidente. E provavel que haja, na sua perspectiva, mais confusio do que identificagao entre 0s canceitos. Do ponto de vis- ta de nossa incursdo metodolégica, é tio nocivo nao dis- tingui-los quanto declaré-los idénticos porque as conse- .P _ qiléncias serdo, neste caso, as mesmas. Ignorar ow negli- N,| aenciar « exata definigto de objetivo ¢ de subjetivo ¢ 0 ¢ Wo | valor exato das duas nogoes significa desconhecer, radi- calmente, 0 cariter préprio da cigncia positiva atual. Considerando certo dominio da ciéncia, talvez seja pos- sivel evitar “a questo do mundo exterior” (desde que ela nao se poriha, naturalmente, em certas condigdes), mas nao se pode ou nao se deve, de nenhuma forma, apagar ‘0 conhecimento que temos dela. ‘Todo estudo cientifico postula, mais ou menos explicitamente, uma solucdo para a questao do mundo exterior, que, na hipétese de nao ocorrer conforme o espirito da ciéncia positiva atual, impedir4 a eniergéncia do conhecimento objetivo. A nao, fo distingdo entre o psicolégico e o subjetivo, assim como a reduigio de uma nogao a outra, impossibilita a extensio ay da concepeao cientifica & matéria social. E, portanto, fun- damental retomar, na sua origem e na sua esséncia, a no- 6 SEIGNOBOS, C. La Méthode hisorique apliguée aude sciences ‘aciales. Pars: [5.2], 1901. p. 124,174 passim, apt io de objeto, da maneira como 0 nosso conhecimento € anossa ciéncia 0 estabelecem. Seria necessétio reproduzir, detalhadamente, a andlise que a psicologia elementar faz de nossa “percep- do exterior”? Ou recordar que no atingimos direta- ‘mente a realidade, coisa fora de nés, que nossas sensa- ges, que constituem os tinicos elementos de nosso co- nhecimento exterior empirico, sdo naturalmente relati- ‘vas a nds mesmos como dadds psicoldgicos e, por este lado, fendmenos subjetivast Que o sentimento de algo nos vem do fato que, no conjunto psicoldgico, uma coi- sa nos aparece como independente, nao procedendo de rnés, no se alterando no compasso de nossas mudan- «as, impondo-se portanto a nés mesmost Que 3 dife- renga do sonho, da alucinagao, da imaginagio, da lem- branga para com a percepsio (esta “alucinagio verda- deira”) é que se manifesta, nesta Ultima, uma coerencia entre os dados ciemtificos que nao depende de nds, im- pondo-se a nés, € sobre a qual a nossa espontaneidade nao tem poder, nem papel dominante? Que a objetivi- dade nao é uma propriedade inerente as coisas, que ela opera por etapas e divide com a subjetividade um do- ‘minio mais ou menos extenso em cada um de n0ss0s estados psicolégicos? Que, finalmente, 0 objeto, 3 coisa do mundo dito exterior, nao é, do ponto de vista do co- nhecimento empirico, sendo um conjunto de sensacdes constituido pela abstragia? ‘Seria preciso demonstrar que no segundo estagio do conhecimento, no estigio da ciencia, a objetividade 3B x e if Peed * ganha um outro sentido? A objetividade dos resultados da ciéncia positiva deriva, fundamentalmente, de sua in- N10 | dependéncia para com a nossa asao particular € a nossa espomancidade reflexiva. As coexisténcias e as sucessbes regulares dos fendmenos, que a ciéncia observa e extrai, nio procedem de n6§impOem-se a n63 resultando dai 0 seu valor objetivo. Considera-se, a5 vezes, a lei cientifi ca como uma formula aproximada sempre inexata, re~ lativa a nés, incessantemente subjetiva ~ da realidade, ‘inica instincia verdadeiramente objetiva. Pois € esta consideracao uma hipétese metafisica que a ciéncia pos tiva, propriamente dita, no tem nenhuma necessidade de enunciar, A ciéncia nao ultrapassa 0 fenomeno, ¢ 0s fenémenos que ela procura exprimir em formulas, com feito imperfeitas, nao possuem uma objetividade de oo! natureza diversa da objetividade das leis. Desde que al- qo. gumta regularidade entre os fenémenos se manifeste ese sobreponha a nés, desde que se mostre, em um certo do-” minio, algumas leis cientificas, um sistema mais ou me- nios esbocado de relagdes estiveis ¢ definidas entre as fe- némenés, pode-se dizer que se constituiu, nestas ci cunstancias, um dominio objetivo, mesmo que conceba- ‘mos ou nio a presenga de uma realidade metafisica por detras desses fendmenos.” * Simiand empreg, neste longo parigrafoconcepybes comtianas dos Gros de ilosfiapostva, Una des nogoes basilares do comtsmio € BY 3 aque gel Yop te onda qu a Goncracs, Pramente Objeivas aperas sho posses cso 0 espirito humano refit estamente a order exterior 34 ‘capi ‘Em uma palavra, no nosso conhecimento empiri- co, como na nossa ciéncia positiva, objetivo significa ex- 6 clusivamente independéncia para coma nossa espontanci os dade individual. E possivel que essa concepgao nao seja, no momento, a do senso comum, que nao atribui um seritido substancial ao objeto material e nao separa fend- meno psicoldgico de fendmeno dito material, Precisa- ‘mos, no entanto, desembaracar nosso espirito destas so- brevivencias metafisicas. Sc Se psicol6gico e subjetivo fossem idénticos, serfa~ mos constrangidos a sustentar que a matéria da fisica € tao subjetiva quanto 0 objeto da ciéncia social. Os sons, ‘as cores, as impress6es de calor e de frio'nao so, por sua propria natureza, sensagdes, nosdes subjetives, fendme- nos psicolégicos? Mas, neste caso, 0 senso comum habi- tuou-sé a reconhecer nos fatos estudados pela fisica um dado objetivo, esquecends 0 elemento subjetivo presen- te em toda sensaglo. A fisica conhece a sua fungio — ex trair 0 objetivo do subjetivo pata estudé-lo —gsabe, além disso, que nao Ihe importa estudar “cores € gostos, que info se discutem’, mas aquilo que nos gostos, cores, sons, | fis» etc, é independente de disposigdes individuais ¢ que € “discutivel’ analisével e, finalmente, expresso em leis. -Actncia pressupde a submisso da imaginarao 8 abservagto do sujeito ao abet. ‘Tod explicagdo inaessvel 8 verfieagao expetimental étida como, into cientifia e, portanto, teoldgica ou metafsia, A ciéncis con ‘iera os fendmenos nas suas relagbes regulares de sucesst0 «de coeristéncia. (N.) 35 A distingao entre subjetivo objetivo na psicolo- gia senstvel nao deve ser, da mesma maneira, realizada na psicologia intelectual? Um dominic de objetividade no poderia ser reconhecido, constituido e estudado pela ciéncia positiva na psicologia intelectual? Nao é este © nosso tema, deixemos de lado a questao da possi dade de constituigao da psicologia como ciéncia posit va. Mas os fendmenos sociais, pela razio de vivecmos ‘em sociedade, nao possuem, por definicao, o cardter de objetividade no exato sentido que conferimos a este ter- mo? Uma regta do direito, um dogma religioso, uma su- perstigao, ium costume, a forma da propriedade, a orga- nizagio social, uma certa divisio do trabalho, um deter- yy minado procedimento de troca, uma especifica maneira gf, dese vestr ou de residir, um preceto moral, et. tudo ¥ .» \isto n0s € dado, fornecido, tem existéncia independente- es || mente de minhas expresses préprias, particulares e, as || vezes, existe apesar delas. Minha vontade individual dis- tingue-se, com clareza, no interior deste conjunto que ‘no me pertence, e colide, as vezes, cam estes elementos | que recebo prontos e que nao procedem de meu desen- volvimento pessoal. Impdem-se a mim, embora cu rea- ja, em algumas circunstincias, contra cles. Mas se nao ws o vém de mim, da acao espontinea do meu eu, nasceriam, pelo menos, das espontaneidades tndividuais, reiteradas, © somadas? Os fendmenos sociais nao se dissolvem em. g uma massa de fenémenos individuais, possuem tragos € ccaracteres sui generis, © todo é diverso da soma das par- tes. Como os caracteres da dgua nao sio uma soma dos 36 copnaet caracteres do hidrogénio e do oxigénio, ou os da célula viva uma reuniao das propriedades dos elementos qui maicos presentes no protoplasma, o elemento social no énem a justaposico simples, nem a complicagio de ele- mentos individuais. © elemento social, que ocupa am- plo espaco na nossa vida psicologica, aparece aos nossos olhos como forsa independente de nossa espontaneida- de individual, como realidade, da mesme forma que; para o conhecimento positivo, € realidade elemento definido como material. B (0 elemento social) objeto como € objeto 0 mundo dito exterior. Pode-se, no entanto, argumentar que 0 objeto so- cial nio é um dado a parte, um ser separado, Estou de acordo com 0 argumento, o fendmeno social nao se to- caaliza fora dos homens que constituem a sociedade, mas nas suas consciéncias individuais. Além disso, a concep- io materialista e grosseira de exterioridade e de inde pendéncia nao se aplica aos fendmenos psicolégicos aqui considerados, como opinides, crengas, habitos, ete» que, diferentemente das sensagbes da visto e do tato, nao possuem o atributo da extensio € que, por conse giiéncia, nao sao localizados externa ou internamente ‘aos homens senao metaforicamente. E possivel que 0 ‘elemento social receba em cada. um de nds uma colora- ¢do individual propria e que nio possa ser concebido ¢ estudado & parte senio por abstragdo. O importante que seja independente das formas individuais; que seja igolivel sem se dissolver ou se alterar, da mesma manei ta que'das sensagoes subjetivas € concretas das cores 7 , Pode-se isolar uma nogao objetiva e abstrata da cor. I Porta que @ ubstrasdo que o isola nio destrua nem de- forme a sua realidade, mas que, pelo contrario, a consti- tua de tal forma que uma elaboracio ¢ um conhecimen- to cientificos tornem-se possiveis. CAPITULO 2 ‘A segunda posicio, que se reveste 0 espirito que nega a cigncia social, nasce dos argumentos anterior- mente apresentados, concluindo que “o fendmeno social “6 apenas uma abstracio”” “Para operar sobre a realidade, €necessério voltar-se para os individuos, que sio os tni- cos objetos reais.” Reencontramos assim, sob outra rou- pagem, a ilusdo metafisica do senso comum que confun- deo subjetivo conto psicolégico, Esta atitude mental ba- sela-se na crenga que os objetos denominados de mate- riais possuem uma tealidade substancial, que existem em si mesmos tais como nos aparecem, que constituem a linica base sélida da existéncia real, efetiva, em que se apéia 0 nosso conhecimento, Ora, a anilise psicologica, de que jé mostramos os resultados, demonstra que estes objetos chamados de materiais sao grupos de sensagies, 7 SEIGNOBOS, C. La Méthode historique apliquée case sciences sociales. Paris: [sm], 1901, p. 214 passim, 39 ‘que sua forma extensa, seu peso, etc, sio nogdes relativas 40 nosso espirito, que a existéncia absoluta de algo que se constituitia no suporte destes fendmenos e que seria to- talmente diferente deles escapa & pesquisa positiva ¢ néo tem nenhuma importincia do ponto de vista estrito do conhecimento positive. O que sao os individuos huma- ‘nos —sobre os quais pretendem que apoiemos o fendme- no social — aos olhos da ciéncia positiva atual, verdadei- ramente consciente de sua particularidade, senao abstra- ges? E 0 individuo orginico algo mais do que uma reu- niao de elementos orginicos multiplos, e esta proclama- da realidade é independente de nosso espirito ¢ de nossa abstragdo, comum, usual, ou, ainda, da abstragao de um. sibio? E as células existem, por sua vez, em si mesmas, nos elementos que as compdem, separadas da operagio de abstragio de nosso espirito? E chegamos sempre a0 cabo desses dados sensiveis que 530 relativos a nés e, por ‘uma parte, subjetivos O fenémeno social nao ¢ uma abstragdo nem maior nem menor do que © fenémeno organico, quimico ou fisico. Nosso conhecimento empi- rico nao opera, diferentemente, neste ou naquele fend- meno e nossa elaboragao cientifica dirige-se, num € nou- tro, para um fato cientifico que serd uma abstragao. 8 devido a esta mesma iusto inetafsica que Seignobos (p. 228) nega a abjetvidade de uma evolugdo social propria e busca a con- uidade objetiva na evolusio dos corpo fsicas des individuos, ‘Como se a continuidade dos elementos materiais fos inteigivel {ora do esprito que a pensal Como sea continuidade do espiito nto fos a continuidade real que conheceros. 40, apie 2 Parece-me, pois, inadmissfvel que se reserve unica~ mente a ciéncia social o singular privilégio a que chama- tei de brincadeiras nominalistas demasiadamente Sovias. Dizem-nos, freqtientemente: “Tome cuidado, o fenome- no social é uma abstragio, 0 governo € uma abstraglo, a Igreja, 0 familia, a indistria textil sio abstragSes; no se fesquiesam que essas abstragdes no agem por elas mes- ‘mas, que 0s individuos que as compaem #0 a tinica rea- lidade. Digam, sobretudo, os governantes, 0s clérigos, os ‘membros da familia, os individuos que formam a indtis- tria tdxtil?” Deve-se, pois, dizer a mesma coisa para o fi- siologista: “Tome cuidado, 0 cdo, 0 est6mago, a circylagao so somente abstragoess existem apenas cies, estmagos, sangue, coragbes, ou melhor, células mais ou menos éife- renciadas, vasos sanguineos, células estomacais” Vocé nao tem o direito de dizer: “O cio é um animal que ladra’, pois ino se esqueca que 0 cio que ndo for grande nem peque- no, nem gordo nem magro, nem preto nem cinza nem marrom, no existe ¢, logo, nfo ladra. Nao se deve dizer: “0 coracdo é responsivel pela circulagao do sangue no ‘organismo” pois a circulagio nao é um ser que tena exis- téncia... Por que no fazer a toda ciéncia positiva repro- ches exatamente iguais ¢, também, (tio pouco) vilidos? Querem com isso dizer que devemos evitat hi postasiar as abstragées para nao as cOnstituir como se 9 SEIGNOBOS, C. La Méshode historique apliguée as sciences cinkes, Baris: [:.}, 1901. p. 224 passim cf. Hist. polit de Eure pe contemporaine. tntroducio p. 1 4 res de‘uma nova criagao? Neste caso, transportarfamos, mais uma vez, para o dominio da ciéncia positiva, os habitos da metafisica do senso comum. O senso co- ‘mum representa, com efeito, as ages como se emanas- sem de forcas e as forgas como agentes ou seres. A cién- cia da Idade Média personificava os agentes e substan- ciava as causas. O espfrito positive, ao contrarioy em- rega palavras abstratas e idéias abstratas sem Ihes con- ferir uma existéncia metafisica. Assim como o fisico, enunciando as leis da dilatagao dos corpos ou as leis de Ampére, no cré na existéncia de agentes que seriam 0 calor, a eletricidade, que atrairiam ou repulsariam, ou como 0 fisiologista nao acredita em um fator em si ‘mesmo que seria a circulago, em um ser parte que se- ria 0 estémago, o socidlogo cientifico nao concebe ent dades miticas que seriam a troca, 0 maquinismo, ou se- tes substanciais de novo corte que seriam a indiistria téxtil ou a Igreja catdlica, Mas tem o mesmo diréito do fisico ou do fisiologista de utilizar estas nogoes e estes termos abstratos. E ainda mais, tem o dever de fazé-Io. O sociélogo deve empregar as abstragdes que Ihe permi- tam exprimir 0 seu objeto de estudo e aleangar a rela- ‘sa0 propria da ciéncia, Bliminar as nogoes, substituir a nogao de maquinismo e de indiistria téxtil pela de indi- sviduos que se servem das méquinas ¢ que compdem a inddstria, implica em nada obter do ponto de vista cientifico. Se o meu objeto for os individuos em sua complexidade pessoal no lugar do maquinismo, do modo de organizagio do trabalho ou do emprego das 2 Capea 2 forcas naturais, nto poderei abstrair 0 elemento co- mum e social dessas formas econdmicas, que no sao produto de individuos, que, a0 contrério, impéem-se a cles ¢ os domina. Se evitar, por razbes metodolégicas, isolar o fendmeno a ser estudado, que resultado cienti- ficamente positivo ¢ que relagao entre fendmenos po- derei alcancar? Fundamentando o trabalho sobre uma ~abstragio legitima, tenho o direito © o dever de expri- mir o seu resultado sob a forma exata que corresponda ) a uma relagio necessaria entre fendmenos. Neste caso, ‘mais do que o direito, tenho o dever de sustentar: “O maquinismo traz tal ou qual consequéncia’, pois ¢ ele que verdadeiramente produz este ou aquele efeito. Nao © personifico, por isso no o concebo como uma enti- dade mitica ou humana agindo, pensando, querendo; exprimo, somente, sob a tinica forma exata:“O fato que, em uma sociedade, 0 maquinismo, sendo a forma de produsto, traz como conseqiléncia o faro que tal ou qual fendmeno social se produza.” Nao sao 0s indivi- duos presentes no processo que 0 exprimem; sio eles proprios subrietidos ao proceso amplo qe os trans- cende, O elemento social estudado em si mesmo rela- ciona-se, necessariamente, com outro elemento social, estudado de igual maneira. Seria, além disso, arbitréria e ilegitima a exclusio das abstragdes, denominadas de segunda ou de tereeira ‘ordem, em nome das consideradas essenciais, de pri- meira ordem: criticar, por exemplo, 0 emprego da abs- tracio Igreja, querendo substitui-la pela abstragio Cle- ro, Uma substituigdo deste genero nao tem a priori fun- damento cientifico: hé tantos fendémenos sociais que se vinculam a existéncia da Igteja quanto a existéncia do lero, A igreja explica mais o Clero do que o Clero a Igreja. Ha agdes ou reagdes sociais que procedem da Igteja, como Igreja, e néo do Clero. O clero é um érgio de um corpo mais vasto que seria a Igreja, sofre mais a agdo do que age sobre ele. Um corpo de Igreja (uma re- ligido) pode existir sem este drgio, o Clero, A redugio arbitréria e a priori da Igreja ao Clero impede 0 acesso da inteligéncia ao que, talvez, seja o mais essencial nos fendmenos religiosos. “O governe”, “o partido demo- critico” tém realidade propria e constituem um objeto; “os governantes” e os “democratas” constituem outro objeto. HS momentos em que esta em pauta, sob o cri- vo do estudo objetivo, 0 objeto-governa, em outros 0 objeto-governantes. A abstragao “governantes” corres- onde a determinadas relagies entre fendmenos, a abs~ tragio “governo”, a outras: ambas tém valor proprio ¢ igualdade legitima, Mas se a escolha das abstragdes objetos de estudo nio é arbitraria, como reconhecer a validade e a legiti- rmidade de umas em prejuizo de outras? Hé uma tinica regra para todas as ciéncias positivas: buscar as abstra- 0es felizes, que colocam em evidéncia regularidades e, se possivel, leis, —"Noperacao é, sem daivida, mais delicada e incer- ta para a ciéncia social no quadro das ciéncias posi vas. C. Seignobos enumera, nas razbes que apresenta 44 i cope 2 para condenar o emprego das abstragoes,® algumas di- ficuldades em matéria de operagio abstrata, Porém, ha ‘um processo I6gico partilhado pelas ciéncias positivas qué o exemplo das ciéncias constituidas ¢ mais avanga~ ‘das demonstra ser indispensivel ¢ essencial para a constituigso de uma nova ciéncia. i £ SBIGNOBOS, op city p, 220-22, Siabos ean Se, mes ce sen de sigma esas obervagds Of eum enn pres mae ten uo meagan sonbnico palo) lone es urn incone- See mca uma vntagem do ponte devia do conhe- ra mil prtenimento permite 0 dereamento de fetes sch estes 45

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