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AGRADECIMENTOS

Escrever agradecimentos é claramente um prazer; um prazer agradecer pessoas;


uma satisfação falar às pessoas através de agradecimentos. Porém, fazê-lo também é
doloroso; pois exige reconstruir a história de seu pensamento e vida em um número de
anos; e ninguém sabe melhor que o historiador o quão difícil e elusivo é isso. No
entanto, tentarei fazê-lo.
Esse livro vem de uma tese de mesmo título; a pesquisa dela foi empreendida na
Faculty of Classics, University of Cambridge, entre 2001 e 2005. Gostaria de agradecer
ao meu orientador, Robin Osborne, por sua ajuda e constante disponibilidade, antes e
depois da conclusão da tese. Sua insistência em prover evidência foi um corretivo
necessário para uma tese que se inclinou claramente sobre o teórico; meu trabalho sobre
Aristóteles é o resultado de seu encorajamento. Paul Cartledge atuou como meu
orientador por um período, mas sempre disposto a ler e comentar. Discutir e,
certamente, discordar de Paul foi uma das mais estimulantes experiências que já tive.
Dimitris Kyrtatas foi um professor e um amigo por muitos anos; ele foi uma fonte
constante de suporte e orientação; e foi um grande estímulo para os meus interesses
historiográficos. Anna Missiou atuou como orientadora na Greek State Scholarship
Foundation; meus pontos de vista sobre Orientalismo remontam a um seminário que ela
organizou muitos anos atrás em Creta.
Nicholas Purcell e Paul Millete foram examinadores da tese, e eu gostaria de
expressar minha profunda gratidão pelas suas sugestões, comentários e tolerância.
Espero que o presente resultado preencha algumas de suas expectativas. Oswyn Murray
contribuiu com inestimável ajuda com sugestões historiográficas e mais gerais, e eu
desfrutei nossas conversações imensamente. Marv van de Mieroop leu gentilmente todo
o manuscrito, fez sugestões interessantíssimas, e me salvou de um série de erros
embaraçosos. Finalmente, gostaria de agradecer os leitores anônimos da Editora da
Universidade de Cambridge por suas sugestões e comentários. Infelizmente, não fui
capaz de levar em conta todas as várias possibilidades de exploração que as pessoas
acima sugeriram. Espero que haja tempo e espaço no futuro.
Tornar a tese em um livro ocorreu enquanto lecionava temporariamente a
disciplina de história Grega no Departamento de Clássicas, Universidade de
Nottingham. Nottingham fornece um ambiente excelente para levar a cabo esse
trabalho; e eu gostaria de agradecer meus colegas por sua ajuda e suporte; um
agradecimento especial vai para Steve Hodkinson e Alan Sommerstein por sua
confiança e encorajamento em um ponto muito difícil da minha vida e carreira.
É indicativo, talvez, da natureza desse trabalho que muitos dos meus principais
interlocutores ao longo de todos essas anos foram pessoas que são ou estranhos à
História ou à Clássicas, ou começaram enquanto tal. Chiara Ghidini, cujos trabalhos
sobre a literatura moderna japonesa, foi a pessoa mais herodototeana que já encontrei na
minha vida; ela abriu para mim horizontes que eu nunca imaginei que existiam. Giorgos
Kyriakou, que é um químico, provou, uma e outra vez, que os interlocutores mais
estimulantes são aqueles que não compartilham os pressupostos da sua disciplina. Nós
consumimos garrafas de vinho e uísque, enquanto falávamos de música, política e
história (e mulheres, é claro). Aleka Lianeri foi uma inestimável amiga e conselheira e
ela continuou elevando minha moral por perder todas as apostas. Por último, Maro
Triantafyllou, a romancista, estudante de filosofia e historiador, permaneceu como
melhor amiga e interlocutora dos dias de Creta até hoje; eu devo a ela muito mais do
que ela pensa, e lamento profundamente vê-la com tão pouca frequência. Todos os
quatro foram amigos sinceros e afetuosos ao longo dos anos; sem eles esse trabalho
seria bem diferente.
Esse trabalho possui uma inspiração política, no sentido amplo da palavra, como
pode-se supor a partir de seu título. Mas enquanto viver na torre de marfim da
academia, é frequentemente fácil esquecer os verdadeiros significados de palavras
usadas nesse trabalho, palavras que possuem forte impacto: guerra, imperialismo,
nacionalismo, globalização, exploração, dominação. A esse respeito os eventos da
recente guerra mantiveram-me lembrando do verdadeiro significado de palavras e
coisas. Para mim, na presente capacidade, eu não posso fazer nada mais do que uma
dedicatória apropriada para uma causa de longa data.
Gostaria de agradecer à Cambridge European Trust, à Board of Graduate Studies
e à King’s College por financiar minha pesquisa no primeiro ano; à Greek State
Scholarship Foundation por financiar os três últimos; e à Faculty of Classics e à King’s
College por financiarem as despesas de trabalho de campo e viagens. Gostaria de
agradecer também à Faculty of Classics, Cambridge, por me premiar com o Hare Prize
pela melhor dissertação de 2005.
Em último lugar, gostaria de agradecer aos amigos e família que foram uma
constante fonte de apoio e alegria ao longo desses anos. Meus pais, Makis e Katerina;
meu irmão, Nikos; Vassilis e Spyridoula que foram meus anfitriões em Atenas; Kyriaki,
que foi uma companheira de casa e amiga confiável em Nottingham; Sofia; Michalis;
Olga; Evi; Alkis; Ailiana; Aptin; Manpreet; Nandini; Ioanna; Kelli; Anastasia; Haris,
Artemis; Elton; Eytyxia.
As últimas palavras vão para Olga. Não somente devido ao seu amor, cuidado e
ternura, mas especialmente por conseguir me convencer de que, uma vez que eu
terminasse esse livro, eu estaria habilitado a mentir uf dä fuulä huut.
INTRODUÇÃO

sse ra alho um estudo de história e u o em his ria his ria


1
con empor nea". uais seriam en o os ilemas con empor neos a influenciar a
percep o e a ar icula o esse es u o ossa poca carac eri a a pelas con ra i es
exasperan es a i eologia que po er amos enominar ci en alismo ci en alismo
a i eologia que afirma a e is ncia e uas en i a es claramen e elimi a as na his ria
mun ial como o ci en e o rien e e os primi i os e que essas en i a es me af sicas
m uma genealogia (ou melhor, apenas o Ocidente tem uma verdadeira genealogia);2
que e is e um pa r o na his ria humana que le a à e olu o o ci en e mo erno que
o caminho na ural a his ria enquan o a his ria o es o o mun o um con o e
a erra es que precisam ser e plica as; que o mun o in eiro er a eiramen e segue a
li eran a o ci en e que um ia conseguir assimilar; que as ferramen as concei uais e
isciplinas cria as pelo ci en e s o e algum mo o a forma na ural e organi ar a
e peri ncia e analisar a reali a e o passa o e o presen e fora o ci en e e e ser
e plic el nesses ermos ci en ais3.
Estes não são argumentos simplesmente acadêmicos, pois eles têm um impacto
real, mortal no mundo ao nosso redor. Democratas-cristãos alemães e conservadores
franceses se opõem à entrada da Turquia na UE, porque a Europa é uma cultura cristã,
argumenta4 a Frente Nacional Francesa para a expulsão de imigrantes africanos, pois
eles participam de uma cultura estrangeira;5 países não-ocidentais são invadidos para
impor a liberdade e a democracia, pois se presume que sejam incapazes de alcançá-los
por seus próprios meios;6 raiva e desespero entre os oprimidos do Oriente Médio são
denegridos como fanatismo religioso, em contraste com o secularismo liberal
ocidental.7
Ao mesmo tempo, os bastiões do ocidentalismo, o evolucionismo e a idéia de
progresso parecem cada vez menos plausíveis.8 O colonialismo, uma vez pensado como
parte de um passado deixado para trás, está novamente na ordem do dia. O progresso
crescente do secularismo é uma miragem, é não só no Oriente que o "fanáticos
religiosos" obtêm controle; pela primeira vez desde há mais de um século atrás, os
líderes das potências ocidentais afirmam que elas devem prestar contas de suas ações
apenas em frente ao Ser Supremo.9 Em uma época de globalização e fronteiras
ultrapassadas, o nacionalismo é uma força mais potente do que nunca. O avanço
crescente dos direitos civis é invertido; o habeas corpus é letra morta, mesmo no país de

1
Croce 1921: 11-26
2
Sobre tal metageografia, ver Lewis & Wigen 1997.
3
Sobre esses assuntos ver Chakrabarty 2000: 3-23
4
Ver, por exemplo, Guardian, 27 nov 2002; also 17 set 2002.
5
Guardian, 25 abr 2002.
6
Ali 2002.
7
Ver um exemplo característico: Huntington 1998.
8
Ver Albrow 1996.
9
Guardian, 4 maio 2003.
seu nascimento.10 O triunfo do Estado racional moderno é revertido, em regiões inteiras
do globo, o poder estatal entrou em colapso enquanto grupos e interesses "feudais"
lutam uns contra os outros e governam países;11 áreas que eram visitadas com segurança
há uma centena de anos atrás são tão impenetráveis agora como eram há três séculos.12
spero que poucos enham a iscor ar que a his ria rega enha i o um papel
impor an e em a rigar agen as ci en alis as uroc n ricas no passa o;13
igualmente verdadeiro que ela continua a fazer isso no presente.14 Mas este livro não
incidirá sobre os caminhos em que a história grega tem sido usada para apoiar estas
agendas no ambiente político, cultural e social maior. eu ema es u ar esse processo
no caminho in erso argumen o cen ral esse ra alho o e que o es u o mo erno
a his ria rega foi mol a o fun amen almen e pelas perspec i as o ci en alismo
urocen rismo o emos apon ar uma s rie e aspec os e erminan es ara come ar a
his ria a r cia sempre ra a a como par e a his ria oci en al ou europ ia.15 o
ra a a como par e e uma his ria con nua e uma rea o e i err neo a ra s as
eras; ela se orna par e e um enca eamen o e e olu o his rica que come a no
rien e r imo mu a para a r cia passa para oma an es e con inuar pela a e
ia e pelo ci en e mo erno r cia como par e o e i err neo n o na a
mais que uma locali a o empor ria nessa ca eia e olu i a is ria a n igui a e
rega n o escri a segun o a perspec i a e uma his ria con nua essa rea
geogr fica; ao in s isso a his ria a rea orna-se irrele an e uma e que a ocha
enha si o passa a ao pr imo por a or a ci ili a o oci en al.
Como consequ ncia a his ria os gregos an igos foi separa a a his ria o
espa o me i err nico e o rien e r imo; ornou-se uma en i a e segrega a e
aparen emen e au noma.16 con o que op e espo ismo orien al à li er a e oci en al
que teria come a o com os gregos mui o em conheci o para ser ensaia o aqui.17
Ainda mais , essa perspectiva eurocêntrica criou uma mentalidade implícita em
que a Europa, em suas formas modernas e medievais tornou-se o único padrão de
comparação para a história da Grécia antiga (de fato, para todas as áreas e períodos de
história ) . Apenas para dar um exemplo, a história econômica da antiguidade ainda é
escrita a partir de uma perspectiva que tenta avaliar em que medida as economias
antigas aproximavem-se das medievais / modernas européias.18 O pressuposto implícito
é que o caminho trilhado pelas economias européias medievais e modernas é o caminho
normal que toda a economia deveria ter seguido; portanto , a questão é saber se as
economias antigas realmente seguiram tal caminho, e, em caso negativo , por que não.
A idéia de que não há nenhuma razão para tomar as economias europeias (do norte)
10
Guardian, 26 nov 2001.
11
Ver Mbembe 2001 sobre a África.
12
Hobsbawm 1997.
13
Turner 1981; Bernal 1987; Canfora 1989.
14
Hanson & Heath 1988; Berlinerbau 1999; Hanson 2004
15
er uas perspec i as oci en alis as iferen es em is ria a r cia mas igualmen e picas, em
Hanson 2002; Meier 2005
16
Bernal 1987: 281-336
17
Koebner 1951; Venturi 1963; Vidal-Naquet 1964; Hall 1989.
18
Finley 1973b: 123–49. Ver comentários de Nafissi 2005: 237–43
como padrão de comparação; a idéia de que podem existir outros padrões de
comparação não-europeus; ou a idéia de que as economias são partes de sistemas
mundiais e conjunturas mais amplas, que não podemos abstrair de forma aleatória,
parece inimaginável do ponto de vista da perspectiva dominante atualmente.19
inalmen e um os efei os a apropria o a his ria a n igui a e rega pela
is ria a uropa em si o a imposi o e uma mol ura quase nacional a his ria
grega s gregos n o inham um cen ro ou ins i ui o em ol a a qual sua his ria
po eria ser organi a a; as comuni a es e l ngua grega es a am espalha as por o o o
e i err neo e nunca alcan aram uma uni a e pol ica econ mica ou social; enquan o
que sua uni a e cul ural n o es a a cen rali a a em uma ins i ui o ominan e, como
uma igre a ou um emplo or an o a his oria a r cia n o po eria ser escri a o
mesmo mo o que a his ria e oma ou a his ria u aica po eriam s -lo cen ra as no
es a o romano ou no emplo u aico emerg ncia o nacionalismo e as i eologias
raciais na uropa o s culo assim como a cons ru o e narra i as nacionais para
o as as na es europeias influenciou profun amen e o mo o como os his oria ores
mo ernos en aram narrar a his ria a r cia; a entidade homogeneizante e fic cia a
na o es a a pron a e à m o as igualmen e impor an e eram as eman as a
consci ncia euroc n rica e uma e olu o his rica con o a e olu o o ci en e
passan o e um es gio ao ou ro e e um lugar a ou ro precisa a e uma es ria clara a
origem esen ol imen o e ecl nio ma narra i a nacional homogenei an e po eria
ser ir a uma al fun o, e foi por isso facilmente adotada.
concei o que eio sincroni ar e ser ir a o as essas necessi a es a his ria
euroc n rica foi aquele de pólis a ci a e-es a o rega er iu para iferenciar os
gregos aqueles que eram origem à li er a e e emocracia, das monarquias e
despotismos orientais. Ademais, como os gregos careciam de um estado nacional, a
cidade-estado servia como um equi alen e as rias pólis gregas eram an as ou ras
r plicas a forma nacional comum o es a o e a socie a e a ci a e-es a o o ia com
isso ser ir como um meio realmen e il para a homogenei a o.20 o eria ser ir ain a
ao esquema euroc n rico e e olu o his rica: a pólis po eria ser re ra a a como uma
forma his rica que emergiu prosperou e eclinou passan o o ce ro a no as formas
como as monarquias helen s icas e o imp rio romano. Finalmente, poderia ser usada
para perseguir uma s rie e compara es eurocen ra as. Para exemplificar, a pólis
grega perce i a como ci a e consumi ora foi compara a as ci a es pro u oras
me ie ais e mo ernas a fim e e plicar por que as an igas economias n o se
desenvolveram da forma como as economias europeias o fizeram.21
Como já está claro a partir do título, este trabalho é polêmico, em grande
medida, mas o leitor tem o direito de perguntar: tem sido o caso que todo o estudo da
história da Grécia antiga até agora foi eurocêntrica e dominada pelas correntes de
pensamento e metodologias que você critica? Não estou construindo espantalhos, dada a
variedade de pontos de vista expressos por diferentes estudiosos? Não seria eu, então,

19
Para uma tal abordagem, ver Pomeranz 2000, 3–27.
20
Gawantka 1985
21
Finley 1977
conspiratório, ao argumentar que as tradições alternativas à ortodoxia atual foram
silenciadas ou marginalizadas?
s ou u ili an o o ermo silenciar para escre er o processo e forma o a
or o o ia mo erna e a e clus o e al erna i as a ela e uas iferen es maneiras. De um
lado, refiro-me a um processo pelo qual certas abordagens e as pessoas que as adotam
s o pos as e la o e marginali a as; mas esse o sen i o menos impor an e e minha
iscuss o aqui, e na ausência de uma história do campo de estudos para o século XX,
seria impossível substanciar.22 Mas eu não pretendotecer neste trabalho teorias da
conspiração,23 espero que seja relativamente fácil para o leitor perceber que muitos
estudiosos têm apoiado uma variedade de pontos de vista alternativos e que não há
nenhum esforço concentrado ou consciente para silenciar certos pontos de vista.
pro lema , e fa o mui o mais profun o e if cil e li ar o sil ncio cria o pelo
pr prio a o a escri ura his rica.

s sil ncios en ram no processo e pro u o his rica em


qua ro momen os cruciais o momen o a cria o os fa os a
fa rica o as fontes ; o momen o a composi o os fa os a
fa rica o os arquivos ; o momen o a recupera o os fa os
a fa rica o e narrativas ; e o momen o a significa o
re rospec i a a fa rica o a em primeira m o).24

sil ncio no momen o a cria o os fa os significa que as e i ncias para um


ema ou e en o po em e is ir e mesmo assim n o ser u ili a as como fa o his rico e
as e i ncias arqueol gicas su u ili a as pelos his oria ores ; o sil ncio no momen o
da composi o os fa os implica que e is em po eres esiguais na pro u o as fon es
e nossos arqui os li er rios represen am a o os gregos a eli e enquan o os gregos
su al ernos s o geralmen e sem o ; o sil ncio na fa rica o as narra i as implicam
em que cer as formas e escre er uma narra i a eliminam cer os ipos e e i ncia e
cer os emas e escre er a his ria grega como a his ria o surgimen o
esen ol imen o e ecl nio a pólis silencia a his ria e comuni a es gregas o mar
Negro on e al narra i a n o po e ser cons ru a ; finalmen e o sil ncio no momen o
a significa o re rospec i a for a cer as ques es ao mesmo empo que orna ou ras
imposs eis e se a his ria a r cia impor an e porque o in cio a his ria
europeia en o ale a pena pergun ar por que a pólis grega n o se esen ol eu
economicamen e como a ci a e europeia me ie al mas se orna o comparar a pólis
grega com as cidades indianas).
Existem , portanto, vários silêncios; esta é a razão pela qual visões e abordagens
alternativas podem existir, mas sem pôr em causa o enquadramento geral. Um fato novo
pode ser acrescentado (por exemplo, evidências de numismática), sem que se desafie a

22
Os esforços solitários de Karl Christ não são o bastante: Christ 1972, 1999.
23
E nisso eu me diferencio profundamente de Bernal 1987, na mesma medida em que concordo com a
sua temática geral.
24
Trouillot 1995: 16
maneira de se construir uma narrativa ou a metanarrativa mais ampla; uma nova
conjugação dos fatos pode ser criada, o que dá voz e abre uma janela às pessoas e
assuntos previamente sub-representados (por exemplo, as pesquisas intensivas abrindo
uma janela para o campo silenciado e para as classes mais baixas que aí habitavam), e
ainda se situar na mesma narrativa. As variedades de visões alternativas que são
endossadas neste estudo, juntamente com a variedade de pontos de vista que são
criticados, aceitam e negam diferentes tipos de silêncios. O que não se fez até agora foi
um exame de todos esses silêncios e, mais ainda, das narrativas e metanarrativas que
formam a base necessária na escrita da história grega.
O propósito deste livro é, portanto, o de examinar e explicitar as formas de
silêncios empregados na escrita da história grega. A fabricação de fontes e arquivos é
mais amplamente discutida no capítulo final, sugerindo como podemos utilizar a
variedade de fontes à nossa disposição, a fim de superar os relatos atenocêntricos e
helenocêntricos habituais. A parte principal deste livro, porém, está mais preocupada
com a fabricação de narrativas e as metanarrativas de que essas narrativas dependem.
Mas deve ficar claro a partir da discussão acima que a criação de silêncios é inerente a
qualquer tipo de produção histórica. Seria uma auto-ilusão fingir que se pode substituir
os silêncios ruins pela luz da verdade. Mas é possível, legítimo e necessário questionar
certos tipos de silêncios e oferecer diferentes critérios, diferentes questões e diferentes
formas de silêncios.
ssim o presen e es u o em ois o e i os esafiar os pressupos os impl ci os
a es ru ura iscursi a mais as a por r s o es u o a his ria grega; e oferecer uma
es ru ura concep ual e anal ica al erna i a rgumen o que o pre om nio a ual a pólis
como a nica ferramen a organi a i a o es u o a his ria grega respons el pelos
pro lemas su linha os acima aminarei as rias maneiras pelas quais a pólis foi
u ili a a como ferramen a anal ica cha e para o es u o a his ria econ mica social e
pol ica os gregos an igos e mos rarei os pro lemas insuper eis que isso gerou.
Portanto, eu tento suplementar um "despensamento" do conceito de pólis com ou ros
n eis anal icos e ferramen as concep uais.
Para alcançar os objetivos acima, este estudo segue a evolução da disciplina
histórica de modo mais vasto. História comparativa e história da historiografia são dois
aspectos fundamentais do meu trabalho. Há uma forte tendência entre muitos
historiadores da antiguidade a considerar ambos como opcionais e bastante irrelevantes
para a prática diária do historiador. Neste entendimento , a história comparativa recorre
a não mais que tentativas para encontrar argumentos ou evidências em outros períodos
ou sociedades quando esses nos faltam para o período ou sociedade que estudamos; e a
história da historiografia recorre ao estudo das mentes de primeira linha àquelas de
segunda linha, ou dito de outro modo pouco mais do que uma combinação de
curiosidade com antiquarianismo.25 Na minha pers-pectiva , ambos são uma parte
indispensável do pensamento histórico. Eles funcionam como a consciência

25
a ausência costumeira de cursos de graduação tanto em história comparada quanto em história da
historiografia da antiguidade fala alto sobre as atitudes correntes. Existem exceções, é claro; mas como
sempre, isso reforça mais do que mina a regra.
antropológica da historiografia: eles nos lembram que o passado é um país estrangeiro,
uma vez que as pessoas fazem as coisas de uma maneira diferente lá. Eles desafiam e
ajudam a repensar (ou , de fato, des-pensar)26 tudo o que é dado como certo .
A história da historiografia demonstra que não há nada inevitável no modo como
viemos a estudar a história; que houve abordagens alternativas que foram silenciadas e
podem ainda valer a pena de serem seguidas; que existem certas razões metahistóricas
pelas quais algumas abordagens foram endossadas em lugar de outras. A história
comparativa ajuda a ilustrar aspectos e problemas que não tem sido claramente visíveis;
permite-nos visualizar nossos temas a partir de enfoques alternativos; e fornece
pressupostos históricos controlados e explícitos a fim de nos aproximarmos das fontes.
Uma diferença fundamental entre o meu uso da história comparada e aquele de muitos
historiadores da antiguidade é o ponto de partida: muitos desses historiadores partem de
problemas encontrados no campo da história antiga e se voltam ao estudo comparado a
fim de iluminar esses pontos; sua pesquisa comparada é dirigida pelos problemas
particulares ao seu campo, e é vista apenas a partir da perspectiva arraigada em sua
disciplina.27 Portanto, esses historiadores vão acabar encontrando aquilo que já
ansiavam encontrar.
Ao invés disso, eu parto da percepção de que nossos colegas em outros campos
da história divisaram novas abordagens, métodos, perspectivas e problemas, que não
encontraram ressonância no mundo dos historiadores da antiguidade.28 Uma questão-
chave desse trabalho é enxergar o estudo da história da antiguidade grega do ponto de
vista daquilo a que se chegou em outros campos da história, e tentar introduzir essas
preocupações no estudo da história antiga.29 Existe, certamente, um número crescente
de outros historiadores da antiguidade que seguem uma agenda comparativa; mas
existem discordâncias sobre qual das agendas comparativas deveria ser adotada, e este
estudo argumenta em favor de certas agendas ao invés de outras.
O pós-colonialismo e a crítica ao Orientalismo possuem agora uma longa
história;30 contudo, até o presente momento tiveram influência muito limitada no estudo
da história antiga. Em grande medida, ocorre que mesmo os poucos especialistas que
tentaram conversar com essa corrente de pensamento voltaram-se principalmente aos
trabalhos lidando com a crítica literária, como o estudo de Said; pouquíssima atenção

26
O conceito de "des-pensamento" refere-se a Wallerstein 1991. Minha tentativa de des-pensar as
fundações de minha disciplina foi modelada fundamentalmente pela tentativa de Wallerstein no sentido
de des-pensar as fundações das ciências sociais. Isto não implica uma identificação com todas as suas
teses; Wallerstein tem sido criticado com justiça como parte de uma permanência das perspectivas
eurocêntricas; ver Washbrook 1990. Considero também sua visão economicista frequentemente
reducionista e insatisfatória. Contudo, considero seu desafio às fundações das ciências sociais modernas
totalmente justificado e altamente estimulante. Pretendi desenvolver alguns de seus muitos desafios e
insights, sem aceitar necessariamente todas as suas conclusões.
27
Ver as observações de Detienne 2000.
28
As principais influências nesse trabalho são as tradições historiográficas dons Annales, do Past and
Present e dos Subaltern Studies. Ver Kaye 1984; Dosse 1994; Chatuverdi 2000; Ludden 2002.
29
Para dar um exemplo, tento introduzir as ideias do Civilisation Matérielle, de Braudel (Braudel 1982,
1984) no estudo da história econômica da Grécia.
30
Ver o pioneiro Said 1978.
foi dada aos estudos históricos emanando do pós-colonialismo, que são bem mais
desafiadores e relevantes. Meu trabalho procura levar em consideração essa produção
histórica; em particular, a produção historiográfica da Índia me pareceu extremamente
estimulante.31 A outra desvantagem é a indiferença geral para com o trabalho desses
estudiosos que estudam as sociedades antigas do Oriente Próximo. Muitos equívocos
são devidos à negligência das realizações acadêmicas neste campo nos últimos
cinqüenta anos.32 Apresento algumas idéias muito importantes retiradas dessa pesquisa,
e espero que isso vá funcionar como um catalisador para uma interação mais
construtiva.
O estudo e a crítica do nacionalismo e do etnocentrismo exerceram igualmente
uma forte influência.33 Desde a revolução Historicista do século XIX, o estado nacional
havia-se tornado a unidade de análise incontestável para a narrativa e a pesquisa
históricas.34 A emergência da história social, da história do gênero e da etnohistória
muito contribuiu para solapar a coerência das narrativas nacionais e apresentar as
histórias múltiplas das classes baixas, das mulheres e dos excluídos.35 Houve grande
discussão, em particular entre os historiadores norte-americanos, sobre a necessidade de
novas unidades de análise e novas formas de narrativa histórica, que nos habilitem a
estudar e retratar as histórias múltiplas de vários grupos de pessoas, ao invés de uma
narrativa nacional homogeneizante e onipotente.36 Segui essas ideias argumentando que
a predominância do conceito de pólis no estudo da história grega serve para
homogeneizar e fazer submergir essas várias histórias. E tento oferecer um aparato
analítico alternativo pelo estudo da concepção aristotélica da pólis e suas koinôniai
constituintes.
A globalização é, provavelmente, a palavra-chave do começo do século XXI.37
O desafio para o Estado nacional como a unidade de análise não veio apenas daqueles
defendendo níveis abaixo do nível nacional, é igualmente importante prestar atenção a
aqueles que defendem novas ferramentas conceituais para estudar diásporas,38 sistemas
internacionais de transporte de mercadorias, pessoas e idéias,39 e a história interligada
de vários grupos de povos e estados.40 Este estudo utiliza o trabalho de especialistas
sobre a mundialzação,41 a teoria dos sistemas mundiais,42 e a história mundial,43 a fim
de argumentar que a história grega tem de ser libertada da narrativa eurocêntrica de uma
história da Grécia segregada e autônoma. Precisamos inserir a história grega na história

31
Prakash 1990; Chakrabarty 2000; Chaturvedi 2000.
32
A melhor reflexão sobre esse trabalho está em Van de Mieroop 1997b.
33
Anderson 1991; Duara 1995.
34
Iggers 1968.
35
Bender 1986.
36
Bender 2002a.
37
Robertson 1992, 2003.
38
Gilroy 1993; Clifford 1994.
39
Curtin 1984.
40
Ver os inovadores Linebaugh and Rediker 2000.
41
Appadurai 2001.
42
Wallerstein 1974; Abu-Lughod 1989.
43
Wolf 1982; Stuchtey and Fuchs 2003.
interligada do mundo Mediterrâneo mais vasto e do Oriente Próximo;44 mas, a fim de
fazer isso, evitando a velha abordagem de jogo de bilhar enfatizando a interação entre
entidades autônomas e independentes, precisamos de novos conceitos e ferramentas
analíticas; tento fornecer um começo para esse quadro. Eric Wolf há muitos anos fez
algumas perguntas que eu ainda acho relevante:

Se há conexões em todos os lugares, por que persistem em


transformar fenômenos dinâmicos, interligados em coisas
desconexas e estáticas? Em certa medida isso é devido, talvez, à
maneira como nós aprendemos a nossa própria história. Fomos
ensinados, dentro da sala de aula e fora dela, que existe uma
entidade chamada Ocidente, e que se pode pensar nesse
Ocidente como sociedade e civilização independente e em
oposição a outras sociedades e civilizações. Muitos de nós ainda
cresceu acreditando que este Ocidente tem uma genealogia,
segundo a qual a Grécia antiga gerou Roma, Roma gerou a
Europa cristã ... Se a história é apenas um conto de
desdobramentos com propósitos morais, então cada elo da
genealogia, cada corredor na corrida é apenas um precursor da
apoteose final e não uma multiplicidade de processos sociais e
culturais no trabalho em seu próprio tempo e lugar. No entanto,
o que nós aprendemos da Grécia antiga, por exemplo, se nós a
interpretamos apenas como uma pré-histórica Miss Liberty,
erguendo a tocha da finalidade moral na noite bárbara?
Ganharíamos pouco no sentido dos conflitos de classe abalando
as cidades gregas , ou das relações entre homens livres e seus
escravos . Nós não temos nenhuma razão para perguntar por que
havia mais gregos que lutavam nas fileiras dos reis persas do
que nas fileiras da Aliança Helênica contra os persas. Seria de
nenhum interesse para nós saber que mais gregos viveram no sul
da Itália e Sicília, então chamada Magna Grécia, que na Grécia
propriamente dita. Tampouco temos qualquer razão para
perguntar por que houve desde cedo mais mercenários gregos
em exércitos estrangeiros do que nos corpos militares de suas
cidades de origem. Colonos gregos fora da Grécia, mercenários
gregos em exércitos estrangeiros e escravos da Trácia, Frígia ou
Paphlagonia nos lares gregos, todos implicam relações helênicas
com gregos e não-gregos fora da Grécia. No entanto, o nosso
esquema orientador não nos convidam a fazer perguntas sobre
essas relações.45

44
Um movimento nessa direção é, sem dúvida, Horden and Purcell 2000; ver ainda Gras 1995b.
45
Wolf 1982: 4–5.
Fiz uso dessa introdução para apresentar quadro maior em que situo o meu
estudo. Minhas dívidas e reações aos desenvolvimentos no campo específico da história
antiga são discutidos em mais detalhes na parte historiográfica deste trabalho, e em
muitos outros casos, em todas as outras partes do livro, é claro. Lamento também que a
história cultural e religiosa tenha recebido pouco espaço nesse estudo. Isso não deve ser
compreendido como implicando que eles sejam derivados de estruturas econômicas,
sociais e políticas "profundas". Mas, para além dos problemas de competência pessoal e
familiaridade, e a pressão do tempo e do espaço, o leitor deve concordar eu espero, que
o tipo de abordagem que é defendida aqui para a história social, econômica e política, é
facilmente aplicável também a história cultural e religiosa.46
Do ponto de vista defendido nesse tra alho poss el mo er-se para al m as
his rias nacionais em ire o a his rias so re como a in era o e in er epen ncia
en re rias comuni a es e grupos mol ou o passa o; ir al m as ran es arra i as
euroc n ricas eleol gicas em ire o a uma compreens o os m l iplos mesmo que
coe is en es e co- epen en es cursos a his ria; sal ar as periferias os su al ernos e
marginais a enorme con escen ncia a pos eri a e",47 sem fragmen ar o passa o
numa his ria em migalhas". A is ria a r cia um campo i eal para aplicar o os
esses concei os s gregos nunca i eram um cen ro em ol a o qual algu m pu esse
organi ar sua his ria; suas comuni a es es a am espalha as por um espa o mais as o;
suas in era es com ou ras comuni a es e formas pol icas inha um papel crucial em
sua his ria; os arran os e configura es espaciais e emporais e suas comuni a es
ornam fac el e necess rio aplicar concep es his ricas que escre emos como a
no o e sis ema-mundo]. As pólis gregas s o fascinan es porque esafiam a l gica
o riga ria e o os os esquemas e plica i os o ci en alismo las s o a pro a
ecisi a e que a his ria impor a; que prazer maior existiria para o historiador?

46
Ver por exemplo a abordagem de Antonaccio 2003.
47
Thompson 1980: 12
PARTE I

Delimitando contextos para pensar sobre a pólis

12
CAPÍTULO 1

Uma arqueologia dos discursos

Eu escolhi o título desse livro, De-pensando a Pólis Grega, para indicar que se
trata de uma tentativa de olhar para trás, questionar e desconstruir os vários discursos
subjacentes no estudo moderno da pólis grega. Hoje, a pólis é certamente a premissa
que organiza o estudo da história da antiguidade grega. Todo estudo da vida política,
econômica, social, cultural e religiosa do mundo antigo grego tem que se comprometer
seriamente com esse conceito. Parece ter se tornado perfeitamente natural analisar a
história grega dentro de tal enquadramento. Mas, de fato, ao invés de ser natural, ou o
mais plausível modo de se estudar a história da Grécia, a aproximação através da pólis é
relativamente recente, sendo produto de decisões e metodologias específicas no âmbito
de argumentos discursivos mais vastos.
A palavra grega pólis tem um antigo pedigree. Pensa-se ser uma palavra indo-
europeia que eno a o sen i o e ‘for ifica o’ 1 Mas foi seu uso generalizado e
abrangente pelos antigos gregos do primeiro milênio A.E.C. que lhe conferiu uma
importância transcendendo seu significado linguístico. No entanto, foi apenas a partir de
meados do século XIX com a publicação de trabalhos como os de Burckhardt e Fustel 2
que a palavra pólis começou a atrair a atenção dos estudiosos modernos, e se tornou
parte dos discursos e literatura da Europa Ocidental.3 Por isso, é importante prestar
atenção à seguinte questão: como esses discursos mais vastos formularam o estudo da
história da antiguidade grega, e o conteúdo desta história, antes da pólis se tornar o
princípio organizador do estudo da história antiga?
Deixem-me esclarecer minha questão. É óbvio que a pólis foi um conceito (de
fato uma constelação de sentidos) de fundamental importância para o mundo político,
social e cultural dos antigos gregos. Portanto, a descoberta dessa importância pelos
especialistas modernos constituiu-se (foi), claramente, uma grande vantagem. Porém, a
utilização dessa descoberta foi predeterminada pela natureza e pelos limites que a
história da Grécia já havia adquirido até então; e de fato, sua utilização foi severamente
limitada pelo endurecimento progressivo desses limites.
Precisamos, então, estudar a historiografia da história da Grécia de uma forma
não teleológica;4 isso não significa que a revisão historiográfica que se segue cobrirá
todos os aspectos e abordagens do estudo da história da Grécia. Minha pesquisa
historiográfica limita-se à criação de um quadro para a crítica das abordagens correntes
sobre a pólis. No entanto, acredito que é importante mostrar que existiram muitas
formas alternativas de abordar a história da Grécia, que foram postas de lado e

1
Para referência, ver Hansen, 2000b: 145.
2
Fustel de Coulanges, La cite antique: Etude sur Le culte, Le droit, lês instituitions de La Grèce ET de
Rome, Paris, 1864; Jacob Burckhardt, Griechische Kulturgeschichte, I-II, Berlim, 1898.
3
Ver Gawantka, 1985. Eu penso que é muito mais uma coincidência que o termo cidade-estado tenha
sido cunhado primeiro para Roma e não para nenhuma pólis grega; ver Hansen, 1998: 15-16.
4
Para uma abordagem similar, ver Collini et al. 1983, 3-21; Heilbron 1995: 1-15.

13
esquecidas.5 Isso é crucial por duas razões: de um lado, para compreender que a
abordagem da pólis emergiu como uma alternativa a essas outras formas de se estudar a
história grega, e que as características dessa abordagem foram determinadas por essa
oposição; por outro lado, como meu objetivo não é oferecer apenas uma crítica, mas
uma abordagem alternativa para o estudo da história grega, a revisão historiográfica nos
fornecerá vislumbres de tentativas anteriores para formular tal quadro que ainda podem
ser adotados e utilizados.
Além disso, apesar de ter um objetivo específico em mente, é necessário ampliar
nosso campo de investigação. A abordagem da pólis depende de certo número de
premissas meta-históricas mais gerais: o estabelecimento da história grega no interior de
uma história europeia; uma filosofia evolucionista e/ou progressivista da história; uma
metodologia da história mecanicista e/ou funcionalista; decisões específicas sobre o
tema e a extensão da história grega e sua unidade de análise; decisões sobre gêneros
narrativos em que a história grega se insere, e assim por diante. Precisamos estudar a
abordagem centrada na pólis dentro desses contextos discursivos mais gerais. E, sendo
esse meu argumento de que temos que respeitar mais as percepções dos antigos gregos
sobre sua própria história, precisamos iniciar o questionamento historiográfico pelas
suas próprias abordagens.
Assim sendo, o estudo da historiografia da pólis grega precisa ser colocado
dentro de um estudo da historiografia da história grega. No que se segue, eu defino seis
períodos no estudo da história das antigas comunidades gregas: (a) relatos dos antigos
gregos de sua própria história, (b) do Renascimento até Revolução Francesa, (c) da
Revolução Francesa até a década de 60 do século XIX, (d) da década de 60 do século
XIX até a Segunda Guerra Mundial, (e) a formação da ortodoxia moderna no período
pós-guerra e (f) abordagens alternativas desde a década de 80 do século XX.6

OS GREGOS E SEUS GÊNEROS HISTÓRICOS

É sempre desconcertante perceber o quão recente é a história da Grécia. Na


antiguidade, existia uma história dos judeus (por exemplo, a Antiguidades Judaicas de
Josefo); uma história dos romanos (por exemplo, Antiguidades Romanas de Dionísio de
Halicarnasso ou Tito Lívio); e desde a iniciativa revolucionária de Eusébio, existiu até
mesmo uma história do Cristianismo, ou mais precisamente, uma história da Igreja

5
Para dar um exemplo, podemos citar a tentativa de Eduard Meyer de reunir a história da Grécia e a
história do Oriente Próximo. Sua tentativa de estudar o desenvolvimento paralelo da história grega e
judaica sobre a influência e pressão comum do Império Persa ainda permanece insuperável. Ver Ampolo
1997: 90-3.
6
Eu devo muito à Ampolo 1997. Uma vez que é um pequeno livro que pretende ser mais uma introdução
do que um relato abrangente, evitei citá-lo para cada afirmação nas páginas seguintes. No entanto, minha
dívida não é menor por isso.

14
Cristã.7 Mas até o século XVIII, ninguém havia escrito uma história dos gregos ou uma
história da Grécia.8

Há uma elementar diferença entre a História romana e grega à


qual nunca foi dada muita atenção. A história romana, para o
homem educado comum, tem limites bem definidos no tempo e
no espaço: há um começo, há um fim; e, obviamente, se você
fala em história romana, se refere à história de um território bem
definido... com os gregos acontece exatamente o oposto. Não
existem limites óbvios no tempo e no espaço, nenhum início
adequado, nenhum acordo sobre o fim e nenhuma fronteira
geográfica.9

Os gregos não tinham nenhum centro ou instituição ao redor da qual sua história
pudesse ser organizada; comunidades de língua grega estavam dispersas por todo o
Mediterrâneo, e nunca alcançaram nenhuma unidade política, econômica ou social; por
outro lado, sua unidade cultural não estava centrada em nenhuma instituição dominante,
como uma igreja, ou um templo.
Quando os gregos escreviam história, a escreviam sob cinco categorias.10 Não
nos interessaremos muito por uma categoria clássica tardia, centrada sobre a carreira e
feitos de indivíduos ilustres (por exemplo, a História de Alexandre). Ao invés disso,
daremos mais atenção às outras quatro categorias: a primeira e mais antiga, traçando
suas origens até os poemas épicos de Homero, era a narração de uma guerra ou combate
militar: embora possa ser um grande erro pensar a obra de Heródoto nesses termos, pois
como trabalho pioneiro, ele continha muito mais caminhos e interesses do que esse,11
não obstante, ambos, Heródoto e ainda mais Tucídides, tinham como objetivo último
narrar uma única grande guerra. Muitos outros autores continuaram, por toda a
antiguidade, a escrever narrativas de guerras.
Desde que Xenofonte decidiu em sua Helênicas, ao invés de se restringir a
completar a narrativa inacabada de Tucídides sobre a guerra do Peloponeso, continuar
sua narrativa da história política e militar até o seu próprio tempo, 12 um terceiro gênero
se desenvolveu sob esse nome: tratava-se da história contemporânea, em que cada
historiador abordava até o seu próprio tempo (Zeitgeschichte). É importante reconhecer
que apesar do nome Helênicas, esta não era uma história dos gregos, ou da Grécia, no

7
Momigliano 1990: 80-108, 132-52.
8
er os comen rios e olph olm ‘a concep o e uma his ria a r cia per ence unicamen e aos
tempos recentes. Os próprios gregos talvez tivessem concebido a ideia, já que contrastaram helenismo
com barbarismo; mas não encontramos nenhuma História Grega escrita por um grego; até mesmo Éforo
de Cime escreveu crônicas dos Helenos e dos Bárbaros. Nos tempos modernos, ingleses foram os
primeiros a escrever histórias da Grécia: The History of Greece from its Commencement to the Close of
the Independence of the Greek Nation, London and New York, 1894, 7.
9
Momigliano 1984a: 133-4, 1990.
10
Para o que se segue, ver a explicação em Fornara 1983: 29-46.
11
Ver Momigliano 1958; Payen 1997.
12
Dillery 1995.

15
sentido moderno: seus relatos só lidavam com a história de um limitado número de
comunidades gregas, e mesmo para estas apenas na medida em que sua história se
relaciona a com os assun os pol icos e mili ares e as preocupa es as ‘gran es
po ncias’ o que es ri amente falando, constituía o objeto das Helênicas. Os escritores
de Helênicas não sentiam nenhuma necessidade de serem abrangentes e isso com razão.
Portanto, a história de cada comunidade individual, ou de regiões (como Sikelika), que
permaneciam fora do alcance de Helênicas, era narrada sob a categoria de história local;
aqui é importante enfatizar que, com poucas exceções, toda essa vasta literatura de
história local já estava perdida quando os textos antigos foram transmitidos para o
Ocidente na Renascença.13
Finalmente, quando os gregos estenderam sua visão do passado e dos primórdios
da história, eles escreveram, começando com Éforo de Cime, história universal,
narra i as e ‘ o os os a os e gregos e r aros’ 14 Novamente é importante enfatizar
que, com a exceção parcial de Políbio, cujo trabalho é limitado a um curto período de
tempo, mas contudo tem importantes interesses particulares transcendendo o objetivo da
história universal, o único trabalho de história universal que sobreviveu na Renascença
foi o de Diodoro Sículo (e mesmo assim com sérias lacunas).
É importante não ignorar que uma grande parte dos discursos gregos sobre o seu
passado não foram conduzidos sob o nome de história.15 Para dar um exemplo, a
tradição aristotélica de estudos sociais, políticos e históricos (e sua abordagem da pólis
em particular) não foi pensada como parte de uma escrita da história na antiguidade;
ainda assim seu valor para nossa avaliação das percepções gregas sobre seu passado é
definitivamente alto. Mas não vamos tratar dessa questão aqui já que o próximo capítulo
inteiro é dedicado a ela.

DA RENASCENÇA À REVOLUÇÃO FRANCESA

Desde a Renascença, portanto, e a redescoberta de uma quantidade


extremamente limitada de produção historiográfica da antiguidade (limitado em
quantidade e abrangência), não existiu uma História grega tout court até o século XVIII.
Qual a razão disso?
A tradição neoclássica europeia,16 que foi decisivamente influenciada pela
historiografia clássica,17 percebia a história como uma narrativa dos eventos políticos e
militares realizados por grandes personagens.18. A contrapartida a essa definição do
campo histórico foi a percepção da historia magistra vitae, onde o passado servia como
um rico campo de exemplos para o uso moderno.19 Isso teve um duplo efeito. Por um

13
Para os trabalhos perdidos da historiografia grega, ver Strasburger 1990.
14
Para as origens da história universal, ver Momigliano 1982a.
15
Von Fritz 1956; Weil 1964; Huxley 1972, 1973.
16
Hicks 1996: 7–14.
17
Momigliano 1980a.
18
Burke 1969: 105–30; Levine 1991: 267–90.
19
Grell 1993: 125–64.

16
lado, significou que os primeiros estudiosos modernos não tentaram escrever histórias
narrativas da antiga Grécia.20 Foram os historiadores antigos quem narraram os eventos
políticos e militares da antiga Grécia de maneira exemplar. Se a tarefa do historiador era
a de conferir o seu testemunho em uma narrativa exemplar, quer esse testemunho fosse
pessoal, quer viesse através de testemunhos oculares por ele examinados, pouco restava
para os modernos fazerem; dessa forma, eles concentraram seus esforços em períodos
da história antiga para o qual nenhum relato havia sobrevivido,21 ou, do século XVIII
em diante, em compilações que reuniriam em um único relato todas as narrativas
relatadas pelos historiadores antigos.22
Por outro lado, o que agora nós denominamos história social, econômica e
cultural permanece fora do campo da escrita da história neoclássica. Ao vez disso, a
evidência para esses aspectos da vida passada estava concentrada em relatos
sistemáticos chamados Antiquitates organizados em torno de assuntos, e não de
temporalidades.23 Em parte, a razão disso era que as Antiquitates emergiram como um
comentários textuais, habilitando o leitor e o especialista a corrigir textos clássicos e
compreender o seu verdadeiro sentido. Porém, mais importante era o fato de que os
primeiros estudiosos modernos careciam de um aparato conceitual que os permitisse
narrativizar esses aspectos e inseri-los dentro de um quadro temporal.24 As histórias
política e militar tinham grandes homens como atores e narravam acontecimentos; mas
as histórias social, cultural e econômica não podiam funcionar simplesmente com
grandes homens como sujeitos da ação,25 também não podiam ser organizadas apenas
em torno de eventos. Elas necessitavam de sujeitos coletivos e concepções de tempo que
ainda não existiam na tradição clássica que sobreviveu, ou na outillage mental dos
primeiros pensadores modernos.
Essa é a razão central pela qual uma contradição nos estudos humanistas da
antiguidade a partir do Renascimento permaneceu sem solução.26 Enquanto a proposta
da agenda humanista era imitar a antiguidade, não postulando nenhuma diferença
histórica fundamental entre ela e a modernidade, a tentativa de ressuscitar a antiguidade

20
Momigliano 1950: 6–8, 1977b: 254–6.
21
Por exemplo, o período helenístico: ver J. Foy-Vaillant, Imperium Seleucidarum, Sive Historia Regum
Syriae, Paris, 1681; idem, Historia Ptolemæorum Ægypti Regum, ad Fidem Numismatum Accommodata,
Amsterdam, 1701.
22
Assim é escrita a primeira História grega por T. Stanyan, The Grecian History: From the Original of
Greece, to the End of the Peloponnesian War, I–II, London, 1707–39; e a primeira História antiga por C.
Rollin, Histoire ancienne des Egyptiens, des Carthaginois, des Assyriens, des Babyloniens, des Me`des
ET des Perses, des Mace´doniens, des Grecs, Amsterdam, 1736.
23
Momigliano 1950.
24
Ver Klempt 1960: 69-75; Bravo 1968: 29-40. A História de Stanyan é um bom exemplo. Ele estava
interessado na História cultural, mas não tinha como narrá-la, além de introduzindo pequenas notas sobre
artistas eminentes e pensadores que floresceram em cada período com que ele lida.
25
A menos, é claro, que se escrevesse sobre grandes inventores de coisas, costumes e instituições na
tradição antiga. Provavelmente por isso era mais fácil escrever uma história da aprendizagem, dos artistas
e estudiosos do que qualquer outro tipo de história social, econômica ou cultural; e também por isso essa
forma de história cultural foi a primeira a entrar em narrativas da História antiga.
26
Muhlack 1988: 165–70.

17
de seus vestígios, para imitá-la, revelava exatamente o quão diferente ela era.27 Os
esforços de filólogos e antiquários para reconstruir os textos, moedas e monumentos
estavam baseados na compreensão das peculiaridades das instituições, práticas e crenças
antigas. Para dar apenas um exemplo, o restabelecimento da lei romana embasava-se na
crença de que não havia diferença fundamental entre a sociedade romana e o início da
Europa moderna. Mas a aplicação da lei romana dependia da reconstrução dos textos e
sua exegese; esta, por sua vez, necessitava do estudo da língua latina e das instituições e
práticas romanas para conseguir corrigir os textos e compreender seu sentido. Esse
estudo revelou, de fato, o quão diferente a sociedade romana era daquelas do início da
Europa moderna; alguns legisladores e humanistas na França do século XVI (François
Hotman, Andrea Alciato) chegaram a reconhecer isso e defender que a lei romana era
inaplicável à sua sociedade.28 A contradição entre relevância e altérité entre os
estudiosos humanistas permaneceu sem solução precisamente porque não havia aparato
conceitual que pudesse narrativizar essas questões, e nenhum discurso que pudesse
explicar o que constituía a base dessas diferenças e a fonte das mudanças históricas.29
Porém, se os antigos autores de história proviam exemplos de nobre conduta,
estratagemas engenhosos e atos desprezíveis, a vida política, social e econômica das
comunidades gregas também estava diretamente disponível e era relevante para os
europeus do início da modernidade através do discurso do humanismo cívico. Esse
discurso pode ser ligado aos antigos gregos, e em particular a Aristóteles, e ainda estava
em evolução até o século XVIII.30 Esse discurso enfocava a pólis ou a civitas como uma
comunidade de cidadãos que eram chefes de família. A civitas podia ser governada de
inúmeras formas, dependendo do elemento governante ser um indivíduo (monarquia),
poucos (oligarquia), muitos (democracia), ou uma constituição mista,31 e dele governar
para o benefício público ou para seu próprio bem (constituições corrompidas). A
participação numa comunidade política dependia da virtude política, e a preservação da
comunidade também estava igualmente subordinada à virtude de seus membros. Porém,
a comunidade política era constantemente ameaçada pela substituição da virtude pelo
interesse particular de seus cidadãos ou de um só elemento governante. Este era o
fenômeno da corrupção, e cada forma de civitas estava sempre suscetível a ser
transformada em sua forma corrompida ou em uma forma diferente.
Portanto, a preocupação central desse paradigma era como atingir e manter a
virtude cívica: a totalidade das relações entre humanos, e entre humanos e coisas, eram
vistas através dessa lente. O que chamaríamos aspectos econômicos eram interessantes
apenas na medida em que garantiam, ou satisfaziam, a virtude política dos cidadãos e da
comunidade. A economia política ainda era vista, até o fim do século XVIII, como a
administração do patrimônio público, de uma maneira que pudesse fazer da comunidade

27
Ver Grafton 1987; Levine 1991.
28
Kelley 1970: 53–148; Monheit 1997
29
Isso não é negar que houve esforços para construir tal aparato. Os estudiosos franceses e humanistas do
século XVI foram, talvez, o melhor exemplo; ver Huppert 1970. Mas qualquer que fosse a explicação
dada, seus esforços não conseguiram criar um paradigma histórico de longo prazo.
30
Pocock 1975c. Porém, ver agora Nelson 2004.
31
Ver Nippel 1980.

18
política e seus membros os mais eficientes possíveis.32 Da mesma forma, a multidão da
koinôniai que compõe a comunidade política interessava apenas na medida em que
servia à autarquia e a boa vida da comunidade; o mesmo vale para o estudo das relações
entre organizações políticas. O paradigma era formado selecionando e focando somente
nesses aspectos que podiam ser administrados, ou adequados, para o benefício da
comunidade política. Os processos que ultrapassavam ou desafiavam essa administração
pelas comunidades políticas estavam além da análise desse paradigma.33
Assim, o discurso do humanismo cívico mesclou o que, do século XIX para a
frente, seria visto como os três campos distintos da sociedade, economia e estado no
todo da pólis ou civitas. Ao fazê-lo, e ao apresentar civitas como uma associação
voluntária de cidadãos, deu à política o papel preeminente: a imagem do legislador que
constrói ou reforma a política era de valor crucial. Portanto, a história e a experiência
política dos antigos estava prontamente disponível para os europeus do início da era
moderna: suas soluções para a construção de virtuosos e bem sucedidos regimes e na
reforma de uma comunidade corrompida podiam ser estudadas e potencialmente
aplicadas à problemas modernos. Além disso, analisando as formas de organização
política baseadas no seu elemento governante, esse discurso permitia comparações
diretas entre democracias, oligarquias e monarquias antigas e modernas. A história de
comunidades antigas foi usada como parâmetro comparativo para sistemas políticos
modernos, inclusive como argumentos em debates políticos contemporâneos. Os
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, escrito por Maquiavel, foi um dos
primeiros exemplos do uso da experiência histórica dos sistemas políticos gregos e
romanos com o objetivo de extrair conclusões sobre um fenômeno similar no mundo
contemporâneo. Esparta e Atenas proviam o contexto para a discussão de questões e
negócios das sociedades europeias em problemas como a constituição mista, o uso da
luxuria, corrupção ou o papel da educação na sociedade.34
O único gênero em que a história grega foi apresentada como uma narrativa
continuada foi a história universal. A versão cristã da história universal evoluiu desde a
antiguidade tardia; ela amalgamou a história universal dos antigos, e, em particular, a
ideia de sucessão dos impérios,35 e a tradição da história sacra que foi iniciada por
Eusébio.36 Mas a história grega tinha um papel muito limitado nesse gênero. A história
universal, em nosso período, foi sobretudo organizada em dois esquemas: o primeiro foi

32
am mi h ain a em 1776 argumen a a que “economia pol ica consi era a como um ramo a
ciência do estadista ou de um legislador, propõe dois objetos distintos; primeiro, prover uma renda
abundante ou, ao menos, a subsistência para o povo, mais apropriadamente, capacitá-los para que
consigam prover tal renda ou subsistência para si próprios; e segundo, suprir o estado ou a comunidade
com uma ren a suficien e para os ser i os p licos”; mi h 1976 Li ro 138, I.
33
Ste Croix descreveu esse fenômeno em Tucídides, referente às relações internacionais. Relações entre
organizações políticas não podiam ser administradas por uma alta autoridade, por isso não havia
autoridade primordial na pólis. Portanto, as regras aplicáveis às relações de indivíduos dentro da
comunidade política não se podiam aplicar às relações entre organizações políticas; Ste Croix 1972: 5-34.
Para a concepção do início da modernidade dessa questão, ver Tuck 1999.
34
Ver Rawson 1969 para Esparta; Roberts 1994 para Atenas.
35
Fabbrini 1983.
36
Momigliano 1990: 132–52.

19
a sucessão dos quatro impérios; a história grega foi tratada como parte da história do
segundo império (o Persa) e ocupou um lugar na história do terceiro (o Macedônio); o
outro foi o esquema de três aetates (da Criação à Abraão, de Abraão à Jesus, de Jesus
até o presente).37 Em ambos os casos, a história grega ocupava um papel subordinado,
em um à Roma, no outro à história sacra.
Por último, é importante esclarecer como as comunidades gregas eram
concebidas nesse período. O que é notável sobre o tratamento da história grega é a
ausência de uma identificação nacional homogênea dos gregos, e a inclusão de um
grande número de comunidades gregas nos primeiros relatos modernos. Relatos das
organizações políticas gregas raramente foram amalgamados sob um rótulo nacional
unifica o para os au ores esse per o o o a ‘organi a o pol ica’ po ia ser
facilmen e apro ima a a uma ‘na o’ ssim on esquieu po ia falar em um ‘espri
’une na ion’ enquan o coloca a a enienses e espar anos no mesmo n el que chineses,
japoneses e franceses; gregos, italianos e alemães, nações que estavam divididas em um
grande número de organizações políticas eram simplesmente representadas por algumas
dessas organizações, e não como um todo unificado.38 Além disso, a natureza desses
contextos de discussão permitiam a inclusão de um número relativamente grande de
organizações políticas gregas. A história universal teve, é claro, objetivos ideológicos a
servir que direcionaram sua narrativa; mas seu caráter universal lhe permitiu incluir
tudo; cada comunidade humana era parte da humanidade e podia reclamar um lugar na
narrativa da história universal. Para dar um exemplo, a História Universal inglesa
contemplava um amplo número de organizações políticas gregas e suas histórias.39 As
Antiquitates eram, por definição, inclusivas: muitas organizações políticas gregas (e, de
fato, não gregas, como na forma aristotélica) eram sempre representadas em obras como
as de Ubbo Emmius.40
Nós ainda podemos ver essa postura persistindo em alguns lugares até o fim do
iluminismo. O manual de história universal de A. H. L. Heeren, uma das mais populares
obras históricas do período, é um bom exemplo.41 Ali, o motivo da sucessão dos
impérios encena muito claramente seu papel na narrativa principal da história grega,
indo das Guerras Persas até Queroneia, que leva dos persas para os macedônios e
romanos. Entretanto, o relato da história grega antes das Guerras Persas é dedicado a
mapear as várias regiões onde havia comunidades gregas e narrar suas histórias até o
fim do período clássico: elas podem ter suas histórias narradas, mas o relato principal
deve servir a uma outra função. Essa diferença característica entre o aspecto unifocal da
história romana e o multifocal da história grega é muito bem ilustrado por duas obras de

37
Meyer-Zwiffelhoffer 1995: 256–67; Klempt 1960.
38
Ver Gawantka 1985: 83–8.
39
Universal History, Ancient and Modern from the Earliest Account of to the Present Time, London,
1736–44. Ver Ampolo 1997: 118–27.
40
Vetus Graecia, I–III, Leiden, 1626.
41
Handbuch der Geschichte der Staaten des Alterthums, mit besonderer Rücksicht auf ihre Verfassungen,
ihren Handel und ihre Colonien, Göttingen, 1799. Embora pouco depois da Revolução, está
absolutamente dentro da tradição iluminista.

20
história escritas na França durante a década de oitenta do século XVIII, com o mesmo
título: Histoire générale et particulière de la Grèce.42

TENDÊNCIAS ALTERNATIVAS

Contudo, durante o século XVIII, o cenário que apresentamos sofreu uma série
de mudanças. A transformação dos discursos europeus mais disseminados que estavam
associados aos princípios correntes do iluminismo e a diversidade paralela ou contra-
correntes modificou profundamente o contexto sobre o qual se pensava a história grega.
Se não foi depois da Revolução Francesa que a história grega surgiu como um campo
independente, ainda é o caso de se notar que as alterações durante o século XVIII
modelaram, em grande medida, o que estava por vir.
Algumas pessoas começaram a argumentar que a antiguidade era
fundamentalmente diferente da modernidade, definindo-a em razão da forma sobre a
qual aquela se diferenciava desta. Isso criou todo um discurso sobre como a antiguidade
era diferente, porque era assim e porque ela não se desenvolveu da mesma maneira que
a Europa moderna havia feito. Ao mesmo tempo, outros passaram a vê-la como
particularmente relevante: sua história podia prover exemplos sobre como reformar a
sociedade durante a grande crise do fim do século XVIII;43 igualmente, a história grega
passou a ser escrita como uma narrativa, com o intuito de alimentar argumentos para os
debates políticos contemporâneos. Outros começaram a valorizar a história grega por
diferentes razões: precisamente porque ela era diferente da sociedade contemporânea, e
permitia a descoberta de formas alternativas de expressão e sentimento. A partir dessa
perspectiva, começaram a notar como o campo da história podia ser estendido para
englobar a história social, cultural e econômica. Perceberam o sujeito coletivo do Volk e
o conceito temporal de Zeitgeist. Finalmente, outros ainda descobriram uma novidade,
as emporali a es ‘seculares’ en ro as quais a his ria po ia ser narra a esco riram
que a história podia ser vista como se movendo por diferentes estágios, e depararam-se
com novas meta-histórias. A emergência da história grega, como campo independente,
durante o Sattelzeit foi moldada por todos esses diferentes desenvolvimentos.44
Durante esse período emergiu uma forma inteiramente diferente de abordar a
antiguidade. Foi a ideia de que havia um completo e insuperável vão entre a antiguidade
e a modernidade. Essa atitude teve diversos pontos de partida. Um foi o famoso
Querelle des anciens et des modernes, que tomou seu lugar a partir do final do século
XVII até as duas primeiras décadas do século XVIII.45 Nesse debate, os modernes
tinham que argumentar contra a essência do humanismo que a modernidade havia
superado a antiguidade em muitos, se não todos, os campos do saber e tecnologia. O
debate não tinha vencedores claros, mas um consenso mais ou menos alcançado em que
era reconhecido que a modernidade havia superado a antiguidade nas ciências e na
42
Para L. Cousin-Despre´aux (1780–6) e Delisle de Sales (1783). Ver Grell 1993: 165–8.
43
Para essa crise, ver Venturini 1989, 1991.
44
Para o conceito de Sattelzeit, ver Koselleck 1972.
45
De longe, o melhor relato é o de Levine 1991

21
tecnologia, mas ainda estava atrás nas artes. A importância da Querelle repousa em ter
sido ela a primeira construção da noção de modernidade em oposição à antiguidade.
Mas logo o vão estava se tornando maior. Durante o século XVIII, muitos
pensadores chegaram a acreditar que sua época vivenciava desenvolvimentos que eram
únicos e diferenciados de toda a história passada. O fim de sangrentas guerras civis e
religiosas, a expansão comercial e o avanço da ciência eram vistos como sintomas e
causas e um amplo processo a ia emergi o aquilo que foi escri o como ‘a narra i a
ilumina a’ uma narra i a e me a-história sobre como a difusão do comércio, desde o
fim da Idade Média, tinha destruído as relações feudais de dependência, difundido
propriedades, criado e estabilizado sistemas de estado e introduzido ordem e bons
governos, e até mesmo liberdade e segurança para os indivíduos.46
Visto dessa perspectiva, as antigas repúblicas deixaram de ser exemplos
valiosos. Estavam baseadas em agricultura e escravidão; sua on d’ê e era a guerra e
a conquista; a comunidade se sobrepunha ao sujeito, sem nenhum reconhecimento dos
direitos individuais; inclusive suas querelas políticas assumiram a forma de sangrentas
guerras civis e a estabilidade política era impossível.47 Agora, o antigo paradigma do
humanismo cívico pareceu a muitos redundante: as mudanças na propriedade e nos
costumes, o papel do comércio e da civilidade criavam uma nova forma de economia,
sociedade e estado em que a virtude do cidadão era irrelevante.48
O debate sobre as populações reduzidas das nações antigas é uma boa ilustração
das tendências mais difundidas.49 A questão foi longamente tratada por antiquários; mas
também era de interesse direto nos debates contemporâneos sobre a densidade
populacional desejada e as medidas necessárias para alcançá-la. A contribuição de
David Hume ao debate ilustra muito bem a nova perspectiva dos modernes. Ele mostrou
que o debate sobre as populações antigas não era meramente uma problema de números;
ao invés disso, envolvia toda a estrutura social das sociedades antigas e modernas. 50 Ele
defendeu que a escravidão, o constante estado de guerra, as guerras civis brutais e o
baixo volume comercial, que eram características essenciais das antigas comunidades
políticas gregas, eram desfavoráveis a altas populações; portanto, trabalho livre,
estabilidade política e a expansão do comércio, que caracterizavam a modernidade,
provavam que as sociedades modernas tinham populações maiores.
Inclusive, pela primeira vez alguns pensadores tentaram refletir de forma
sistemática sobre as diferenças entre antiguidade e modernidade. Ainda tentaram
descobrir e mostrar as interconexões estruturais entre as várias características das
sociedades antigas e suas contrapartes modernas. Finalmente, alguns deles, que
pertenciam à escola escocesa de filosofia moral e história conjuntural (Adam Smith,
John Millar), tentaram descobrir um esquema de desenvolvimento histórico que pudesse
explicar como o mundo passou da antiguidade para a modernidade: sociedades antigas
foram incorporadas nestes esquemas como parte de uma estágio agrícola menos

46
Ver Pocock 1999: 1–6.
47
Ver Guerci 1979; Avlami 2001.
48
Pocock 1975a, 1985.
49
Ver Cambiano 1984b
50
‘ f he populousness of ancien na ions’ em oli ical Discourses Lon on 1752

22
desenvolvido antes do início do estágio comercial moderno.51 Assim emergiu um novo
modo de pensar sobre a antiguidade: um novo quadro temporal e um novo padrão de
comparação eurocêntrico.
Outros ainda sentiam que a antiguidade era diretamente relevante para os
contemporâneos e se recusavam a aceitar essa distância fundamental. Seria supérfluo
nos referir extensivamente aqui a trabalhos de pensadores como Rousseau 52 ou Mably53.
É crucial notar que a politização da história grega nas décadas anteriores à Revolução
Francesa teve repercussões extremamente importantes. O uso dos modelos de repúblicas
antigas pelos revolucionários franceses criaram intensas reações; como veremos no
próximo período a reação liberal e conservadora à Revolução forçou a aceitação
universal do axioma de que existia um claro vão entre a antiguidade e a modernidade. O
mais relevante é que paralelamente à politização da história grega por Rousseau e
Mably, alguns estudiosos ingleses, com que lidaremos em breve, começaram a escrever
histórias narrativas da Grécia pela primeira vez como argumentos em debates políticos
contemporâneos.
Enquanto isso, emergiu uma nova avaliação da história grega, sobretudo na
Alemanha, juntamente com uma nova linguagem histórica.54 As correntes que
contribuíram para isso foram diversas, mas todas elas compartilhavam uma oposição à
motivação principal do Iluminismo:55 uma atenção ao campo da experiência e da
sensação ao invés da racionalidade (Hamann);56 um destaque para o caráter nacional ao
invés de princípios universalizantes do Iluminismo (Herder);57 à simplicidade e
originalidade ao invés de sutileza e artificialidade (Winckelmann);58 e uma resistência
às tendências secularizantes do Iluminismo.

O sentimento e as tradições que uniam um povo e que eram


expressas em sua cultura, não foram racionalmente
fundamentadas e nem precisam ser racionalmente justificadas.
Tais sentimentos e tradições originaram-se de uma língua
comum, uma herança comum de costumes, um enfrentamento
comum das exigências da vida em um local particular.59

51
Abbé de Mably, Ob e v on u l’ o e de l G èce, Geneva, 1766. Ver Grell 1995: 449–553;
Wright 1997.
52
J. J. Rousseau, Discours sur si le rétablissement des sciences et des arts a contribute à épurer les
moeurs, Paris, 1751; ver Yack 1986: 35–85.
53
Abbé de Mably, Ob e v on u l’ o e de l G èce, Geneva, 1766. Ver Grell 1995: 449–553;
Wright 1997.
54
Trevelyan 1934.
55
Berlin 1979.
56
Manuel 1959: 283–309.
57
Berlin 1977.
58
Fuhrmann 1979.
59
Mandelbaum 1971: 56.

23
O conceito de Volkgeist, a unidade psíquica viva de uma nação, foi sua
descoberta: permitiu a construção de um novo sujeito histórico, um novo ator na
narrativa historiográfica.
Ao mesmo tempo, outras pessoas descobriram o conceito de Zeitgeist, o mais
renomado entre eles foi Giambattista Vico.60 Vico tentou salvar a história sacra dos
ataques dos céticos, que usavam as tradições históricas dos babilônios, dos egípcios e
dos chineses, narrando histórias muito mais antigas que o permitido pela Bíblia, com o
objetivo de desafiá-la.61 Eles estavam errados, argumentava Vico, porque imputavam
suas próprias suposições e ideias a períodos que eram muito diferentes. Em vez de os
legisladores sábios e estadistas, a quem os anais pagãos creditavam o início de sua
história, na realidade, os primeiros estágios das nações foram caracterizados por
selvageria e ignorância. Apenas gradualmente as nações se moveram em direção à
civilização; cada fase particular de sua história foi autônoma e diferente, tendo suas
próprias instituições, práticas e valores. Dessa forma, Vico descobriu a historicidade de
cada sociedade e cada diferente período histórico.
Agora, uma nova linguagem havia sido descoberta que permitiu aos estudiosos
escrever sobre a cultura em sua totalidade, em seu desenvolvimento histórico, e com um
ator histórico em seu centro.62 Esses desenvolvimentos coincidiram e interagiram com a
reavaliação contemporânea da cultura e história grega na Alemanha: 63 a descoberta da
história da arte grega;64 a descoberta do homérico e do arcaico como períodos históricos
distintos;65 a nova avaliação da mitologia, religião e instituições sociais.66 Essa
combinação frutificará no próximo período.
Antes de seguir em frente, é importante observar uma abordagem que não
sobreviveu à Revolução Francesa. Entre a história universal cristã e a emergência das
filosofias da história eurocêntricas do século XIX, o Iluminismo viu o aparecimento e
morte de maneiras alternativas de olhar a história mundial; se eles não sobreviveram,
isso não minimiza seu valor.
O século XVIII viu a emancipação da história grega do esquema teológico da
história universal que predominava até então. A reação à apologia cristã de uma história
universal tomou duas formas: uma foi a investigação de abordagens alternativa não
teológicas da história universal; a outra foi o estudo de histórias nacionais e regionais
em seu próprio mérito.67 A história grega havia sido tratada até então como parte da
história universal dentro de um plano de fundo do Oriente Próximo, devido à
importância fundamental do Antigo Testamento para as concepções cristãs de história

60
Grafton 1999.
61
Ver Rossi 1984: 168–87.
62
Schaumkell 1905.
63
Butler 1935; Rehm 1936; Marchand 1996: 3–35.
64
J. J. Winckelmann, Geschichte der Kunst des Alterthums, Dresden, 1764. Veja os comentários de Bravo
1968: 51–63; Potts 1994.
65
Veja os trabalhos de Vico, Herder and Wood, entre outros, culminando em F. A. Wolf, Prolegomena ad
Homerum, Halle, 1795; see Simonsuuri 1979; Grafton 1981.
66
Por exemplo, C. G. Heyne, Opuscula academica collecta, I–VI, Göttingen, 1785–1812; ver Wohlleben
1992; veja também Levine 1991.
67
Para o desenvolvimento destes processos, veja Muhlack 1991: 97–150.

24
universal. O rompimento dessa presunção teológica deixou em aberto que pano de
fundo seria adotado para o estudo da história grega e se a história grega formaria um
campo independente. Sabemos que no fim a história grega se tornou uma forma
(peculiar) de história nacional separada do pano de fundo do Oriente Próximo. 68 Porém
houve abordagens alternativas e agora focarei nelas.
Uma abordagem alternativa foi sobretudo empregada no iluminismo alemão;69 e,
na verdade, a Alemanha manteve uma tradição de escrever história universal por todo o
século XIX, quando ela já havia sido praticamente abandonada por todo mundo.70 Um
grupo de historiadores alemães, sobretudo ligados ao pioneirismo da Universidade de
Göttingen, tentavam repensar e reescrever uma história universal, que não seguiria as
premissas da teologia cristã e seu esquema das quatro monarquias.71 Johann Christoph
Gatterer introduziu o esquema do Völkersystemen.72 Ele pretendia estudar como a
história de vários povos e formações políticas se interligavam, e, com essa intenção,
argumentou que deveríamos estudar como um grupo de pessoas foi reunida sob um
povo ou formação política dominante; ele distinguiu oito sistemas na história do mundo:
os assírios, os persas, os macedônios, os partos, os germanos e eslavos, os árabes, os
mongóis e tártaros. Em seu sistema, a história grega não era independente, mas fazia
parte de um encadeamento mais vasto de poder político e desenvolvimento cultural no
Mediterrâneo Oriental.
A.H.L. Heeren, quem nós já encontramos, oferece um caminho alternativo.73 Ele
argumenta que povos e estados, apesar de ter suas características individuais, são
reunidos em sistemas (Vereine), segundo suas interações políticas, econômicas, sociais
e culturais; e esses sistemas tem sua própria existência e história, além de cada membro
individual.74 Heeren foi o autor de um influente estudo das interações entre os vários
povos do antigo Mediterrâneo.

As épocas dos impérios romanos e macedônicos estão longe de


serem as mais importantes ou mais instrutivas, seja em relação
às formações políticas ou ao comércio dos antigos. A variedade,
que distinguiu as formas de governo da antiguidade, foi
necessariamente esmagada por um domínio universal, e o
próprio comércio estava apto a ser constrangido a mesma
servidão a que toda outra relação civil estava confinada.
Devemos voltar a uma era mais distante se quisermos
contemplar a constituição dos antigos em toda a sua diversidade,
68
Veja a explicação pioneira de Bernal 1987: 189–399.
69
Para a historiografia do Iluminismo alemão, veja Reill 1975; Bödeker et al. 1986.
70
Veja C. F. Schlosser, Universalhistorische Übersicht der Geschichte der alten Welt und ihrer Cultur, I–
VIII, Frankfurt, 1826; M. Duncker, Geschichte des Altertums, I–IV, Leipzig, 1852–7. Veja Heuss 1989.
71
Para Göttingen, veja Butterfield 1955: 32–61. Para a contribuição destes historiadores alemães para o
estudo da história grega, veja Gawantka 1985: 146–61.
72
Einleitung in die synchronistische Universalhistorie zur Erläuterung seiner synchronistischen Tabellen,
Göttingen, 1771.
73
Para Heeren, veja Blanke 1983; Becker-Schaum 1993.
74
Handbuch der Geschichte des Europa¨ischen Staatensystems und seiner Colonien, Göttingen, 1809.

25
e seu comércio em sua mais tranquila e florescente condição. O
período imediatamente anterior ao estabelecimento, e no
decorrer da monarquia persa, parece oferecer ao historiador o
levantamento mais satisfatório e riquíssimo campo de
investigação... De maneira semelhante, voltando à era referida,
vemos, por assim dizer, tudo no seu devido lugar, antes do
sucesso de uma nação ter privado o resto de sua
independência.75

Ele apresentou uma pesquisa das comunidades por toda a bacia do Mediterrâneo
e suas inter-relações em um período anterior à dominação de um único poder sobre todo
o mundo aproximadamente entre 600 e 300 A.E.C. Duzentos anos depois e um estudo
moderno nessas linhas ainda é desejado.
É uma questão importante pensar porque essa abordagem foi tão completamente
abandonada que mesmo os nomes de Heeren ou Gatterer são desconhecidos, hoje em
dia, da maioria dos historiadores da antiguidade; temo não ter nenhuma resposta clara
para oferecer. Parte da resposta está no enorme sucesso da filologia e da crítica das
fontes: na era pós-Wolf, pós-Niebuhr, os trabalhos de historiadores iluministas alemães
foram considerados inadequados e ridicularizados.76 Além disso, fontes para a história
do Oriente próximo, antes da decifração da escrita cuneiforme na década de 60 do
século XIX, não podiam suportar o tipo de tratamento que filólogos e historiadores
davam às fontes clássicas.77 Portanto, enquanto a história grega se tornava um campo
autônomo baseado num exame crítico de suas fontes, a história do Oriente próximo foi
relegada a uma pré-história quase mítica. Não foi antes do fim do século XIX, com o
trabalho pioneiro de E. Meyer, que essa história pode ser escrita da mesma forma que as
histórias grega e romana. No entanto, essa é apenas uma resposta parcial. Na tentativa
de compreender o abandono total dessa abordagem, temos de voltar nossas atenções
para o reajuste fundamental das realidades e discursos europeus na sequência da
Revolução Francesa.

DA REVOLUÇÃO FRANCESA ATÉ A DÉCADA DE 1860

Esses setenta anos viram o reformulação revolucionária dos discursos europeus


e a formação da história grega como campo independente. Não podemos diferenciar um
o ou ro e essa a a or agem a o a a aqui s assim chama as “re olu es g meas” a
Revolução Francesa e a Revolução Industrial readaptaram os discursos político,

75
Historical Researches into the Politics, Intercourse and Trade of the Carthaginians, Ethiopians and
Egyptians, Oxford, 1832, xxxvi. Essa é a tradução para o inglês de uma parte de Ideen über die
Geschichte, die Verkehr und den Handel der vornehmsten Völker der alten Welt, Göttingen, 1793–6.
76
Em particular, Niebuhr ofereceu uma severa crítica em termos filológicos do trabalho de Heeren em seu
Kleine historische und philologische Schriften, II, Berlin, 1843, 107–58.
77
Ver Meyer-Zwiffelhoffer 1995.

26
econômico e social europeus.78 A Revolução Francesa colocou inevitavelmente em
pauta as questões sobre a natureza política da comunidade e os direitos de seus
membros.79 Pela primeira vez em muitos séculos, pessoas sentiram que podiam
reconstruir a sociedade do zero, os jacobinos se esforçaram para reformular a sociedade
francesa e seu legado abasteceu um enorme debate sobre a natureza da sociedade e suas
instituições, a forma e a natureza da mudança social, a relevância do passado para o
presente e o futuro alcançável da humanidade.80 Além disso, a Revolução viu o
desenvolvimento do nacionalismo como uma potente força política e isso ajudou a
reformular percepções de identidade e pertencimento e destinos coletivos.81
A Revolução industrial teve consequências igualmente importantes. O Ocidente
estava agora em posição de concorrer a uma supremacia mundial incontestada graças
aos grandes avanços de sua tecnologia, produtividade e poder;82 essas mudanças
monumentais impressionaram tanto a população (europeia) daquele tempo que eles
tentaram explicar esta aposta bem sucedida do Ocidente na supremacia mundial. Todos
os grandes pensadores do século XIX empenharam-se para eluci ar “a ascens o o
ci en e” 83 Diferentes respostas foram sugeridas. O que elas tinham em comum era a
crença de que a comparação dos sucessivos estágios do Ocidente (antiguidade – idade
média – modernidade) habilitariam os estudiosos a entender essa ascensão.84 Ao mesmo
tempo, a ascensão do Ocidente foi acompanhado pela queda do Oriente. O Oriente era
finalmente relegado a posição de eterna estagnação, fora da história propriamente; o
Ocidente não devia nada ao Oriente, mas havia avançado por sua própria dinâmica
interna.85 Teorias raciais, como o discurso dos Indo-europeus, serviram para aumentar
esse vão.86
Essas mudanças históricas afetaram o estudo da história antiga grega de três
formas. A primeira foi a construção de temporalidades. A história grega havia se
tornado agora um campo independente de estudos. Quais eram os quadros temporais
que historiadores usaram para narrar a história grega? Já vimos alguns dos criados; mas
nesse período eles foram mais articulados, outros foram adicionados e, de certo modo,
as temporalidades dentro das quais a história grega ainda é estudada foram finalmente
estabelecidas. A segunda questão foi construir o domínio da história grega: Era uma
área geográfica? Um povo? Um conceito? E quais eram os quadros dentro dos quais
historiadores podiam conceber e analisar um tal campo? Finalmente, a última questão
era a narrativa histórica. Quais eram as fontes usadas para construir tal narrativa? O que
era incluído e o que era excluído? Ou, em outras palavras, como as temporalidades e
concepções desse campo historiográfico eram aplicados à escrita da história grega?

78
Para as “re olu es g meas” er o s awm 1962 1–4.
79
Ver, por exemplo, Livesey 2001.
80
Koselleck 1985: 3–54. Ver também Vidal-Naquet 1979; Avlami 2000b.
81
Thom 1995; Thiesse 1999.
82
Wolf 1982.
83
Sobre o background do século XVIII, que também explica muito sobre o século XIX, ver Pocock 2005.
84
Blaut 1993.
85
Ver o clássico Said 1978; também Inden 1990.
86
Poliakov 1974; Olender 1992. Relativo à história grega, Bernal 1987: 317–99.

27
TEMPORALIDADES

Já vimos como durante o século XVIII diversos grupos de pensadores


argumentaram em favor de uma radical descontinuidade entre a antiguidade e a
modernidade. De fato, o uso que fizeram os jacobinos da antiguidade para remodelar a
sociedade contemporânea deu importância adicional e urgência a essa questão.87 Um
grupo de liberais franceses, os chamados Idéologues, tentaram argumentar que a
invocação de modelos antigos pelos jacobinos estava fatalmente equivocada porque era
uma má interpretação de ambos, antiguidade e modernidade.88 A antiguidade não podia
ser imitada pelos modernos porque as estruturas sociais, econômicas e políticas tinham
se alterado fundamentalmente. A liberdade dos antigos, centrada na participação do
cidadão e baseada na agricultura, escravidão e pequenas formações políticas, não podia
ser imitada no mundo dos modernos, baseado no comércio, trabalho livre e grandes
estados; portanto, apenas a liberdade dos modernos era relevante, centrada no gozo
individual da propriedade, liberdade de consciência e nos direitos da esfera privada. 89 A
Antiguidade era portanto totalmente diferente da modernidade e o única forma de
entendê-la era pelos seus próprios meios. A antiguidade era uma estrutura
completamente diferente da estrutura da modernidade e era preciso mostrar como cada
aspecto da antiguidade se encaixava para formar essa estrutura diferente.
Porque os Idéologues argumentaram fortemente que a antiguidade não tinha
nenhuma relevância para a modernidade, historiadores franceses focaram seus interesses
no que parecia importar: a Revolução, a Idade Média e a história nacional da França,
numa tentativa de entender o que devia ser retido e o que devia ser descartado do
passado e como o passado podia lançar luz sobre o presente.90 Consequentemente,
houve poucos trabalhos tratando de história antiga e quase nenhum tratando de história
grega.91 Mas a grande contribuição dos Idéologues para o estudo de história antiga deu
frutos no próximo período, através do trabalho e influência de um espírito afim,
nomeadamente Fustel de Coulanges. Examinarei sua contribuição na próxima parte. O
que precisa ser esmiuçado, por hora, é que, desde os Idéologues, historiadores franceses
da antiguidade mostraram um interesse particular num estudo estrutural da antiguidade
que revelou a interdependência entre seus vários aspectos e suas diferenças com a
modernidade; uma abordagem que podemos descrever como distanciamento. Seu
principal interesses não residia em como os povos de fato moldaram e modificaram sua

87
Vidal-Naquet 1990a; Hartog 2000.
88
Veja Vidal-Naquet 1979; Hartog 2000; Avlami 2000b, 2001.
89
C. F. Volney, Leçon d’ o e, Paris, 1795; P.-C. Levesque, E ude de l’ o e nc enne e de celle
de La Grèce, Paris, 1811; B. Constant, De la liberté des anciens comparée à celle des modernes, Paris,
1819. Veja Vidal-Naquet 1979.
90
Para os historiadores franceses na primeira metade do século XIX, veja Crossley 1993.
91
Não foi antes de 1851, quando V. Duruy publicou Histoire grecque, que o primeiro trabalho de história
grega apareceu. Veja Avlami 2000b.

28
história, mas em como as estruturas tem moldado os comportamentos e atitudes dos
povos antigos.92
Porém nem todos estavam convencidos sobre essa descontinuidade radical.
Historiadores alemães estavam igualmente convencidos de que a aplicação equivocada
de modelos antigos foi fatal. De fato, o antecessor dos historiadores alemães da
antiguidade, B.G. Niebuhr, escreveu com o objetivo explícito de refutar a demanda de
revolucionários franceses por uma lei agrária que limitaria e redistribuiria a
propriedade; uma demanda que os revolucionários legitimaram pelo apelo às reformas
dos Gracos. Niebuhr mostrou que as reformas dos Gracos se restringiam a propriedade
pública dos ager publicus, e não a propriedade privada sacrossanta.93 Mas ao tentar
fazer isso ele descobriu a importância da crítica das fontes: dado que as origens e a
natureza do ager publicus estava tão confusa nas fontes antigas, não se podia confiar
nos relatos dos antigos historiadores como tais, e a crítica das fontes era necessária para
mostrar qual leitura dos historiadores antigos estava correta. Um passo adiante foi a
percepção de que não se podia escrever um relato de história antiga que não dependesse
das prioridades e objetivos das fontes antigas.94 A questão crucial agora era, nas
pala ras e omigliano ‘como n s amos proce er on e n o pu ermos ser guia os
pelos his oria ores an igos ”95 O objetivo era dar vida à antiguidade, apresentar um
relato de como os povos antigos moldaram e modificaram suas vidas. Essa abordagem
pode ser descrita como atualização.96 Nas palavras exemplares de Mommsen, a tarefa
os his oria ores era “ erru ar os an igos os pe es ais imagin rios e on e eles
aparecem para a maioria do público, e jogá-los no mundo real do leitor, onde havia ódio
e amor, serradas e marteladas, imaginação e mentiras – e, portanto, o consul teria que se
ornar um prefei o ”97
Esses pensadores defenderam que a distinção categórica entre antiguidade e
modernidade era enganosa. Houve importantes mudanças durante o longo período da
antiguidade. Além disso, essas mudanças eram coerentes o suficientes para se dividir a
história antiga em períodos distintos. Finalmente, estes períodos não eram únicos da
antiguidade, em vez disso, eles eram estágios recorrentes na história de qualquer nação,
civilização ou sociedade. Essa foi uma elaboração da teoria viconiana dos ciclos
históricos e foi seguida por muitos historiadores alemães e seus discípulos em outros
países.98 Thomas rnol efen eu uma “ i is o mais sensa a a his ria o que aquela
comumen e a o a a en re an iga e mo erna”

92
Para a tradição decorrente da abordagem francesa, ver Di Donato 1990 em respeito à Glotz, Gernet and
Vernant.
93
Ver Momigliano 1982b: 225–36.
94
Muhlack 1988.
95
Momigliano 1980a: 33. Para os debates e questões que emanam dos desafios postos aos modelos
clássicos de historiografia, e às tentativas de criar novos modelos, ver Hicks 1996; Phillips 2000.
96
Walther 2001.
97
Citado em Schneider 1990: 427.
98
Para a teoria e seus adeptos ingleses, ver Forbes 1952: 12–65.

29
A maior porção dessa história, que é comumente chamada
antiga, é praticamente moderna, já que descreve a sociedade
num estado análogo ao que está agora, enquanto, por outro lado,
muito disso que é chamado história moderna [ele se refere à
Idade Média] é praticamente antiga, já que se relaciona a um
estado de coisas que já passou.99

Assim, embora aceitando que há uma ampla estrutura universal de


desenvolvimento, eles defenderam que toda nação e toda sociedade passava por
sucessivos estágios do nascimento, idade adulta e maturidade.100 Antiguidade não era
homogênea: havia passado por sucessivos estágios, cada um deles com suas próprias
características. Ainda se pode ver similaridades entre antiguidade e modernidade: mas
havia similaridades entre estágios equivalentes da antiguidade e modernidade.101 Assim,
o período homérico passou a ser visto como a Idade Média grega, o período arcaico
similar ao início da Europa moderna, o clássico assemelhava-se ao século XIX e o
período helenístico podia ser visto como o equivalente à Europa imperialista do final do
século XIX e início do século XX.
Curiosamente, embora muitos pensadores promovessem a abordagem em termos
teóricos, e ela tivesse sido aplicada para a história romana por Niebuhr e Mommsen, ela
não foi aplicada para a história grega até as últimas décadas do século XIX, com o
trabalho de Beloch e Meyer.102 Na verdade, de Niebuhr para frente, a maioria dos
historiadores alemães voltou sua atenção para a história romana por duas gerações.103
Aprendemos isso nas últimas décadas, como estavam enganados seus pressupostos
modernistas para a natureza da economia e da sociedade antiga. 104 O que raramente tem
sido compreendido é que suas tentativas de atualizar tais narrativas da história antiga
foram revolucionárias e válidas, apesar da falácia de seus pressupostos modernistas.
A derrocada do modernismo, seguida pela dominância de uma abordagem
influenciada pelo distanciamento dos estruturalistas franceses, deve ser vista com
sentimentos mistos.
A última abordagem pode ser descrita como evolucionista e desenvolvimentista.
Havia, de fato, muitas origens diferentes para essa abordagem. 105 Uma era a história
conjuntural escocesa;106 outra, relacionada à primeira, eram os esquemas evolucionistas

99
Thucydides, I, Appendix I , Oxford, 1830, 636.
100
Uma ideia em algo similar a metáfora biológica das fases do nascimento, apogeu e declínio, é mais
geral e pode, de fato, facilmente ser acomodada às três abordagens diferentes. A abordagem viconiana é
pouco diferente, apesar de não necessariamente contrária.
101
Turner 1981: 25–30.
102
Não sem propósito, Arnold escreveu uma história romana, mas não uma história grega.
103
Yavetz 1976; ver também Turner 1989 para o desenvolvimento oposto na Bretanha.
104
Efetivamente derrubada em Finley 1973b.
105
Mandelbaum 1971: 41–138 defende, convincentemente em minha opinião, que elas deveriam ser
tratadas juntas.
106
Meek 1976.

30
derivados da sociologia de Saint-Simon e Comte;107 e, finalmente, havia as várias
filosofias da história que seguiram na esteira de Herder.108 Provavelmente, a melhor
indicação de porque todas essas correntes devem ser vistas juntas é o marxismo, outra
abordagem desenvolvimentista,109 que foi igualmente influenciada por todas as outras
três.110 Focarei aqui nas filosofias da história, simplesmente porque eles apresentam
mais claramente o meu ponto. Eles tiveram fortes matizes filosófica. Ainda, o fato de
que poucos estudiosos se filiem a essas filosofias atualmente não deve obstruir de nossa
vista a real influência dessa abordagem.
Em toda filosofia da história, cada sociedade ou civilização é vista em
perspectiva a como, ou com o que, ela contribuiu com o amplo processo em andamento
(quer com o desenvolvimento do Espírito, Civilização, do Ocidente, do Estado, do
Capitalismo, etc.), e apenas na medida em que ela o fez.111 Combinando uma percepção
cristã de uma história linear se movendo em direção à redenção, e o argumento dos
modernes de que o mundo estava, de fato, avançando, as novas filosofias da história
estavam mostrando não gregos emprestados dos orientais, ou nenhuma outra fonte
primordial de sabedoria e civilização, mas cada sociedade e civilização construindo
sobre as fundações de seus predecessores e assim os deixando para trás para sempre:
dessa forma, os gregos erigiram-se sobre os orientais e os superavam, os romanos sobre
os gregos, etc.112 Essa perspectiva tinha um duplo efeito. Significa que a história grega
foi inserida como parte de um processo que era claramente eurocêntrico. A história
grega existia como campo independente apenas como um estágio num amplo
desenvolvimento eurocêntrico: de outro modo, períodos posteriores da história grega
foram subsumidos abaixo do Império romano; a história das comunidades gregas depois
do período clássico não tinha interesse por si mesma e não era estudada de uma
perspectiva grega.113 Mais tarde, quando Droysen sob a pesada influência da filosofia da
história de Hegel, concebeu o conceito de Hellenismus como um novo estágio no
desenvolvimento da história mundial, a história das comunidades gregas nos últimos
três séculos A.E.C. foi subsumida dentro desse novo estágio.114 Isso também significou
que a história grega passou a ser vista como tendo uma unidade, apenas na medida em
que se tratava de uma fase na progressão eurocêntrica; nenhuma outra concepção da
história grega era admissível.

107
Aqui pode-se incluir os antropólogos evolucionistas do século XIX; ver Burrow 1967; Stocking 1987.
Para as abordagens de Condorcet e Comte para a história grega, ver Garlan 2000b e Fedi 2000
respectivamente.
108
J. G. Herder, Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit, Riga and Leipzig, 1784–91; F.
von Schlegel, Philosophie der Geschichte, Vienna, 1805–6; G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die
Philosophie der Geschichte, Berlin, 1837. Ver Bravo 1968: 140–68; Krieger 1989.
109
É preciso certamente dizer que nem todas as formas de marxismo são desenvolvimentistas. Para uma
defesa de uma forma alternativa de marxismo, ver Thompson 1978.
110
Sobre marxismo, temporalidades e história antiga, ver, com precaução, Lekas 1988.
111
Ver, em geral, Sampson 1956.
112
Bernal 1987: 196–201.
113
ara os efei os gera os pelo es u o o rien e pr imo pela a or agem e “passar a ocha a ian e”
ver Larsen 1989.
114
Ver Bravo 1968; Canfora 1987; Wagner 1991.

31
As novas filosofias da história criaram, portanto, uma distinção radical entre o
Antigo Oriente, que permaneceu estático, e a Grécia que se tornou agora totalmente
separada e inserida, sob determinadas condições, na narrativa eurocêntrica. De certo
modo, a crença na existência de duas entidades diferentes, o Oriente e o Ocidente, pode
ser traçada até os antigos gregos.115 O discurso, para usar uma terminologia de Foucault,
começou centenas de anos atrás; mas até o século XIX, o Oriente ainda podia ser visto
como superior ao Ocidente em vários aspectos, ou mesmo como um modelo a ser
seguido pelo Ocidente. A revolução industrial e a corrida imperialista ao longo do
século XIX criaram uma percepção fundamentalmente nova das diferenças entre
Oriente e Ocidente. Todos os grandes pensadores do século XIX se esforçaram para
compreender o que separava o Oriente do Ocidente e explicar seus caminhos
supostamente divergentes. A Grécia era então o ponto crítico sendo o Ocidente original
e primordial. Isso não guarda mais nenhuma relação com o Oriente. A antiguidade se
tornou restrita aos gregos e romanos: as sociedades e culturas do oriente próximo
deveriam ser excluídas do Altertumswissenschaft.116 A invenção do discurso racial indo-
europeu ajudou ainda mais a agravar as ligações com o Oriente; as contribuições e
conexões orientais foram sistematicamente minimizadas e denegridas.117 A história
grega foi então removida dos relatos da história universal; passou a ter seu próprio
começo e fim.
Assim podemos ver como três temporalidades da antiguidade e da história grega
emergiram. Uma estabeleceu um vão intransponível entre a antiguidade e a
modernidade; construiu a antiguidade como uma entidade unificada e homogênea
baseada em como ela diferia da modernidade e em grande parte não via nenhuma
ligação evolucionista entre a antiguidade e a modernidade. Ao contrário, a emergência
da modernidade era comumente atribuída a algumas descontinuidades fundamentais que
ocorreram na Europa no final da Idade Média.118
A segunda abordagem era mais favorável a ideia de que a antiguidade não era
uma entidade homogênea; distinguia entre diferentes períodos nela e argumentava que
toda sociedade antiga tinha passado por fases de desenvolvimento e mudança; defendia
que a melhor maneira de compreende-las era comparando seus diferentes períodos com
suas contrapartes nos tempos modernos. Essa abordagem era mais sensível aos aspectos
históricos, porém, em última instância, novamente ela se assentava em um viés
eurocêntrico e modernista. A mudanças e o desenvolvimento histórico podiam ser vistos
apenas nos parâmetros fixados pela mudança e desenvolvimento na história europeia
moderna: a expansão do comércio, a emergência da burguesia, o declínio da
superstição, etc. A abordagem modernista alemã, como veremos nas páginas seguintes,

115
Ver Hall 1989; ver também as reações alternativas descritas em Springborg 1992.
116
Sobre a exclusão do Oriente Próximo da concepção de antiguidade de F.A. Wolf, ver Meyer-
Zwiffelhoffer 1995: 249–50.
117
Bernal 1987: 189–399.
118
Por exemplo, Smith 1976: Book I I I , iii. O trabalho de Moses Finley é provavelmente o melhor
exemplo da continuidade dessa abordagem até o presente. No caso de Finley, a influência de Hume é
claramente forte. Ver Finley 1973b: 21–2, 137.

32
acompanhava esse enfoque e ruiu com o desaparecimento de sua fundamentação
teórica.
A terceira abordagem (evolucionismo e filosofia da história) criou a narrativa de
longo prazo em que a história grega foi inserida e ajudou a orientar os parâmetros sobre
os quais ela se tornaria um campo independente. Garantiu que a história grega existisse
como tal apenas na medida em que constituía uma fase no processo eurocêntrico mais
abrangente. Nessa lógica, em existindo como campo independente, os períodos arcaico
e clássico foram abstraídos do contexto mais vasto do mediterrâneo e do oriente
próximo de que faziam parte; nos períodos helenístico e romano, ela foi subsumida em
estágios do Hellenismus e de Roma. Os efeitos surtidos no estudo da história grega
serão analisados mais a frente.
As três abordagens diferentes nem sempre eram mutuamente exclusivas. Herder
descobriu que tanto a individualidade nacional quanto a filosofia da história viam as
nações a partir da perspectiva de como elas contribuíram para o processo da história
universal.119 Fustel era inflexível sobre o abismo intransponível entre antiguidade e
modernidade e se engajou numa análise estrutural da sociedade antiga, vendo ainda a
emergência do mundo moderno a partir da antiguidade como o resultado de uma série
de revoluções.120 Os liberais anglicanos seguidores de Vico e Niebuhr podiam ver
ambas as fases recorrentes de desenvolvimento nacional em todos os períodos da
história e uma progressão universal da história.121 Havia, e ainda há, muito espaço para
ambiguidades e contradições aqui.

CONSTRUINDO O TEMA [No original, subject (N. do T.)]

Revolucionários franceses tentaram mudar a sociedade por decreto. A esse


respeito, estavam seguindo a gloriosa tradição antiga dos sábios legisladores e estavam
dentro dos limites de um discurso humanista cívico. A reação de liberais e
conservadores aos experimentos jacobinos levou ao abandono final desse discurso.
Ambos tentaram argumentar que a sociedade não podia ser reformada pela vontade, já
que não era uma associação voluntária de indivíduos; ao contrário, a sociedade era uma
máquina com leis de funcionamento claras e bem reguladas. 122 Tentativas
revolucionárias de refazer a sociedade através da vontade terminariam em anarquia,
terror e, por fim, despotismo. Dever-se-ia respeitar as leis do funcionamento social para
efetuar qualquer mudança. Além disso, toda sociedade tinha um passado distinto: havia
evoluído seguindo seus próprios padrões inerentes e a tentativa de desconsiderar esse
passado e aplicar em uma sociedade prescrições que haviam sido concebidas para outra
seria catastrófico. Naturalmente, liberais tenderam a lançar suas atenções sobre as leis

119
Ver Meinecke 1972: 322–61.
120
Momigliano 1970: 333–7.
121
Forbes 1952: 55–86.
122
O debate já havia começado na Inglaterra no século XVIII; ver Pocock 1975a, 1985; ver também
Goldsmith 1987. Sobre o argumento liberal, em particular em conexão com a antiguidade, ver Avlami
2000b.

33
do funcionamento social e os conservadores sobre a importância determinante do
passado.
Os resultados foram radicais. Antes do século XIX, a sociedade (em grego
koinônia) foi pensada como um agregado sem limites de associações voluntárias e
parceiras;123 agora essa noção havia sido superada pela percepção da sociedade como
um mecanismo claramente limitado e bem definido, reunindo indivíduos e grupos com
vínculos invisíveis e necessários.124 Da mesma maneira, economia ( em grego
oikonomia) era pensada como a administração da patrimônio e em sentido lato (na
forma da politikê oikonomia) a administração do domínio público; agora vinha a ser
concebida como um campo independente, um mecanismo que reunia indivíduos e
grupos, com seus próprios limites, leis e regras.125 Finalmente, a antiga concepção de
governo ou ordem ( a politeia antiga) evoluiu para o estado, um campo independente da
‘socie a e ci il’ com seus pr prios limi es e regras e seu próprio mecanismo interno.126
Intelectuais alemães reagiram à ocupação e dominação cultural dos
revolucionários franceses sublinhando o percurso singular da história nacional da
Alemanha, assim defendendo a importância da particularidade nacional, ao invés da
universalidade do Iluminismo. Certamente, deve-se aqui claramente diferenciar entre a
combinação de história universal, interação cultural e individualismo nacional nos
primeiros pensadores como Herder e as concepções excludentes, internalistas e racistas
do nacionalismo que se desenvolveram no final do século XIX.127 Contudo foram as
concepções tardias que tiveram os efeitos mais duradouros e com as quais estamos aqui
preocupados em primeiro lugar. A concepção voluntarista da sociedade no discurso do
humanismo cívico foi substituída pela concepção objetivista do nacionalismo. O
discurso nacionalista defendia um isomorfismo entre a linguagem, sociedade, cultura e
estado: todos estes co-extendiam os limites que distinguiam um Volk de outro.128
Portanto, os gregos tinham a sua própria identidade nacional que os distinguiam de
outros povos contemporâneos. O objetivo do estudo histórico, que veremos adiante, era
recuperar a identidade nacional.
Esses desdobramentos moldaram a concepção do tema da história grega. Agora
se atribui aos gregos uma forma distinta de sociedade, economia e estado: talvez
houvesse diferenças entre eles que podiam ser facilmente explicadas dentro do esquema
evolucionista (por exemplo, o ethnê como reminiscências tribais), mas de um modo
geral eles compartilhavam o suficiente para que houvesse uma forma distinta de
sociedade, economia e estado gregos. Isso pode ser facilmente observado seguindo as
mudanças no vocabulários das obras escritas na primeira metade do século XIX como
Wilfried Gawantka fez.129 s refer ncias aos ‘ci i a es e populi raecorum’ ou aos

123
Para a evidência sobre a França pré-revolucionária, ver Baker 2001.
124
Ver Wokler 1987.
125
Tribe 1978.
126
Skinner 2002.
127
Sobre essa distinção e em particular concernindo a Herder, ver Berlin 1977: 145- 216. Essa pesquisa
tem particular relevância pela avaliação do trabalho de K.O. Müller.
128
Ver Thom 1995.
129
Gawantka 1985: 79–110

34
‘ riechische aa enkun e’ implican o a mul iformi a e as comuni a es e forma es
políticas gregas, foram gradualmente substituídas por referências à concepção dos
gregos de estado e, em última análise, às formas de estado dos gregos; a ideia de que
cada povo deveria ter sua própria forma distinta de estado foi consolidada.
Essas influências tornaram-se evidentes apenas gradualmente, não foi antes do
período seguinte que elas transformaram radicalmente a natureza e o gênero da história
grega. Em sua própria época, as Antiquitates prosseguiram numa escala maior do que
nunca e com os mesmos objetivos antiquários.130 Porém, emergiu então uma diferença
significativa: ao invés de registrar a variedade de instituições e costumes da
multiplicidade das comunidades gregas antigas, as prioridades agora divergiam. As
Antiquitates se restringiam, quase sem exceção, a três formações políticas gregas: a
espartana, a ateniense e a cretense.131 Por um lado, isso refletia o foco em questões
políticas contemporâneas por trás da criação da história grega por especialistas
britânicos; por outro lado, essas três formas de organização política eram tomadas como
representativas das duas variantes de nação grega, as raças dória e jônia. As aspirações e
discursos nacionalistas e racistas do período criaram a forte imagem do Volk: a crença
de que existiam entidades coletivas chamadas nações, com suas próprias e distintas
personalidades, características e propensões. Em contraste direto com a preocupação de
trabalhos anteriores a mensagem dos novos estudos que apareciam nesse período era
clara:

A verdadeira área temática das antiguidades gregas são as


expressões diretas do caráter nacional... Antes via-se as
antiguidades gregas enquanto tal como um prenúncio de seu
próprio Volksgeist que a tudo impregna, a compreensão do que
se chamava Antiquitates gregas estava restrita em grande
medida a compilações que, apesar de simplórias, eram
adquiridas. O progresso gigantesco dos últimos vinte ou trinta
anos havia fundado a sua plenitude nos esforços da atualidade
que centralizam todas as particularidades da rica vida grega na
concepção histórica sob o ponto focal do espírito nacional da
ideia de estado.132

Vemos então pela primeira vez uma tentativa de delinear aquilo que era a forma
grega particular para cada aspecto da vida política, econômica, social e cultural. Não
mais as diferentes características de cada comunidade grega em particular, mas aquelas
particulares dos gregos em geral, como uma entidade coletiva, mas unificada.
Finalmente, é interessante notar a estrutura dessas Altertumskunde: em muitos casos, os

130
Ver F. W. Tittmann Dars ellung er griechischen aa s erfassungen Leip ig 1822; K ermann
Lehr uch er griechischen aa sal er h mer ingen, 1831; G. F. choemann riechische
l er h mer erlin 1855; il er an uch er riechischen aa sal er mer, Leipzig, 1881. A
obra prima da Antiquitates cer amen e ckh, Die Staatshaushaltung der Athener, Berlin, 1817.
131
Gawantka 1985: 146–8.
132
Hermann, Le buc de ec c en le e §§ 1–2.

35
li ros s o i i i os em uas par es so os ulos e ‘ eschich e’ e ‘ n iqui a es’ a
parte histórica narra a história política e militar, enquanto a parte antiquaria descreve
aspectos da vida econômica, social e cultural que ainda não fizeram sua entrada na parte
narrativa. As tentativas de ultrapassar essa dicotomia vão constituir uma das
características mais marcantes do próximo período quando a reformulação da matéria
das Antiquitates modificou de uma vez por todas a natureza da história antiga grega.133

NARRATIVA HISTÓRICA

É hora de ver como as novas temporalidades e as novas construções do tema


eram aplicadas ao estudo do novo campo que a história grega constituía. Mas aqui
teremos que complicar a nosso relato introduzindo um fator a mais. As primeiras
narrativas da história antiga grega tinham uma origem distinta. Elas resultavam da
politização da história grega na época das revoluções francesa e americana; e eram em
grande medida um produto nativo da Grã-Bretanha.134 A criação de uma história da
antiga Grécia no final do século XVIII e início do XIX servia a objetivos políticos
claros e importantes.135 As primeiras histórias da Grécia de Gillies136 e de Mitford137
eram reações conservadoras às mensagens antimonárquicas, republicanas e
democráticas das revoluções americana e francesa; o estudo da história antiga grega
revelava os crimes e desatinos do governo popular e os méritos da constituição mista.
As histórias de Thirlwall138 e Grote139 constituíam-se como uma defesa poderosa das
ideias liberais de representação política e liberdade.140 Nos termos de seus fundamentos
teóricos, a reação britânica era a mais conservadora, em comparação com os
especialistas franceses e alemães com os quais lidamos. Nenhuma questão importante
sobre a natureza particular e diferente da sociedade grega em relação a modernidade foi
formulada; nem havia qualquer tentativa de ir alem das narrativas dos historiadores
antigos, naqueles aspectos das atividades econômicas, sociais e políticas que não eram
cobertos pelos historiadores antigos.141 A abordagem inglesa encontrou em Grote sua
culminação e a sua morte intelectual definitiva. Quase nenhum outro trabalho

133
Sobre as Antiquitates no século XIX, ver Gawantka 1990.
134
Ver Turner 1981: 187–234.
135
“ s primeiros his oria ores conser a ores e enas inham e ermina o a maneira pela qual a sua
democracia deveria ser considerada e examinada, e assim procedendo, eles estabeleceram amplamente
quais problemas de governo democrático deveriam ser considerados através das discussões de Atenas.
Essa situação sugeria que o debate em torno da constituição ateniense era principalmente um debate sobre
a imagem conservadora da democracia, e não sobre a democracia em si mesma”; Turner 1981 263
136
The History of Ancient Greece, its Colonies and Conquests, I–II, London, 1786.
137
The History of Greece, I–VIII, London, 1784–1806.
138
History of Greece, I–VIII, London, 1835–44.
139
History of Greece, I–XII, London, 1846–56.
140
Momigliano 1952.
141
Grote era um banqueiro, ainda assim não introduziu nenhum fator econômico na sua história grega. O
contraste com a abordagem contemporânea de Mommsen não podia ser mais evidente: ver a sua
Römische Geschichte, I–III, Leipzig and Berlin, 1854–6.

36
significativo e inovador sobre a história antiga grega apareceu no mundo anglófono nos
cem anos que se seguiram,142 até os trabalhos revolucionários de Moses Finley e G.E.M.
de Ste Croix no período pós-segunda guerra mundial.143 Apesar disso, a abordagem
inglesa foi crucial na medida em que forneceu o modelo para qualquer narrativa
subsequente da história grega.
Quando os especialistas modernos no século XVIII e XIX criaram a história da
Grécia antiga eles não seguiram os gregos muito de perto. Deixaram de lado quase
completamente as iniciativas gregas em história universal. Ao invés disso, focalizaram
uma outra tradição da historiografia que, embora iniciada na antiguidade, nada tinha a
ver com os gregos: a história nacional. Eis a razão pela qual Arnaldo Momigliano
intitulou um de seus capítulos em The Classical Foundations of Modern Historiography
como “ a ius ic or an he origins of na ional his ory”144, dando credenciais para a
invenção da história nacional a um romano, e não a um historiador grego. Portanto, a
abordagem de Diodoro, apresentando desenvolvimento sincronicamente na Grécia
balcânica, Magna Grécia e Oriente Próximo foi completamente descartada. Diodoro foi
relegado a uma fonte a ser minada por conta de eventos que não eram cobertos pelas
Hellênika, principalmente desdobramentos na Magna Grécia e no Oriente Próximo (a
análise diferente, mas igualmente abrangente de Heródoto sofreu o mesmo destino).
Os especialistas modernos tomaram como sua base as narrativas das Hellênika,
de modo a criar uma história de uma nação potencial que era chamada Grécia. Segue-se
naturalmente que essa história da Grécia encontrava-se severamente limitada: a perda de
uma grande maioria de histórias locais, o descarte da história universal e os objetivos e
limites narrativos das Hellênika, que nós já enfatizamos, criaram uma história da Grécia
da qual 70% dos gregos estavam mais ou menos permanentemente excluídos. Como
finalmente formulada por Grote em meados do século XIX, a história da Grécia antiga
veio a significar essencialmen e “ r cia Cen ral e o eloponeso e lon ou omero
a ris eles” s comuni a es gregas a agna r cia Ásia enor e ar egro n o
constituíam uma parte orgânica da história da Grécia; elas usualmente recebiam um
tratamento na narrativa das colonizações arcaicas e eram frequentemente esquecidas até
que entrassem nos assuntos políticos e militares das grandes potências da Grécia
Central. E é claro, o mesmo se pode dizer da vasta maioria de comunidades da Grécia
Central, para alem de Atenas, Esparta, Corinto, Argos e Tebas.
É fascinante encontrar esse problema suscitado no primeiro capítulo da History
of Greece a ser escrito em 1707:

Porém como os assuntos de Grécia e Roma eram muito


diferentes, não poderiam ser relacionados completamente da

142
Os trabalhos de J. P. Mahaffy, Social Life in Greece from Homer to Menander, London, 1874; e A. E.
Zimmern, The Greek Commonwealth: Politics and Economics in Fifth- Century Athens, Oxford, 1911.
Sobre Mahaffy, ver Stanford e McDowell 1971; sobre Zimmern Millett n.d. Meus agradecimentos a Paul
Millett pelos comentários e permissão para citar o seu artigo ainda não publicado.
143
A propósito, ambos outsiders: Finley era americano e todos os dois eram formados como advogados e
não como historiadores ou classicistas.
144
Momigliano 1990: 80–108.

37
mesma maneira. Roma se vê de uma forma, bem como seu
progresso, seu surgimento... O que faz seus assuntos
reconhecíveis de forma mais clara, até mais que a dos gregos;
que, apesar de terem ligação com a maior parte do mundo então
conhecido, estavam divididos em muitas repúblicas distintas,
uma quase totalmente independente da outra, diferindo em leis e
costumes... Para (relacionar seus assuntos de forma mais unida)
com menos confusão, eu observei a regra de se referir as
principais transações de Atenas como capitais, e mencionando
os outros estados somente enquanto dependentes dessas.145

Essa exclusão não foi simplesmente resultado da perda de informação antiga.


Uma razão foi o presentismo dominante na abordagem britânica, cujo os praticantes
foram inventores da história grega como campo independente. A relevância política da
história grega necessitou de um foco nessas comunidades, cuja história política e militar
podia ser escrita usando os fragmentos que sobreviveram da historiografia antiga.
Assim sendo, relatos da história grega concentraram-se em Atenas e Esparta (e é claro,
posteriormente, Macedônia).
Havia causas mais duradouras em questão. Uma vez que a história das
organizações políticas grega foi construída como uma história de uma entidade nacional
chamada Grécia, seu caráter necessariamente mudou. A história da Grécia era algo mais
do que um agregado de histórias individuais das organizações políticas gregas: de fato,
a história das organizações políticas individualmente era importante apenas na medida
em que era relevante para essa história da Grécia quase-nacional. Os gregos eram agora
identificados como um Volk, com uma identidade e destino distintos que ultrapassava
aquele de seus membros individuais. A história da Grécia era portanto uma história de
uma entidade imaginada e não uma história das comunidades gregas: esta é a razão pela
qual a história da Grécia poderia terminar com Queroneia, embora a história das
comunidades gregas obviamente continuava para além desse ponto. E ainda, esta era a
razão pela qual a historia das comunidades gregas na Ásia Menor e no Mar Negro não
tinha nenhuma conexão orgânica com a história da Grécia: sua história não segue o
padrão de história nacional com progressão e destinos claros – um relato do surgimento,
auge, declínio e queda.
Isso se tornou mais claro se considerarmos o destino dessas comunidades que
formam o núcleo da história da Grécia (por exemplo, Atenas ou Esparta) nas narrativas
pós-Queroneia. Tente encontrar uma narrativa da Grécia continental como do período
helenístico e certamente falhará: a história das comunidades está agora amalgamada em
uma narrativa das relações entre monarquias helenísticas. Nunca houve uma história da
Grécia helenística ou da Grécia no período helenístico; a história da Grécia não tem
mais existência independente. Obviamente, isso não é simples porque o destino dessas
comunidades gregas era fundamentalmente ligada a essas monarquias extensas. A
história das comunidades gregas do IV século era igualmente imbricada nas relações

145
Stanyan, The Grecian History, páginas não numeradas do prefácio do vol. I .

38
com a Pérsia (persas financiando as guerras gregas, as comunidades gregas enviando
seus cidadãos como aliados para lutar em guerras dos persas, mercenários gregos nos
exércitos persas, gregos em altos postos a serviço dos persas, persas combatendo
gregos); e contudo não se encontrará nunca uma narrativa sobre as comunidades gregas
o s culo so o ulo “ rsia e r cia” enquan o parece perfei amen e leg imo
in i ular o mesmo rela o o erceiro s culo como “ ace nia e r cia” 146
A história das comunidades gregas foi amalgamada sob uma entidade chamada
Grécia antiga, que juntamente com Roma constituía os ancestrais do Ocidente. A
incomensurabilidade entre as duas entidades interligadas (de um lado um grande
número de comunidades espalhadas no espaço e sem uma unidade política, econômica
ou social, e de outro lado uma cidade-estado e uma cidade-império com início e fim
claros) gerava poucos problemas, na medida em que encaixava-se perfeitamente no
papel que lhe era atribuído no âmbito desse discurso eurocêntrico. Se a Grécia antiga
deveria ser um ancestral do ocidente, antes de passar o cetro a Roma, ela deveria ter um
início e um fim (assim como o oriente, na maior parte dos manuais ocidentais, não tem
história posterior a passagem da tocha do progresso aos gregos). Então, levantou-se o
grande debate das origens da Grécia antiga e o final da história grega.
n es e finali ar essa par e no amen e il chamar a en o para um caso
e cepcional a refer ncia Karl frie ller, o único historiador alemão importante
desse período que lidou com a história grega.147 Como veremos, o trabalho de Müller
incorpora a maior parte das características do período formador da história grega entre a
Revolução Francesa e os anos 1860; ao mesmo tempo, ele aumenta a distancia entre
duas correntes diferentes que virão a se cristalizar no período seguinte (uma
representada por Fustel e Burckhardt, outra por Meyer, Beloch e Rostovtzeff). Müller
era uma das principais figuras na separação da história grega daquela do Oriente
Próximo, e em seu tratamento independente;148 Além disso, as novas concepções de
nacionalismo e racismo tinham um importante papel em sua percepção da história
grega.149
Ele concebeu uma história grega que era o amalgama das interações e conflitos
entre os vários Stämme and Städte. Seu projeto tinha então um caráter duplo: de um
lado, a escrita da história grega deveria se basear na inclusão de uma variedade de
Stämme e cidades gregas; portanto, uma variedade de histórias regionais tornava-se
necessária antes que se pudesse embarcar na escrita de uma história grega sintética. 150

146
Essa observação é ainda mais reforçada quando somos lembrados que os relatos do terceiro século
eram construídos pelos especialistas modernos ex nihilo. A perda de narrativas antigas contínuas desse
Período poderia ter dado margem a uma variedade de construções; contudo, a quase total unanimidade
mostra o viés fortemente ideológico subjacente.
147
Sobre Müller ver o volume dedicado a ele em ASNP 14, 1984; a conferência em Calder e Schlesier
1998; e Momigliano 1985.
148
Sobre este papel, ver Bernal 1987: 308–16; ver porém uma correção necessária, apesar de pedante, em
Blok 1996.
149
Ver os comentários de Losemann 1998
150
Esses estudos regionais começaram com a sua monografia de Egina em 1817, a primeira monografia
sobre uma cidade grega jamais escrita; seguida pelos três volumes da série Ge c c en ellen c e

39
Müller planejava cobrir a totalidade das comunidades gregas e foi o primeiro a dar
grande importância a localização geográfica para a história de cada comunidade
grega.151 Por outro lado, ele tentou estudar aspectos econômicos, sociais, políticos e
culturais de cada cidade ou Stamm como uma unidade orgânica e coerente. E, de fato,
encontramos aqui a tendência a construir representações e tipos ideais, como quando ele
toma Esparta como a personificação ideal do estado dório imaginário.152
Müller permanece um passo atrás da invenção da pólis como princípio
organizador da história grega. Mas o que é fascinante em seu trabalho é o modo como
sua análise racial cria um meio caminho entre a análise estrutural estática e a-crônica da
corrente Fustel-Burckhardt, e a narrativa dinâmica e interativa de Meyer, Beloch e
os o eff le an ecipou us el e urckhar ao criar uma imagem hol s ica a “p lis
ria” para a qual uma “p lis nia” seria o equi alen e ; mas ao reconhecer que a
Grécia incluía uma variedade de Stämme diferentes, com características diferentes, abriu
caminho para uma imagem multifacetada e uma análise dinâmica das interações entre os
diferentes Stämme e cidades e a variedade de fatores interligados que criava as
diferenças entre os diversos Stämme.153 Müller não viveu para escreveu a sua narrativa
sintética da história grega. Podemos apenas lamentar a perda e simplesmente especular
sobre a forma em que ele haveria construído uma síntese da história de seus vários
Stämme.154

DA DÉCADA DE 1860 ATÉ A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: A


REESTRUTURAÇÃO E AS ABORDAGENS CONCORRENTES

Nas últimas décadas do século XIX, o estudo da história antiga foi remodelado
pela influência de duas amplas abordagens contrastantes. Podemos identificar os
primórdios da primeira corrente com os trabalhos de Fustel de Coulanges155 e Jakob
Burckhardt.156 A segunda corrente pode ser identificada com o que tem sido nomeado

e und d e: Orchomenos und die Minyer, Breslau, 1820; e os dois volumes Die Dorier, Breslau,
1824.
151
A sua avidez a esse respeito causou a sua morte prematura. Em 1839 ele solicitou um ano sabático
para isi ar a r cia “Desde o iníico de minhas publicações eu sempre contemplei uma história
sistemática e detalhada da Grécia. Eu dispersei vinte anos para estudos dirigidos a esse fim... preciso de
um conhecimento dos lugares afim de comparar e revisar os resultados de meus estudos geográficos e
opogr ficos com a reali a e”; ra u i o em ooch 1913 40 p s uma isi a em rias par es a
Grécia, ele morreu de ensolação enquanto copiava inscrições em Delfos; Gehrke 1991.
152
Janni 1968; Wittenburg 1984.
153
Por exemplo, Müller atribui o caracter diferente da Satmm dos jônios a sua interação com o oriente
próximo e ao papel do comércio; Die Dorier, 11, 4.
154
Essa abordagem foi severamente criticada por Will 1956 no período posterior a derrota do nazismo e
ao descrédito do racismo. Mas em tributo a Müller, o caminho que ele abriu para a exploração das
divergências regionais e para a formação de identidades regionais e étnicas começou a ser re-explorada
recentemente com resultados fascinantes; ver Hall 1997, 2002; McInerney 2000.
155
Fustel de Coulanges, La cité.; em Fustel, ver Hartog 1988b.
156
J. Burckhardt, Griechische Kulturgeschichte.; em Burckhardt, ver Momigliano 1955; Christ 1972:
119–60, 1988; Janssen 1979; Gossman 2000.

40
por ‘ ra i o mo ernis a’ em his ria an iga os ra alhos e uar eyer 157 K.J.
Beloch158 e M.I. Rostovtzeff159 estão inseridos nessa tradição, embora seja necessário
argumentar que há uma aproximação entre eles e as abordagens de outros especialistas,
não geralmente pensados como modernistas. O estudo da história grega estava
finalmente dominado na segunda metade do século XX pelas abordagens que
ramificavam da primeira corrente que citei; enquanto a segunda corrente foi
marginalizada e permaneceu como uma posição minoritária desde então. A grande
importância do conceito de pólis estava claramente relacionada com a emergência e
vitória final da primeira corrente. Espero mostrar que, não obstante seus muitos
equívocos, a segunda corrente também teve méritos extremamente significativos.
Deve ser enfatizado que individualmente cada especialista não compartilhava
todos os pontos de vista dos outros que incluí sob a mesma corrente; por isso,
“corren es” e n o “escolas” iferen a en re o for e racismo e an issemi ismo e
Beloch e os pontos de vista de Meyer é bem conhecida e levou à percepções muito
diferentes em questões que envolviam esses aspectos, mas suas afinidades gerais eram
fortes, como eles mesmos reconheceram.160 Igualmente importante, as duas correntes
diferentes compartilhavam características tanto em suas tentativas de reestruturar a
história da Grécia antiga tal como construída no período anterior, quanto nas limitações
que foram impostas sobre a história da Grécia antiga às quais já nos referimos
anteriormente. Contudo, eu ainda defenderei que a segunda corrente continha sementes
que podem ter possibilitado a superação desses limites.

A PRIMEIRA CORRENTE: FUSTEL E BURCKHARDT

A criação britânica de uma história da Grécia antiga, no período entre 1770 e


1850, ocorreu de mãos dadas com uma proliferação da Altertumskunde por acadêmicos
alemães. Contudo, parecia não haver nenhuma conexão entre as narrativas contínuas de
eventos políticos e militares, conforme apresentado nas proposições politicamente
motivadas dos historiadores britânicos e as apresentações estáticas e sistemáticas dos
aspectos econômicos, sociais e culturais da Altertumskunde alemã. Penso que não é por
acaso que quase não houve histórias gerais da Grécia escritas por historiadores alemães
nesse período.161 Esta divisão de trabalho, entre a narrativa política e a Altertumskunde,
esgotou-se na segunda metade do século XIX.

157
Christ 1972: 286–333; Momigliano 1977a, 1981; Calder and Demandt 1990.
158
Momigliano 1966a; Christ 1972: 248–85; Polverini 1979, 1990.

159
Momigliano 1954; Christ 1972: 334–49; Fears 1990.
160
Polverini 1988. Mas ambos eram extremamente direitistas em suas visões políticas. Oswyn Murray
sugeriu-me que talvez tenha havido algo importante historiograficamente nesse período; afinal, foi o
na is a erne er e 1937 que primeiro formulou e plici amen e a ques o “quan o a pólis surgiu ”
levando a resposta de Ehrenberg, que estabeleceu o consenso pós-guerra. Ver Canfora 1989: 63–79
(Meyer), 169–220 (Berve).
161
Ver os argumentos de Funke 1996: 93-6. Isto está em contradição com os trabalhos de especialistas
alemães em história romana, como por exemplo, Niebuhr, Nitzsch e Mommsen. A única exceção

41
Ambos, Fustel e Burckhardt, conseguiram superar esta divisão, apesar de terem
finalidades diferentes e terem surgido de diferentes tradições.162 O trabalho de Jakob
Burckhardt foi o primeiro a introduzir o próprio conceito de pólis no estudo da história
antiga.163 O objetivo de sua Kulturgeschichte foi oferecer uma abordagem orgânica das
interrelações entre os vários fenômenos culturais e sociais que haviam sido previamente
apresentados na forma estática e desconexa das Antiquitates. Ele também apresentou o
desenvolvimento e a mudança através do tempo da história social, política e cultural
grega, em contraste com a apresentação estática das Antiquitates.164

O novo antiquarismo do século XIX, como aquele dos séculos


XVII e XVIII, foi uma resposta ao pirronismo; mas ao contrário
do antiquarismo anterior, este afirmou ser capaz de penetrar
além dos fenômenos no espírito do povo e da estrutura de uma
organização política. Tratava-se de um estudo da antiguidade
revisado em concordância com as noções românticas de caráter
nacional e estado orgânico, que por sua vez abriu o caminho
para a investigação sociológica do mundo antigo introduzida por
Max Weber.165

Fustel foi um descendente direto dos Idéologues. Seu trabalho foi mais uma
tentativa de defender a propriedade privada e a liberdade dos modernos do radicalismo e
de um falso uso da antiguidade. O trabalho de Fustel foi influenciado pelas discussões
antropológicas acerca do passado e do futuro da humanidade, e por certas questões
como a origem e a evolução da família, da propriedade privada, dos costumes e da
religião, das instituições políticas e do Estado.166 Ele levantou a questão da relação entre
família, propriedade privada e religião, e a cidade antiga. Tentou mostrar que a
instituição original da família indo-europeia foi baseada na propriedade privada e foi
mantida unida à religião doméstica dos espíritos ancestrais. A crescente unificação das
famílias em tribos e, finalmente, em cidades e a série de revoluções políticas que
tornaram possível a incorporação dos plebeus, resultou em uma crise contínua da cidade
antiga, que só foi resolvida com a conquista romana e a criação do império romano
cosmopolita.167
Em suas proposições nós já podemos encontrar algumas das características
dominantes da abordagem sobre a pólis ainda apresentes nos dias de hoje. Fustel foi
influenciado pelo discurso racial Indo-Europeu. A cidade antiga tinha evoluído a partir

importante à regra acima é a Griechische Geschichte de Ernst Curtius. Mas ela pertence a uma tradição
bastante diferente de Niebuhr e Mommsen, e mais tarde Meyer e Beloch. Ver Christ 1988.
162
Embora ambos compartilhassem uma hostilidade no que diz respeito à crítica das fontes e a filologia
histórica alemã: para tais reações, ver Gossman 1983.
163
Ver Gawantka 1985.
164
Nippel 1998.
165
Momigliano 1955: 297.
166
Podemos simplesmente mencionar os nomes dos Maurer, Haxthausen e Maine, ver Momigliano
1982b: 236-44; Nippel 1990b: 96-101.
167
Momigliano 1970.

42
das instituições originais indo-européias: ela não tinha nada a ver com o Oriente semita,
nem sua forma foi influenciada ou moldada pelas diferentes relações com ele. Sua
cidade antiga não tinha lugar real no tempo e no espaço. Realmente não importa quando
as mudanças nas instituições que ele havia retratado tinham acontecido, tão pouco foi a
posição geográfica de qualquer importância para a evolução da cidade antiga.
Finalmente, sua cidade antiga era unitária: realmente não interessava se as antigas
comunidades gregas tinham diferenças muito importantes entre elas ou em comparação
com os romanos; poderia ter havido exceções à regra ou variedades da norma. O
aspecto essencial era, de fato, que existia uma cidade antiga tal qual uma forma
específica e distinta de sociedade e Estado que poderia ser retratada como um
organismo com emergência, apogeu e declínio.
Este tipo de abordagem pode ser descrito por dois rótulo: funcionalismo e
evolucionismo. Uso a palavra funcionalismo para descrever a crença de que entidades
como a sociedade, a economia e o Estado têm suas fronteiras específicas e suas próprias
leis e funções.168 Elas podem ser retratadas de modo organicista (a sociedade como um
organismo) ou em termos mecanicistas (sociedade como uma máquina), mas a noção
fundamental é que elas formam totalidades com limites claros. Eu uso (Uso)
evolucionismo para descrever a crença de que essas sociedades, economias e estados se
movem progressivamente (ou regressivamente, o que é a mesma coisa) e
incondicionalmente de um ponto ou estágio da sequência para o próximo.169
Funcionalismo e evolucionismo não são opostos, como tantas vezes foram retratados.170
De fato, um não pode existir sem o outro. Se sociedades são entidades bem integradas,
em que cada parte serve a manutenção do todo, então a única maneira de encarar a
história é através de uma sucessão progressiva de diferentes formas de sociedades,
diferentes fases e diferentes tipos. Sociedades apenas passam de uma tipologia para a
outra, de um estágio para o outro. Funcionalismo e evolucionismo estão apenas
interessados em diferentes aspectos, um em sincronia, o outro em diacronia; mas
compartilham os mesmos pressupostos fundamentais.171 A Cidade Antiga de Fustel foi a
introdução destas formas de pensar a história antiga.172 Em seu trabalho a cidade antiga
foi considerada como uma substância ou entidade que se desenvolveu através de uma
sequência de revoluções em um caminho unidirecional. O princípio funcionalista era
evidente em sua tentativa de ver a multiplicidade de formações políticas e comunidades,
em suas várias histórias, como a exemplificação de uma única entidade homogênea e
bem estruturada; o princípio evolucionista pode ser observado em sua interpretação da
sequência dos eventos como um desenvolvimento unilinear, das mais simples para as
168
Ver Perlin 1985a, 1994b.
169
Ver Yoffee 1993.
170
Ver os comentários de Burrow 1967: 190-213.
171
Muitas tipologias foram criadas com base nessas premissas, algumas mais outras menos bem
sucedidas. A mais influente é provavelmente uma sugerida por Marx: modo de produção asiático, modo
de produção escravista, feudalismo e capitalismo. Max Weber ofereceu várias classificações de acordo
com a categoria estudada, como por exemplo, entre a cidade consumidora e a cidade produtora. Durkheim
apresentou uma classificação das sociedades com solidariedade orgânica e com solidariedade mecânica.
Por fim, os neoevolucionistas ofereceram a classificação de bando-tribo-chefia-estado.
172
Ver Billeter 1911: 325–35.

43
formas superiores de organização. Fustel teve uma influência dupla (Fustel exerceu
influência duplamente): por um lado, através de seu aluno Emile Durkheim, ele
influenciou a criação da sociologia e da antropologia funcionalista francesa; e por outro
lado, através de Gustave Glotz173 e Louis Gernet174, a criação da escola francesa na
história antiga (a criação da escola francesa EM ou SOBRE história antiga).175 Fustel
foi seguido por gerações que tentaram explicar a evolução da pólis grega a partir de suas
origens tribais. O debate moderno sobre emergência da pólis é um descendente direto
deste tipo de abordagem.

A SEGUNDA CORRENTE: MEYER, BELOCH AND ROSTOVTZEFF

A outra corrente seguiu um caminho muito diferente. Ela tentou unir a narrativa
dos acontecimentos políticos e militares com os aspectos sociais, econômicos e culturais
que foram tratados de forma sistemática e estática nas Antiquitates. Com tal objetivo, os
estudiosos desta corrente desafiaram uma série de características-chave da história da
Grécia antiga tal como tinha evoluído no período entre 1770 e 1850. Sua façanha mais
revolucionária foi a emancipação dos aspectos econômicos e sociais da apresentação
estática dos Antiquitates.176 Eles viram a cultura material e a população humana como
factores de mudança e de reajuste para a totalidade das relações humanas. Para dar um
exemplo, o estudo da demografia foi liberado das pesquisas de antiquário sobre a
população das cidades antigas; em vez disso, a demografia foi tratada como um fator de
mudança econômica, social e política, moldando o desenvolvimento econômico e a
história política. A inclusão de um capítulo inteiro sobre a população em Griechische
Geschichte de Beloch foi uma completa revolução, se comparada com a estrutura de
History of Greece de Grote, em que tais questões foram confinadas em notas de rodapé.
Da mesma forma, o comércio não era mais relegado às descrições estáticas da
Griechische Privataltertümer: este se tornou uma parte da estrutura narrativa, explicando
as mudanças, promovendo guerras, estabelecendo relações. Vou chamar esses
estudiosos de modernistas, porque, em sua tentativa de criar uma história dinâmica, eles
usaram os padrões sociais e econômicos da Europa moderna, a fim de dar sentido às
evidências da antiguidade.
Devido ao caráter dinâmico da fusão da sua história política com a história
econômica e social, os modernistas revolucionaram sua unidade de análise. Em
contraste com a abordagem de Fustel, a unidade de análise não é mais a cidade
individual ou a entidade imaginária unitária chamada Grécia: os modernistas estão
interessados nas relações entre as comunidades, tanto entre as comunidades gregas,
como entre os gregos e os outros. Isso abre uma ampla perspectiva da variedade de
interrelações mediterrânicas com dois efeitos: por um lado, o foco tradicional em
Atenas e Esparta e a exclusão da grande maioria das comunidades gregas mostram
173
Ver seu trabalho fundamental La cité grecque, Paris, 1928.
174
Di Donato 1990: 3–130; Humphreys 1978: 76–106.
175
Ver Momigliano 1970: 325–6.
176
O jovem Moses Finley, de fato, reconheceu isso; ver Nafissi 2005: 203-8.

44
alguns sinais de quebra; por outro lado, a geografia e o papel do espaço se tornam um
fator importante para o estudo destas interrelações.
Meyer, que foi um orientalista e helenista igualmente competente, escreveu sua
monumental Geschichte des Altertums em uma tentativa de estudar conjuntamente a
história das sociedades do Mediterrâneo Oriental, traçando desenvolvimentos,
interações e relacionamentos paralelos.177 Para Meyer estava claro que a história
nacional na forma de progressão de uma entidade ideal não era viável:

É, portanto, equivocado contemplar as nações a partir da


unidade da história e abstrair de seus destinos as normas do
desenvolvimento histórico. Uma história nacional independente
não existe de forma alguma, antes, todos os povos que estão
conectados politicamente e culturalmente por laços duradouros,
construíram uma unidade indissolúvel de história, até que estas
conexões sejam novamente dissolvidas devido ao curso do
desenvolvimento histórico [grifo meu].178

Todos que tenham lido as considerações de Rostovtzeff sobre o século IV


A.E.C. se surpreenderão com sua tentativa de antecipar as interrelações entre as
comunidades gregas da Grécia continental, da Ásia Menor, do Mar Negro e da Magna
Grécia.179 Além disso, seu trabalho foi fundamental no estudo de lugares e áreas de
interação entre os gregos e outras culturas, de Dura, na Mesopotâmia, à Cítia.180
Também é notável que Rostovtzeff escreveu uma History of the Ancient World, em que
incluiu a história do Oriente Próximo; deste modo, ele foi o último historiador da
antiguidade a lidar com a história das sociedades do Oriente Próximo.181
Os estudos geográficos de estudiosos alemães no final do século XIX 182, e de
seus sucessores em trabalhos britânicos, como os de J.L. Myres, tentaram dar mais
atenção ao fundo geográfico dessas interrelações, focando em suas configurações
regionais e ligações interregionais.183 As obras de estudiosos alemães na década de
1950, como Die griechische Pólis als historisch-geographisches Problem des
Mittelmeerraumes184 e Abhängige Orte im griechischen Altertum,185 foram os últimos
produtos desta vertente historiográfica, antes da dominação de outra corrente. Assim, os
modernistas se opuseram ao funcionalismo da corrente Fusteliana, recusando-se a tomar

177
‘ e isso e is ir em algum lugar ser por an o aqui que e is ir uma ilus ra o comple a uni ria, que
integra as histórias individuais como partes subordinadas deste contexto mais vasto. Tal tratamento só
po e ser sincr nico’; eyer 1907 247
178
Meyer 1910: 41. É significativo que Meyer tinha uma visão positiva do trabalho de Heeren, a quem ele
via como o seu antecessor; 1907: 248.
179
er o cap ulo The ancien worl in four h cen ury” em os o eff 1941
180
Rostovtzeff 1922, 1932. Eu gostaria de agradecer a Oswyn Murray por ter me apontado isto.
181
Rostovtzeff 1926. David Lewis é a única exceção efetiva a esta regra.
182
Por exemplo, Philippson 1904.
183
Myres 1953b.
184
Kirsten 1956.
185
Gschnitzer 1958.

45
a pólis como a única unidade de análise e inserindo as pólis gregas no mundo mais
vasto do Oriente Próximo e do Mediterrâneo.
A corrente modernista também argumentou contra o evolucionismo. Eles se
recusaram a ver a história como a realização de uma ideia ou a concretização de um
padrão determinista de evolução. Beloch e Meyer lutaram ferozmente contra as
tentativas evolucionistas de retratar a antiguidade por uma imagem unificada, na forma
de um estágio em uma evolução unilinear. Diferentes grupos apresentaram tais imagens
unificadas e esquemas evolutivos. Fustel, e outros historiadores antropológicos,
homogeinizaram a antiguidade através do conceito da cidade antiga como parte da
evolução da sociedade indo-europeia, ou da transição de tribo para Estado. Os
Nationalökonomen, como Rodbertus e Bücher,186 apresentaram uma antiguidade
homogênea como o primeiro estágio, o estágio do oikos, na evolução da economia,
seguido pelo estágio da cidade (Idade Média) e pelo estágio nacional (a modernidade).
Os marxistas homogeneizaram a antiguidade através do conceito de modo de produção
escravista, visto como parte da evolução da sociedade na passagem do feudalismo para
o capitalismo.187
De modo contrário, os modernistas tentaram demonstrar a multiplicidade de
padrões econômicos e sociais que prevaleceram no mundo mediterrâneo na antiguidade;
eles demonstraram que diferentes áreas tinham seguido caminhos muito diferentes, e
lançaram as bases para uma geografia econômica do Mediterrâneo; suas inclinações
modernistas tiveram o efeito benéfico de afastá-los de uma noção de progresso unilinear
do Ocidente que seguiria desde a antiguidade passando através da Idade Média até a
modernidade. 188 Meyer escreveu uma introdução a sua Geschichte des Altertums
chama a ‘ lemen e er n hropologie’ em uma en a i a e com a er as eorias e
antropologia evolucionista.189 Ele atacou ferozmente a noção de uma evolução a partir
da família, passando pelas formações tribais, até o Estado, que viu a pólis como uma
evolução proveniente de uma sociedade tribal, e as phylai gregas como remanescente
deste passado tribal.190 É peculiar que embora Meyer tenha sido comprovado pela
pesquisa moderna, 191 e não as gerações de historiadores evolucionistas, como Glotz e
Gernet, quase ninguém retrocedeu para observar aquilo que ele estava tentando dizer. 192

186
Ver os artigos em Mommsen e Osterhammel 1989; Schneider 1990.
187
Ciccotti 1897. Para o debate completo, ver Nafissi 2005: 17-54.
188
Paradoxalmente, Finley, por fim, chegou a uma posição muito próxima da adotada por Meyer sobre o
desenvolvimento histórico geral na antiguidade. Ao em vez de um desenvolvimento unilinear que segue
de um estágio para o próximo, como sustentado, por exemplo, pelos marxistas, ele chegou a ver a
antiguidade movendo-se de maneira cíclica: de sociedades com base em um espectro de status, no período
arcaico, para sociedades polarizadas na linha livre/escravo e retornando para sociedades de status na
antiguidade tardia. Finley 1981a: 132. Ver Nafissi 2005: 223–9, 243–6.
189
Ver Meyer 1907: 10–17.
190
Capogrossi Colognesi 1984.
191
Bourriot 1976; Roussel 1976; Finley 1985a. É notório que, apesar de Finley, justamente, creditar a
Weber a antecipação desta descoberta, o fato de que Weber explicitamente identifica-se com a posição de
Meyer (1976: 379) não provocou qualquer discussão ou reconsideração de Meyer.
192
A exceção: Nippel 1990b: 122-3, 1990a: 320-1.

46
Por esta razão, a pólis, como a forma grega específica de estado, ou como um estágio na
evolução da sociedade grega, não se expandiu em demasia na obra dos modernistas.
Periodização era uma questão importante nestas tentativas de reavaliação. 193 A
descoberta das civilizações micênica e minóica, nas últimas décadas do século XIX,
abriu uma nova perspectiva para o estudo da história antiga. Os modernistas foram os
primeiros a tentar introduzir este novo mundo nos estudos da antiguidade. As
perspectivas obviamente divergiram em grande medida naqueles primeiros anos.
Entretanto, a agenda modernista de visualizar as várias interrelações entre os processos
econômicos, sociais e políticos encontrou seu caminho também nesta discussão. É claro
que a percepção das novas civilizações foi fundamentalmente influenciada pela imagem
dos épicos homéricos. Meyer e Beloch, que escreveram as primeiras considerações
históricas sobre as civilizações micênica e minóica, não questionaram que muitas de
suas características fundamentais eram um tanto estranhas às sociedades gregas
posteriores.
Ainda assim, ao em vez de criar uma lacuna fundamental entre elas, estes
autores tentaram ver como os processos econômicos e sociais tinham interagido com
poderes de consolidação política e de desestabilização para criar uma imagem variada
da história egeia desde o período minóico até o período romano. 194 Em vez de falarem
sobre os reinos territoriais micênicos e as cidades-estado gregas, eles apontaram a
variedade de formas de organização política, em cada período. Eles apontaram que,
desde o período arcaico a organização política poderia assumir a forma de uma pequena
cidade e seu território, ou de toda uma região unida em igualdade de condições
(Atenas), ou de uma comunidade dominante incorporando as outras comunidades livres
e/ou não livre de uma região (Esparta, Argos, Elis), ou de uma região dividida entre
muitas formações políticas, mas com uma superestrutura política comum, quer sob uma
comunidade dominante (Tebas e Beócia, Opus e lócrios) ou em condições iguais
(aqueus, fócios).195 É impossível falar sobre a emergência da pólis neste sentido: pode-
se falar de uma variedade de formas de centralização ou fragmentação política, mas não
sobre a emergência de uma única entidade unitária. A criação de formações políticas
nos per o os min ico e mic nico ra a a a mesma forma “ m o o caso parece que
a fragmentação política [de Creta] foi muito menor no período minoico, do que mais
ar e no per o o grego” 196 J.L. Myres foi outra figura característica de um estudioso

193
‘ uais s o en o os limi es cronol gicos e geogr ficos a his ria grega m que pocas eve ser
dividida? Nós deveríamos fechar com a batalha de Queronéia, se a liberdade grega terminou com ela.
Contudo, esse não foi o caso. A Grécia perdeu, é verdade, sua posição na política do mundo, mas ainda
manteve um pouco de sua independência interna. Vários estados gregos eram tão independentes após
Queronéia quanto antes, e em todo caso, parece pouco apropriado excluir da história política da Grécia
eventos como a última tentativa de infundir vida nova na comunidade espartana, e a criação dos estados
federados dos aqueus e etólios. Devemos, portanto, ir tão longe quanto à destruição de Corinto. Os limites
geográficos variam em diferentes períodos... A falta de um centro político permanente aumenta a
dificuldade da tarefa, mas esse centro não é sempre ausen e’; olm is ria a r cia 6-7.
194
Ver, de uma maneira similar, Tritsch 1929.
195
Meyer 1907: 301–12; Beloch 1913: 202–11.
196
Beloch 1913: 115. Note-se que os palácios de Mallia e Zacro não tinham sido encontrados ainda.

47
que poderia combinar trabalho de campo arqueológico em sítios pré-históricos com
geografia histórica, história das idéias políticas e estudos herodotianos.197
Por fim, a tentativa de integrar a história econômica, social e política, e de
descrever as interrelações entre as amplas áreas das comunidades gregas e não-gregas,
criou uma abordagem revolucionária para a utilização das fontes. O estudo dos
processos econômicos e sociais, e a devida atenção a uma grande variedade de
comunidades e regiões, exigiu um afastamento do foco restrito das histórias da Grécia,
que foram construídas com o uso das Hellênika gregas; além disso, o necessário uso de
dados quantitativos não poderia ser atendido por essas fontes textuais. O uso sistemático
da evidência arqueológica foi o resultado dessa nova abordagem: primeiramente, a
evidência arqueológica foi tratada como uma fonte de dados quantitativos, que não
poderiam ser fornecidos pela evidência literária; em segundo lugar, a evidência
arqueológica foi o único meio de penetração até aquelas comunidades e regiões gregas
que foram tão restritivamente cobertas pelas Hellênika; finalmente, a cultura material
foi tomada, seriamente e independentemente, como parte da vida económica, social e
cultural dos antigos gregos.198 É preciso simplesmente olhar para o impressionante uso
da arqueologia por Rostovtzeff em sua história do mundo helenístico para diagnosticar
um caminho aberto que foi subsequentemente abandonado no período pós-guerra.

O PERÍODO PÓS-GUERRA: A FORMAÇÃO DA ORTODOXIA CORRENTE

Esta segunda corrente tornou-se uma minoria dentro da história antiga no


período pós-guerra. Oferecer uma explicação para isso é uma tarefa difícil e eu admito
não ter nenhuma explicação satisfatória. Alguem poderia apontar para a falácia óbvia de
interpretação da antiguidade através de um modelo anacrônico derivado da experiência
contemporânea, mas isso não é o bastante para uma explicação: alguns modernistas
estavam caminhando muito próximos de reconhecer os pressupostos falaciosos,
mantendo, ao mesmo tempo, as vantagens de sua abordagem.199 Por outro lado, é claro
que em outros campos da história, a derrota do modernismo não levou à extinção dos
aspectos positivos identificados com a segunda corrente. Para a história medieval, a
consideração modernista de Pirenne foi certamente superada;200 mas ela foi sucedida
por abordagens que mantiveram suas características positivas (tais como as abordagens
dos Annales); o contraste com o estudo da história antiga é mais do que impressionante.
Uma razão de óbvia importância que eu posso apresentar é a destruição da tradição
alemã na história antiga pelos efeitos da ascensão nazista. Não pode ser uma questão de
acaso que, em contraste com o período pré-Segunda Guerra Mundial, os mais
importantes avanços na história antiga, no pós-guerra, venham da Inglaterra e França (e
dos EUA), para a quase total ausência da Alemanha.201

197
Myres 1927, 1930, 1953a, 1953b.
198
Ver Blakeway 1932/3 e, especialmente, Dunbabin 1948.
199
Por exemplo Gomme 1937; ver os comentário de Nafissi 2005: 218–19.
200
Pirenne 1927.
201
Ver Bowersock 1984; Christ 1999.

48
Não foi senão no período pós-guerra que o conceito de pólis finalmente reinou
inconteste em todos os campos da história grega antiga. A "escola de Paris" fez da pólis
o princípio organizador da vida religiosa e cultural grega;202 Moses Finley introduziu a
distinção categórica entre as sociedades micênicas redistributivas, a Idade das Trevas e
a idade da pólis203 e fez da pólis uma noção chave para a história econômica e social
antiga;204 e a indicação da pólis como a forma canônica do estado grego, por Victor
Ehrenberg no pré-guerra, agora reinava incontestável.205 Estes são os contextos de
discussão da história antiga grega que ainda prevalecem. Vejamos então quais são as
principais características do consenso pós-guerra.
Um dos aspectos mais interessantes deste período é o abandono das histórias
abrangentes e em grande escala da Grécia. Nenhuma figura importante na história
antiga no pós-guerra tentou escrever uma história tão abrangente; aquelas histórias da
Grécia que foram escritas através de nossa época, como as de N. G. L. Hammond ou H.
Bengtson206 carecem da visão de conjunto da história, a originalidade e a influência de
seus antecessores.207 Seria uma resposta muito parcial argumentar que o crescimento
das evidências e literatura tornou a escrita de tais obras, por um único autor, impossível;
pessoas com as capacidades intelectuais de Finley, Momigliano ou Ste Croix eram
certamente capazes de fazê-lo se o tivessem desejado.208 Eu sugiro que o principal
motivo tenha sido o abandono da abordagem modernista: já que a tentativa modernista
de incorporar a história política, econômica e social em uma narrativa dinâmica foi
considerada um fracasso, a maioria dos historiadores da antiguidade voltaram-se para as
abordagens defendidas pela primeira corrente do período pré-guerra. Esta decisão
deixou o espaço aberto para a sobrevivência de uma história política positivista, em
grande medida separada das considerações econômicas e dos aspectos sociais.209
Por outro lado, as ligações entre a história grega e a história do Oriente Próximo
estavam agora cortados. Apesar do fato de que o Orientalismo já era forte desde a
concepção da história da Grécia, ainda havia uma janela deixada aberta para inter-
relações, desenvolvimentos paralelos e influências. Enquanto na era de Eduard Meyer a
rápida descoberta de novos textos cuneiformes e os grandes progressos em sua
decifração e estudo levaram à obras como as monumentais Geschichte des Altertums,
agora, a falta de interesse era quase completa. Os historiadores da antiguidade perderam
o contato com os desenvolvimentos dentro do campo de Estudos do Oriente Próximo. A
concepção de Meyer de uma história da antiguidade fundamentalmente unitária foi

202
Exemplos característicos: Vernant 1962; Berard 1984; Bruit Zaidman e Schmitt Pantel 1992.
203
Finley 1957/8.
204
Finley 1973b: 123–49, 1977, 1985a.
205
Ehrenberg 1960. É desconcertante descobrir que não foi antes de Ehrenberg 1937 que ocorreu a
alguém levantar a questão "Quando surgiu a pólis grega ”
206
Bengtson 1950; Hammond 1959.
207
Embora possa ser o caso que, como Robin Osborne apontou para mim, essa situação reflita uma
tendência mais geral de abandonar as narrativas em larga escala em todos os campos da historiografia do
pós-guerra, ver Furet 1984.
208
De fato, Finley tentou fazer isso, mas abandonou o plano, ver Shaw 1993.
209
Esta ainda é a abordagem predominante em, por exemplo, Hornblower 2002; Rhodes 2006.

49
agora decisivamente apagada por uma nova concepção Eurocêntrica da antiguidade
Greco-Romana.210
A decifração dos textos em Linear B abriu uma forma fundamentalmente nova
de abordagem das comunidades micênicas. Alguém poderia imaginar que as tentativas
anteriores de conceber essas comunidades em suas multiplicidades e multiformidades e
em sua variedade de relacionamentos com as comunidades gregas posteriores poderia
atrair o interesse de um grande número de historiadores da antiguidade, e na verdade,
aqui, pela primeira vez a oportunidade de lidar com fontes arquivísticas foi aberta a
estes historiadores. Contudo, ao em vez disso, os textos em Linear B foram
completamente e sem contestação abandonados às mãos dos filólogos.211 O resultado foi
antecipado por Beloch:

A diferença entre o tratamento filológico e o tratamento


histórico da história pode ser definida da seguinte forma: O
filólogo relaciona apenas o que está nas fontes e o que está mais
próximo possível de uma ligação com elas; o historiador
examina seu material, preenche as lacunas da tradição através de
conclusões, e procura sempre ir além dos eventos, a fim de
chegar às suas causas; o filólogo, enquanto tal, é incapaz de
fazê-lo.212

A quarta característica é o abandono de qualquer utilização do material


arqueológico: os esforços pioneiros de Rostovtzeff na década de 1930 não encontraram
sucessores.213 Assim, o desenvolvimento de novas formas de se estudar a cultura
material foi deixada para os arqueólogos, enquanto os historiadores da antiguidade
diligentemente se abstiveram; ainda hoje, e depois de três décadas de intensas pesquisas,
de maneira geral, seus resultados ainda não foram incorporados à narrativa da história
grega em sentido amplo. Os modelos imóveis e homogeneizadores da pólis, que
proliferaram neste período, fizeram com que o quadro variável e regionalmente
diversificado de evidências arqueológicas parecesse irrelevante. Uma última
característica é o abandono da geografia histórica. Os últimos estudos importantes
datam da década de 1950: o que vemos em seguida é a triste história do divórcio entre a
história antiga e a geografia/topografia, exceto na esfera tradicional da histoire
évènementielle.

210
Nafissi 2005: 225–9, 237–43.
211
Finley foi o único historiador a entrar no debate, mas deixou o campo cedo, depois de conseguir
estabelecer o que acabaria por se tornar a abordagem ortodoxa, ver Finley 1957/8.
212
Beloch 1913: 15.
213
É preciso fazer uma exceção para Dunbabin 1948, um trabalho escrito, claro, antes da Segunda Guerra
Mundial. Mas a sua morte precoce levou ao abandono definitivo deste tipo de abordagem. Robin Osborne
me apontou como a morte precoce de muitos arqueólogos-historiadores britânicos, tais como Dunbabin e
Blakeway, antes e depois da Segunda Guerra Mundial, abortou desenvolvimentos que poderiam ter
ocorrido décadas mais cedo do que efetivamente se deram.

50
Podemos definir uma série de elementos comuns por trás dos contextos que
revisamos acima.

A pólis como uma entidade unitária

A primeira e mais importante característica da nova abordagem é a retenção da


noção de pólis como uma entidade unitária e do fator unificador por trás da história
grega. Em vez da imagem multinível e multiforme dos modernistas, a pólis se torna o
princípio organizador da história grega. Dessa vez, não no sentido de Fustel, mas ainda
com pressupostos bastante semelhantes: a pólis é considerada como uma entidade que
pode ser definida em um caminho absoluto, ainda que discutível.214 A enorme
diversidade de comunidades e instituições gregas é tratada como variação, ou exceção,
ao padrão comum, enquanto qualquer outra coisa que não possa ser acomodada dentro
desse esquema é considerada como uma sobrevivência ou uma forma anterior. Nas
palavras de Austin e Vidal- aque ‘ econheci amen e if cil efinir cri rios que
atendam igualmente à pólis arcaica, clássica e pós-cl ssica ’215 Precisamente. Mas o
pressuposto é de que precisa haver uma entidade para este nome e o único problema é
encontrar os critérios corretos para defini-la. Portanto, a pólis é a forma do estado
grego, em contraste com o ethnos ou a monarquia territorial; a pólis é a forma da
economia grega, sob a forma de cidade consumidora, em contraste com a cidade
produtora medieval; a pólis é a forma do estado e da sociedade grega clássica, em
contraste tanto com as formas anteriores (as sociedades e estados micênicos) quanto
com as formas contemporâneas (os estados e sociedades orientais). Além do mais, esta
entidade é percebida de forma orgânica: ela tem uma emergência, um apogeu e um
declínio e queda. A percepção da pólis como uma entidade unitária tem levado a
conclusões surpreendentes: Nicole Loraux foi tão longe que chegou a argumentar que a
pólis pode pensar a si mesma e sobre si mesma, como se fosse uma pessoa individual.216

A pólis como uma característica distintiva grega

A pólis é percebida como a forma grega de estado, sociedade e economia. Neste


sentido, ela tem servido para criar uma história nacional para os gregos, diferenciando-
os dos outros grupos étnicos contemporâneos. Em particular, tem servido a finalidade
de diferenciar e se divorciar da história da Grécia (diferenciar e divorciar a história da
Grécia), a história primitiva ocidental europeia (a história primitiva da Europa
ocidental), a (da) história do Oriente Próximo. De acordo com a nova conceituação, o
surgimento da pólis no período arcaico criou um fosso intransponível com a situação no
Oriente Próximo. A incorporação dos camponeses ao grupo dos cidadãos criou uma

214
Ver a exaustiva coleção de definições em Sakellariou 1989: 27-154.
215
Austin e Vidal-Naquet 1972: 51.
216
Loraux 1991: 34.

51
forma fundamentalmente nova de comunidades políticas e uma quase total dicotomia
entre livres e escravos, em contraste com o espectro dos status no Oriente Próximo.217
Finalmente, as sociedades do Oriente Próximo eram economias redistributivas, onde a
vida econômica era controlada pelas instituições gêmeas do templo e do palácio,
enquanto a pólis grega era um tipo de sociedade, onde a propriedade e iniciativa
privadas eram as características chave.218 Houve uma controvérsia sobre o papel da
reciprocidade, da troca e motivos não-econômicos na pólis grega, mas, em todo caso, a
situação era completamente diferente do Oriente Próximo. Moses Finley refletia a forma
de pensar de um número considerável de seus colegas, quando declarou que o conceito
de liberdade era impossível de traduzir em qualquer idioma oriental;219 para ele, as
sociedades com fortes figuras monárquicas à cabeça do Estado conheceram apenas o
governo de antecamara.220

A pólis como um estágio na história grega

A pólis é vista como um estágio da história grega porque possuía uma


fundamental unidade de substância. Nas considerações ortodoxas da história grega, o
discurso é algo assim: História grega começa com as sociedades micênicas. Mas este foi
um falso início.221 Estas eram economias redistributivas, controladas por um monarca e
sua burocracia palaciana. Estas sociedades eram semelhantes a aquelas do Oriente
Próximo.222 Portanto, para se tornar a ancestral do Ocidente, tem que haver um fosso
intransponível na história grega: somente se os reinos redistributivos fossem
completamente destruídos e desmantelados as sociedades gregas posteriores das pólis
poderiam emergir, dominados pelas relações de cidadania, pela regra do direito, da
iniciativa e propriedade privada etc.223 Esta catástrofe tem sido imaginada como
refletida na destruição dos 'palácios' micênicos e na Idade das Trevas que se seguiu,
embora tenha sido impossível oferecer uma explicação satisfatória para esta catástrofe e
que a grande maioria dos estudiosos nas últimas três décadas tenham recuado a um
agnosticismo seguro. O período entre o colapso dos palácios, convencionalmente
estabelecido em 1200 AEC e o oitavo século AEC é visto como a "Idade das Trevas",
onde as origens da pólis tem sido traçadas em diferentes períodos e lugares por
diferentes autores com diferentes objetivos em mente.224
Em geral, porém, ao menos a partir do sétimo século, a pólis está destinada a ser
a forma organizacional primária da história grega nos períodos arcaico e clássico.225 Nas

217
Finley 1981a: 127–32.
218
Polanyi et al. 1957: 12–26; Finley 1973b: 27–9.
219
Finley 1973b: 28.
220
Finley 1981b: 22–3.
221
Vidal-Naquet 1990b: 19–64.
222
Finley 1957/8.
223
Vernant 1962.
224
Ver o exaustivo levantamento em Sakellariou 1989: 293-333.
225
Austin e Vidal-Naquet 1972: 63–177.

52
margens deste mundo existem alguns resíduos do estágio anterior; estes são os ethnê,
comunidades que têm sido conceitualizadas como sobrevivências tribais em um mundo
de pólis. Mas o futuro pertence a esses sobreviventes, já que a partir do final do período
clássico e com o declínio da pólis eles se tornam as forças dominantes, quer sob a forma
de monarquias (Macedonia), ou na forma de confederações (Etólia, Acaia).226
Finalmente, a vinda de Roma assinala a unificação gradual do mundo grego sob o
domínio de um único poder.227
O discurso sobre o "declínio da pólis" tornou-se um tema de debates acalorados:
uma série de trabalhos foi publicada ainda nas décadas de 1960 e 1970, vendo o quarto
século como a idade do declínio da pólis e tentando identificar as suas causas.228 Mas a
partir do final da década de 1970 esse discurso quase desapareceu.229 Não é prontamente
aparente por que isso acontecia; um dos motivos foi, naturalmente, a percepção de que
havia uma forte continuidade em muitos aspectos da pólis nos períodos helenístico e
romano.230 O livro de A.H.M. Jones sobre A Cidade Grega de Alexandre a Justiniano231
foi um dos primeiros defensores de tal visão, e a descoberta no pós-guerra da
antiguidade tardia acentuou isto ainda mais. Especialistas compreenderam
progressivamente que é impossível pensar a morte da pólis na sequência de Queronéia;
a administração interna e a vida das comunidades gregas continuaram com mudanças
limitadas do período clássico à antiguidade tardia.232 Tornou-se evidente que os
diferentes aspectos da vida economica, social e política das pólis tinham seguido
caminhos diferentes e, portanto, a narrativa homogeneizante do "declínio da pólis"
estava errada em supor que todas as variáveis se transformaram da mesma forma.
Porém, é um claro exemplo da potência de paradigmas que não tenha havido um
abandono correspondente do discurso gêmeo da "emergência da pólis".233

A pólis como uma entidade isolada

A pólis é pensada em termos individuais. Nós não falamos de "a ascensão das
pólis", mas da "ascensão da pólis".234 A pólis não é pensada como parte de um sistema
dinâmico de interrelações e interações econômicas, sociais e políticas, mas como uma
forma per se. O resultado é o descarte do lugar das pólis gregas no espaço e no tempo.
As configurações específicas, temporal e espacial, destas comunidades não têm a sua

226
Larsen 1968.
227
Este é o esquema geral, por exemplo, em Ehrenberg 1960.
228
Mossé 1962; Welskopf 1974; Will et al. 1975: 189–244.
229
Ver agora Eder 1995. Significativamente para as mudanças na tendência acadêmica, Ober 1989 tentou
explicar o que percebeu como a ausência de crise no quarto século ateniense! Basta comparar com Mossé
1962, menos de trinta anos antes.
230
Ver a questão da política: Rhodes e Lewis 1997.
231
Jones 1940.
232
Ver os argumentos de Gauthier 1985: 1-6. Sobre continuidade do autogoverno, ver Dmitriev 2005.
233
Polignac de 1984; Morris 1987; Mitchell e Rhodes 1997. Mas ver agora os comentários de Polignac
1995.
234
Ehrenberg 1937; Raaflaub 1993a; Snodgrass 1993.

53
devida ênfase. Isso também se deve à concepção de história grega em termos nacionais.
A pólis tem substituído o Estado nacional, que os historiadores usariam em se
tratando de períodos posteriores. Já temos visto como essa concepção em termos de
história nacional tem excluído a grande maioria das comunidades gregas da história da
Grécia. Agora, a exclusão foi reforçada ainda mais. Se podemos ver a pólis como uma
unidade auto-suficiente de análise, então qual é a necessidade de prestarmos alguma
atenção à vasta maioria das comunidades gregas, cuja história econômica, social e
política só é escassamente preservada, e que só aparecem de forma aleatória nos relatos
predominantes nas Hellênika em se tratando dos conflitos das "grandes potências"?235
Esta é a razão pela qual Finley veio rejeitar a história local;236 no âmbito da
abordagem da pólis, história local, na maioria dos casos, não pode ser nada mais do que
antiquarismo do "contar tudo o que sabe sobre x". A incapacidade e falta de vontade de
ambos, arqueólogos e historiadores da antiguidade, para integrar os resultados das
pesquisas dentro de uma narrativa da história econômica, social e política das
comunidades gregas é outro sinal desta abordagem. Um bom exemplo é um dos livros
de maior sucesso sobre a Grécia clássica por Simon Hornblower.237 O sucesso do livro
se deve em parte ao fato de que o autor decidiu levar em conta todo o conjunto de
comunidades gregas por todo o Mediterrâneo, e prestar a atenção às evidências vindas
do Oriente. No entanto, as várias comunidades gregas da Grécia continental, Magna
Grécia, África e Ásia Menor são tratadas em capítulos separados, desconectadas da
narrativa principal, que se centra, como sempre, em compromissos políticos e militares
en re as “grandes pólis” au or parece n o er meios e conec ar os ois rela os e
nesse sentido, a semelhança com o manual de Heeren do início do século XIX,
mencionado anteriormente, é ainda mais notável.
Esta concepção da pólis como uma forma isolada per se está conectada com uma
nova percepção da sua função econômica, social e política. Em termos econômicos, a
pólis é agora concebida como uma cidade consumidora.238 Em contraste com a cidade
medieval, que é uma cidade produtora, a pólis não depende da manufatura e do
comércio para a sua manutenção; ao contrário, é o local de residência para os
proprietários de terras, e é mantida por arrendamentos e impostos. A concepção da pólis
como simplesmente o lugar de residência do Ackerbürger, envolvido na estratégia de
auto-suficiência do oikos, mina qualquer tentativa de olhar para as interrelações entre as
comunidades. Cada pólis é um mundo independente, auto-suficiente. A crença em uma
economia antiga estática e imutável, com os camponeses visando à autarquia e as elites
objetivando consumo e status, cria um abismo entre uma história econômica e social,
que trata unicamente certas características estruturais e imutáveis, e uma história

235
Caracteristicamente, Finley 1970 ou fala sobre a Grécia arcaica em geral, ou lida apenas com Atenas e
Esparta. Não há nenhuma tentativa de ver a interação entre as comunidades e o amplo sistema em que
participam. Contraste com Osborne 1996b.
236
Finley 1985d: 61.
237
Hornblower 1983, 2002.
238
Finley 1977.

54
política que reproduz e complementa Tucídides.239 A maioria das considerações
historiográficas sobre o período clássico grego ainda continuam narrando os
acontecimentos políticos da boa e velha maneira, limitando o desenvolvimento
economico e social a um único capítulo separado, além disso, esse desenvolvimento não
parece desempenhar qualquer papel na narrativa política.240
O mesmo quadro tem implicações para a pólis como uma unidade social de
análise. Se retratamos a pólis como o resultado exclusivo das lutas sociais entre
proprietários de terras e camponeses no período arcaico, então se torna impossível
explicar por que foi apenas na Grécia que tal tipo de sociedade supostamente emergiu,
enquanto os camponeses nas sociedades contemporâneas do Oriente Próximo, ou em
qualquer outra sociedade na Antiguidade, na verdade, não conseguiram ter sucesso.241 É
igualmente impossível compreender a diferenciação regional: os defensores da
abordagem anti-modernista predominante não tentaram explicar o que está por trás dela.
O que faz da Pellene acaia parte de um ethnos, enquanto a vizinha Sícion é uma cidade-
estado? O que faz com que Creta e Eubeia, sociedades na vanguarda do
desenvolvimento no período geométrico e início do arcaico, recuem para a margem da
história no período clássico?242
Finalmente, a concepção da pólis como unidade social de análise cria uma
imagem estruturalista das polaridades não misturadas e imutáveis: entre a pólis e a
aristocracia,243 entre o cidadão e o meteco, entre o cidadão hoplita e o mercenário,244 e
assim por diante.245 O entendimento da pólis como uma unidade auto-suficiente de
análise torna impossível de explicar as mudanças e transformações de qualquer outra
forma que não a de invocar as imagens familiares de nascimento, apogeu e queda: o
mercenário sendo a evidência do declínio e da crise das instituições da pólis, etc.246
A concepção da pólis como uma unidade auto-suficiente produz os mesmos
resultados no exame de sua forma política. A abordagem tradicional tem sido a de que a
pólis está fundamentalmente conectada à noção de autonomia. A pólis pode existir
apenas como uma comunidade soberana e auto-governada. Portanto, para gerações de
estudiosos a derrota de Queronéia marcou o fim da pólis grega; de acordo com uma
abordagem ainda mais antiga, o fim da história grega em si.

Não há como escapar da evidência: o quarto século foi o


momento em que a pólis grega declinou, de forma desigual, com

239
Esta é a postura característica de Finley 1973b. Em sua análise da economia antiga não há um único
fator de mudança como, por exemplo, demografia ou comércio. Toda a antiguidade é simplesmente a
estrutura homogénea da economia antiga.
240
Atitude ainda prevalecente em Osborne 2000.
241
Finley 1981a: 127–8, 162–6.
242
Para Creta, ver agora Ericson 2005.
243
Dois sistemas morais concorrentes foram envolvidos: um arcaico e pré-político (o sistema da
hospitalidade aristocrática), e outro decorrente da estrutura da pólis (as obrigações para com a pólis);
Herman 1987: 3.
244
Austin e Vidal-Naquet 1972: 157–9.
245
Uma boa crítica dessas abordagens em Hammer 2004.
246
Ver, por exemplo, Marinovic 1988.

55
sopros de recuperação e momentos heróicos de luta para salvar a
si mesma, para se tornar, depois de Alexandre, uma pólis falsa,
em que a preservação de muitas formas externas de vida poliade
não conseguia esconder que doravante os gregos viviam, nas
palavras de Clemenceau, "na paz da decadência, aceitando toda
sorte de servidão como elas viessem.247

Comunidades que não possuem autonomia e soberania, como as comunidades


periecas de Esparta, foram tratadas pelos estudiosos modernos como pólis apenas no
nome, apesar do fato de terem sido reconhecidas como pólis na antiguidade.
A questão das diferentes formas de organização política na Grécia antiga tem
sido retratada da mesma forma. A tradicional dicotomia exclusiva é entre a pólis e os
ethnos, enquanto que os ethnos são geralmente entendidos como uma sobrevivência
tribal da Idade das Trevas, com a população vivendo em aldeias dispersas e sem centros
urbanos.248 Além disso, a unidade política não era o assentamento com o seu território,
como na pólis, mas uma região inteira unida sob uma única organização política; esta
unidade é pensada usualmente como devida à afinidade tribal e a religião comum,
geralmente adoração de uma divindade tribal em um centro religioso comum. Se vemos
a pólis como uma entidade auto-suficiente, então ela só pode ser vista como autônoma
ou não ser uma pólis verdadeira; ou é uma pólis, ou parte de um ethnos atrasado. As
complexas relações intercomunitárias de colaboração econômica, social e política,
interdependência e dominação são simplesmente perdidas: elas são substituídas por uma
abordagem estática e, portanto, evolutiva.
A emergência da abordagem da pólis foi acompanhada por um corte completo
das ligações entre a história antiga e outros ramos da disciplina histórica. Até este
período, historiadores da Antiguidade não só partilhavam dos quadros gerais de
interpretação e dos exercícios intelectuais de sua disciplina, mas muitas vezes eles
estavam na vanguarda de novos desenvolvimentos. Beloch foi o inventor da demografia
histórica; Meyer criou, praticamente sozinho, a abordagem histórica do antigo Oriente
Próximo; Rostovtzeff mostrou um uso pioneiro da cultura material para a síntese
histórica. Quando Henri Berr e a escola dos Annales reagiram contra a histoire
évènementielle e a dominação da história política, não eram certamente esses
historiadores da Antiguidade que tinham em mente,249 na verdade, os historiadores da
Antiguidade já estavam à frente em termos destes desenvolvimentos pelo menos uma
geração.
Contudo, a reação justificada contra seus pressupostos modernistas tomou a
forma de um olhar para trás ao invés de um olhar para a frente. O período pós-guerra foi
caracterizado pela emergência de novas formas e novas escolas de história: a escola dos
Annales de história social e econômica e social e a história das mentalités; o grupo Past
and Present e a história de baixo; a história do discurso político de Cambridge e a

247
Finley 1963b: 90–1.
248
Ehrenberg 1960: 24–7; Austin e Vidal-Naquet 1972: 92–6.
249
Dosse 1994: 7–36.

56
Begriffsgeschichte alemã; a teoria dos sistemas-mundo e a história mundial; a
antropologia histórica, a demografia histórica e a história da cultura material; isto para
não mencionar os Subalterns Studies indianos, a microhistória italiana e a
Alltagsgeschichte. É difícil perceber em que a história antiga contribuiu per se para a
totalidade da disciplina histórica no período pós-guerra;250 e também não é possível
conceber as conexões e projetos dos historiadores da antiguidade nos termos das
conexões e projetos dos seus demais colegas.251 Em certa medida, isto se deve à
predominância de historiadores anglo-saxões: o estudo tradicional de história antiga em
departamentos de estudos clássicos ao invés de História, significava que os
historiadores da antiguidade na Inglaterra e, em certa medida, na América não
estabeleceram meios de comunicação com seus colegas historiadores. Contudo, isto não
se aplica à Alemanha, onde podemos falar claramente de um retrocesso na posição da
história antiga, comparada com a situação anterior à Segunda Guerra Mundial. Mas isso
também não explica casos como os de Finley e Ste. Croix, que tinham um
conhecimento profundo e contato com o trabalho dos historiadores em outros
campos.252
Acredito e espero que irei também mostrar no restante deste trabalho que esta
segregação é reforçada antes pela predominância da abordagem da pólis no pós-
guerra.253 Disto se segue que se utilizamos os insights e resultados do resto de nossos
colegas das últimas cinco décadas, descobriremos porque temos que abandonar a
abordagem da pólis; e que a menos que o façamos, a segregação persistirá.
Penso que a melhor analogia para entender essa situação é provida pelo
comentário de Peter Burke sobre Ranke.254 Ele argumentou que a revolução rankeana
tratava-se, de fato, de uma contra-revolução confrontando a nova história do século
XVIII, que tentava aumentar o campo da história para lidar com assuntos sociais,
econômicos e culturais. Embora a nova abordagem de Ranke sobre as fontes tenha
trazido uma enorme mudança às práticas históricas, o foco em arquivos públicos
restringiu novamente a história política e a histoire évènementielle. A nova história dos
Annales e outros grupos similares do século XX tiveram que começar de novo de onde
o movimento anterior havia parado; e para fazê-lo, a nova história tinha que não apenas
250
A diferença pode ser percebida claramente se comparamos o grande espaço dedicado à história antiga
e seus historiadores em Gooch 1913 referindo-se aos historiadores do século XIX, e a ausência total de
historiadores da antiguidade no cômputo de Iggers 1984 sobre a historiografia europeia do pos-guerra.
251
Há exceções a esta afirmação, certamente. Alguns historiadores franceses da antiguidade efetivamente
participaram do movimento dos Annales, embora apenas no que se refere à história intelectual, e não à
história econômica e social (P. Vidal-Naquet, N. Detienne); e o trabalho de C. Meier e K. Raaflaub tem
fortes ligações com a Begriffsgeschichte. O que é impressionante é a ausência desses elos na tradição
acadêmica anglo-saxã predominante.
252
A. H. N. Jones trabalhou no comitê da Past and Present, enquanto Finley editava volumes para suas
séries. Mas nenhum dos dois pode ser pensado como oferecendo ou ganhando algo crucial a partir da
perspectiva da Past and Present. Ste. Croix inspirou-se mais no próprio Marx do que no trabalho dos
historiadores marxistas da Past and Present que trabalhavam em outros campos.
253
O que explica parcialmente porque a segregação entre história antiga e história é menor no caso da
história romana onde o império cria uma perspectiva pan-mediterrânea mais vasta: os trabalhos de
Hopkins 1978 e Scheidel 1996 sobre demografia histórica são bons exemplos.
254
Burke 1990

57
utilizar novos m o os rankeanos mas ain a que “in en ar” no as fon es para a his ria
social, econômica e cultural, para além daquelas dos arquivos diplomáticos.
cre i o que e emos er a his ria an iga so uma lu similar “re olu o
finleyana”foi um impor an e avanço em termos de rigor metodológico e auto-reflexão
teórica.255 Finley começou um ataque intransigente ao positivismo e ao culto aos
números, a qualquer abordagem que acreditasse que a evidência fala por si mesma;256
várias vezes ele enfatizou o papel ativo do historiador como intérprete e a importância
das suas visões e padrões implícitos na determinação de sua abordagem histórica; ele
reconheceu a importância da metodologia histórica257 e foi pioneiro ao introduzir a
construção de modelos em história antiga.258
Todas essas contribuições foram fundamentais para o estudo da história antiga e
apesar das duras críticas que este trabalho faz a Finley em diversos assuntos, acredito
firmemente que em termos de metodologia da história ele (este trabalho) pertence à
tradição finleyana. Por outro lado, em muitos outros assuntos, a abordagem de Finley à
história grega foi uma contra revolução e um passo atrás a partir das narrativas
dinâmicas que os historiadores modernistas como Meyer, Beloch e Rostovtzeff estavam
tentando escrever. Os seus pressupostos modernistas equivocados eram certamante
fatais para a sobrevivência de sua abordagem; mas em termos da história dinâmica que
tentaram escrever, ainda precisamos começar novamente de onde eles pararam,
mantendo ao mesmo tempo e aplican o os e ganhos a “re olu o finleyana”
(mantendo e aplicando ao mesmo tempo as ideias OU visões OU percepções e ganhos
a “re olu o finleyana”

EM DIREÇÃO A UMA ALTERNATIVA: DESDOBRAMENTOS RECENTES A


PARTIR DA DÉCADA DE 1980.

A abordagem da história grega mediada pela pólis, como apresentada acima, foi
construída principalmente entre os anos 1960 e 1970 e permaneceu a abordagem
predominante nos anos 1980 e 1990.259 Nenhuma outra abordagem alternativa de
conjunto entrou em cena nas últimas duas décadas; em larga medida, as grandes
questões e as grandes explicações tem sido abandonadas e a maior parte dos
especialistas voltou sua atenção para problemas marginais que foram deixados
inexplorados, ou para novas áreas de pesquisa. Alguns ainda aceitam a ortodoxia da
pólis sem hesitação enquanto produzem trabalhos revolucionários que podem
potencialmente destruí-la;260 outros tem uma variedade de acordos e desacordos com a
ortodoxia e tentaram apresentar abordagem diferentes.261

255
Finley 1985d foi e permanece um marco.
256
Finley 1982, 1985c.
257
Finley 1963a.
258
Finley 1977, 1985a.
259
Ver, por exemplo, Polignac 1984; Herman 1987; Murray Price 1990; Seaford 1994.
260
Morris 1987; Snodgrass 1990.
261
Osborne 1991a; Davies 1998.

58
Há uma exceção que constitui um quadro alternativo do qual tirei muito
proveito. Refiro-me, certamente, à abordagem adotada por Nicholas Purcell e Peregrine
Horden.262 Eu concordo plenamente com sua abordagem e, como ficará obvio para o
leitor, minha própria agenda foi bastante influenciada por seus argumentos. Em certo
sentido, esse trabalho é uma tentativa de focalizar e estender a sua abordagem: focalizar,
quer dizer, ao invés de observar a história do mediterrâneo como um todo, assim como
eles fazem, observo a história do Egeu a partir de uma perspectiva mediterrânea e
próximo-oriental; estender, isto é, tento aplicar uma metodologia similar a questões que
não são cobertas por seu livro como a política. Meus principais desacordos vem dessas
diferenças entre focalizar e estender.
Mas é suficientemente claro que a principal inspiração para o Corrupting Sea
não tem origem no campo da história antiga; de fato, é o trabalho de Fernand Braudel,
cuja influência na história antiga tem sido mínima até os nossos dias.263 É impossível
apresentar aqui um balanço historiográfico de sua influência.264 A relevância de seu
trabalho será apresentada em pontos capitais deste livro. Ao invés disso, o que tentarei
fazer nas próximas poucas páginas é apresentar um certo número de abordagens que se
desenvolveram nas últimas duas décadas no âmbito da história antiga; essas abordagens,
apesar de não desafiarem a ortodoxia corrente em sua totalidade, tem sido contudo de
grande importância para a realização de uma tal tarefa. A esse respeito, é obvio que o
meu balanço das últimas duas décadas é despudoradamente Whig.*
A contribuição mais importante veio através do projeto coletivo do Copenhagen
Pólis Centre (CPC), fundado por M.H. Hansen no começo da década de 1990. Hansen,
seus colaboradores e muitos financiadores das várias conferências organizadas pelo
CPC produziram um inventário de póleis gregas nos períodos arcaico e clássico.265 Para
conseguir esse resultado, eles tentaram traçar um certo número de indícios de
“polisnismos” pólis-ness), enfatizando a maneira como os gregos antigos percebiam as
pólis antigas reais, e não os critérios normativos modernos. Nesse sentido, seu objeto é
claramente positivista e anti-teórico; ainda assim, a partir da magnitude da sua
investigação266 e da sua insistência saudável na primazia e importância das percepções
nativas, um certo número de conclusões muito importantes emergiu.267 Assaz
paradoxalmente, embora o CPC tenha se caracterizado por uma metodologia fortemente
positivista e em certo sentido possa ser visto como a quintessência da abordagem

262
Horden e Purcell 2000.
263
Embora os arqueólogos gregos, ao contrário dos historiadores, tenham mostrado interesse: Bintliff
1991a; Knapp 1992; Moreland 1992.
264
Ver Kinser 1981; Wallerstein 1991: 187–226.
*
Referente ao partido Whig (N. do T.).
265
Ver Hansen and Nielsen 2004.
266
Ver Acaia: Morgan e Hall 1996; Etólia: Funke 1997; Arcadia: Nielsen e Roy 1999; Beócia: Hansen
1995d, 1996a; Calcídica: Flensted-Jensen 2000b; Creta: Perlman 1996; Elis: Roy 1997; Lacônia: Shipley
1997; Locris: Nielsen 2000.
267
A conclusão mais importante é o desmascaramento do mito da pólis autônoma; Hansen 1995b. Uma
outra questão importante é da explosão da distinção categórica entre pólis e ethnê e ainda terem mostrado
que as pólis existiram realmente em áreas de há muito consideradas como pré-pólis, como por exemplo a
Arcádia; Nielsen 2002a.

59
centrada na pólis, em seus últimos resultados ele se deslocou para uma abordagem
teoricamente mais sofisticada. Em particular, os estudos comparativos de cidades-estado
inspirados em Hansen,268 e sua tentativa de definir os parâmetros de uma cultura de
cidade estado,269 são passos positivos a frente. Portanto, ele reconheceu o fato de que a
pólis não pode ser tomada como uma entidade solitária e única, mas precisa ser situada
dentro de um quadro sistêmico mundial. O meu estudo provavelmente seria impossível
sem o trabalho empírico massivo do CPC; as minhas discordâncias são uma
consequência do CPC não levar adiante suficientemente as conclusões implícitas de sua
pesquisa.
Ao mesmo tempo, emergiu um interesse acentuado nas áreas periféricas,270
formas não-políades271 e estudos regionais272 e locais.273 Esses estudos tornaram
possível gradualmente um quadro cada vez mais equilibrado da variedade de formas
políticas sociais e económicas no mundo Egeu;274 além disso, e esta é a diferença
central em relação ao passado, eles tendem a ver as áreas periféricas e as formas não
políades a partir delas próprias e não como relíquias primitivas ou tentativas fracassadas
do status normativo da pólis.275
Igualmente importante tem sido a contribuição da arqueologia. A emergência de
prospecções intensivas e a nova arqueologia social têm um impacto potencialmente
revolucionário;276 contudo, é precisamente aqui que a perniciosa herança do passado é
particularmente sentida. Os modelos estruturalistas, estáticos, a-espaciais e atemporais
da ortodoxia corrente desencorajaram historiadores da antiguidade, com poucas
exceções, a tirar vantagem das novas perspectivas e da vasta área aberta a eles pelas
investigações da arqueologia. Na grande maioria das narrativas históricas ainda
acontece como se a revolução arqueológica nunca tivesse tido lugar. As prospecções
intensivas mudaram nossas perspectivas de três maneiras: permitindo-nos estudar áreas
e regiões para as quais as evidências escritas são escassas;277 mostrando a enorme
variedade de relações possíveis entre assentamentos e entre cidade e campo;278
finalmente, apontando a diversidade de padrões temporais em diferentes áreas e
regiões.279 Fica claro que a abordagem dominante da pólis não preparou os historiadores
da antiguidade para tais descobertas.
Em termos de estudo de cultura material, Ian Morris, em um certo número de
estudos, apontou para a formação e manutenção de agrupamentos regionais no Egeu e

268
Hansen 2000c.
269
Hansen 2000a.
270
Morgan 2003.
271
Cabanes 1976, 1983; Beck 1997.
272
Ver o trabalho de Freitag 2000 sobre o golfo de Conrínto, e Reger 1994; Brun 1996 sobre as Cíclades.
273
Salmon 1984 sobre Corínto; Shipley 1988 sobre Samos; Osborne 1985 sobre Atenas.
274
Ver os estudos de Ruschenbusch 1983, 1985; Nixon e Price 1990.
275
Gehrke 1986. Ver também os artigos em Brock e Hodkinson 2000.
276
A figura pioneira em ambos os casos é, com certeza, Anthony Snodgrass; ver Snodgrass 1980, 1990.
277
Jameson et al. 1994.
278
Osborne 1987: 113–36.
279
Alcock 1993.

60
na Grécia central da Idade das Trevas até o período clássico. 280 Tendo definido quatro
grupos (Grécia central e o Egeu, Grécia ocidental, Grécia do norte e Creta), argumentou
que os processos sociais, econômicos e políticos são articulados de modos diversos ou
contrastantes em cada região; que as transformações ocorrem em cada área com ritmos,
direções e resultados diferentes; e as novas comunidades medianas do período arcaico
são particularmente fortes e presentes na sua região central e no Egeu. A validade de seu
esquema para as finalidades da nossa abordagem não podem ser suficientemente
enfatizadas.
Finalmente, é importante destacar a contribuição dos especialistas franceses e
italianos.281 Preciso começar pontuando o interesse muito maior na história da
historiografia entre os especialista italianos e franceses; 282 apesar da presença de
Arnaldo Momigliano, de modo geral os especialistas anglo-saxônicos demonstraram um
mínimo interesse nessas questões ao longo dos anos.283 A escola de Paris teve, é claro,
um papel pioneiro ao reforçar a abordagem centrada na pólis no estudo da história
antiga. Mas é interessante notar que durante os anos 1990 alguns dos membros mais
importantes da escola chegaram a desafiar alguns de suas premissas fundamentais a
partir de uma variedade de ponto de vista. Nicole Loraux argumentou que os postulados
estruturalistas e funcionalistas do estudo antropológico da pólis acabavam por
homogeneizar e excluir o conflito de sua compreensão;284 enquanto Marcel Detienne
defendeu o caminho da história comparada a fim de desafiar alguns dos postulados não
verificados que aceitamos em história antiga.285 Por outro lado, é importante observar
que a ortodoxia finleyana nunca entrou na França sem desafio; a maioria das criticas
estimulantes ao modelo da cidade consumidora vieram de fato dos especialistas
franceses.286 A influência de tradições históricas alternativas foi muito forte aqui; foi a
influência de Braudel que tornou os especialistas franceses muitos mais abertos às
abordagens da história grega em termos de mediterrâneo.287
Os especialista franceses e italianos tem sido muito mais alertas ao papel do
passo na história do que seu colegas anglo-saxônicos;288 a geografia histórica289 e o
estudo das relações entre comunidade e território foram duas de suas contribuições mais

280
Morris 1997b, 1998b, 2000.
281
Devo à Nicholas Purcell a ênfase em abordagens italianas específicas concernentes à história antiga.
282
Ver Cambiano 1984a, 1984b; Canfora 1987; Hartog 1988b; di Donato 1990; Vidal-Naquet 1995;
Ampolo 1997; Avlami 2000a. Deveríamos adicionar aqui o grande interesse entre os historiadores
alemães: Christ 1972, 1996b; Nippel 1980, 1990b; Gawantka 1985.
283
Sally Humphreys e Oswyn Murray, ambos ligados à Momigliano, são as exceções anglo-saxônicas
óbvias.
284
Loraux 1991, 2002: 45–62; de modo bastante interessante, ela faz observações sobre a concepção da
pólis por Aristóteles que são similares as abordagens que nós adotamos aqui.
285
Detienne 2000, 2005.
286
Descat 1995; Bresson 2000b.
287
Ver, por exemplo, Brun 1996; Nicolet 2000. A influência do marxismo foi forte no importante estudo
de Giardina e Schiavone 1981, raramente consultados por historiadores gregos, infelizmente.
288
Polignac 1984, que por seu lado aceita muitas premissas da concepção estruturalista da pólis, é
contudo um bom exemplo do papel mais importante das questões espaciais nos estudos franceses.
289
Leveau 1984; Rougemont 1990.

61
importantes.290 Os franceses e italianos devotaram muito mais atenção ao mundo grego
mais vasto291 e sua relação com Oriente Próximo e as culturas do Mediterrâneo
ocidental;292 eles têm sido pioneiros no estudo da urbanização293 e da divisão e
exploração do território do mundo colonial do Mediterrâneo ocidental e Mar Negro.294
Esses estudos, ao mostrarem a clara diversidade das pólis gregas, contribuíram muito
para enfraquecer o modelo dominante. O tributo final deve ser colocado: a publicação
da obra coletiva I Greci. Storia, cultura, arte, societa sob a direção de Salvatore
Settis295 foi provavelmente o trabalho mais inovador em história antiga nos últimos
anos; sua ênfase nas interações entre os gregos e os outros povos do Mediterrâneo e a
historiografia no estudo da história antiga é particularmente bem-vinda. Muitas das
abordagens adotadas nessa obra coletiva serão mais exploradas aqui.
Resumindo: a história da Grécia antiga foi formulada na era da emergência do
nacionalismo e dos estados nacionais, na era da ascensão ocidental e do imperialismo, e
da emergência do Orientalismo. Na época atual de globalização, tanto daqueles acima
quanto daqueles abaixo, os postulados do século XIX que dominaram a formação da
nossa disciplina deveriam ser revisados mais uma vez. O que deve ser feito? Esse
balanço historiográfico será seguido por três linhas de pesquisa: a primeira vai retomar a
abordagem grega da pólis e da história grega, em particular a aristotélica; argumentarei
que isso pode oferecer uma alternativa melhor à ortodoxia corrente. A segunda consiste
em uma crítica à ortodoxia atual e seu tratamento da pólis como uma entidade,
manifestada em seu Orientalismo (a pólis grega vs. despotismo oriental) e
Eurocentrismo (a cidade consumidora antiga vs. a cidade produtora europeia).
Finalmente, tento esboçar uma abordagem alternativa utilizando tanto a abordagem
aristotélica quanto a crítica histórica da ortodoxia corrente. Indo além das percepções
eurocêntricas da história grega, ofereço uma análise das pólis gregas como partes de um
système-monde dinâmico.

290
Bonias et al. 1990; Rousset 1999.
291
O anuário Convegno di studi sulla Magna Grecia tem sido uma instituição chave a esse respeito,
infelizmente muito pouco notado no meio anglo-saxônico: ver Magna Grecia; Problemi.
292
Elayi 1988; Debord 1999; Briant 2002; ver o número especial de REA 1985.
293
Greco e Torelli 1983.
294
Ver os artigos em Osanna 1992; Brunet 1999; Problemi.
295
Settis 1996, 1997, 2001.

62
CAPÍTULO 2

Os discursos antigos sobre a pólis

Já é tempo de se discutir como os antigos gregos pensavam a pólis, a fim de


observar se seus pensamentos podem comportar os usos modernos que foram
construídos a partir daí. Minha discussão estará focada na Política de Aristóteles, já que
o texto tem proporcionado a maior parte das ideias subjacentes à conceituação da pólis 1.
Aristóteles não representa a communis opinio dos antigos gregos, mas sua obra é o
único texto grego sobrevivente até os dias atuais que nos oferece um contexto de
discursos antigos sobre a pólis2. Buscarei entender o trabalho de Aristóteles em seus
próprios termos e contexto; tentarei, portanto, mostrar que muitas de suas ideias
apontam para uma direção diferente de várias pesquisas modernas e de uma visão muito
ortodoxa.
Mas existe um limite óbvio nessa tentativa. Os objetivos de Aristóteles, ou,
colocando-se em outras palavras, as pré-suposições discursivas de seu gênero, são muito
diferentes de meus objetivos e de meu próprio gênero, que é, naturalmente, a história.
Aristóteles tinha um conhecimento impressionante do passado e fez dele um uso
também impressionante, mas sua abordagem não é histórica3. Robert Nisbet, em um
livro escrito há alguns anos, mostrou a lacuna intransponível entre a visão de história e a
visão de abordagens desenvolvimentistas e evolucionistas do passado; mais ainda,
demonstrou que as premissas gerais dessas abordagens, que podem ser claramente
observadas em Aristóteles, são ainda compartilhadas pelo corpo do pensamento social e
antropológico europeu, mesmo em pleno século XX4.
A história não desempenha nenhum papel nos trabalhos de Aristóteles; de fato, o
passado é dividido em duas partes: uma é o desenrolar dos eventos (guerras, decisões
políticas, dinastias, períodos de escassez, etc.); a outra é physis, a evolução de entidades
de acordo com a sua predestinação natural5. Isso não significa que a realidade existente
seja idêntica à sua natureza; eventos acidentais podem corrompê-la, interromper seu
1
Devo muito ao trabalho de Sakellariou (1989): especialmente as páginas 214-82, cuja discussão dos
pontos de vista de Aristóteles sobre a pólis é, de longe, uma das melhores que já vi. A modesta referência
ao seu trabalho em minhas notas de rodapé não reflete a importância de sua influência.
2
A respeito do pouco que sabemos sobre ideias estoicas sobre a pólis, ver Schofield 1991; Murray 2005.
3
Sempre fiquei admirado com sua perspicaz (porém reacionária) defesa da experiência do passado, como,
por exemplo, na Política, 1264a, 1-5 “lem remo-nos de que não devemos descartar a experiência das
eras; na miríade dos anos, essas coisas, se eram boas, não teriam permanecido desconhecidas; pois quase
tudo foi descoberto, embora às vezes elas não sejam reunidas; em outros casos os homens não usam o
conhecimen o que m” er am m 1267 1-2. Utilizei-me, o mais próximo possível, da tradução de H.
Rackman da Política feita pela série Loeb, porém uma vez que fiz algumas mudanças e alterações, o
melhor seria assumir a responsabilidade por elas.
4
Nisbet 1969
5
Para a percepção de Aristóteles sobre o acidental e o necessário, ver, em particular, Metafísica, 1064b,
15-1065 4 le ei a claro seu pon o e que “uma ci ncia o aci en al n o poss el”; assim a his ria
não pode existir enquanto ciência, a não ser que seja história natural, explorando o desenrolar do
crescimento natural necessário às coisas.

63
desenvolvimento ou transformá-la de vários modos. Esses eventos acidentais do
passado são importantes para acessar a natureza real da entidade, bem como seu curso
natural. A obra de Aristóteles deve ser lida nesse sentido. Quando o autor elabora
diferenças entre a mudança natural e a não natural6, ou quando postula que uma cidade
deve ser eusynoptos7, não está implicando que os antigos gregos na verdade
menosprezassem mudanças não naturais, ou que todas as pólis gregas fossem, de fato,
eusynoptos; Aristóteles estava bem ciente de que, na realidade, as coisas eram um pouco
diferentes e ele poderia ocasionalmente providenciar argumentos excelentes do porquê
das coisas estarem desse jeito. Mas estas eram corrupções ou aberrações do curso
natural, ocupando apenas um papel secundário e incidental em sua obra8. A obra de
Aristóteles tem, de fato, dois objetivos: entender o curso natural das coisas, definindo as
condições ideais do curso natural e dar sugestões e prescrições para as realidades
existentes que direcionariam, o máximo possível, as coisas rumo ao curso natural9.
Como um historiador, minhas intenções são fundamentalmente diferentes. A
disciplina histórica no último século foi capaz de superar a divisão antiga entre a
histoire événementielle e a história natural. Assim sendo, não é possível seguir à risca
Aristóteles. Ele (e, de fato, qualquer outro autor grego) é capaz de oferecer inestimáveis
lampejos das interrelações políticas, sociais e econômicas entre comunidades gregas.
Porém, os padrões e processos que o historiador moderno estiver interessado em
reconstruir não serão sempre encontrados per se nos autores antigos devido à duas
razões: primeiro, porque processos de longue durée quase sempre escapam à atenção de
seus contemporâneos e a significância e o desfecho de muitas ações e processos só
podem ser entendidos realmente a posteriori; porém, ainda mais importante, porque as
regras discursivas e o outillage mentale dos autores antigos é bastante diferente
daqueles empregados por um historiador do século XXI.
Por outro lado, historiadores ocidentais modernos têm sido demasiadamente
confiantes de que seus próprios instrumentos de análise e conceitos são suficientes para
entender e escrever sobre as sociedades do passado, ou sociedades não-ocidentais do
presente. Os conceitos e discursos de pessoas no passado, ou de indivíduos não-
ocidentais, são tratados como fontes históricas, mas raramente como modelos de análise
igualmente válidos ou estimulantes tais como aqueles dos historiadores modernos. O
pós-colonialismo e a etno-história têm revelado até que ponto a compreensão nativa de
sua sociedade e história têm um enorme valor; têm mostrado, ainda, quão circunscritos
e etnocêntricos são muitos dos conceitos ocidentais tidos como categorias de análise
universal adotados por acadêmicos ocidentais10. Consequentemente, irei, aqui,
argumentar que historiadores modernos deveriam levar a sério as categorias de análise
de Aristóteles. Apresso-me a acrescentar que não se trata de descartar noções modernas
e utilizar-se das antigas; mas, ao contrário, consiste em um esforço para usar algumas

6
Política, 1257a–b.
7
Política, 1327a, 1–3.
8
“ as en o e emos olhar para as in en es a na ure a nas coisas que re m o seu na ural e n o nas
coisas que es o corrompi as”; Política, 1254a, 35-6.
9
Política, 1288b, 22–36.
10
Chakrabarty 2000.

64
das abordagens antigas, a fim de superar os limites dos conceitos modernos e construir
um entendimento histórico do passado. Não se trata, tampouco, de mais uma tentativa
e mos rar que “nossos an epassa os os gregos” in en aram e conce eram u o ara
além disso, o caso é o de que nossos conceitos e categorias não são necessariamente
melhores, tampouco mais naturais do que aquelas de agentes do passado; e que, às
vezes, noções de agentes históricos possuem mais valor que aquelas de nossos
contemporâneos, até mesmo para o presente. Fico feliz ainda ao notar que um
historiador da Índia tenha chegado a semelhante conclusão11.
Devo me desculpar, aqui, por ter estabelecido um diálogo direto com Aristóteles,
sem tocar em demais produções acadêmicas modernas. A razão para isso vai além de
uma simples preguiça intelectual. Boa parte dos trabalhos acadêmicos sobre filosofia
antiga está interessada em coisas muito distintas daquelas por que eu, aqui, me interesso
neste contexto; espero que seja igualmente legítimo desviar-me de todos esses
questionamentos e expor os meus próprios. Historiadores da antiguidade têm reagido a
Aristóteles de dois modos; não é surpreendente que desde Fustel em diante eles têm
estado prontos para aceitar os relatos evolucionistas de Aristóteles da emergência da
pólis e priorizar uma única das conceituações do autor a respeito da pólis, descartando
as demais. Tentarei mostrar por que alguns dos usos dos conceitos de Aristóteles estão
equivocados e quão estimulantes, para a narrativa e análise histórica, são alguns desses
outros conceitos que foram largamente ignorados.

AS DEFINIÇÕES ARISTOTÉLICAS DE PÓLIS

A identificação da pólis como uma comunidade de cidadãos possui uma


genealogia antiga. Já na poesia do período arcaico ouvimos que a pólis são os homens e
não as paredes de uma cidade12. Essa é, com efeito, uma das questões centrais da
Política de Aristóteles:

“ as a p lis um o e o compos o no mesmo sen i o os


outros objetos que são totalidades mas consistem de muitas
partes; é claro, portanto, que devemos primeiro investigar a
natureza do cidadão; pois a pólis é um plêthos de cidadãos, de
modo que temos que considerar quem é considerado cidadão e o
que um ci a o” 13

Esta é a primeira definição aristotélica da pólis em minha classificação. Os


estudiosos modernos, portanto, têm seguido esta indicação aparentemente simples das
fontes antigas; identificam a emergência da pólis com a emergência da comunidade de
cidadãos, após o declínio das monarquias redistributivas do mundo micênico e do fim

11
Inden 1990.
12
Por exemplo, Alceu, fr. 112.
13
Política, 1274b, 39 – 1275a, 1.

65
do controle exclusivo e hierárquico das aristocracias retratadas nos épicos homéricos.
Essa reconstrução esteve sempre aberta a questionamentos a partir de dois lados: a
imagem dos épicos poderia ser reinterpretada para se mostrar que a comunidade de
cidadãos já estava presente nos épicos14, mas isso é uma questão essencialmente de
cronologia e não de essências. O segundo problema é, de certa forma, mais substancial;
se a pólis foi definida como uma comunidade de cidadãos, então, é relativamente difícil
localizar o momento de declínio da pólis, dado que nessa abordagem organicista a
emergência necessitava de um correspondente declínio. Sempre esteve suficientemente
claro que pelo menos até o Império Romano tardio as pólis gregas ainda eram
comunidades de cidadãos, ainda que outros elementos possam ter, de fato, mudado
drasticamente15. O reconhecimento deste problema tem tentado a maioria dos estudiosos
a aceitar a continuidade da pólis como um fenômeno além do término do período
clássico.
Já destaquei em outros momentos os problemas criados por essa abordagem
ontológica; Aristóteles nos oferece um caminho alternativo para a conceituação da pólis
largamente ignorado16: o de sua identificação como uma forma de koinônia entendida
aqui como a segunda definição da pólis, que pode ser encontrada desde já no princípio
da Política.

Dessas duas koinôniai (isto é, masculino e feminino, senhor e


escravo), então, é composta primeiramente a casa [...] a
koinônia, portanto, que segue no curso da natureza para os
propósitos diários é a casa [...] Por outro lado, a koinônia
primária composta por várias casas para a satisfação de
necessidades que não são apenas diárias é a kômê. 17
A koinônia composta, enfim, por várias kômai é a pólis; ela
finalmente atingiu o limite da autarkeia virtualmente completa,
e assim, na medida em que veio a existir em benefício da vida,
ela existe para a boa vida. Eis que cada pólis existe por natureza,
do mesmo modo em que as primeiras konôniai assim existem; já
que a pólis é a finalidade de todas as outras koinôniai. 18

Aqui temos, portanto, uma definição teleológica da pólis como uma forma de
koinônia. Aristóteles deseja estabelecer a naturalidade da koinônia politikê ao dar a ela
um status de telos comum a toda outra forma primária de koinônia, ao oferecer a
oportunidade de alcançar a autarkeia e a boa vida. No curso dessa discussão emerge um
terceiro modo de se definir a pólis.

14
Raaflaub 1997.
15
Already Jones 1940.
16
Minha abordagem aqui possui algumas similaridades com as de Ober 1993.
17
Política, 1252b, 16–17.
18
Política, 1252b, 28–32.

66
E não apenas de uma multidão de seres humanos consiste a
pólis, ela consiste de seres humanos de tipos diferenciados; a
pólis não pode ser constituída por um conjunto de pessoas que
sejam todas semelhantes19.
Pois concordamos que toda pólis possui não apenas uma parte
(meros), mas muitas... Uma dessas partes (merê), portanto, é o
plêthos de pessoas que estão relacionadas à trophê, os assim
chamados camponeses, e em segundo lugar os banausoi, os
artesãos; a classe comercial é a terceira, a quarta é a classe dos
trabalhadores manuais e a quinta classe é aquela dos que
defendem a pólis na guerra [...] é a classe que possui um papel
na justiça, e em adição a essas, a classe deliberativa, sendo a
deliberação uma parte da inteligência política [...] A sétima
classe é aquele que oferece liturgies (serviços) à comunidade
pelos meios de suas propriedades, a classe a que chamamos dos
ricos. E a oitava classe é a dos servidores públicos, isto é,
aqueles que servem como magistrados, uma vez que é
impossível para uma pólis existir sem governantes20.
Devemos mais ainda considerar quantas dessas coisas
mencionadas são indispensáveis para a existência da pólis, pois
entre elas serão as coisas que pronunciaremos como as partes da
pólis, as quais ela deve essencialmente sua presença. Devemos,
assim, considerar a lista de erga de que uma pólis necessita, pois
daí as coisas ficarão claras. Primeiro, portanto, deve ter um
abastecimento de thropê; segundo, de utensílios (uma vez que a
vida precisa de ferramentas); terceiro de armas [...] e também
uma certa abundância de dinheiro, a fim de que possa ter o
suficiente para todas as suas necessidades internas e também
necessidades bélicas; em quinto, uma necessidade fundamental,
o serviço aos deuses, isto é, um sacerdócio; em sexto e maior em
número e necessidade, uma provisão para se decidirem questões
de interesses e direitos entre cidadãos. Esses são os erga de que
toda pólis virtualmente necessita (pois a pólis não é um plêthos
de pessoas ao acaso, mas uma autarkês para as necessidades da
vida, como costumamos dizer, e se algum desses erga está
faltando, é impossível para a koinônia ser inteiramente
autarkês).21

Aristóteles oferece-nos então estas três definições de pólis. A primeira delas


define a pólis como um plêthos dos politai, cidadãos; a segunda, como uma espécie de

19
Política, 1261a, 23–5.
20
Política, 1290b, 24 – 1291a, 36.
21
Política, 1328b, 3–19.

67
koinônia, uma aglomeração de fato de várias koinôniai; a terceira, como uma unidade
indispensável de merê, partes. Existiria aí uma contradição entre essas três definições,
ou será que elas poderiam ser conciliadas? Eu acredito que possam ser conciliadas, se
lembrarmo-nos do relato de Aristóteles sobre os objetivos da pólis. Como já vimos, eles
são a autarkeia e a boa vida que depende da autarkeia. Já que a autarkeia é a pré-
condição para a boa vida, as várias koinôniai e as várias partes (merê) da pólis existem
para cumprir esse propósito. Mas é preciso fazer, aqui, uma pausa e repensar o
significado desse termo, que tem até o momento intencionalmente permanecido sem
tradução.
Um dos equívocos mais significativos a respeito do pensamento de Aristóteles é
o de se considerar a autarkeia simplesmente como uma autossuficiência, no sentido de
uma pólis possuir a habilidade de produzir, ela mesmo, tudo de que necessite, sem haver
trocas ou dependência de terceiros22. Este, evidentemente, não é o caso. Aristóteles
define a autarkeia como “aquilo que em si orna a i a igna sem que na a fal e”23.
Sua ênfase ao utilizar-se da palavra nesse sentido não diz respeito, portanto, apenas à
produção interna, mas, sim, ao processo de obtenção por parte de uma pólis dos bens e
serviços necessários aos seus fins e a sua reprodução24. Não obstante, a relação entre
autarkeia e in epen ncia n o ime ia a ou ire a ris eles comen a “pois afinal
como uma pólis que é por natureza escravista pode possuir tal título? A pólis é autarkês,
mas o escravo não é autarkês”25. O que está em questão, aqui, não é o fato de que uma
pólis escravista não ser capaz de produzir tudo de que necessita em seus próprios
termos, mas que uma comunidade escravista não possui uma vontade independente para
decidir de que modo produzir aquilo de que necessita 26.
Portanto, para unir ambos os sentidos, a autarkeia refere-se à habilidade de se
suprirem todas as necessidades existentes, independentemente dos meios utilizados27.
A ênfase está na habilidade (ou se preferir, capacidade) de prover: quando Péricles na
Oração Fúnebre descreve Atenas como tois pasi autarkestatên, 28 ele não está,
obviamente, implicando que Atenas estivesse em uma posição de produzir tudo de que
precisa a; e fa o ricles con inua a es acar que “nossa cidade é tão grandiosa que
todos os produtos do mundo fluem até nós, e é nosso o destino feliz de colher os bons
22
“ mesmo am m er a e para o seu erri rio a p lis] uan o à ques o e que ipo e erras a
pólis deveria possuir, é evidente que todos recomendariam aquelas que mais são autossuficientes e essas
são as que possuem, necessariamente, todos os tipos de produtos (pois a autarkeia significa ter um
suprimen o e u o sem que fal e na a ”; Política, 1326b, 27-30. Mas mesmo assim é claro que esta é
apenas a situação mais louvável; como Aristóteles deixa claro nas próximas linhas, até mesmo sua pólis
ideal deve importar o que lhe falta, e exportar o que possui em abundância.
23
Ética a Nicômaco, 1097b, 14–15.
24
Meikle 1995: 44–5.
25
Política, 1291a, 9–10.
26
“ as por ou ro lado, a pólis foi formada não apenas para a vida, mas para a boa vida, pois caso não
fosse desse jeito uma pólis poderia consistir de escravos e animais inferiores, mas do modo como é, isso
jamais pode acontecer porque estes não compartilham uma vida feliz e com propósito (zên kata
proairesin ” ; Política,1280a, 31–4.
27
Josiah Ober define a autarkeia como incluindo as trocas estrangeiras, mas excluindo a dependência a
qualquer poder estrangeiro; cf. Ober 1993: n. 15. Cf. também Mayhew 1997: 38–48.
28
Thucydides, I I , 36.

68
frutos de nosso próprio solo da mesma forma e com a mesma segurança que colhemos
aqueles e ou ras erras”29. O que Péricles está disposto a transmitir é a noção de que
Atenas tem a habilidade, o poder, de prover a si mesma, com tudo aquilo de que precisa,
e nesse sentido é, portanto, autossuficiente30. A crença de que a pólis, até mesmo em sua
forma ideal, devesse ser autossuficiente a ponto de não possuir necessidade de troca,
nunca foi defendida pelos antigos gregos31. Aristóteles, visivelmente, toma como certa a
existência de trocas em sua definição ideal de pólis.

É vantajoso, no que diz respeito a questões de segurança e


suprimento das necessidades, que a pólis e a chora tenham
acesso ao mar...e a importação de mercadorias de que não
dispõem em sua própria terra e a exportação de seus excedentes
são coisas indispensáveis; pois a pólis deve estar envolvida no
comércio de seu próprio interesse e não pelo interesse de outros
( uê e po kên, ll’ ou ou llo de e n ên pol n).32

Para retornar às várias definições de Aristóteles acerca da pólis, o propósito das


várias koinôniai que estão subordinadas pela pólis, ou das várias partes (merê) da pólis,
é o de justamente garantir esta autarkeia. Lidemos em primeiro lugar com a koinôniai.
Qual é seu papel de acordo com Aristóteles?

A soma das koinôniai são partes da politikê (koinônia) por assim


dizer; viajantes, por exemplo, associam-se uns aos outros para
obterem vantagens como quando procuram por algo de que
necessitam para viver; mas a politikê koinônia também, acredita-
se, foi originalmente formada e continua a ser mantida, para o
benefício de seus membros; esse é o objetivo, de fato, dos
legisladores e eles chamam de justo aquilo que é de benefício
comum. Eis que as outras koinôniai almejam algum benefício;
como, por exemplo, os marinheiros que combinam em buscar os
benefícios das viagens marítimas com o intuito de fazerem
dinheiro ou algo do gênero, de companheiros soldados em
relação ao que é vantajoso na guerra: riqueza ou vitória ou a
tomada de uma cidade que eles almejam, e também os membros
de phraties e demes agem de modo semelhante... todas as
koinôniai, portanto, parecem fazer parte da koinônia politikê.33
As outras koinôniai são uma parte constituinte das koinôniai da
pólis – por exemplo, aquelas dos membros de uma phratria, ou

29
Thucydides, I I , 38.
30
Cf. Raaflaub 2004: 184–7.
31
Cf. Bresson 1987.
32
Política, 1327a, 18–29.
33
Ética a Nicômaco 1160a, 8–29, seguindo a tradução de W. D. Ross.

69
do colegiado de sacerdotes (orgeônes) ou das chrêmatistikai
koinôniai.34

Daí surge uma lacuna entre a nossa primeira e segunda definições. A primeira
coloca a pólis como o plêthos de seus cidadãos; a segunda define a pólis como um tipo
de koinônia que inclui toda outra koinônia. De acordo com a primeira definição, apenas
os cidadãos são partes da pólis; de acordo com a segunda, os parceiros e membros de
toda koinônia que está incluída na pólis são membros da pólis. O mesmo se aplica
igualmente às partes (merê). As várias pessoas que fornecem à pólis sua quantidade
necessária de erga não são, portanto, obrigatoriamente cidadãos. A segunda (koinôniai)
e a terceira (merê) definição parecem ser bastante semelhantes. Ambas as classificações
buscam satisfazer a autarkeia da comunidade: koinôniai é uma classificação a partir do
ponto de vista dos relacionamentos ou associações entre vários tipos de pessoas
necessários à autarkeia; merê é a classificação vista do ponto das várias funções
necessárias ao estabelecimento da autarkeia.
Qual é a conexão existente entre essas duas categorias e os cidadãos? Acredito
que Aristóteles tenha deixado bastante claro que, uma vez que o objetivo da pólis é a
boa vida, o cidadão é aquele que por si só é capaz de participar dessa boa vida.
Aristóteles, de fato, fornece uma definição mais restrita de cidadão, como aquele que
participa na administração deliberativa ou judicial da pólis35, porém o problema com
essa definição, como ele próprio estava ciente, é o de que isso não nos permite
compreender quem possuía o título de cidadão ou não, na medida em que o direito a
cidadania variava enormemente de uma pólis a outra. Esse é o motivo pelo qual acredito
que essa definição mais restrita não nos é de muita ajuda e, assim, prefiro enfatizar as
definições aristotélicas alternativas. O que nós deveríamos privilegiar são, portanto, as
definições relacionais em contraposição àquela definição axiomática baseada na
participação deliberativa/judicial36. A análise e epistemologia de Artistóteles são
pluralistas e capazes de comportar e incorporar a diversidade; no entanto, o que
necessariamente deve decorrer é o conceito de hierarquia, a fim de agrupar as pessoas
de acordo com suas necessidades, direitos e capacidades37.

Mas uma vez que, assim como o que se passa com todos os
outros organismos naturais essas coisas que são indispensáveis
para a existência do todo não são partes da organização total,
também é evidente que nem todas as coisas que são necessárias
para as pólis são contadas como partes delas... A pólis é uma
forma de koinônia de homoioi, e seu objetivo é a melhor vida
possível. E já que o maior bem é a felicidade, e esta é uma
forma de se agir com perfeição ou de se empregar a virtude, e
uma vez que ela deve ser de modo que seja possível para que
34
Ética a Eudemo, 1241b, 25–7.
35
Política, 1275a, 1 – 1275b, 22.
36
O mesmo argumento foi colocado por Hedrick 1994: 294–7.
37
Cf. Saxonhouse 1992: 189–95.

70
alguns homens possam desfrutá-la, mas para outros apenas um
pouco ou quase nada, é claro que essa é a causa pela qual
surgem diferentes tipos e variedades de pólis e várias formas de
politeiai.38

Essa é a razão que está por trás das muitas formas de definição do cidadão. Pólis
diferentes adotam critérios diferentes para definir um cidadão de acordo com as relações
diversas que existem entre as partes que as constituem.

Como existem várias formas de politeiai, há também tipos de


cidadãos e especialmente de cidadãos na posição de governados
(archomenou); assim, em uma dada politeia a cidadania estará
necessariamente estendida ao artesão e ao trabalhador
contratado, ao passo que em outras formas isso é impossível,
como é o caso de qualquer constituição que segue a forma
intitulada como aristocrática e na qual as honras são concedidas
de acordo com a bondade e com o mérito, já que uma pessoa
que vive uma vida de trabalhos manuais ou que é contratada
como trabalhador não pode praticar a busca na qual a bondade é
exercida. Por outro lado, nas oligarquias, embora seja
impossível para um empregado se tornar um cidadão (já que a
qualificação para admissão nesse ofício é muito alta), é possível
para um artesão ser cidadão, pois até mesmo a massa de artesões
é rica... Contudo, em muitas politeiai a lei prescreve recrutas
para a cidadania até mesmo do estrangeiro; pois em algumas
democracias o filho de uma mãe cidadã é um cidadão e o
mesmo é válido para os filhos ilegítimos entre eles. No entanto,
na medida em que essas pessoas são tidas como cidadãos devido
à falta de cidadãos de nascimento legítimo (pois eles introduzem
esse tipo de legislação por causa das baixas populacionais),
quando uma pólis torna-se próspera em números, ela deixa de
lado, gradualmente, primeiro, aqueles que são filhos de pai ou
mãe escrava e, então, aqueles de que apenas as mães são cidadãs
e, finalmente, acabam por aceitar apenas como cidadãos aqueles
cujos ambos o pai e a mãe são astoi.39

38
Política, 1328a, 22–41 “ a p lis uma koinônia de gene e kômai em uma vida perfeita e autarkês
que, ao nosso ver, constitui uma vida nobre e feliz; a koinônia politikê deve, assim, ser pensada para
existir para o bem das ações nobres, não apenas para a vida em comum. Portanto, aqueles que mais
contribuem para tal koinônia, tem uma parte maior na pólis do que aqueles que são seus iguais ou
superiores em liberdade e em nascimento mas que não se igualam a eles em virtude cívica, ou aqueles que
os ul rapassam em rique a mas que s o por eles ul rapassa os em ir u e ” Política, 1281a, 1–8.
39
Política, 1278a, 15–35. Para uma reinterpretação radical, embora controversa, do significado do termo
astos cf. Cohen 2000: 49–78.

71
Consequentemente, a definição de pólis como uma comunidade de cidadãos
deve ser qualificada. Aristóteles nos apresenta uma situação onde uma pólis pode
excluir uma parte substancial da população nativa masculina (para além dos sempre
excluídos mulheres, crianças, escravos e metecos):

Porém uma das dificuldades relativas ao que constitui um


cidadão escapa. Será, de fato, que um cidadão é uma pessoa que
possui o direito de compartilhar funções no governo, ou os
trabalhadores manuais (banausoí) também deveriam ser
considerados como cidadãos? Se estas pessoas que não possuem
lugar nas funções de governo devem ser consideradas
igualmente, logo não é possível o cidadão possuir a virtude de
cidadão, pois este tipo de homem é um cidadão. Se, por outro
lado, nenhum homem deste tipo é cidadão, em qual classe ele
deve ser colocado? Pois não se trata de um estrangeiro
residente (metoikos), nem de um estrangeiro (xenos).40 [grifo
meu]

Acho que é bastante característico o fato de Aristóteles não chegar a um termo


final como resposta a sua própria pergunta. Através da análise do autor, é possível se
chegar a um espectro de uma análise do corpo de cidadãos41. A pólis consiste de todos
aqueles que contribuem para a sua autarkeia; os cidadãos são aqueles que tiram
proveito da autarkeia para alcançar a boa vida; uma vez que diferentes grupos e pessoas
participam de modos variados nesses dois aspectos, o grupo de cidadãos pode ser
estendido ao longo de um espectro com várias nuances. Enfim, esta é a razão porque a
quarta efini o e p lis e ris eles como sen o uma “koin nia poli n poli eias”42
(uma participação de cidadãos na constituição), deve ser qualificada, mas não tida como
definição absoluta. Trata-se de uma definição que diz respeito apenas à parte da pólis
que possui direitos políticos e que participa nos procedimentos políticos: ela pode
excluir, para além dos normalmente excluídos escravos, metecos e mulheres, a parcela
da população cidadã que não tinha quaisquer direitos políticos.

A PÓLIS DE ARISTÓTELES E AS PÓLIS HISTÓRICAS GREGAS

Está na hora de nos fazermos um questionamento importante: qual é a relação


entre a pólis, como noção central presente na Política de Aristóteles com as pólis
históricas reais? Se até o presente momento Aristóteles tem se apresentado como um
guia esclarecedor, será que podemos segui-lo em todos os aspectos ao longo de nossa
análise a respeito das realidades históricas? Se tomarmos Aristóteles como um guia para

40
Política, 1277b, 33–9.
41
Cf. Mossé 1979.
42
Política, 1276b, 1–2.

72
interpretar as pólis históricas gregas, a resposta deve ser obrigatoriamente negativa. O
motivo para isto é o de que a análise do autor não pode ser totalmente separada de sua
abordagem filosófica. Em certo sentido, Aristóteles não está lidando com entidades
históricas reais. Sua definição do homem como um politikon zôon é uma visível prova
disso:

Assim, é evidente que a pólis faz parte da ordem natural (tôn


physei esti) e que o homem é, por natureza, um animal político,
e aquele que, por natureza e não por mero acaso, não possui uma
cidade é, portanto, um ser inferior ou superior à humanidade.43
Assim sendo, é visível que a pólis deva vir em primeiro
lugar, por natureza, em relação ao que é individual, pois cada
indivíduo, uma vez que separado, não pode ser autarkês, ele
deve se relacionar a toda pólis, como as partes se relacionam
com o todo. Ao passo que o homem que é incapaz de koinônein
(adentrar em uma koinônia), ou que devido a sua própria
autarkeia não sente necessidade de assim agir, não é parte da
pólis, de modo que deve ser ou um animal selvagem ou um
deus.44

A partir desses trechos torna-se visível que todos, à exceção das criaturas
selvagens e dos deuses, deveriam ser partes integrantes da pólis. Essa visão, no entanto,
entra em conflito direto com a realidade histórica45. Na época de Aristóteles existiam
inúmeras comunidades que não podiam ser classificadas como pólis: para retornarmos a
um de seus exemplos, como seria possível classificar a Babilônia, já que ele próprio
havia negado seu status de pólis? Não se trataria, obviamente, de um agregado familiar,
nem de uma kômê e tampouco uma symmachia46. Essa é a razão pela qual os primeiros
tradutores da Política assemelharam a p lis ao ermo “es a o” uma e que is el o
fato de Aristóteles estar se referindo a uma realidade humana mais geral do que a
experiência histórica da pólis grega. Mas trata-se de uma resposta equivocada para um
problema real: o motivo que está por trás da sobreposição entre uma realidade humana
generalizada com a experiência histórica particular da pólis grega encontra-se na
definição de Aristóteles da pólis como uma koinônia que almeja a autarkeia e a boa
vida.
Parece que Aristóteles possui uma definição biológica da pólis no que diz
respeito a dois aspectos: por um lado, a pólis é como um organismo, que é trazido à luz
em uma forma elementar, porém já com as sementes necessárias para o seu

43
Política, 1253a, 2–5.
44
Política,1253a, 25–9.
45
Ver ainda os comentários de Murray 1993.
46
Política, 1276a, 27–30. Se seguíssemos a retórica presente na passagem, poderíamos caracterizar a
Babilônia como um ethnos. Em critérios modernos, espero que esteja claro o absurdo de tal
caracterização.

73
desenvolvimento futuro47; por outro lado, tal como um organismo, ela é um todo
composto por várias partes que se relacionam de vários modos48. A explicação para este
modelo biológico encontra-se na filosofia de Aristóteles e em seu objetivo polêmico:
sua filosofia do telos que necessita de um exame das coisas de acordo com suas
supostas finalidades; sua concepção da physis como o desenvolvimento das coisas de
acordo com suas predisposições inerentes49; e o seu visível esforço de negar a teoria do
con ra o social e pro ar que as rela es “sociais” s o asea as em necessi a es
biológicas e que são, portanto, naturais50.
Mas será que Aristóteles acredita que a pólis seja um organismo natural com seu
próprio telos? Se este fosse o caso, seu argumento seria bastante problemático. Se a
pólis fosse um organismo natural, logo, seria possível esperar que culminasse em uma
forma saudável e de bom funcionamento. Porém, uma vez que Aristóteles argumenta de
modo explícito que nenhuma pólis existente possui uma forma bem ordenada51, então, a
consequência seria a de que a natureza teria criado um organismo que, normalmente,
não alcançaria sua completude. O que é ainda mais interessante é que Aristóteles não
parece estar nem um pouco incomodado em enxergar a pólis como um organismo
natural que está quase sempre em um estado não natural. Uma questão semelhante diz
respeito a se uma pólis possui um telos próprio ou não. Todo organismo natural é um
fim em si mesmo e alcança seu próprio propósito, mas de acordo com Aristóteles, a
pólis não existe para sua própria finalidade, como, por exemplo, o estado existe para a
filosofia alemã do século XIX52. A pólis existe para a boa vida, isso é, ela é meio para
um fim que está além de si muito mais do que um fim em si53.
Baseando-se nessas duas observações, Bernard Yack argumentou que
Aristóteles não encara a pólis como um organismo natural possuidor de um telos
próprio54. Aristóteles poderia visivelmente diferenciar entre coisas que possuem uma
natureza e coisas que existem ou acontecem de acordo com a natureza, mas que não
possuem uma natureza por si mesmas55. A pólis não é um organismo natural com um
telos por si só, mas, ao contrário, uma forma da comunidade (koinônia) que busca
alcançar a boa vida; a pólis é um meio para o fim e não o seu próprio telos. Por outro
la o “o impulso rumo a es e ipo e comuni a e e is e em o os os homens por

47
“ por an o o a p lis e is e por na ure a na me i a em que as primeiras koinôniai assim existem;
pois a pólis é a finalidade de todas as outras koinôniai, já que aquilo que cada coisa é quando o seu
crescimento está completo é o que consideramos ser a natureza de cada coisa, seja de um cavalo, do
homem ou e uma casa” Política,1252b, 30–3.
48
Ver as brilhantes comparações feita por Aristóteles na Política, 1290b, 21 – 1291a, 40.
49
Ver Nisbet 1969.
50
Para uma discussão a respeito da subestrutura biológica presente na discussão que Aristóteles faz na
Política , ver Kullmann 1992. A tentativa de Ober 1993 de argumentar que Aristóteles enxergaria a
formação da pólis como uma forma de contrato social qualificado é animadora, porém não chega a negar
o ponto destacado acima, como o próprio Ober parece reconhecer.
51
Política, 1260, b35.
52
Cf. Meinecke 1957: 343–433; Iggers 1968: 90–123.
53
Política, 1252b, 29; 1281a, 2.
54
Yack 1993: 88–102.
55
Ver por exemplo Física, 192, b30–6.

74
nature a”56. Há uma boa passagem que nos revela as semelhanças e diferenças entre
organismos naturais e a pólis:

Devemos considerar que a organização de um animal pode se


assemelhar à da pólis bem governada por leis. Pois uma vez que
a ordem é estabelecida em uma pólis, não há necessidade de um
monarca separado presidindo cada atividade; cada homem faz
seu próprio trabalho tal como é designado para fazer e uma coisa
segue a outra devido ao hábito. Nos animais o mesmo ocorre
devido à natureza: especificamente porque isso faz parte deles,
já que eles são tão ordenados, se dispõem naturalmente de
acordo com suas próprias tarefas.57

Essas observações apontam para duas importantes conclusões. O conceito de


Aristóteles de pólis é atemporal e não pode ser usado para traçar o desenvolvimento
histórico da pólis grega.

Aristóteles estava interessado, não em uma história do estado,


mas, se formos usar aqui um termo que se mostrou de grande
importância para o século XVIII, em uma história natural do
estado: a manifestação ou realização das condições que são
consideradas como inerentes, potenciais, na instituição desde
seu princípio.58

Poderia ter sido de grande ajuda se Aristóteles tivesse analisado a pólis em


relação as outras formas alternativas de koinôniai política (e não politikai, obviamente),
ou se ele tivesse atribuído um status orgânico aos ethnê, monarquias territoriais e
demais formas política59. Mas considerando-se a metodologia de Aristóteles nada disso
era necessário. É por esse motivo que a questão do declínio da Pólis é impossível de ser
conceitualizada dentro do aparato discursivo aristotélico. Seria como falar do declínio
da Macieira. Obviamente, uma macieira específica só pode passar a existir a partir de
sua semente, chegar ao seu crescimento máximo e morrer; no entanto, a Macieira,
enquanto gênero, não pode declinar ou morrer. Uma dada pólis em particular pode
passar a existir, crescer e entrar em declínio, porém a Pólis, tal como definida por
Artistóteles, não pode entrar em declínio: ela simplesmente existe. A Pólis é um ciclo
que nunca acaba.
Devemos, portanto, fazer uma nítida contraposição entre a identificação do
conceito de pólis em Aristóteles com o que acadêmicos modernos identificaram como a
pólis grega, isto é, como um estágio particular da história grega e uma forma de
sociedade, economia e estado nitidamente grega. A percepção da pólis em Aristóteles a
56
Política, 1253, a30.
57
Geração dos Animais, 703, a28–b2.
58
Nisbet 1969: 31–2.
59
Ver, por outro lado, Lehmann 2000.

75
coloca em um local completamente externo à história. E, efetivamente, esta é a
percepção dos gregos em geral. Com a exceção de condições primitivas, quando pessoas
estão vivendo em pequenos grupos dispersos (como, por exemplo, após o dilúvio) sem
nenhuma forma de organização política e comunal, os gregos entendiam que toda sua
existência histórica, desde o estabelecimento da agricultura e a construção de
assentamentos nucleados, teria se dado em pólis60. A ideia da emergência da pólis ou,
de fato, seu declínio era completamente estranha aos gregos 61. Mais ainda, a ideia de
que a pólis fosse uma instituição especificamente grega não possui suporte nos textos
gregos. Aristóteles referia-se a Cartago em termos de uma pólis62 e incluía entre as suas
158 politeiai as constituições dos cartagineses e dos lícios63. Wilfried Gawantka chegou
a comentar, corretamente, que a noção da pólis grega (hê hellênikê pólis) é uma noção
para qual não existe nenhuma evidência nos textos gregos64.
Qual seria, então, o conceito mais geral de Aristóteles e dos gregos acerca da
pólis? Irei argumentar que nós devemos fazer uma clara diferenciação entre dois usos da
pólis pelos antigos gregos. Um das utilizações do termo se refere às comunidades
específicas e particulares, isto é, pólis. Um estudo do uso da palavra para comunidades
reais históricas demonstrou que a expressão pólis é usada com dois sentidos
interrelacionados. Ela descreve: (a) um assentamento nucleado sem nenhuma inferência
quanto ao seu tamanho (podendo variar, desde um pequeno assentamento com poucas
centenas de habitantes (p.80), até grandes centros urbanos)65 e (b) uma comunidade de
cidadãos com um governo próprio e local66. Essa definição mínima pode ser bastante
abrangente, mas precisa ser qualificada a respeito de alguns pontos importantes67.
Primeiramente, é necessário destacar que se trata de uma definição mínima: uma pólis
pode compreender muito mais do que apenas um único assentamento nucleado de uma
comunidade de cidadãos com uma forma de autogoverno local, porém nenhum
assentamento ou comunidade descritos como pólis deixa de se qualificar por essa
definição. Segundo, nossa definição deixa aberta a questão do mando e das relações
externas: uma pólis pode ser governada por uma, poucas ou muitas pessoas; ela pode ter
autonomia, ou estar sob o mando de uma pólis dominante formando um único estado
(Lacônia), ou em uma liga hegemônica (a Liga ateniense) ou em uma koinon
hegemônica (Beócia), ou, finalmente, sob o governo de um rei (Jônia); alternativamente
ela pode ser parte integrante em termos iguais em uma sympoliteia ou uma koinon.

60
Ver por exemplo Platão, Leis, I I I , 676a–682c; Protágoras, 322a–e.
61
en a i a e Tuc i es e re u ir a escala a guerra e Tr ia em fa or e “sua” guerra o
eloponeso comparan o icenas e “as pólis aquela poca” com as pólis contemporâneas a ele (I, 10.1)
denuncia uma completa ausência da noção de emergência da pólis relativa a esse período intermediário.
Ver Snodgrass 1986: 47–9; cf. também Haubold 2005.
62
Política, 1272b, 24 – 1273b, 27.
63
Ver também Keen 2002 a respeito de outras pólis não gregas.
64
Gawantka 1985: 106–10.
65
Ruschenbusch 1985. Para semelhante uso do conceito de cidade no Oriente Médio, ver Flemming
2004: 235–6.
66
Hansen 1995a, 1995b, 2004b.
67
Ver os comentários de Lévy 1990: 54–8.

76
O outro uso da pólis pelos gregos é para se referir à comunidade humana
em geral, de modo que comporte e misture as três divisões modernas existentes:
sociedade, economia e estado68. Aristóteles estabelece diferenças entre uma koinônia
despótica, tal qual aquela entre um senhor e seu escravo na qual a relação existe para o
benefício do déspota, e a comunidade política, onde o objetivo é o benefício de ambos
os governantes e os governados:

Pois as coisas são de tal modo que há quem seja naturalmente


feito para ser controlado por um mestre (desposton), em outros
casos, ser governado por um basileus (basileuton) e, de outro
modo, para viver em uma politeiai (isto é, a terceira constituição
apropriada) (politikon) e um governo diferente é justo e
conveniente para pessoas diferentes; mas não existe nada como
uma aptidão natural para a tirania (tyrannikon), nem para
qualquer outra forma de governo que são divergências, pois
estas são contrárias à natureza... mas, em primeiro lugar,
devemos definir o que constitui a aptidão natural para a basileia
(baileuton), para a aristocracia (aristokratikon) e para a politeia
(politikon).69

Aqui, uma nítida diferenciação é traçada entre os laços existentes entre senhor e
escravo (e Aristóteles acreditava que eram os bárbaros aqueles que estavam
naturalmente predispostos a assumir o papel de escravos), a politeiai (constituições) da
basileia e politeia e a forma degenerada da politeia da tirania. Embora Aristóteles
acreditasse que os bárbaros fossem inclinados por natureza a viver em uma comunidade
despótica, não há nada que obstrua a possibilidade de que houvesse bárbaros vivendo
em uma politikê koinônia e gregos que viviam em uma comunidade despótica70.
É verdade que Aristóteles negou o politikos bios de ambos os bárbaros europeus
e asiáticos, tendo por base efeitos climáticos71. No entanto, para nós entendermos isso,
temos que prestar atenção ao contexto particular desta passagem. Ela pertence ao livro
VII, que diz respeito à natureza e à organização da politeia aristê. Aristóteles está
interessado nas situações que fornecem o tipo correto de cidadão para a sua politeia
ideal; do mesmo modo, algumas linhas antes do trecho mencionado, ele exclui
trabalhadores manuais, artesãos e comerciantes de sua aristê politeia. Portanto, trata-se
de um equívoco inferir que Aristóteles tenha argumentado que cidadãos e pólis
pudessem ser encontrados apenas entre os gregos. Seu interesse está no tipo de cidadão
para a sua politeia ideal e não na pólis em geral, ou especificamente nas pólis. É o
politikos bios que o autor vai negar aos bárbaros, não a vida em pólis propriamente dita.

68
Ver Lévy 1990: 65–6.
69
Política, 1287b, 36–41.
70
“To as as pessoas, creio eu, dão o nome de dynasteia à politeia (constituição) que existia e que
continua a existir atualmente tanto entre gregos como entre bárbaros e Homero menciona a sua existência
em conexão ao oikêsis os Cicloples”; la o Leis , III, 680B.
71
Política, 1327b, 20–33.

77
Consequentemente, sua negação poderia operar em um nível de abstração mais geral;
ela deixa um espaço considerável para nuances e variações quando aplicada a casos
particulares, nos quais comunidades gregas existiam lado a lado com outras
comunidades não-gregas, e é esta razão pela qual acredito que Aristóteles não sentia
qualquer desconforto ao aceitar a bárbara Cartago como uma pólis.
Nesse sentido, tanto a palavra pólis e politês foram abstraídas de seu referencial
a membros de uma determinada e autointitulada pólis, tendo sido usadas
indiscriminadamente para descrever qualquer comunidade política e seus membros72.
Heródoto utiliza-se da palavra pólis e politês até mesmo para se referir a comunidades
que ele, explicitamente, descreve como não sendo pólis.

Havia entre os medos um homem sábio chamado Déjoces.


Déjoces estava seduzido pela tyrannis e, portanto, ele buscou se
encarregar de modo a consegui-la. Os medos, naquele tempo,
viviam kata kômas [em aldeias], e sendo ele um homem notável
em sua aldeia, Déjoces começou a proferir e praticar a justiça de
modo mais constante e zeloso do que jamais tinha ocorrido
antes... Então os medos de sua kôme, observando o modo como
ele lidava com as coisas, escolheram-no para ser seu juiz e ele
(que cobiçava o poder de soberania) agia de modo honesto e
justo. Ao proceder de tal modo, ele ganhou grandes elogios de
sua poliêtai [os companheiros membros de sua comunidade],
tanto que quando os homens de outras kômai souberam que
Déjoces, sozinho, havia dado julgamentos muito corretos (...) e
tendo ele obtido o poder, obrigou os medos a construírem uma
única pólisma [cidade] e fazerem desta o centro de todas as suas
atenções, independentemente de outras [isto é, as kômai em que
eles estavam habituados a viver].73

Está claro que Heródoto utiliza-se do termo poliêtai para indicar membros de
comunidades que ele, explicitamente, descreve como kômai, negando os seus status de
pólis e narrando a criação post hoc de uma pólisma por Déjoces: poliêtai, aqui,
descreve, portanto, os membros da comunidade em geral e não os cidadãos de uma
autoproclamada pólis. Casos como esse são abundantes em Heródoto. Creso conta a
Cam ises que ele ma ou “an ras se y ou poli as” “mem ros e sua pr pria
comuni a e”74; Miquerinos, o faraó do Egito, “era misericor ioso no que i respei o à
poliêtai” is o seus companheiros eg pcios75; os magos contam a Astíages que:

72
A respeito do uso de pólis para descrever comunidades bárbaras nas tragédias, ver Ésquilo, Os Persas,
511–12; Eurípides, As Bacantes, 171; Ifigênia em Taurida, 464, 595; Medeia, 166; As Fenícias, 214. Ver
Easterling 2005: 53.
73
Heródoto, I , 96–8.
74
Heródoto, I I I , 36.
75
Heródoto, I I , 129.

78
se o reino passar para este menino [Ciro] que é persa, nós,
medos, seremos escravizados pelos persas e nos tornaremos
inúteis exilados. Mas enquanto você for rei, sendo poliêtês [isto
é, pertencendo à mesma comunidade que nós], nós teremos
nossa parte no poder e grandes honras serão pagas a nós por
você.76

Aristóteles usa o termo politikôs para descrever até mesmo relacionamentos


entre animais77, deixando claro que o conceito de pólis e seus termos cognatos estão
divorciados de referências a pólis espec ficas s eg pcios por e emplo inham “a
reputação de serem um dos povos mais antigos, e eles sempre possuíram leis e um
sistema político (politikên taxin ”78. A inclusão feita por Aristóteles da basileia dos
bárabos entre as constituições adequadas da politikê koinônia79 revela, novamente, que a
pólis é concebida como a sociedade humana no geral e não nos termos específicos de
pólis individuais.
Desconsiderando-se, no momento, o uso do termo pólis para se referir a pólis
específicas, concentremo-nos no segundo uso da terminologia. Se por um lado é um
equívoco tomar a pólis da Política de Aristóteles como sendo a pólis grega, então o que
é possível inferir a partir daí? Irei argumentar que a pólis, tal qual usada nesse segundo
sentido e contexto, deva ser entendida como um paradigma discursivo. Especialistas
modernos desprezaram Aristóteles e os gregos por não entenderem que a ênfase dada
pelo autor à pólis nas vésperas da conquista da Ásia por Alexandre, a criação do mundo
helenístico e a subordinação das pólis a monarquias e dinastias era anacrônica. Isso
demonstra, mais uma vez, o quão distante está a percepção moderna da pólis em relação
às percepções antigas. O que hoje os especialistas normalmente enxergam como sendo o
declínio da pólis, isto é, a perda da habilidade de desempenhar um papel central nas
políticas entre estados e a perda da independência para uma política estrangeira, está
enfaticamente ausente da discussão que Aristóteles realiza na Política. Isso ocorria
devido a dois motivos. Primeiro, porque esse fenômeno não era nenhuma novidade; a
vasta maioria das pólis sempre esteve nessas condições e apenas algumas grandes pólis
possuíam aspirações à hegemonia passando, então, a se encontrarem nessa situação de
dependência apenas no período helenístico. Segundo, porque a pólis, no sentido da
comunidade humana em geral tal como é discutida na Política, está interessada apenas
de modo fugaz nas fluidas e corriqueiras transformações existentes no equilíbrio de
poderes entre estados.

76
Heródoto, I , 120.
77
“ m homem um politikon zôon mais que qualquer a elha ou animal greg rio grifo meu]”; Política,
1253a, 7-8. Ver também sua definição de politika zôa na Historia Animalium, 487b, 33-488a13. Nos é
dito que mesmo algumas espécies de corvos tendem a viver em pólis; ibid; 617b, 13-14. Ver Hansen,
1996b: 199-200.
78
Política, 1329b, 30.
79
Política, 1285a, 15–30.

79
Um último exemplo pode deixar isso ainda mais claro, espero. Na Política,
ris eles n o inha mui o a i er a respei o a “ lis ergreifen e oli ik’80. Não é
difícil de entendermos o motivo por detrás disso: primeiro, Aristóteles considera a pólis
como uma koinônia; e, do mesmo modo, ele examina as relações existentes entre pólis
como formadoras de um outro tipo de koinônia. Cada koinônia, de acordo com
Aristóteles, é mantida pela philia (amizade) entre os parceiros. Em sua Ética a
Nicômaco, o autor define as formas possíveis de philia a partir de três categorias: a
amizade por utilidade, por prazer e para o bem do parceiro81. Ao seu ver os
relacionamentos existentes entre pólis podem, portanto, apenas buscar alcançar a
primeira forma de amizade e devem ser considerados como inferiores à forma de
amizade que é praticada entre cidadãos. Mais ainda, em seu sétimo livro sobre a politeia
ideal, Aristóteles tenta estabelecer o melhor bios, tanto para a pólis como para o
indivíduo. Ao argumentar que a guerra representa para a pólis apenas um meio para um
fim82 e não um fim absoluto, ele argumenta de forma contrária a subjugação de outras
pólis como algo que não faz parte dos objetivos da pólis.
Esta é precisamente a razão pela qual análises modernas da pólis têm ignorado
essa parte do pensamento de Aristóteles sobre a pólis e têm introduzido outros
conjuntos de critérios que estão completamente ausentes nas definições do autor83.
Aqui, encontram-se alguns passos na direção correta. No entanto, nós ainda temos que
encarar um desafio colocado pela abordagem dinâmica de Aristóteles sobre as partes
constituintes da pólis; uma abordagem processual que estabeleça diferenças entre vários
fatores e níveis. O próximo capítulo deste livro estará direcionado a uma tentativa de
salvar essa parte de nossa herança intelectual e construir, a partir daí, um entendimento
histórico da pólis.

80
Sobre isso, ver Winterling 1995.
81
Ética a Nicômaco, 1156a, 6 – 1256b, 24.
82
Ética a Nicômaco, 1333a, 35.
83
Isso, é claro, não quer dizer que Aristóteles ou muitos outros contemporâneos, de fato, não
reconhecessem a importância desses critérios. Ao contrário, a Política é cheia de tais comentários, por
exemplo, sobre o crescimento de cidades através de trocas e da movimentação da população; 1327a, 12–
16. Porém, a forma filosófica do tratamento feito por Aristóteles da pólis não permite que esses critérios
entrem em sua definição.

80
CAPÍTULO 3

Fazendo uso de Aristóteles: conceitos e modelos

A forma como Aristóteles trata da pólis foi esboçada acima. Agora é hora de
colocar algumas questões e chegar a algumas conclusões que irão fornecer nossas
diretrizes para o restante deste estudo. O problema com o campo de estudos modernos
sobre a pólis é que ele descartou o uso binário do termo pelos gregos, a fim de alcançar
uma definição única, ‘essencialista’ ou ideal-típica da pólis. Dessa forma, tem sido
forçoso desconsiderar a maior parte dos antigos usos do termo para descrever
comunidades históricas particulares, pois esses usos não se encaixam no que a pólis
‘deveria ser’, de acordo com a definição preferida; por outro lado, a natureza do
discurso político dos gregos antigos sobre a pólis foi com frequência deturpado e suas
principais contribuições ignoradas. Por conseguinte, nossa tarefa é sustentar um novo
estudo das pólis gregas prestando uma nova atenção a ambos os contextos gregos de uso
do termo. Neste último capítulo vou tentar abstrair alguns conceitos, modelos e ideias
básicos do discurso político dos gregos. Estes conceitos e modelos básicos serão
utilizados nos capítulos seguintes, a fim de rever e pensar novamente sobre vasto
número de diferentes pólis históricas gregas.
Argumentarei que a abordagem de Aristóteles em particular, e outras antigas
grega em geral, podem ser utilizadas para construir uma abordagem alternativa moderna
para o estudo das comunidades gregas: nós podemos utilizar as percepções deles para
modificar a objetividade e utilidade de nossas próprias percepções. E mais, nós
podemos fazer uso de suas percepções para construir novas concepções e percepções
históricas do passado. A grande validade da abordagem aristotélica para a pólis repousa
sobre as bases dinâmicas e inter-relacionadas de suas percepções: a pólis é vista como
um todo composto, o nódulo de interligação de uma variedade de processos e relações.
E embora ele volte sua atenção para questão de como a pólis poder tirar proveito destes
processos e relações, ao invés de analisar os processos e relações eles mesmos, nós
podemos tirar vantagem desta compreensão para os nossos próprios objetivos. No que
se segue eu dou ênfase a três questões centrais: sua análise da pólis como um conjunto
de koinôniai; sua análise da pólis como uma composição de mêre; e sua análise da inter-
relação entre a pólis e seu ambiente externo. Eu também acrescentarei uma quarta que
não deriva de Aristóteles diretamente, mas da tradição aristotélica de teoria
constitucional, como exemplificado por Políbio;1 nomeadamente, as relações entre pólis
e inter-estatais.

AS PÓLIS E AS KOINÔNIAI

1
Ver Von Fritz 1954; Nippel 1980: 142-56.

81
Uma vez que as koinôniai mais fundamentais são aquelas entre masculino e
feminino, mestre e escravo e pais e filhos, então mulheres, escravos e crianças são
necessariamente parte da pólis. Como Aristóteles concebe estas koinôniai?

Parece que Aristóteles oscilou entre duas concepções de


koinônia, uma mais ampla e outra mais estreita. A mais ampla
abrangeu combinações de pessoas em qualquer tipo de inter-
relação, sem excluir as temporárias e as não estruturadas. A
concepção mais estreita estava limitada a associações de
parceiros que estavam ligadas por amizade (solidariedade),
tinham alguns interesses comuns, perseguiam alguns fins
comuns e obedeciam a regras comuns... o ermo “socie a e”
deveras inadequado para configurar tanto a concepção mais
ampla quanto a mais estreita expressa por koinônia “uni o”
“associa o” e “comuni a e” s o a equa os a concep o mais
estreita, no entanto enganosa para a mais ampla.2

A primeira grande vantagem da concepção aristotélica de koinôniai é sua


habilidade em ir além das polaridades e divisões estáticas tais como aquelas entre
mestres e escravos, cidadãos e metecos, homens e mulheres, gregos e bárbaros.
Certamente, essas distinções existiram e exerceram realmente um papel importante;3
mas o problema é que fizemos delas modos de ser insuperáveis, enquanto que na
verdade essas concepções são imagens e identidades que são definidas por constante
disputa e renegociação dependendo do contexto; aliás, elas devem ter feito sentido em
alguns contextos, mas podem ser completamente irrelevantes em outros. A grande
descoberta de Aristóteles foi, certamente, a diversidade e a multiplicidade, onde outros
pensadores gregos estavam tentando ver a unidade subjacente por trás da aparente
diversidade; ao mesmo tempo ele utilizou o conceito de hierarquia para subordinar a
diversidade a suas ideias normativas. Nós podemos manter suas explorações da
diversidade sem, portanto, aceitar seu conceito de hierarquia. 4 A vantagem de sua
concepção, então, é essa que nos permite prestar atenção para a experiência concreta das
pessoas nas várias formas de koinôniai que estão associadas. Grego e bárbaro com
efeito; porém qual é a percepção de tal polaridade quando eles juntos participam de uma
koinônia abordo de um navio? Livre e escravo; mas o que acontece quando juntos
participam de uma koinônia para o trabalho (ex.: trabalhando em estaleiros) sob as
mesmas condições? Cidadão e meteco: no entanto, o que acontece quando bebem juntos
e conversam numa taverna ou numa barbearia? Homens e mulheres finalmente: porém o
que acontece quando participam de uma koinônia de culto?
Outra vantagem é a flexibilidade conceitual. Em contraste com a concepção
moderna de isomorfismo entre sociedade, economia e estado, a concepção de koinôniai

2
Sakellariou 1989: 219.
3
Para o papel dessas polaridades nos historiadores gregos, ver Cartledg 2002.
4
Ver Loraux 1991; Saxonhouse 1992.

82
admiti que os limites de diferentes koinôniai são diversos, e não se sobrepõem
necessariamente. Os limites do âmbito doméstico de relações são bastante diferentes
daqueles da amizade-hospitalidade, ou de um tratado comercial, ou de uma comunidade
religiosa ou escola, ou de um grupo de systratiôtai (companheiros militares). Todas
essas relações, que são descritas como koinôniai por Aristóteles, constituem parte da
politikê koinônia. Aristóteles está claramente ciente de que estas koinôniai possuem
fronteiras que vão além dos limites da pólis individual e possuem suas próprias
regularidades e normas; mas ele (e toda a tradição do humanismo cívico) está
interessado nelas apenas na medida em que, e enquanto, elas servem aos objetivos da
pólis, ex.: autarkeia e a boa vida.
Podemos argumentar que a politikê koinônia no sentido de comunidade humana
mais um “con un o e configura es” o que um organismo claramen e efini o
Tomar a pólis enquanto a unidade de análise, quando analisando a história social (ou
ainda a econômica, política ou cultural) dos gregos antigos é um procedimento
equivocado. Os limites e propósitos de cada koinônia irão diferir substancialmente de
uma pólis para outra e em diferentes pontos no tempo. Entretanto, o valor de se falar
sobre as koinôniai no plural ao invés de falar sobre a sociedade no singular é
precisamen e rela i i ar e con e uali ar o con e o esse “con un o e configura es”
A justaposição habitual de cidadão-hoplita e mercenário, e a identificação do crescente
número e importância de mercenários com o suposto declínio e crise da pólis é um
e emplo es e ipo e falha na compreens o a p lis enquan o “con un o e
configura es” 5 Koinôniai militares (systratiôtai) são partes da politikê koinônia,
porém elas não são subsumidas a esta última: sua orientação e limites podem tomar uma
variedade de formas que não necessariamente coincidem com a da pólis.6
Por último, a concepção aristotélica de koinônia nos confere a possibilidade de
ultrapassar uma concepção linear do tempo. De acordo com esta concepção de
sociedade, economia e estado, história é uma progressão linear de um período a outro,
de um estágio para o próximo: passamos da sociedade arcaica para a clássica e assim
por diante.7 Mas, de fato, as coisas não são sempre assim; historiadores tradicionalistas
identificam isso falando de sobrevivências e de características arcaicas. Na medida em
que nossa unidade de análise é uma entidade unificada com limites firmes, nós não
podemos agir de outro modo senão concebê-la numa noção linear do tempo. Entretanto,
as koinôniai aristotélica nos permitem abarcar a pluralidade, diversidade e
irredutibilidade das partes que compõem a pólis. Ao invés do tempo linear que a história
tradicional usa, podemos utilizar a multiplicidade de escalas temporais e durações do
tempo histórico. Se, ao invés de nossas entidades emergindo, crescendo e declinando,
movendo-se num padrão linear de progresso (ou regressão), nós utilizarmos uma
imagem de uma variedade de níveis, numa variedade de configurações espaciais e com
uma variedade de escalas temporais, conjunturas e ritmos, nossa abordagem vai mudar
necessariamente.

5
Marinovic 1988.
6
Tratei dessas questões em Vlassopoulos 2003.
7
Para uma crítica dessas abordagens, ver Yoffee 1993.

83
AS PÓLIS E AS MERÊ

A definição aristotélica da pólis através de uma análise de seus merê


proporciona uma poderosa alternativa para as modernas conceitualizações históricas. A
abordagem moderna afirma que existem campos separados de atividades humanas e que
as categorias analíticas para concebê-los e estudá-los são naturais; quando historiadores
e outros cientistas sociais são confrontados com sociedades, onde tais distinções não são
evidentes, então eles buscam explicar por que os campos foram mesclados, ou por que
um campo foi preponderante sobre outros.8 Esta é, em grande medida a natureza da
postura anti-modernista na história econômica antiga: ela busca explicar por que não
existiu campo separado de economia na antiguidade; no entanto, assim fazendo, toma
por certo que um campo separado de economia deva existir, como supostamente existe
em nossa sociedade moderna.9 O que a maioria dos historiadores raramente fazem é
contestar a naturalidade das concepções que empregam e sua aplicabilidade até mesmo
em sua própria sociedade.
A concepção aristotélica recusa fazer tal distinção entre a variedade de
necessidades e atos humanos: eles formam um todo inseparável, embora eles sejam
satisfeitos e agenciados de diversas maneiras em diferentes comunidades. Aristóteles
tem uma noção holística de autarkeia. Ao invés de uma divisão artificial entre
economia, sociedade e política, Aristóteles salienta a interconectividade de todas as
funções e processos necessários para a produção, reprodução e bem-estar de uma
comunidade humana. Ele inclui nas funções da pólis necessárias para estabelecer a
autarkeia muito daquilo que nós não classificaríamos como parte da economia: a
administração da justiça, a condução da guerra ou o culto aos deuses. Contudo, nós já
lidamos com este aspecto.
Ademais, sua concepção possui outra vantagem: ao invés de falar sobre
entidades abstratas como entidades quase personificadas (a economia, a sociedade, o
estado), Aristóteles centra-se nos grupos humanos reais que realizam tais funções e
atividades. Ele deixa claro que os grupos que atendem às necessidades da comunidade
n o s o e clu en es “ un es diferentes parecem estar muitas vezes combinadas no
mesmo indivíduo; por exemplo, o soldado pode ser um agricultor, ou um artesão; ou
no amen e o conselheiro e um ui ” 10 Com sua definição, então, temos duas
vantagens. A primeira é que podemos ver as pessoas na coexistente multiplicidade de
seus papéis. A segunda é a possibilidade de levantar a questão: quantos papéis as
pessoas partilhavam em uma única comunidade num determinado período, e como tais
papéis são expandidos, reduzidos ou transformados?
Mas também podemos fazer uma outra observação mais importante. Aristóteles
possui uma concepção da pólis enquanto uma aglomeração variável de ingredientes

8
Roseberry 1989.
9
Contra, Sahlins 1976.
10
Política, 1291b, 3-5

84
múltiplos e argumenta que as diferentes combinações dos vários elementos confere um
aspecto diferente à comunidade; isto nos dá a chance de ultrapassar as reificações e
abstrações que criaram um certo número de problemas para o estudo de história antiga.
O discurso sobre a pólis grega apresenta uma imagem homogeneizante. Ao contrário,
Aristóteles cria uma diferente e matizada imagem; sua discussão sobre as várias
constituições gregas fornece um exemplo esclarecedor. Ele insiste que há vários tipos de
democracias e oligarquias, devido a natureza variável das partes da população que
sustenta cada forma de constituição:

Ora, a razão de existir várias formas de constituição é que cada


pólis possui um considerável número de mêre. Pois, em primeiro
lugar, vemos que todas as pólis são compostas por famílias,
então vemos que dessa multidão alguns tem que ser
necessariamente ricos, alguns pobres e alguns entre os dois, e
ainda sobre ricos e pobres o primeiro é pesadamente armado e o
último não possui armamento. E vemos que uma porção das
pessoas comuns (dêmos) é camponesa, outra envolvida no
comércio, e outra ligada à manufatura. E as classes mais altas
possuem distinções correspondentes a sua riqueza e a megethê
de suas propriedades. 11
Agora que já foi estabelecido que tipo de democracia é
adequada a que tipo de pólis, e da mesma forma qual dos tipos
de oligarquia é adequado a que tipo de população; ... De fato,
existem duas causas para que haja diversos tipos de democracia,
primeiro a estabelecida anteriormente, o fato de que as
populações são diferentes (já que encontramos uma multidão
engajada na agricultura e outra que consistindo em artesãos e
assalariados, e quando o primeiro desses é incorporado ao
segundo e, mais uma vez, o terceiro a ambos, então, isto não
somente faz diferença na qualidade da democracia em tornar-se
melhor ou pior, mas também por se tornar diferente em tipo)
[ênfase minha].12

Os comentários de Aristóteles aqui opõem-se claramente a ortodoxia moderna


da pólis grega como uma comunidade de camponeses e com números marginais de
artesãos, trabalhadores e comerciantes. Ele argumenta que diversas pólis consistem em
diferentes proporções de merê.13 Ademais, ele insiste que existem diferentes tipos de
populações não-agrícolas em diversas pólis:

11
Política, 1289b, 27-35.
12
Política, 1317a, 12-29.
13
Ver Gehrke 1986.

85
Pois, existem várias classes tanto do povo e daqueles que são
chamados de notáveis; por exemplo, classes do povo são, um os
fazendeiro, outra a classe que lida com os trabalhos manuais,
outra a classe comercial ocupando-se em comprar e vender, e
outra a que se ocupa com o mar - e esta é dividida em classes
envolvidas com a guerra naval, com as trocas, com o transporte
de passageiros e com a pesca (pois cada uma dessas classes é
extremamente numerosa em vários lugares, por exemplo,
pescadores em Taras e Bizâncio, tripulações de trirremes em
Atenas, marinheiros mercantes em Egina e Quios, barqueiros
em Tenedos) [ênfase minha].14

Mas se aceitamos a argumentação de Aristóteles de que diferentes pólis são


constituídas por diferentes proporções dos merê, como podemos explicar a existência
dessas diferentes proporções? Qual a razão de pescadores serem abundante em Taras e
não em Atenas, marinheiros mercantes em Egina e não em Taras? O argumento de
Aristóteles não é sobre a especialização do trabalho que é indispensável para toda
comunidade humana que ultrapasse um certo limite de população e de diferenciação de
riqueza/poder. Aquelas comunidades onde a população é constituída por um número
substancial de artesãos, comerciantes e assalariados não podem ser explicadas por sua
especialização interna do trabalho. As populações de várias pólis são diferentes, pois
apresentam diferentes lugares e ocupam papéis diversos em uma divisão de trabalho
inter-pólis. A concepção aristotélica de diferentes formas de merê, pólis, e politeiai é
pressupos a na e is ncia e um “sis ema-mun o” e pólis e outras comunidades, cujos
trabalhos moldam a distribuição e especialização interna da população de cada pólis
individualmente. Assim, a noção da pólis como uma unidade econômica e social
autossuficiente, como retratado, por exemplo, nas construções de tipo ideal como a
cidade consumidora, não corresponde muito bem à evidência de Aristóteles.
Está claro que o que Aristóteles faz em sua Política é analisar este sistema de
relações e processos do ponto de vista do benefício da comunidade política e de seus
membros. Se Aristóteles escolheu ou não desenvolver essa compreensão é irrelevante
no presente contexto; podemos nos apropriar de seu insight para nossos próprios
objetivos. Sua abordagem deveria ser considerada e utilizada o tanto quanto possível.
Isso implica que a pólis não pode ser entendida como uma entidade ou uma essência; a
pólis, cada pólis individual histórica, forma o nexo, em conjunturas temporais e
espaciais específicas, de uma variedade de processos e relações multiformes que vão
além de cada pólis individual. Em outras palavras: cada pólis é parte de um sistema
mais amplo comportando relações e processos, e não pode ser analisada enquanto uma
entidade isolada.

A PÓLIS, O ESTADO E AS RELAÇÕES ENTRE ESTADOS

14
Política, 1291b, 17-27; ver também 1290b, 37-1291a, 10.

86
Minha terceira questão é melhor exemplificada por Políbio em seu famoso livro
sexto.

Ao construir sua constituição desta maneira e fora destes


elementos, Licurgo garantiu a absoluta segurança de todo o
território da Laconia, e deixou aos próprios espartanos uma
última herança da liberdade. Porém, no que respeita à anexação
de territórios vizinhos, a supremacia na Grécia e de maneira
geral uma política ambiciosa, ele me parece ter feito
absolutamente nenhuma reserva para tal contingência, seja em
decretos específicos ou em um arranjo geral do estado.15
[E] aqui um defeito evidente em sua constituição se revelou.
Enquanto eles aspiravam governar sobre seus vizinhos ou sobre
o Peloponeso sozinhos, para eles os suprimentos e recursos
fornecidos pela própria Lacônia eram adequados, já que tinham
tudo que requeriam ao alcance das mãos, e rapidamente
retornavam para casa seja por terra ou por mar. Mas, uma vez
que começaram a empreender expedições navais e fazer
campanhas militares fora do Peloponeso, ficou claro que nem a
moeda de ferro, nem a troca de seus cultivos por mercadorias
lhe faltavam, seria suficiente para suas necessidades, uma vez
que estas expedições demandavam uma moeda de circulação
universal e suprimentos extraídos do exterior.16
No entanto, qual o propósito desta digressão? É mostrar, a partir
da real evidência dos fatos, que, para efeitos de permanecer em
posse segura de seu território conquistado e manter sua
liberdade, a legislação de Licurgo é amplamente suficiente, e
para aqueles que mantêm isto como sendo o telos (objetivo) da
politeia devemos admitir que não há e nunca houve nenhum
sistema ou constituição superior a de Licurgo. Porém, se alguém
ambiciona coisas maiores, e estimam isto mais fino e glorioso
do que ser líder de muitos homens e governar e assenhorear-se
de muitos e possuem os olhos de todos no mundo virados para
ele, deve-se admitir que deste ponto de vista a constituição da
Lacônia (politeuma) é defeituosa, enquanto que a de Roma é
superior e melhor emoldurada para a obtenção de poder; isto é,
de fato, evidente a partir do real curso dos eventos.17

15
Políbio, VI, 48, 5-7. Siga a tradução de W.R. Paton na série Loeb com ligeiras adaptações.
16
Políbio, VI, 49, 6-9.
17
Políbio, VI, 50.

87
O que emerge a partir dessas longas citações de Políbio é que a busca pela
essência da pólis grega escamoteia a diferença fundamental entre comunidades políticas
médias/pequenas e hegemônicas. A constituição lacedemônia estava perfeitamente
adaptada às necessidades de uma pólis auto-centrada, que buscou sua simples
reprodução; mas ela não era suficiente para os arranjos políticos de uma pólis
hegemônica, que buscava a anexação de territórios estrangeiros e a supremacia mundial.
Os objetivos e, dessa forma, os arranjos e relações internas e externas destas duas
distintas categorias de comunidades eram totalmente diferentes. Uma constituição (i.e.
as relações internas de grupos, a gestão de recursos, etc.) que é absolutamente boa para
uma pólis média ou pequena pode ser um obstáculo sério para o desenvolvimento de
uma pólis hegemônica. É um erro colocar todas elas sob o mesmo rótulo de estado: as
duas categorias de comunidades políticas, embora venham a compartilhar uma série de
funções, não possuem os mesmos objetivos ou os mesmo arranjos. Portanto, colocar sob
a mesma rubrica Atenas e Koressos como sendo espécimes da pólis grega é
simplesmente enganosa. Crescemos sob a ilusão da imagem da ONU no pós-guerra,
onde cada estado parecia participar de forma mais ou menos igual, tendo total controle e
soberania sobre seus assuntos internos e externos. Os trágicos acontecimentos pelos
quais passamos servem para nos lembrar o que sempre foi claro para os antigos: um
estado hegemônico pode assumir ações próprias, interferindo na soberania de outros
estados, tomando o controle de processos que em outros períodos estão sob o controle
de cada comunidade política pequena ou média. Uma definição geral e acrônica da
cidade-es a o mis ura “ ormalpoleis” e pólis hegemônicas; além disso falha ao
reconhecer que a e ens o que ca a comuni a e pol ica hegem nica ou “normal”
possue sobre seus processos e arranjos internos e externos é contexto-, conjuntura- e
período específico.
Finalmente, é preciso fazer uma diferenciação clara entre as estratégias, técnicas,
arranjos e relações em que uma pólis hegemônica deve entrar, a fim de se qualificar
para o título, e aqueles necessários para as pólis medianas e pequenas. Não há nenhuma
razão para acreditar que o ritmo, a escala de tempo, a intensidade e a organização
espacial de técnicas, arranjos e relações "hegemônicas" iriam mudar, consolidar-se e
expandir-se da mesma forma daquelas em uso pelas pólis medianas e pequenas . A
incapacidade de diferenciar entre elas teve um efeito pernicioso no estudo da história
antiga.

A PÓLIS E O AMBIENTE EXTERNO

Eu chego agora a minha última proposição. Uma construção ideal típica da pólis
é factível? Ou existe algo fundamentalmente equivocado com essa abordagem?
Argumentarei que as construções ideais-tipicas procuram abstrair a realizada de seus
parâmetros e conjunturas temporais e espaciais; e que Aristóteles nos fornece um aviso
poderoso contra essa metodologia além de intuições em direção a uma alternativa. No
livro dois da Política ele argumenta contra a idealização da politeia cretense. E para
fazê-lo, ele ataca precisamente uma construção de tipo-ideal que abstrai a partir da

88
posição temporal e espacial de cada pólis. De acordo com ele, as configurações de poder
no interior das pólis cretenses não pode ser estudado in vacuo. Relações de classe, ou
relações internas as elites acontecem dentro de uma conjuntura espacial que não pode
ser abstraída; nesse caso a posição geopolítica cretense coloca as elites cretenses e seus
súditos em uma situação muito diferente daquela de outras pólis em configurações
geopolíticas diferentes.

Ora, algo que é admitido é que uma pólis para ser bem
governada deve ser provida do ócio das ocupações menores;
mas como isso deve ser provido não é algo fácil de discernir. Os
penestai na Tessália sublevaram-se repetidamente contra os
tessálios, assim como os hilotas os fizeram contra os
lacedemônios, onde eles são como um inimigo sentado
constantemente na espera de seus desastres [i.e. dos espartanos].
Nada desse tipo ocorreu até agora em Creta, a razão sendo que
talvez as pólis vizinhas, embora combatessem umas as outras, de
forma alguma se aliavam contra os rebeldes porque como elas
mesmas possuem periokoi , isso não seria de seu interesse;
enquanto os lacedemônios estavam rodeados inteiramente por
vizinhos hostis, argivos, mecênios e arcades; pois com os
tessálios, também, eles [os penestai] eles originalmente
começaram a se rebelar, porque eles [os tessálios] ainda estavam
em guerra com seus vizinhos os acaios, os perrabianos e os
magnésios.18
E o fato de que o dêmos [as pessoas comuns] tolera em
silêncio a sua exclusão [do poder] não é uma evidência de que o
arranjo seja bom; pois os Kosmoi diferentemente dos Éforos não
tem nenhuma chance de lucrarem com isso já que eles vivem em
uma ilha afastada da possibilidade de que alguém venha
corrompê-los. 19
É uma posição precária para a pólis quando aqueles que
desejam atacá-la também tem o poder de fazê-lo. Mas, como foi
dito, ela é salvaguardada pela sua localização; pois a distância
teve o mesmo efeito que xenêlasia [a expulsão dos estrangeiros].
Como um resultado disso, com os cretenses os perioikoi [a
população dependente] permanece firme, enquanto os hilotas
frequentemente se revoltam; pois os cretenses não tomam parte
em impérios estrangeiros (exôterikê archê) e também a ilha
apenas tardiamente foi invadida pela guerra vinda do exterior,
tornando manifesta a fraqueza do sistema lá.20

zz
Política, 1269A 34- 1269b, 7.
19
Política, 1272a, 39 – 1272b, 1.
20
Política,1272b, 16–22.

89
Como as últimas linhas indicam, a conjuntura temporal é claramente importante.
A configuração espacial não existe em uma continuidade temporal eterna. Ao contrário,
a conjuntura temporal confere a configuração espacial a sua influência e importância
variável. Falar então sobre a pólis grega em geral, ou mesmo sobre pólis individuais,
sem prestar atenção a sua posição dentro de um sistema organizado espacial e
temporalmente de relações de poder e recursos é algo seriamente equivocado. O
desenvolvimento das pólis cretenses não pode ser compreendido como parte do
desenvolvimento das pólis gregas em geral, ou apartir de um tipo de análise
“in ernalis a” De eria ser am m enfa i a o que a posi o insular n o um fa or e
isolamento per se; funciona assim apenas em circunstâncias e conjunturas específicas.
Conhecemos tudo isso muito bem a partir das observações de autores antigos sobre
como uma ilha pode encontrar-se tanto em uma posição de completa dependência 21ou
de potencial domínio mundial 22de acordo com as circunstâncias: o próprio Aristóteles
na passagem acima nos conta como uma mudança nas relações de poder veio a
introduzir a guerra com estados fora da ilha e a desestabilizar suas estruturas.
O estudo da democracia ateniense é um bom exemplo de como o descuido em
relação ao ambiente mundial induz os acadêmicos ao erro. Josiah Ober, em seu
altamente influente Mass and Elite in Democratic Athens procura explicar a estabilidade
socio-política aparente da democracia ateniense, em contraste com o constante
torvelinho na maioria das póleis gregas. Ele recusa a escravidão e o império como
explicações dessas estabilidade, a fim de argumentar que a causa era a acomodação das
massas e da elite através de uma ideologia pública construída em termos estabelecidos
pelo demos23. Ober está perfeitamente correto ao recusar-se aceitar os benefícios do
império e da escravidão como explicações suficientes. E, contudo, ele não se pergunta
questões mais fundamentais, precisamente porque ele trata Atenas como um tipo ideal
de pólis grega. Podemos concordar que o império ateniense e seus lucros deve ter sido
uma razão necessária mas dificilmente uma razão suficiente para a criação e
manutenção da democracia. Porém, alguém pode argumentar que a importância real do
império, ou melhor, da posição hegemônica de Atenas na arena política da Grécia
clássica, residia na ausência de interferência externa no desenrolar da política ateniense.
Essa situação era, e ainda é, claramente excepcional. Pois a ampla maioria das
democracias gregas da Antiguidade e também paras as democracias modernas dos dias
atuais, o maior problema tem sido o de que nunca se permitiu a elas conduzir suas

21
Pseudo-Xenofonte, Athênaiôn Politeia, II , 2.
22
“Tam m a ilha Cre a] parece ser designada por natureza e bem situada para os governar os gregos
(archên Hellênikên); ela se situa no encontro de todas as partes do mar em torno do qual todos os gregos
estão estabelecidos; pois Creta está a apenas uma pequena distância do Peloponeso em uma direção, e da
região da Ásia em torno de Triopion e de Rhodes. Graças a isso, Minos conquistou o império do mar
(thalassês archê) e algumas as ilhas ele su ugou enquan o que ou ras ele es a eleceu col nias”
Aristóteles, Política , 1271b-33-9. Ao invés de falar sobre a transição das monarquias redistributivas
minôica e micênica para as pólis gregas, seria mais proveitoso contemplar o porquê de Creta nunca mais
ter estado em uma posição em que pudesse explorar essa localização geográfica vantajosa após o período
minóico.
23
Ober 1989: 17–35.

90
próprias políticas internas em seus próprios termos. Para a maior parte da história
ateniense, a questão que o orador em Lísias XXXIV formula, a de como podemos
manter o sufrágio universal dos cidadãos de sexo masculino após a queda dos Trinta,
quando Esparta se opõe a isso, não existia24. Para toda democracia grega fora de Atenas
a questão perene era como manter uma democracia num ambiente internacional, onde
os oligarcas poderiam sempre esperar por uma ajuda externa, a fim de derrubar uma
democracia; ou, em geral, um regime democrática tinha sempre que procurar um modus
vivendi com os maiores poderes de cada época. É claro, longe de ser acidental, que toda
as vezes que a democracia ateniense era derrubada isso devia-se a interferências
externas (508/7, 404/3, 322, 317 a.e.c), ou, mais geralmente, circunstâncias externas
(411/0 a.e.c). Atenas era a exceção para uma regra geral de agitações, em grande
medida porque a sua posição hegemônica afastava, na maior parte do tempo, a ajuda
externa nas derrocadas do regime democrático. Seria por puro acaso que os especialistas
ocidentais, que nunca tiveram a experiência de interferência estrangeira e da imposição
imperialista de mudança de regime, tenham tomado como certo algo que é claramente e
altamente excepcional? Eu não pensaria assim.
Então, o estudo de como os arranjos espaciais interligam-se e interagem com as
conjunturas temporais e processos econômicos, sociais e políticos, ainda sequer
começou para a História Antiga. Mas trata-se de um desiderato que possui um ancestral
ilustre, como eu espero ter demonstrado.
Existe um outro aspecto que se depreende novamente do sexto livro de Políbio,
mas possui igualmente conotações aristotélicas fortes.

A politeia dos cartagineses parece-me ter sido originalmente


bem planejada com relação aos seus pontos mais distintos... Mas
naquela época, quando eles entraram na guerra de Hanibal, a
politeia cartaginesa tinha degenerado e a de Roma era melhor.
Pois como todo corpo ou politeia ou ação tem seus períodos
naturais primeiro de crescimento, depois de apogeu e depois de
declínio e como coisa neles está em seu melhor quando eles
estão em sua maturidade, foi por essa razão que a diferença
entre as duas politeumata manifestou-se nesse momento. Pois,
por muito que o poder e a prosperidade de Cartago tenha sido
anterior aquele de Roma, por isso mesmo, Cartago já tinha
começado a declinar.25

Apesar da metáfora orgânica de crescimento, apogeu e declínio, a ideia essencial


é aquela de conjuntura. O tempo importa para a história, e quando as coisas acontecem
não podem ser abstraídos de nossos modelos e conceitualizações. No caso das relações
interestatais, como em qualquer outra forma de relação, de fato, as comunidades

24
Lísias, XXXIV, 6-11.
25
Políbio, V I , 51.

91
políticas que interagem tem que estar em escalas temporais e conjunturas diferentes ou
variáveis; a conjuntura das sua interação é absolutamente crucial.
Eis um pequeno resumo da contribuição aristotélica. Arguntei que o conceito
aristotélico de koinôniai permite-nos enxergar a pólis não como uma entidade fechada,
mas como a aglomeração de uma variedade de associações e relacionamentos,
abrangendo desde além das fronteiras de uma pólis (associações de mercadores,
mercenários) até um pequeno núcleo dentro dela (um grupo local de culto). Essas
koinôniai tem seus próprios objetivos variáveis e suas próprias configurações temporais
espaciais específicas, que não necessariamente coincidem com os objetivos e as
configurações de uma pólis específica. O conceito aristotélico de partes nos permite
enxergar as necessidades de produção e reprodução de uma comunidade humana em sua
totalidade e interrelação, e não como níveis segregados e distintos como nos modernos
conceitos de sociedade, economia e estado. Ao mesmo tempo, isso torna claro que a
produção e a reprodução das necessidades de uma pólis depende de seu lugar dentro de
um “sis ema-mun o”mais as o; por an o a pólis não deve ser vista como uma entidade
independente e autossuficiente. A contribuição de Políbio mostra que existe um hiato
fundamental entre as pólis hegemônicas e não hegemônicas e que não deveríamos tentar
encobrir essa diferença básica em termos de arranjos internos e objetivos externos, a fim
de chegar a uma definição homegeneizante da pólis. Finalmente, os comentários de
Aristóteles sobre Creta mostram que a pólis não pode ser abstraida de sua configuração
espacial e temporal; qualquer definição que tente uma tal abstração está destinada a
equivocar-se.

92
PARTE II

Repensando contextos. A pólis como entidade: uma crítica

A proposta dos próximos dois capítulos é rever e criticar uma modalidade


específica de abordar a história antiga e a história em geral. Gostaria de criticar a
premissa da pólis como entidade e da história como uma sucessão ou justaposição de
entidades, variavelmente denominadas O Ocidente, Grécia, Roma, O Oriente,
antiguidade, etc. Isso será feito a partir de um certo número de estudos de caso,
procurando criticar alguns postulados profundamente arraigados na teoria social e na
escrita da história. Charles Tilly denominou-os “pos ula os perniciosos o pensamen o
social o s culo ” e ranscre o a ai o algo que consi ero rele an e

“ ocie a e” uma coisa a par e; o mun o como um o o se


i i e em iferen es “socie a es” ca a uma com sua cul ura
mais ou menos autônoma, assim como governo, economia e
solidariedade.
“Transforma o social” um fen meno geral e coeren e
explicável en bloc.
Os processos centrais de mudança social em larga escala levam
sociedades distintas por uma sucessão de estágios-padrão, cada
um mais avançado que o estágio precedente. 1

Os capítulos que se seguem tentam mostrar que esses postulados têm resultados
perniciosos, de fato. As sociedades não são entidades com fronteiras claras e distintas.
Essa imagem resulta na dicotomia entre estrutura interna e influência externa, deixando
problemas perenemente sem solução. Ao invés disso, argumentarei que precisamos
enxergar as sociedades sempre como partes de sistemas mais vastos: isto nos permitirá
resolver a dicotomia entre interno e externo. Ao mesmo tempo, sociedades, economias,
culturas e estados não possuem necessariamente as mesmas fronteiras, como a imagem
dominante do estado nacional ajuda a reforçar; ao contrário, eles têm fronteiras
variáveis, que dependem do contexto histórico e de seu lugar em sistemas maiores.2
Além disso, as sociedades (ou economias, ou estados, ou culturas) não são homogêneas:
são compostas por uma variedade de níveis, e incluem uma variedade de instituições e
grupos que não possuem necessariamente os mesmos fins nem os mesmos arranjos, e
nem as mesmas escalas temporais. Por todas essas razões, o tempo histórico não é
linear. Existem várias durações para o tempo histórico; e os processos, instituições,
redes e grupos diferentes possuem sua própria escala temporal. Desse modo, podemos
evitar a dicotomia perene entre estrutura e mudança, e compreender como estrutura e
mudança coexistem e interagem ao mesmo tempo como escalas de tempo interligadas.

1
Tilly 1984: 11.
2
Ver argumentos de Davies 2001:20-2

93
Assim sendo, ao invés de uma entidade homogênea e solitária (sociedade,
economia, cultura, estado) movendo-se de modo linear de um estágio ao próximo,
temos que visar uma multiplicidade de níveis, processos, instituições e grupos, com
várias fronteiras, escalas temporais e interconexões formando partes de sistemas
mundiais mais vastos, e se movimentando em uma variedade de direções de modo
concorrente.3 Não é um consolo para aqueles que se sentem confortáveis com meta-
histórias longas e lineares, tal como as principais narrativas eurocêntricas. Apesar disso,
a al erna i a propos a aqui n o uma “his ria em migalhas” p s-moderna. Ao invés da
segurança intelectual das antecipações teóricas abstratas (as sociedades emergem e se
movem da estabilidade estrutural à crise), ou das meta-histórias eurocêntricas (a história
da Grécia é o começo da história do Ocidente), argumento que apenas uma análise
histórica contextual e específica pode mostrar como as sociedades, economias, culturas
e estados se conformam, como compõem e dissolvem sistemas-mundo e como a
variedade de escalas temporais se traduz em desenvolvimento histórico. A história da
Antiguidade grega precisa ser reescrita a partir de uma tal perspectiva; mas isso não será
feito no contexto atual. É impossível antes que se esclareçam os pontos básicos da
abordagem dominante, e que uma alternativa conceitual seja claramente articulada. Esse
é o único objetivo dos capítulos que se seguem.
O capítulo sobre o Oriente Próximo se constitui como uma crítica do antigo
discurso sobre a pólis grega e o despotismo oriental, que se trata com certeza,
basicamente, de um discurso sobre as origens ocidentais da democracia e da liberdade, e
e uma enega o os “ou ros” es agna os e esp icos le mos ra o qu o equi oca o
é esse quadro das sociedades próximo-orientais como despotismos, enquanto se
apresenta as pólis gregas como um fenômeno único. O capítulo também procura mostrar
que a política deveria ser vista como um aglomerado com múltiplos níveis, que não são
organizados necessariamente da mesma forma: a alta política autoritária da diplomacia e
da guerra pode diferir consideravelmente da política popular organizada sobre
princípios muito diferentes. Finalmente, esclarece por que temos que descartar a noção
de um estado soberano, e por que nossa compreensão da política ou da democracia
precisa levar em consideração sistemas-mundo mais vastos e suas conjunturas.
O próximo estudo de caso concerne à comparação entre a pólis grega antiga e a
cidade européia medieval / moderna inicial; essa comparação se constitui basicamente
como um discurso sobre por que o Resto (gregos e romanos antigos, nesse caso) não
seguiram a trilha econômica do ocidente em direção ao progresso, ao capitalismo e à
industrialização. Procuro mostrar o quão equivocado é olhar para a histórica econômica
a partir de um viés eurocêntrico. Esclareço ainda que tal dicotomia se assenta sobre uma
visão ultrapassada e simplista tanto das pólis gregas como das cidades européias
medievais e modernas; e argumento que a abordagem ortodoxa não consegue
compreender os diferentes níveis da economia e o fato de que as economias são partes
de sistemas-mundo mais vastos. Finalmente, os últimos cinco capítulos apresentam e
articulam um quadro alternativo e suas ferramentas conceituais. Nesse ponto, haverá
uma introdução separada.

3
Para uma crítica dessa concepção homogeneizante da modernidade, ver Yack 1997.

94
CAPÍTULO 4

Oriente e Ocidente, Grécia e o Oriente: pólis vs. despotismo oriental

Como já foi discutido, a pólis tem funcionado como um demarcador de fronteira


a fim de separar a história das comunidades gregas daquela das comunidades do Oriente
Próximo. Isso foi consolidado pela construção de um contraste entre a pólis grega como
uma comunidade de cidadãos e o despotismo oriental. Esse contraste se encontra bem
arraigado entre os acadêmicos no mundo moderno e será desafiado nesse capítulo, numa
tentativa de demonstrar que a justaposição constrói de modo equivocado aquilo que
precisa ser comparado, e representa muito mal as realidades próximo-orientais. Há,
portanto, uma clara necessidade de reconsiderar essa velha dicotomia. Temos
predecessores nessa tarefa?
Já existem alguns trabalhos promissores tentando superar as dicotomias
orientalistas, mas essas tentativas preocuparam-se principalmente com a história cultural
e religiosa;1 história econômica, social e política apenas recentemente começou a
beneficiar-se de uma tal abordagem inovadora, mesmo assim em um escopo limitado.2
Além disso, este tipo de trabalho tem um certo limite. Pergunta-se pelas influências
orientais na cultura e religião grega antiga; não se questiona diretamente o sentido das
duas en i a es us apos as e n o se en a escre er uma “his ria cone a” 3 Estou
tentando fazer algo mais desafiador, porém limitado: meu objetivo é uma mudança de
perspectiva. Ao invés de ser o ancestral auto-referente do Ocidente, a história grega
pode ser vista no âmbito de uma história dinâmica do Mediterrâneo oriental. Podemos
ver a história grega a partir do ponto de referência do Oriente Próximo e do
Mediterrâneo, tanto em fases mais antigas como mais tardias, sem formar um ponto de
vista europeu imaginário. Se o despotismo oriental não é senão um mito eurocêntrico,
então a história grega e a pólis podem ser vistas de um ponto de partida totalmente
modificado.4 Mas infelizmente, não seguirei essa talvez mais promissora tarefa de
escre er uma “his ria cone a” nesse es u o car ncia e pesquisa e e ferramen as
metodológicas faz com que isto seja atualmente impossível; todavia, ao seu tempo, os
resultados da mudança de perspectiva serão, eu espero, suficientemente compensadores.
Uma observação final sobre metodologia se faz necessária aqui. Somos
dependentes da natureza de nossa documentação. Nosso recurso à história do Oriente
Próximo depende, deixando de lado as evidências arqueológicas, das inscrições em
materiais duráveis e, esmagadoramente, de tabletes de argila. Esses tabletes de argila

1
Burkert 1992; Miller 1997; West 1997.
2
Hornblower 1982 é uma exceção em história política; ver também os artigos em Raflaab 1993b. Em
história econômica, ver Andreau et. Al. 1994, 1997. Os vários Achaemenid History Workshops fizeram
muito para revisar a história do império persa, mas tiveram um efeito bem limitado na escrita da história
grega.
3
Uma crítica que tem seus ecos em Dougherty e Kurke 2003b: 2-5 ara uma agen a as “his rias
cone as” er u rahmanyam 1997; er am m amman 2001
4
Ver as observações de Flemming 2004: XI-XIV.

95
constituíam apenas um dos meios usados no Oriente Próximo e o seu uso declina
gradualmente tanto geograficamente, na medida em que nos movemos da Mesopotâmia
ao Levante e ao Mediterrâneo e cronologicamente a medida que nos aproximamos do
primeiro milênio, quando os tabletes de argila em Arcádio foram substituídos por
pergaminhos em aramaico. Portanto, sabemos menos sobre as sociedade que estavam
próxima dos gregos antigos, tanto geograficamente (Ásia Menor, Levante, Fenícia)
como cronologicamente (o primeiro milênio AEC). Essa falta progressiva de evidências
a medida que nos aproximamos do mundo grego geograficamente e cronologicamente, é
um problema desconcertante que pode ser superado apenas parcialmente. 5 Porém, como
nesse trabalho eu não pretendo escrever uma história conexa do Mediterrâneo oriental, a
ausência de evidências para as comunidades próximo-orientais contemporâneas não é
um problema insuperável; nosso estudo comparativo de questões conceituais e
metodológicas é igualmente válido, quer lidemos com o terceiro milênio ou primeiro.
Percebo também que Heródoto e outros autores gregos tem pouco a dizer sobre
as sociedades do Levante, enquanto disseram muito sobre o Egito, a Pérsia e a Cítia;
podemos entender isso como um sinal de que os gregos percebiam grandes
similaridades entre o Levante e suas próprias sociedades e portanto restringiam seus
discursos comparativos ao Egito, Pérsia e Cítia, que apresentavam diferenças óbvias e
exploráveis discursivamente para com suas próprias sociedades?6 Arrisco uma resposta
afirmativa e deixo assim; mas isso certamente valeria um estudo mais aprofundado.
Uma segunda questão relativa à documentação é igualmente importante. É
impossível oferecer uma definição próximo-oriental de liberdade, política ou cidadania.
Não temos textos que discutam explicitamente esses conceitos, nenhuma Política
próximo-oriental. Portanto, é impossível fornecer um tratamento sistemático aos
assuntos que nos interessam. Somos muito dependentes do caráter fragmentário e
parcial das nossas fontes. A única maneira de estudar a cidadania ou o auto-governo é
traçando os usos implícitos de palavras e práticas, tal como refletidas em documentos
administrativos e econômicos, ou em textos literários. 7 Mas sejamos francos em relação
as implicações disso: não se trata de uma particularidade do Oriente Próximo, refletindo
a falta de importância ou inexistência desses fenômenos por lá. Ao contrário, esta é a
situação normal da vasta maioria das comunidades gregas. Quantos decretos públicos
dos cidadãos nós temos durante o período clássico de pólis importantes como Corinto,
Tebas, Samos ou Esparta, isto para não mencionar o vasto número de pólis pequenas?
Pouquíssimos de fato.8 E mesmo quando os temos o quão freqüentemente podemos
estabelecer quem tinha o direito a cidadania e em que termos? Com efeito, a ausência
desse tipo de evidência induziu os especialistas a assumir implicitamente, ao falar da
pólis grega em geral, uma situação de sufrágio geral adulto masculino, como em Atenas,

5
A triste escassez de fontes escritas para as cidades fenícias para os períodos arcaico e clássico é
claramente visível em Elayi 1987.
6
Hartog 1986, 1988a.
7
Sobre as questões metodológicas envolvidas, ver van de Mieroop 1997a, 1997b, 1999a.
8
Ver a coleção de Rhodes com Lewis 1997.

96
apesar das claras advertências de Aristóteles sobre o contrário.9 De fato, no caso ímpar
em que realmente temos alguma evidência, ela aponta para direções que vão tão longe
do modelo ateniense quanto possível. Uma famosa inscrição da Lócrida do século V
constitui um exemplo esclarecedor: encontramos grupos (clãs?) dos Perkothariai e dos
Mysacheis, presentes em todas as comunidades da Lócrida e possuindo suas próprias
leis e privilégios especiais, a parte de outros cidadãos.10
Não devemos, então, fazer um caso muito sério da ausência de evidências
explícitas da cidadania e vida cidadã no Oriente Próximo. De fato, apenas a preservação
da Política de Aristóteles nos permite falar sobre a pólis e a cidadania grega em termos
mais gerais, e não simplesmente sobre as modalidades específicas mas excepcionais de
Atenas e Esparta. Isto não é portanto uma prática nova, já que se trata do único
procedimento deixado para o especialista que deseja estudar as mesmas questões na
grande maioria das sociedades gregas fora Atenas e Esparta. O que faremos é perguntar
questões específicas de acordo com o material disponível. Esse procedimento, embora
não possa levar a uma compreensão total e abrangente dos pontos de vista e realidades
próximo-orientais concernindo à cidadania, comunidade e auto-governo poderá traçar,
assim espero, pontos consistente e suficientes para demonstrar o nosso caso. Nas
páginas que se seguem, focalizarei três aspectos: uma identidade política centrada na
cidade; a cidadania; e auto-governo.

QUESTÕES GERAIS

O poder do Orientalismo é certamente sentido na disciplina da história antiga.


Falar sobre cidadania e auto-governo no antigo Oriente Próximo empinaria um número
substancial de sobrancelhas. Moses Finley refletia os preconceitos de um número
considerável de colegas seus quando declarava que o conceito de liberdade era
impossível de traduzir em qualquer língua oriental.11 Diante dessas visões bem
estabelecidas, argumentarei que a cidadania, o auto-governo e a identificação com uma
pólis eram propriedade comum em muitas partes do antigo Oriente Próximo. Em outras
palavras, tentarei mostrar que uma definição mínima de pólis pode ser aplicada com
sucesso ao Oriente Próximo.
Antes de ir além, contudo, sou obrigado a lidar com essas pré-concepções muito
bem arraigadas. Lidarei com a crença de que o conceito de liberdade era desconhecido
no Oriente Próximo e que as distinções entre escravos e livres não eram claras.
Sobre a primeira sentença de Finley, é difícil entender como ele pode
permanecer tanto e com tanta freqüência em um argumento tão auto-contraditório. Os
gregos não tinham nenhuma palavra para religião mas certamente, ninguém acredita que
eles não tinham deuses nem práticas de culto. O fato é que eles não organizavam nem

9
Política, 1278a, 15-35. Tive muita dificuldade em encontrar qualquer artigo discutindo os direitos de
cidadania fora de Atenas e Esparta: ver Ostwald 2000.
10
Meiggs e Lewis 1969: nos. 20, 22–8. Ver Koerner 1993: 172–202; an ffen erre e ‘ ossi 1994 178–
85.
11
Finley 1973b: 28.

97
categorizavam seus cultos e crenças da mesma maneira que os europeus ocidentais o
fizeram a partir do começo da época moderna.12 Assim sendo, o fato de que os povos do
Oriente Próximo não categorizavam suas relações sociais do mesmo modo que os
gregos fizeram não implica que a única forma de compreender a relação entre
escravidão e liberdade seja a de usar o discurso de liberdade, e que toda civilização que
não use esse discurso não tenha nenhuma relação com a liberdade. 13 É um antigo hábito
do pensamento eurocêntrico postular o caminho da história da Europa Ocidental, da
antiguidade ao presente, como a ordem natural das coisas.
Dito isso, escravidão e liberdade são importantes para as questões de cidadania e
auto-governo. Se aceitarmos a ausência de distinções clara entre escravidão e liberdade
propostas por Finley, é difícil imaginar qualquer tipo significativo de cidadania e auto-
governo. Mas a distinção entre escravo e livre é clara nas fontes do Oriente Próximo. Na
Mesopotâmia, onde nossas fontes existem em maior quantidade e são mais claras, pode-
se distinguir entre as seguintes categorias: (a) os cidadãos livres, (b) pessoas livres que
não tinham cidadania e não podiam possuir terras no território da cidade (usualmente
colonos militares e outras pessoas livres ligadas com o rei), (c) populações semi-
dependentes, mas não escravas, que usualmente constituíam a força de trabalho dos
palácios e dos templos, e finalmente, (d) escravos.14
A distinção entre as categorias era clara e na maioria dos casos uma pessoa não
poderia passar de uma categoria a outra: um cidadão não poderia ser legalmente
escravizado, um escravo liberto não podia se tornar cidadão, e por aí vai. 15 Os registros
neobabilônicos de vendas de escravos fornecem uma boa ilustração. O vendedor tinha
que garantir que o escravo à venda não tinha nem o status de escravo real ( d-
u),16 nem aquele de uma pessoa livre ( -banûtu).17 Cada categoria tinha claros
direitos, privilégios e obrigações: um escravo não podia participar da assembléia dos
cidadãos nem comprar uma “pre en a” is o a quirir irei os que po eriam ha ili -
lo a o er par e as ren as o emplo um irei o reser a o apenas aos ci a os “
reivindicação de cidadania e de seus privilégios numa cidade mesopotâmica baseava-se
não apenas no fato de uma pessoa ter nascido lá de pais livres, mas ainda na propriedade
e ens im eis no in erior os muros a ci a e ”18 Esta é uma explicação do costume
de casas ou lotes descritos como ezibtu “que so raram” uan o a necessi a e
econômica forçava o proprietário a vender sua casa, ele manteria um pequeno lote afim
de manter também seus direitos de cidadania. Cidadãos não podiam ser designados para
o exército ou corvéia. Eles também não tinham restrição de movimento e podiam dispor
de sua força de trabalho do modo que lhes aprouvesse. Podemos mesmo ouvir rumores
de greves em casos em que os oficiais do templo não tinham fundos para pagar

12
Sobre as atitudes gregas ver Vegetti 1995; sobre as construções européias da categoria de religião, ver
Asad 1993: 27-54.
13
Sobre as atitudes próximo-orientais, ver o interessante Snell 2001.
14
Dandamaev 1974.
15
Greengus 1995.
16
A fim de evitar qualquer problema com as autoridades reais.
17
Dandamaev 1984: 182–3.
18
Oppenheim 1969: 15.

98
trabalhadores livres e os trabalhadores recusavam-se a continuar a trabalhar até que
fossem pagos pelo seu trabalho.19
Podemos adicionar muitos outros exemplos, mas acredito que a situação é clara;
os cidadãos livres estavam bem demarcados com relação às outras categorias, embora
existissem diferenças importantes tanto dentro do corpo dos cidadãos como no interior
das populações escravas dependentes.20 A situação era similar a do mundo grego onde
os arcontes ricos encontravam-se em um nível diferente daquele dos cidadãos
camponeses pobres, e os escravos com propriedade considerável sob seu controle
diferiam dos escravos das minas.21 Uma observação final: a existência da cidadania nas
cidades do Oriente Próximo é uma realidade reconhecida pelos próprios gregos. Não
vou indicar novamente a existência das politeiai aristotélicas dos lícios e dos
cartagineses. Quero chamar a atenção para uma inscrição da pólis ateniense em
homenagem ao rei da cidade fenícia de Sidônia.22 O decreto contém um bom número de
pri il gios para “aqueles que m irei os pol icos politeuousi na i nia e i am l ”
isto é em outras palavras, os cidadão de Sidônia. É importante observar que para os
atenienses a existência de uma monarquia não excluía per se a existência de cidadania,
mesmo em um estado próximo-orien al “ r aro”

IDENTIDADE DE CIDADE

Encontra-se bem estabelecido que se pode reconhecer o que Hansen denominou


culturas de cidade-estado em muitas partes do antigo Oriente Próximo especialmente na
Mesopotâmia, Síria e Fenícia.23 A referência à cidades fenícias nos documentos neo-
assírios do primeiro milênio é um bom exemplo. Algumas vezes a referência a uma
cidade fenícia é feita por meio do nome da cidade ou étnico (Tiro, tíreos p.106)
acrescido de um sinal determinativo que significa o conceito de cidade; em outros casos
por meio do topônimo ou étnico mais um sinal designando uma região; finalmente em
outros casos com topônimo ou étnico mais o sinal designando o povo; temos aqui
conceitos de cidade, estado e comunidade, como nas pólis gregas.24 Nessas regiões a
unidade política primária era a cidade ( lu em acádio), funcionando com um centro
político e controlando um território maior ou menor.25
Certamente, a cidade-estado podia expandir-se e criar um macro-estado ou
mesmo um império, mas para um grande período de sua história milenar essas
expansões imperiais permaneceram instáveis e destinadas ao colapso; havia um ciclo
repetido de centralização e colapso, e usualmente nenhuma cidade era capaz de criar um

19
Dandamaev 1987.
20
Dandamaev 1984: 67-80.
21
Cohen 2000: 130-54.
22
Tod 1948: 116-19.
23
Hansen 2000a, 2000c.
24
Ver Elayi 1987: 40-1; ver também Flemming 2004: 190.
25
Van de Mieroop 1997b.

99
império novamente.26 Além disso, mesmo quando uma cidade-estado criava um império
e dominava outras, isto em geral não significava anexação e consolidação; ao invés
disso as cidades-estados dominadas permaneciam como entidades políticas separadas,
mas seus governantes tornavam-se ou vassalos do senhor, ou eram depostos e
substituídos por governantes nomeados pelo chefe maior.27
Foi apenas em meados do segundo milênio, e após mais de 1500 anos de cidade-
estado, que a Babilônia e a Síria foram transformadas em reinos unificados e as cidades
se tornaram meras municipalidades administrativas com auto-governo apenas local. De
qualquer modo, essas consolidações nunca ocorreram na Síria e na Fenícia onde as
cidades-estados continuaram a funcionar como entidades políticas, com ou sem um
po er superior ermo “fen cios” por e emplo um ermo es rangeiro; os fenícios
sempre definiram eles mesmos como cidadãos de cidades individuais, por exemplo,
tírios, sidônios, bíblios, etc.28
Mesmo no âmbito do reino unificado da Babilônia a única identificação política
disponível era a das cidades: não havia nenhuma identidade política mais vasta. Um
súdito do rei da Babilônia era sempre um cidadão de uma cidade (ou um membro de um
grupo tribal) nunca um cidadão da Babilônia. Não havia sequer uma palavra para
descrever o conjunto do reino, mas apenas palavras para regiões particulares (Suméria,
c ia as o ar ; o rei era simplesmen e “o rei a a il nia” sempre
identificada como a cidade dominante.29 As pessoas davam aos seus filhos nomes
derivados do nome de sua cidade, celebrando sua identificação com ela. A identificação
com a cidade não era simplesmente sentimental: em casos judiciais, por exemplo,
envolvendo cidadãos de diferentes cidades, juízes de ambas as cidades se reuniriam para
dar a sentença.30 Em certos casos a cidade como comunidade era diferenciada da pessoa
do rei: em uma inscrição fenícia, o rei da Sidônia e seu filho anunciam que irão
a icionar as ci a es e Dor e Joppe “às fron eiras o erri rio que per ence aos
si nios para sempre” 31 O território é descrito como pertencendo à comunidade cívica
e não próprio rei.
Um dos aspectos mais importantes da identidade de cidade eram os privilégios
que acompanhavam o status citadino.

Aos residentes era garantido um alto grau de independência,


especialmente a isenção das taxas reais da corvéia e dos deveres
militares, que eram as áreas mais importantes de interação entre
o rei e seus súditos. Também a integridade física dos cidadãos
era garantida e o seu sangue não podia ser derramado pelo rei ou
seus representantes. A liberdade com relação as taxas e serviços
era considerada resultado de proteção divina sobre as cidades,

26
Stone 1997.
27
Larsen 2000a.
28
Elayi 1987; 1-2.
29
Brinkman 1984.
30
Ver o caso em Sippar, Harris 1975: 127-8.
31
Elayi 1987: 42.

100
indicada pelo termo acádio kidinnu, uma segurança reforçada
pela divindade, que era provavelmente simbolizada por um
emblema colocado em um lugar proeminente nas cidades.32

O conceito de kidinnu já é mencionado em textos do segundo milênio. Mas foi


apenas no primeiro milênio, quando o reino da Babilônia desintegrou-se e o novo
império assírio precisava assegurar suas posições no sul, que os cidadãos das cidades
babilônicas tiveram a chance de melhorar e melhor proteger seus direitos. Os reis
assírios pressentiam que era de importância decisiva garantir o kidinnu das cidades
babilônicas, a fim de cultivar seu relacionamento com os babilônicos, como provam as
numerosas referências em suas cartas.33 Numa famosa carta dos cidadãos da Babilônia
ao rei assírio Assurbanipal eles afirmam:

então do mesmo modo (nós nos ocupamos com a proteção)


daqueles que habitam nosso território mais vasto, seja senão
uma mulher do Elam, de Tabalu, ou de Ahlame. Os reis nossos
senhores (disseram) dando-nos seu conselho “os euses eram
a vocês [babilônios] um compreensão acurada e um grande
espírito, pois vocês são uma raça cosmopolita, já que a
Babilônia é o laço entre as terras. Cada homem entrando na
cidade, não importa quem ele seja, sua kidinnutu será
assegura a ‘a a ri ui o e uma casa a a il nia’ o nome
do (novo) cidadão. Nenhum cão que entre aí será assassinado...
assim como as mulheres que (estão na Babilônia) sua kidinnutu
(será salvaguardada) conosco” grifo meu]34

No chamado Conto de um pobre homem de Nippur o “prefei o” hazannu) de


Nippur protesta por ter sido espancado por um suposto emissário real argumentando:
“meu senhor n o es rua um homem e ippur; com o sangue e um homem e
kidinnu sagra o ao eus nlil n o profane suas m os ”35 Nos períodos neo-babilônio e
persa, mudanças nas circunstâncias geopolíticas levaram a um declínio na importância
da kidinnu; os reis persas não precisavam das cidades babilônias em um mundo instável
com reinos e comunidades inimigas vizinhas; eles agora reinavam sobre um território
consolidado, e a lógica do reconhecimento dos direitos dos cidadãos mesopotâmios
tinha partido.

AUTO-GOVERNO

32
Van de Mieroop 1997b: 135.
33
Ver Waterman 1930: no. 301; Revive 1988.
34
Pfeiffer 1935: no. 62.
35
Reviv 1988: 291.

101
Isso nos leva à direção do auto-governo, e de fato é impossível separar a questão
da cidadania daquela do auto-governo, porque nosso único modo de compreender o que
é a cidadania é observando o que ela faz. Podemos destacar três aspectos: deliberação
política e administração da vida da cidade, a conciliação de disputas e a representação
da comunidade diante de autoridades superiores. Para todas essas três questões é
importante prestar a atenção em uma quarta: as ações através das quais os cidadãos
organizavam suas atividades. Podemos identificar claramente as principais: magistrados
e assembléias, em uma perfeita combinação aristotélica.36

MAGISTRADOS E ASSEMBLÉIAS

Magistrados tinham um papel importante nas cidades do Oriente Próximo.37 É


crucial fazer uma separação aqui. Alguns magistrados eram claramente designados por
poderes externos, usualmente reis estrangeiros que poderiam possuir o controle da
cidade em particular no momento (como os supervisores do templo que eram persas).38
Tratava-se basicamente de supervisores para a mais alta autoridade, como toda
autoridade imperial fez desde sempre (assim como os atenienses, 39 espartanos 40 ou
phrourarchoi e supervisores ptolomaicos41) e eles não eram normalmente cidadãos da
cidade que governavam. Em segundo lugar, eles eram oficiais na cidade (como o
principal magistrado da cida e o assim chama o “prefei o” hazannu) em cuja
designação, por conta de seu papel importante, a autoridade estrangeira ( o rei) poderia
ter um interesse: interesse que ia desde a nomeação externa explícita (imposição) até a
supervisão discreta da escolha local.

Essas cartas indicam que a comunidade local em situações


normais deveria sugerir um candidato, e ficava a cargo do rei
assírio ratificar e aceitar sua escolha (...) Apesar da terminologia
utilizada usualmente de "governador" para esses cargos, estamos
lidando com um sistema que deveria ser descrito efetivamente
enquanto vassalagem ao invés de administração provincial
imperial. As elites locais proviam os candidatos à liderança,
sugeriam aos assírios aqueles que por eles poderiam ser
aceitáveis e estavam envolvidos diretamente na determinação de
assuntos como os de obediência política.42

36
Política, 1275a 1-1275b 21.
37
Van de Mieroop 1999b.
38
Babilônia, II-II milênios: Stone, 1997; Babilônia assíria: Brinkman 1979; Babilônia persa: Dandamaev
1977; Babilônia selêucida: van der Spek 1987.
39
Meiggs 1972:205-19.
40
Cartledge 1987:90-8.
41
Bagnall 1976.
42
Larsen 2000a: 123.

102
Finalmente, existiam muitos oficiais (principalmente de baixo escalão) que eram
selecionados pelos cidadãos, sem nenhuma interferência externa muito óbvia. As
assembléias constituíam o segundo agente importante da vida da cidade. Temos
evidências assírias concernindo à assembléia dos guardiães da cidade (babtum) e à
assembléia da cidade ou do templo (puhrum). Como as assembléias da cidade
funcionavam? O nosso testemunho mais claro vem das colônias assírias da Anatólia, na
primeira metade do segundo milênio AEC. Os milhares de tabletes de correspondência
entre colonos negociantes assírios e seus parentes e parceiros na metrópole de Assur nos
permitem reconstruir com detalhes suficientes as estruturas cidadãs das colônias e em
certa medida as da metrópole. Assur tinha um rei, mas seu papel era um tanto
circunscrito, até que no final do século XVIII AEC o líder de uma tribo amorita veio a
se tornar rei de Assur, ampliando a autoridade real e criando um extenso reino
territorial.43 Mas antes disso, a vida da cidade parece ter girado em torno do corpo de
cidadãos de suas assembléias. Sabemos que a cidade tinha um arconte epônimo
escolhido anualmente (limmum), que era usualmente um membro da alta aristocracia e
designado por sorteio. O cargo era de grande importância, já que possuía funções
financeiras (a coleta de dívidas e taxas de exportação), e era uma contra parte ideológica
ao rei; de fato, os escavadores de Assur encontram duas fileiras de estelas, uma delas
dedicada por reis e rainhas, a outra por arcontes epônimos depois de seu período de
serviço.44
Entre o grupo de cidadãos podemos diferenciar entre a cidade concebida como a
totalidade de cidadãos ( lu ) e o grupo chamado de anciãos ( b u); encontramos nos
textos expressões como "a cidade e os anciãos" (muito parecido com a expressão grega
usual edoxe têi boulêi kai toî dêmoî/têi polei, porém com a prioridade invertida). Nos
textos das antigas colônias assírias, encontramos uma classificação entre homens
"grandes" e "pequenos". De acordo com os assim chamados "estatutos" da colônia de
Kanesh,

um processo envolvendo pelo menos duas partes é trazido aos


cuidados do conselho dos "homens grandes" que irão investigá-
lo. Eles podem, aparentemente, quer dispensá-lo, quer passá-lo
para a assembléia, ordenando ao secretário da colônia que reúna
aquele corpo. A decisão de passar adiante a questão e reunir a
assembléia primária precisa ser tomada por uma maioria de
"homens grandes" (...) minha interpretação leva à conclusão de
que a administração colonial baseava-se num sistema bicameral,
e a relação entre as duas "câmaras" corresponde bem de perto
àquela que podemos encontrar em outros sistemas similares,
como nas cidades-estados gregas.45

43
Larsen 2000b.
44
Larsen 1976: 192-217.
45
Larsen 1976: 294-5.

103
Em muitos casos essas assembléias tinham poderes completamente
independentes dos reis da cidade com os quais coexistiam. Um caso da Síria no século
XVIII é revelador. Zimri-Lim, o rei de Mari, ordena que dois indivíduos da cidade de
Urgiš devolvam a propriedade que eles conseguiram ilegalmente. Os dois indivíduos
não retornam a Terru, o rei de Urgiš, para resolver a disputa; ao invés disso "eles foram
à rgiˇs e solici aram uma reuni o puhrum). Os de Urgiš então responderam:
liberemos tudo do confisco."46 Vemos aqui os cidadãos sobrepondo-se à autoridade do
rei e usando o seu corpo de decisão coletiva afim de decidir a questão. É interessante
notar que a palavra para reunião (puhrum) é utilizada para designar o próprio encontro
que não se pronuncia. Quando o povo fala, ele fala como cidade, como os de Urgiš.
É muito difícil determinar quem realmente participou na assembléia. Um
exercício de escriba datado do segundo milênio fornece o registro de um julgamento de
homicídio, levado a cabo pela "assembléia de Nippur". Entre as pessoas que falaram na
assembléia encontramos um caçador de pássaros, um oleiro, dois jardineiros e um
soldado. O fato de que este registro tenha servido como exercício provavelmente
implica que a composição de uma tal assembléia era bastante convencional. Demonstra
que uma variedade de profissões não apenas tinha o direito mas o tempo para tomar
lugar na assembléia.47

O participante em uma assembléia claramente assumia um perfil


público e encontrava-se vulnerável à humilhação pelos seus
concidadãos. O medo em relação a isso expressa-se em orações
aos deuses: "não me abandone, meu senhor, à assembléia, onde
estão muitos que me desejam mal. Não me deixe sofrer injúrias
na assembléia."48

O corpo de cidadãos estava dividido internamente de dois modos. O primeiro


deles é aquele encontrado na maior parte da história mesopotâmia, a divisão em
guardiães da cidade. Mas o que é mais interessante para o historiador da Grécia antiga é
uma nova divisão que aparece no primeiro milênio AEC. Enquanto anteriormente um
cidadão na Mesopotâmia era identificado apenas pelo seu nome e pelo seu patronîmico
ou sua ocupação, a partir do começo do primeiro milênios os mesopotâmios começaram
a vincular aos seus nomes um terceiro nome de ancestral. Encontra-se provado que
esses nomes não eram nomes de ancestrais verdadeiros, já que existia apenas um
número restrito deles, e eles eram compartilhados por pessoas demais para serem seus
ancestrais. Portanto, a conclusão a que chega um número crescente de especialistas é de
que eles eram grupos fictícios de parentesco,49 de modo semelhante aos grupos
igualmente fictícios de tribos e frátrias das pólis gregas.50 Se essa conclusão for aceita, e
obviamente existe muito trabalho a ser feito nessa direção, então as similaridades no

46
Flemming 2004: 198.
47
Van de Mierrop 1997b: 122-3.
48
Van de Mierrop 1997b: 127.
49
Van de Mierrop 1997b: 107-10; ver também Larsen 2000a: 121.
50
Para o caráter fictício das phylai gregas, ver Bourriot 1976; Roussel 1976.

104
momento da emergência na função entre as cidades gregas e mesopotâmias são
realmente estimulantes.

DELIBERAÇÃO POLÍTICA

Após a revisão desses modos de agir da ação política, é hora de analisar as


práticas de auto-governo. Nosso primeiro aspecto é a deliberação política. Possuímos
evidências em abundância para mostrar que a deliberação política era um importante
aspecto da vida cívica do Oriente Próximo. Recorrerei a três casos, as cidades da Síria-
Palestina no segundo milênio AEC, tal como figura na correspondência real encontrada
em Amarna, no Egito, as comunidades sírias do século XVIII AEC refletidas nos
arquivos de Mari, e as cidades babilônias, tal como retratadas na correspondência com o
suserano assírio no período entre 800-600 AEC. Esses casos são escolhidos não apenas
por causa da quantidade de evidências, mas também porque a instabilidade política e os
realinhamentos contínuos nos permitem tornar visível um certo número de questões que
não são mencionadas comumente nas fontes em períodos de estabilidade.
As cidades sírias e palestinas eram usualmente governadas por reis locais,
embora algumas vezes esses reis fossem assassinados ou não houvesse reis de modo
algum e as cidades negociassem em seus próprios termos com outros poderes políticos.
Os homens da cidade de Keilah, uma cidade em que nenhum rei é mencionado, jogam
um governante contra o outro e mudam as alianças em curto período de tempo.51 Rib-
Addi, o rei de Byblos, de fato vai tão longe que chega a mencionar a oposição interna
dos cidadãos de Byblos contra a sua política externa de alinhamento com o Egito:

Quando o povo de Gubla [Byblos] viu isso (eles disseram) "Por


quanto tempo mais devemos conter o filho de Abdi-Ashirta [um
rei inimigo]? Nossos recursos foram todos embora por causa da
guerra." Então eles vieram contra mim, mas eu os matei. Eles
disseram, "Por quanto tempo você pode continuar nos matando?
Onde é que você vai conseguir pessoas para viver na cidade?"
Então eu escrevi ao palácio solicitando tropas, mas nenhuma me
foi concedida. Então a cidade disse, "abandonemos ele. Vamos
nos juntar à Aziru"[um rei hostil do Egito]. Eu disse, "Como
posso juntar-me a ele e abandonar o rei, meu senhor?" Então
meu irmão falou e jurou à cidade. Eles discutiram e os senhores
da cidade [o termo significa provavelmente os donos de
propriedade] juntaram-se aos filhos de Abdi-Ashirta.52

51
Moran 1992: nos. 280, 289, 290.
52
Moran 1992: nos. 138, 221-2.

105
Nos arquivos de Mari encontramos um grande número de casos de decisões
políticas coletivas. Aqui eu reproduzo apenas algumas das mais eloquentes, que
concernem a cidade dupla de Isqâ e Qâ e a cidade de Tuttul:

Ouvi as seguintes notícias vindas daqueles de Isqâ e Qâites.


"Eles foram chamados (ao serviço), (com) provisões para dez
dias. Eles vão (se juntar) aos reforços de Hammurabi." Quando
ouvi essa informação escrevi à Yamrus-el e aos anciãos de Isqâ
e Qâ, e os chefes (das casas) de Qâ e Isqâ reuniram-se comigo -
um grupo de 200 como um homem. Nesse ponto, eu me dirigi a
eles como se segue.53

O tahtamum, uma forma institucionalizada de conselho parece ter um poder


considerável para representar a comunidade e resistir aos desígnios dos magistrados
reais:

A respeito das taxas de sirum de meus senhores que se fazem


recair sobre os de Tuttul, logo que me sentei no conselho de
tahtamum uma, duas, mesmo três vezes e fiz a eles minha
solicitação, esses homens escreveram uma, mesmo duas vezes, a
Imar.54 Sentei-me no tahtamum (para conseguir que fossem
cortadas mil árvores) e falei a eles (sobre isso), (mas) eles não
consentiram.55

Um caso na Babilônia do século XVIII mostra-se igualmente revelador. A


Babilônia estava então sobre o controle do rei caldeu, e os assírios tentavam negociar
com os babilônios para retomar o controle da cidade. Os enviados assírios relataram que
tiveram que conduzir sua entrevista com oficiais babilônios fora dos portões principais
da cidade, não sendo convidados a entrar na cidade; os babilônios, presumidamente
membros do conselho de anciãos, vieram para fora dos portões falar com os assírios, e
eles nos contam que pessoas representando o rei caldeu estavam presentes durante as
conversações, embora eles não tenham sido avisados para participar das discussões.
Mais tarde ouvimos sobre um grupo de dez e outro grupo de cinco que apesar de
estarem presentes na cidade não vieram tomar parte nas negociações.56 Outro caso
muito interessante do século XVII é apresentado, quando a Babilônia estava sob o
controle do irmão rebelde do rei assírio. Temos um certo número de cartas do rei assírio
aos babilônios tentando convencê-los à secessão contra o seu irmão rebelde. A questão
interessante é a de onde as cartas estavam sendo entregues e a quem, já que seria difícil
preparar um tal assembléia na Babilônia enquanto o rei rebelde ainda estivesse residindo

53
Flemming 2004: 185.
54
Flemming 2004: 189.
55
Flemming 2004: 211.
56
Larsen 2000a: 124-5.

106
lá.57 Contudo, fica claro que os cidadãos tinham procedimentos de deliberação pública e
que os governantes levavam isso muito a sério em seus planos políticos.

SOLUÇÃO DE LITÍGIOS

A solução de litígios no antigo Oriente Próximo raramente foi abordada de


qualquer ângulo que não seja o legalista. Portanto, a maior parte da discussão é
centralizada nas questões encontradas nos "códigos de leis" e não nos procedimentos
reais e na solução diária das querelas na sociedade.58 Além do mais, na vasta maioria
dos casos a solução de disputas é uma preocupação e um direito da comunidade que se
auto-governa. Contrariamente a muitas outras sociedades, onde a administração da
justiça está na mão de um aparato estatal, ou da prerrogativa exclusiva de uma elite, na
antiga Mesopotâmia a maior parte dos casos era julgada por corte formada por membros
do corpo de cidadãos. Devemos observar aqui que ao lado das cortes populares
existiam juízes reais nomeados pelo rei. Mas eles lidavam apenas com os casos que
envolviam os magistrados reais ou os membros do domínio privado do rei, e em
circunstâncias excepcionais com casos de punição capital que tinham significado
político.59 De outro modo, cada cidadão da Mesopotâmia tinha o direito de ser julgado
por seus iguais, e temos mesmo casos envolvendo cidadãos de duas diferentes cidades,
em que se considerava necessário ter juízes de ambas as cidades para decidir o caso.
Quem eram os membros dessas cortes? Temos algumas menções explícitas através das
quais podemos identificar, como membros da corte, cidadãos comuns, por exemplo,
açougueiros, artesãos, soldados a serviço do templo, etc. Além disso, para citar um
exemplo, um estudo das decisões judiciais neo-babilônias mostra que sabemos os
nomes de 264 "juízes" de corte, 47 deles sendo governantes da cidade, escribas e altos
magistrados dos templos e 217 deles não aparecem com uma profissão nas reais atas de
corte. Destarte, muitos deles são conhecidos de outras fontes como sendo artesãos,
padeiros, cervejeiros, açougueiros, arrendatários dos templos e de propriedades
privadas, etc.60
Precisa ficar claro, então, que cidadãos comuns participavam das cortes e tinham
o direito de julgar seus semelhantes. Quando nos recordamos que de acordo com
Aristóteles as cortes populares constituíam uma das mais importantes modalidades da
vida política, é fácil compreender porque temos que discordar com a afirmação de
Finley que

todas as cidades-estados [greco-romanas] tinham em comum


uma característica, a incorporação de camponeses, artesãos e

57
Waterman 1930: nos. 301; ver Larsen 2000a: 124.
58
Ver os comentários de Yoffee 2000.
59
Como por exemplo os atenienses transferindo casos de punição capital com significação política de
suas pólis dependentes da Liga de Delos para Atenas, embora a grande maioria dos casos ainda estivesse
sob a jurisdição das cortes de cada cidade individual; Meiggs 1972: 220-33.
60
Dandamayev 1981.

107
lojistas na comunidade política como membros, cidadãos (...)
não eram de início membros com direitos plenos (...) mas
mesmo esse reconhecimento limitado era sem precedentes na
história (...) Qualquer estudo da política grega ou romana deve
reconhecer propriamente essa inovação sócio-política radical.
[grifo meu].61

REPRESENTAÇÃO DIANTE DAS AUTORIDADES

A representação da cidade diante de autoridades superiores era um terceiro


aspecto importante. Fica claro em nossas fonte que as cidades podiam representar a si
próprias como uma coletividade com sua própria identidade distinta.

A referência a [nomes étnicos coletivos como] os "Terqa-itas,


Imaritas, Ekallatumitas" e assim por diante parece refletir uma
perspectiva comum sobre a cidade como unidade política que
interage com unidades políticas fora dela mesma. Esses
negócios externos parecem inspirar essa expressão despojada de
ação coletiva da cidade, independente de quais líderes
individuais ou grupos de representantes estão de fato
envolvidos.62

Essa prática e a ideologia de representação coletiva que a acompanha pode ser


diretamente posta em paralelo com as fontes gregas antigas, sejam elas textos literários
ou inscrições.63
Meus exemplos provêm novamente da Síria-Palestina no período de Amarna e
da Babilônia neo-assíria. No primeiro caso, temos cartas como aquela enviada pela
"cidade e pelos anciãos de Irqata" ao seu senhor egípcio, 64 onde não havia nenhum rei
sobrevivente e as instituições cívicas de Irqata se consideravam competentes para
dirigir-se diretamente ao faraó; ou as cartas enviada por "Ilirabih [o potentado local] e (a
cidade de) Byblos".65 Do primeiro milênio possuímos muitas cartas de cidades
mesopotâmias aos reis assírios. As cartas abriam-se usualmente com a fórmula "o povo
de PN, grandes ou pequenos [ou anciãos e jovens]", isto é eles representam o conjunto
da comunidade.66 Uma carta do rei assírio Assurbanipal ao povo de Nippur é altamente
esclarecedora.

61
Finley 1983: 15.
62
Flemming 2004: 184.
63
Ver Pope 1988.
64
Moran 1992: no. 100; Reviv 1969: 287.
65
Reviv 1969: 289.
66
Waterman 1930: nos. 210, 942, 1274; ver também nos. 296, 297, 518.

108
O rei precisa explicar que quando quinze anciãos de Nippur
estiveram recentemente em Nínive, e apenas metade deles foi
admitida numa audiência com Assurbanipal, isto não se deveu a
um mal feito de sua parte: "Foi por culpa do shandabakku, que é
seu governador, e em segundo lugar do supervisor do palácio
que não permitiu que vocês entrassem em minha presença. Eu
juro por Ashur (e) meus deuses que eu não sabia que metade de
vocês entrou para me ver e que o resto não o pode." Mesmo o rei
assírio tinha que ser educado para com esses homens, e seu
papel como representante da cidade era claramente tomado com
muita seriedade.67

Temos mesmo um caso em que os cidadãos de Ur escrevem como uma


coletividade a Assurbanipal para defender os atos de seu prefeito (hazannu);68 vemos
que o corpo de cidadãos tinha a habilidade de dirigir-se as autoridades superiores
independentemente dos magistrados ratificada pelo rei.
Finalmente, um outro aspecto importante das cidades mesopotâmias eram as
instituições e práticas ligadas a partilha comunal de recursos da comunidade.
Conhecemos muito bem esse assunto nos casos das pólis gregas e em instituições e
práticas como as theôrika, ou os pagamentos de assembléias e cortes. Mas essas são
vistas como peculiaridades da comunidade de cidadãos da pólis grega. O exemplo
melhor conhecido da Mesopotâmia é o da "prebenda do templo". 69 Uma prebenda era
uma porção das rendas gerais do templo que era designada a indivíduos.

Na Babilônia, no terceiro milênio, as funções do templo eram


detidas pelo que se poderia chamar anacronicamente de
sacerdotes profissionais, membros do pessoal administrativo e
de culto do templo, cujo sustento dependia desse seu emprego.
Mas no começo do segundo milênio, os ofícios do templo
tornaram-se um bem que podia ser herdado, negociado e
dividido, pois garantiam ao seu detentor um recurso financeiro.
Assim sendo, vemos que o ofício de varredor do templo, por
exemplo, poderia ser mantido por menos de um quarto de dia
por ano, o que significava que o seu proprietário recebia uma
fração muito pequena dos proventos ligados à função. Foi
estabelecido um sistema no qual indivíduos compravam para
eles mesmos um lugar na organização do templo, para o qual
eles provavelmente não tinham que fornecer nenhum trabalho,
mas que garantia a eles uma certa renda.70

67
Larsen 2000a: 125, citando o documento em Waterman 1930: no. 287.
68
Waterman 1930: no. 1274.
69
ara uma analogia fascinan e er J L orges ‘The lo ery in a ylon’ em Labyrinths. Selected Stories
and Other Writings, New York, 1964, 30–5.
70
Van de Mieroop 1997b: III.

109
É muito provável que o leitor reaja argumentando que todos esses exemplos
constituíram simplesmente tentativas ad hoc de conquistar direitos mais particulares e
específicos e não representam qualquer combate ou discurso de princípios. Mas tal
argumentação demonstra precisamente o quão distorcido pode ser o discurso
ocidentalista; seu essencialismo transforma as lutas concretas de pessoas reais em
entidades abstratas como a Democracia ou a Liberdade, que não tem lugar em nenhum
espaço ou tempo em particular. E, com efeito, é isso que acaba acontecendo
particularmente em nossos relatos sobre a democracia grega: quase sempre lidamos
com uma concepção de democracia como um tipo ideal atemporal de democracia
ateniense.71 A democracia é vista como um arranjo interno institucional de cada
sociedade tomada separadamente sem que se dê atenção à conjunturas específicas de
relações de poder em um sistema visto como um todo.72 Tais abordagens tendem a
esquecer que a força da democracia ateniense dependia em grande medida de seu lugar
imperialista no sistema-mundo político grego, que tornou irrelevantes a interferência
externa e a subordinação durante a maior parte do período clássico. E muito
naturalmente, quando no período helenístico Atenas deixa de ser uma pólis hegemônica,
os especialistas perdem interesse: a maior parte, senão todas as narrativas sobre a
democracia ateniense param em 322 AEC. Sabemos agora, graças a Christian Habitch
entre outros, o quão falsa é uma tal abordagem.73 Mas o argumento de que Atenas
permaneceu como democracia até o período romano deveria suscitar a questão mais
ampla das lutas políticas da maior parte das comunidades gregas que tinham que lidar
com interferências constantes e subordinações a poderes externos já a partir do período
arcaico: o que significa ser uma democracia quando se está sob o controle de um poder
hegemônico imperial, mesmo se esta é Atenas? Esta era uma questão crucial para a
maioria dos gregos em todos os períodos. Dessa maneira, a experiência das
comunidades e classes subalternas do Oriente Próximo nos ajuda bastante a repensar
nossas categorias. Lutas políticas, ideologias e instituições acontecem em conjunturas
históricas específicas; não podem ser subsumidas pelo jogo ocidentalista de
(re)descoberta da "política" ou da democracia pelo Ocidente em suas variadas
encarnações.

71
Ver por exemplo as palavras de Christian Meier: "o resultado era que os gregos vieram a ocupar uma
posição única no mundo, aquela na qual os cidadão exerciam, sem precedentes, o controle sobre suas
condições de vida [grifo meu]": Meier 1990: I; quem são os gregos, exatamente, aqueles que tiverem um
controle sem precedentes sobre suas condições de vida, senão os atenienses em seu período hegemônico?
Sobre a visão de Aristóteles a respeito da questão, ver Winterling 1995.
72
Novamente, não se trata de uma questão acadêmica. Os discursos ocidentalistas identificam a
democracia parlamentar liberal como norma universal e então descobrem que a grande maioria da
humanidade não vive sob essa regra, apenas para denegrir essas sociedades "não modernas",
"tradicionais", "autoritárias" por falharem em se acoplar à regra ocidental. Mas valeria a pena perguntar
se não é precisamente a ausência desse tipo de democracia da maior parte do sistema mundial que torna
factível a sua existência em uma pequena parte no coração do sistema. A ausência de reflexões em termos
de sistemas e processos em lugar de normas essencialistas é um problema muito real. Ver Held 1995.
73
Habitch, 1997.

110
CONCLUSÕES

É chegada a hora de concluir. Espero que tenha ficado claro que os estereótipos
sobre as sociedades, economias e formas políticas próximo-orientais estão precisando
de uma desconstrução radical; a justaposição entre o mundo da pólis grega e as
monarquias burocráticas redistribuidoras do oriente é tremendamente enganosa. Mas
como isso afeta nossa percepção das comunidades gregas e de sua história?
Uma lição reside em nossa percepção sobre a política. A noção orientalista de
"governo de antecâmara" com sua teoria concomitante da invenção grega da política é
bastante simplificadora;74 ela se fundamenta em uma noção de política muito restrita,
com uma perspectiva de cima para baixo. Ela iguala, efetivamente, política às
instituições e à política externa; e qualquer formação política que não tenha instituições
auto-proclamadas "participativas" e onde as políticas externas dependam de decisões de
pequenos grupos não representativos ou de um indivíduo, é vista como pré-política ou
despótica.75 Essa demanda já é problemática mesmo no caso de nossas democracias
modernas: a política externa ainda é conduzida por pequenos grupos sem
representatividade, como demonstra o hiato muito claro entre as políticas oficiais e a
vontade popular na maioria dos países ocidentais no caso da recente guerra contra o
Iraque. Isto significa que nossos países são governados por antecâmaras?76 Se as
decisões sobre guerra e política externa eram tomadas por um monarca próximo-oriental
que não precisava prestar contas, e por seus conselheiros, e se teoricamente ele tinha o
poder absoluto de impor as suas decisões, mesmo assim seu poder afetava apenas
aspectos muito restritos da vida de seus súditos; para a maior parte dos assuntos, seus
súditos eram governados por suas próprias instituições e práticas que tinham uma
natureza muito diferente.77
Ao invés dessa abordagem restrita, poderíamos ver a política como a variedade
de debates, práticas, instituições e conflitos em que os humanos se engajam, de modo a
produzir e reproduzir suas vidas. Não é um dado e nem é inevitável que cada um desses
debates, instituições, práticas e conflitos devam se combinar da mesma forma, com as
mesmas regras, seguir o mesmo caminho e implicar os mesmos grupos e arranjos.78

74
Ver as palavras de Meier, caracteristicamente ocidentalistas: "ao desenvolver o político, os gregos
tornaram-se o buraco da agulha através do qual a totalidade da história mundial [sic!] tinha que passar
antes de poder chegar ao estágio europeu atual"; Meier 1990: 2.
75
Ver os comentários de Liverani 1993.
76
A implementação do armamento nuclear britânico é um outro ponto. Ninguém jamais votou por isso,
nem mesmo o gabinete como um todo sabia do assunto ou tomou parte nas decisões para criá-lo;
Thompson 1985. A Grã-Bretanha é governada por antecâmara ou será que não é a nossa percepção
orientalista que está errada?
77
O "mito do absolutismo" deparou-se recentemente com críticas igualmente fortes no caso da Europa
Moderna, pelas mesmas razões; Ver Henshall 1992.
78
Para uma perspectiva similar, aplicada à América Latina do século XIX, ver Forment 2003. Forment
defende uma distinção entre alta política, controlada por caudilhos e outras formas de poder autoritário, e
o grande número de associações trabalhando com princípios bem diferentes. Ver também Muhlberger &
Paine 1993 para a Europa Moderna.

111
Nossos testemunhos próximo-orientais mostram claramente que as regras da alta
política não se aplicam aos arranjos da política popular; agrupamentos diferenciais tem
lugar conectados à práticas e instituições diferentes, etc. 79
A segunda lição é que, a fim de fazê-lo, temos que alargar nossa ênfase restritiva
nas instituições; precisamos ver a política como um campo, abrangendo vários níveis,
atividades e identidades em vários relacionamentos.

O campo político não se define por fronteiras territoriais e


institucionais, mas, antes, é constituído por grupos engajados na
atividade política (...) Refletindo sobre o que queremos dizer
com campo político, pode ser de grande ajuda imaginar um
campo de batalha. Um campo de batalha não é definido por
fronteiras em particular, mas ao invés disso é constituído pela
atividade. As fronteiras do campo de batalha podem expandir-se
e contrair-se, e a composição do campo pode mudar à medida
que novos grupos entram e saem (...) Por meio dessa concepção,
podemos identificar algumas atividades como políticas (...)
Essas atividades não se direcionam necessariamente a um
equilíbrio funcional, mas existem como um campo de tensões no
qual os indivíduos podem estar motivados por interesses, por
preocupações com o bem público e por diferentes visões sobre
as finalidades da vida comunitária. Pode ser bem possível que
no estudo dessas atividades encontremos instituições. Mas essas
instituições devem ser tomadas como instâncias de processos
políticos — um conjunto particular de relações formalizadas que
emergem, são constituídas e continuam a ser alteradas através da
atividade política. 80

Essas observações fazem novamente emergir a validade da noção aristotélica de


vida social e política: uma enorme variedade de koinoniai, indo do temporário e
informal até o altamente institucionalizado.81 Se não, enfrentamos o perigo de excluir
permanentemente de nossas narrativas da política as mulheres, os escravos e os
estrangeiros. Esses podem não participar formalmente das instituições (embora isso
esteja aberto ao debate em alguns casos),82 mas eles certamente participavam da política
no sentido mais amplo da expressão que tentamos delinear. De outro modo, fica difícil
compreender por que, por exemplo, metecos e escravos lutaram junto dos cidadãos pelo
restabelecimento da democracia em 403 AEC: por que deveriam se importar, se a

79
Para uma percepção similar sobre a política da Índia medieval e moderna, ver Perlin 1985b; Inden
1990: 5-36.
80
Hammer 2002: 26-7. Ver também Wood 2002: 5-23.
81
Ética a Eudemo, 1241b, 25-7.
82
Os metecos, por exemplo, participavam do exército, de alguns festivais e procissões, e de aspectos da
vida dos demos. Ver Jones 1999; Adak 2003.

112
política era privilégio exclusivo dos cidadãos?83 Mas o problema mais importante é que,
sem essa perspectiva, as políticas, objetivos e abordagens das classes subalternas são
completamente apagadas de nosso mapa mental. As classes mais baixas em sociedades
onde instituições participativas estão ausentes da arena da alta política são então
retratadas como súditos dóceis de um despotismo totalitário, incapazes de ação e
agência coletivas.84
Para dar um exemplo, M. I. Finley afirmou que

Quaisquer que tenham sido os fatos sobre [as democracias na


Mesopotâmia antiga], seu impacto na história das sociedades
posteriores foi nulo. Os gregos, e apenas eles, descobriram a
democracia no mesmo sentido preciso em que Cristóvão
Colombo, e não algum marujo viking, descobriu a América.85

Não posso deixar de discordar muito dessa afirmação, e isso por duas razões.
Primeiro, falar de descoberta da democracia estabelece a suposição de que a democracia
seja uma entidade física que existe objetivamente, do mesmo modo que a América
existiu a partir de sua formação geológica há milhões de anos atrás. A noção de que um
conceito ou instituição existe objetivamente no éter, como uma Idéia platônica,
esperando para ser descoberta pela primeira mente brilhante a consegui-lo é, assim
espero, manifestamente contestável. Mas eu tenho uma discordância mais séria, que se
encontra novamente implícita na comparação de Finley. O que significa dizer que a
América foi descoberta por Colombo e não por um marinheiro viking? Obviamente, não
se está falando aqui de seus habitantes nativos, que não tinham que descobri-la já que
viviam lá. Claramente, o que se quer dizer aqui é a descoberta para o Ocidente, que se
visa na passagem citada como o agente e o objeto da história.
Finley afirma que a concepção grega de democracia foi aquela utilizada pelos
europeus ocidentais para construir suas próprias noções, práticas e instituições. Assaz
justo, mas não se pode fazer disso uma demanda sobre a história em geral, sobre a
humanidade em geral, mas antes sobre a história da apropriação pelos europeus
ocidentais (seja da América ou da democracia). Esta é a razão pela qual a maior parte
das definições de democracia são problemáticas. Em última instância, elas acabam com
critérios que não se acomodam a todos os casos, e com protestos contra ou admissões de
um desajuste entre definições e realidades. "Apenas o que não tem história pode ser
definido" dizia Nietzsche, e ele estava certo.86 Prefiro manter-me próximo a Aristóteles
na visão da democracia (política) como uma luta, como um processo; 87 e um processo

83
Ver os argumentos de Middleton 1982.
84
Novamente, esses não são argumentos acadêmicos. A guerra recente para implementar a "democracia"
fundamenta-se numa noção orientalista de massas docilizadas que não são capazes de determinar seu
futuro por suas próprias ações. Desse modo, ditaduras e despotismos orientais só podem mudar com a
"benéfica" intrusão do Ocidente: Ali 2002.
85
Finley 1973a: 14.
86
Ver as observações de Geuss 2001: 6-7.
87
Ver Rancière 1999.

113
ou luta não pode ser inventado; pode apenas ser empreendido (por várias pessoas, em
vários períodos e contextos, com várias finalidades e resultados).
Finalmente, seria melhor que abandonássemos a abordagem mecânica do estado
soberano. Um dos piores equívocos ao abordar a pólis grega é ver nelas uma encarnação
da idéia ocidental moderna do estado soberano, com fronteiras claras e bem definidas,
possuindo controle absoluto e exclusivo do território, da população e da força/poder. Na
realidade, toda comunidade consiste numa variedade de grupos com uma variedade de
ambições, meios e capacidades. Afim de satisfazer essas ambições e para utilizar os
meios e capacidades, esses vários grupos participam na política, isto é em processos,
práticas, instituições, debates e conflitos. Mas o contexto não é dado: ao invés de pensar
em termos do mítico estado soberano, as formações políticas sempre participam, de
fato, em sistemas-mundo políticos ou formações imperiais.88
Nossas evidências do Oriente Próximo mostram isso claramente: uma variedade
de formações políticas coexiste sob relações hierárquicas indo da comunidade aldeã ao
império. Portanto, as ambições, meios e capacidades dos vários grupos de cada
comunidade dependem, mudam e interagem com o contexto e a conjuntura dessa
comunidade no âmbito do sistema-mundo político ou da formação imperial do
momento. Não podemos aceitar por exemplo, uma definição de estado soberano como o
detentor do monopólio do poder militar: na realidade, pode tratar-se de um exército
cidadão, de um tirano ou notável da cidade com suas próprias forças, de um comandante
mercenário, de uma federação de tropas, etc. É importante considerar todas essas opções
como alternativas coexistentes e não interpretá-las como sinais de crise ou declínio
(sempre na perspectiva do estado soberano). Essa é uma mensagem que temos que ter
em mente para entender a nossa própria realidade corrente.
Ademais, temos que prestar atenção ao ambiente contextual da política ao invés
de análises isoladas. Vimos como entre 1000 e 500 AEC o colapso da formação
imperial babilônia, a situação altamente instável da Babilônia e a emergência da
potência assíria têm implicações cruciais para transformações políticas: o ressurgimento
de formas de cidade-estado, a emergência de subdivisões cívicas como as tribos, para
diferenciar os antigos cidadãos babilônios dos novos invasores caldeu, e a exploração
das demandas das políticas estratégicas assírias pelos cidadãos da Babilônia no intuito
de extrair privilégios cívicos e concessões.89 A unificação da Mesopotâmia e das áreas
adjacentes sob o domínio persa levou à erosão desses privilégios e concessões, já que o
ambiente mudara então completamente, de um sistema multipolar para um unipolar. Os
persas não tinham mais necessidade desses equilíbrios, e o mapa foi redefinido em

88
David Held formulou essa questão particular em termos de mundo moderno. Definições de democracia
e estado dependem da noção questionável de soberania do estado e de seu controle sobre os meios de
produção e reprodução econômicos, sociais e políticos. Mas esse não é obviamente o caso num mundo
em que as multinacionais, os mercados mundiais, os poderes imperialistas, as organizações internacionais
e as uniões transnacionais têm um papel fundamental. De acordo com isso, temos que ajustar nossas
teorias do estado e da democracia para dar conta do contexto global das sociedades e organizações
políticas humanas; Held 1995: 23-7.
89
Larsen 2000a.

114
diferentes maneiras.90 Esses dados sugerem que não podemos estudar a política popular
isolada das mudanças e variações em um sistema de estados mais vasto. A emergência
da democracia grega, por exemplo, deve ser vista não apenas como parte de um
desenvolvimento interno de cada pólis grega mas também em conexão com a
elaboração e as mudanças no sistema-mundo político no qual participavam as pólis
gregas.91 Ainda nos falta uma tal análise de conjunto da política grega.92
A maior parte das abordagens que tentou aproximar o mundo grego do Oriente,
efetivamente afirmou a importância secundária ou a minimização da política em uma tal
agenda comparativa; ao contrário, afirmo aqui que a política é uma questão chave em
uma tal agenda, para ambos os lados. As classes subalternas das sociedades do Oriente
Próximo não tinham controle nem sobre as políticas externas, nem uma ideologia
"democrática",93 mas tentavam explorar os nichos disponíveis e aproveitar-se das
instituições existentes criando suas próprias contra-práticas e contra-instituições.94
Não se trata de negar a particularidade e as diferenças da política grega em favor
de um mundo mediterrâneo ou próximo-oriental assemelhado. A grande maioria das
experiências e práticas políticas que examinamos do Oriente Próximo seriam
consideradas oligárquicas por muitos gregos antigos; a política democrática, na
compreensão que antigos gregos tinham do termo, parece um tanto ausente. Mas temos
que lembrar que a democracia foi apenas uma variável na abordagem mais vasta das
constituições das pólis gregas antigas, e oligarquias de vários tipos constituíam
efetivamente o aspecto principal da experiência política grega.
Portanto, meu argumento é a favor do reconhecimento da diversidade no âmbito
de uma unidade maior. Mas o ônus de meu argumento é que construímos nossas
argumentações e explicações da diferença dos gregos de um modo equivocado.
Fenômenos como os da cidade como comunidade de cidadãos, da cidade como uma
forma de identidade, da partilha comum de recursos comunitários, dos direitos distintos
dos cidadãos, ou do auto-governo, não são características diferencias no mundo grego
que possam explicar sua particularidade. Temos que observar de outro modo e não
numa oposição binária orientalista entre um Ocidente livre e um Oriente despótico. Em
segundo lugar, ao invés de enxergar a pólis (no sentido de uma comunidade de
cidadãos), ou a democracia, como um advento teleológico e clássico da evolução da
vida política grega deveríamos antes estudar como uma variedade de processos e
atividades amalgamaram-se na formação das organizações políticas e democracias
gregas. Se observássemos a democracia como o produto contínuo de uma batalha e não

90
A história do Egeu devia ser vista num prisma similar: uma unidade da história egéia baseada num
ambiente multipolar do segundo milênio até a criação de um ambiente unipolar pelos romanos que vai
perdurar por séculos posteriormente. Dessa forma a "miragem grega" ocidentalista pode ser desconstruída
devolvendo-lhe a historicidade.
91
Para essa abordagem em relação a política popular moderna, ver Te Brake 1998.
92
O conceito de "peer-polity interaction" é bastante semelhante, mas precisa ainda ser empregado num
estudo detalhado de história antiga; ver Snodgrass 1986; Herring 1991. Para uma análise das pólis
helenísticas seguindo uma tal linha, ver Gauthier 1987/9; Ma 2003.
93
Porém, ver qualificações em Finet 1975.
94
Para tal agenda, ver Thompson 1993a, Perlin 1985b; Chandavarkar 1998.

115
simplesmente como uma forma institucional particular de alta política, então ela não
emergiria mais como milagre tal como ela é freqüentemente apresentada.

116
CAPÍTULO 5

A cidade consumidora: antiga vs. medieval/moderna

Podemos agora passar a ver como o conceito de pólis funcionou nas discussões
de história econômica antiga. O debate sobre a pólis como uma cidade consumidora é
um desdobramento de um antigo discurso. Baseia-se numa determinada leitura da
história da Europa medieval e moderna, e das origens do capitalismo e da modernidade.
A aspiração principal deste discurso é explicar como a Europa se moveu em direção a
modernidade, como o capitalismo emergiu e por que períodos e civilizações anteriores,
ou aquelas contemporâneas não-européias, falharam em mover-se em direção à
modernidade e ao capitalismo. Certamente houve muitas respostas para essas questões;
mas uma que se tornou particularmente influente foi a ideia de que a cidade europeia
medieval e suas classes urbanas é que abriram o caminho para o capitalismo e a
modernidade.1 Nesta abordagem, a cidade medieval, separada do campo feudal, como
“uma ilha n o feu al em um mar feu al” 2 composta principalmente por mercadores e
artesãos, fomentaram a expansão do comércio e manufatura, revolucionaram o
estagnado campo, e por fim conduziu ao capitalismo e à modernidade. O trabalho do
historiador belga Henri Pirenne nas primeiras décadas do século XX deu especial
importância a tais ideias.3 O debate vem ocorrendo desde então, mas, como veremos
mais adiante, esta maneira de atentar para o problema, e a perspectiva da cidade
medieval como resposta à questão, tem sido amplamente descartada.
A validade desta comparação entre economias antigas e modernas para o estudo
da história econômica antiga foi vigorosamente discutida por M. I. Finley nas décadas
de 1960 e 1970;4 desde então, tem permanecido dominante, em particular nos estudos
de história econômica grega,5 por nenhuma outra razão senão a de que nenhum modelo
alternativo consistente e influente tenha ainda emergido.6 Finley apresentou suas ideias
como um empréstimo a partir do trabalho de Max Weber, embora existam diferenças
muito importantes entre sua abordagem e a de Weber, como veremos em breve. Finley
adotou dois tipos ideais weberianos: a cidade consumidora e a produtora. A cidade

1
A idéia começou a ser utilizada na historiografia na seqüência da Revolução Francesa. Thierry e Guizot
apresentaram as comunas medievais e a burguesia como os ancestrais da classe que fez a Revolução. Ver
Comninel 1987: 5-76.
2
Postan 1975: 239.
3
Pirenne 1927.
4
Finley 1973b: 121-49, 1977. Uma abordagem similar foi concomitantemente adiantada em Austin e
Vidal-Naquet 1972: 129-49.
5
Tem-se até o momento uma série de vozes discordantes, em maior ou menor medida, no campo da
história romana: Hopkins 1983; Jongman 1988; de Ligt 1991; Wallace-Hadrill 1991; Pleket 1993;
Mattingly et al. 2001. Porém na história grega, a ortodoxia de Finley encontrou bem menos oposição. Das
poucas exceções deve-se mencionar Osborne 1991b; Descat 1995; Bresson 2000b.
6
Sobre tal aporia, ver Cornell e Lomas 1995; Whittaker 1995; Cartledge 1998; Parkins e Smith
1998; Salmon 1999. Ver também, Davies 1998; Horden e Purcell 2000: 89–122; Hansen 2004a.

117
consumi ora “aquela que paga por sua manutenção (Lebensunterhalt) ... não com seus
próprios produtos, pois ela não necessita fazê-lo. Ela retira sua manutenção com base
num apelo legal (Reichtstitel), tais como impostos e alugueis, sem ter de fornecer
valores como contrapar i a” 7
Ao contrário, a cidade produtora é a cidade que deriva seus meios de
manutenção a partir das atividades produtivas de seus habitantes, por exemplo,
comércio e manufatura. A cidade medieval foi separada do campo tanto
economicamente quanto politicamente; ao contrário, a pólis antiga ignorou qualquer
distinção entre habitante urbano ou do campo, e conferiu cidadania e participação
política/econômica em termos iguais a ambos (não é que todos na pólis eram iguais,
mas que as desigualdades não se baseavam na distinção entre cidade e campo). Assim,
de acordo com Finley, a cidade antiga deve ser vista como uma cidade consumidora,
enquanto que as cidades medieval e moderna eram cidades produtoras. Em contraste
com a cidade medieval, a pólis não dependeu de manufatura e comércio para sua
manutenção; em vez disso foi o local de residência de proprietários de terras, e vivia de
aluguéis e impostos. Ademais, a pólis não possuía nenhuma política econômica. Ao
contrário da cidade medieval, que fomentou os interesses de seus produtores, e portanto
contribuiu para o desenvolvimento e crescimento da manufatura e comércio, a pólis
antiga preocupou-se somente com os interesses de seus membros enquanto
consumidores; não poderia impulsionar crescimento e desenvolvimento econômico.8
De acordo com Finley, então, apesar das exceções e desvios, e aceitando que na
realidade tais pontos eram muito mais complicados que seus tipos ideais, muitas cidades
antigas poderiam ser compreendidas como cidades consumidoras, enquanto muitas
cidades medievais/modernas poderiam ser vistas como cidades produtoras. Mais ainda,
é esta diferença entre o caráter antigo e o caráter das cidades medievais/modernas que
explica a diferença entre a economia antiga e a medieval/moderna, e a inaptidão da
economia antiga em mover-se em direção ao capitalismo.9
É interessante notar, antes de prosseguirmos para observar em que medida uma
tal análise é justificada, o quanto Finley simplificou e transformou seus empréstimos
weberianos.10 Weber sugeriu que uma tipologia geral da cidade a partir de uma
perspectiva econômica poderia se dividir em quatro tipos: a cidade consumidora
(Konsumentenstadt), definida da mesma maneira que Finley faz; a cidade produtora
(Produzentenstadt), definida como uma cidade mantida por sua própria manufatura; a
cidade comerciante (Handelsstadt), definida como uma cidade mantida por seu
comércio; e o que ele chamou de Ackerbürgerstadt, a qual definiu como uma cidade que

7
Esta definição de Werner Sombart é citada em Finley 1977: 13.
8
Inicialmente discutido por Hasebroek 1933; Finley 1985a.
9
o re es a inap i o a economia an iga em “ ecolar” er as pala ras carac er s icas e inley
“hipo e icamen e se o imp rio romano a rangeu o mun o ci ili a o como os panegiris as diziam, não há
nenhuma razão para que a Europa, a Ásia ocidental e a África do norte não devessem, ainda hoje, se
man er so o go erno e impera ores romanos e a m rica con inuar a per encer aos peles ermelhas”
Finley 1973b: 176.
10
Sobre o empréstimo seletivo e parcialmente equivocado dos conceitos de Weber por Finley, ver Descat
2000. Para uma discussão mais ampla, ver Nafissi 2005.

118
“enquanto servia como lugar de mercado e centros de comércio tipicamente urbano,
constitui-se como nitidamente separada pela presença de um amplo estrato de burgueses
residentes satisfazendo grande parte das suas necessidades alimentares através do
cultivo e mesmo produzindo alimentos para en er” 11 Finley assimilou a Handelsstadt
e a Produzentenstadt de Weber a sua cidade produtora, o que parece razoável o
suficiente no contexto, mas sua assimilação da Konsummentenstadt e Ackerbürgerstadt
a sua cidade consumidora não somente equiparou duas categorias, com as quais seria
interessante manter separadas, mas também violou claramente a compreensão de
Weber.12
Por um lado, Weber diferenciava três tipos de Konsumentenstädte: a cidade do
príncipe, dependendo da corte de um príncipe ou de concessões principescas; a cidade
de rentistas que despediam seus ganhos adquiridos fora da cidade (rendas, impostos,
ganhos advindos de cargos); e finalmente a cidade dos rentistas que retiravam seus
ganhos de alugueis de propriedades urbanas; a última forma de cidade originou-se da
troca e do comércio consolidados nas mãos de uma aristocracia urbana. Weber
argumentou explicitamente que esta última categoria de cidade existia na antiguidade, e
que eram apenas superficialmente Konsumentenstädte, mas realmente ndel d e,
cujas as rendas representavam um tributo dos adquirentes aos proprietários das casas.13
Portanto, Weber pensava claramente que nem todas as cidades antigas eram cidades
consumidoras. Por outro lado, Weber argumentou que a maioria das cidades antigas
eram cke b e d e; e ainda, quando falava sobre a transição da cke b e d
em cidade consumidora, produtora ou comercial, ele diferenciava claramente as cidades
antigas das cidades consumidoras.14
O que nos interessa aqui é que Weber nunca igualou seus tipos ideais de cidades
a períodos específicos como fez Finley; e ele poderia aceitar que uma multiplicidade de
diferentes formas de cidades existiu em todo período ou civilização, enquanto Finley
reduzira todas as cidades antigas a um único tipo. A justaposição finleyana da cidade
antiga à medieval/moderna parece dever mais a compreensão de Pirenne sobre o papel e
função da cidade medieval que a Weber. Finley retomou efetivamente nos anos de 1970
a concepção de cidade medieval de Pirenne como motor de desenvolvimento e
progresso econômico, para justapô-la à cidade antiga, precisamente no ponto em que os
historiadores das economias medieval e moderna estavam deixando para trás essa
concepção e essa abordagem da história econômica como um todo.15 A teoria da proto-
industrialização,16 as teorias de lutas de classes e a importância da agricultura capitalista
de Brenner17 e a teoria de sistemas-mundo de Wallerstein18 e Braudel19 modificaram o
11
Weber 1958: 70-1.
12
Sobre o que se segue, ver Bruhns 1985.
13
Weber 1958: 68-9.
14
Weber 1958: 71-4. Sobre a concepção weberiana de cidades gregas, Capogrossi Colognesi 1990: 197–
222.
15
Ver Prak 2001b.
16
Kriedte et al. 1981.
17
Brenner 1977, 1982.
18
Wallerstein 1974.
19
Braudel 1981-4.

119
panorama da história econômica; em conjunto, eles mostraram a partir de uma
variedade de perspectivas diferentes, que a história econômica e social da Europa
medieval e moderna não podia ser compreendida utilizando a cidade medieval/moderna
como a chave para a explicação do desenvolvimento e da transformação econômica.
Não é fora de propósito argumentar que a abordagem da cidade consumidora fez com
que a história antiga caminhasse para trás ao invés de avançar. Caracteristicamente para
o estado do campo da história antiga, os historiadores da antiguidade conseguiram
ignorar amplamente em seus debates aquilo que os historiadores da economia em outros
campos estavam fazendo a três décadas.
Retornando a como pólis como cidade consumidora, essa comparação em
oposição entre a cidade e a economia antiga e medieval/moderna é fortemente
influenciada por pressupostos eurocêntricos. Para começar, a comparação é assimétrica:
ela compara as cidades e economias do antigo Mediterrâneo não com aquelas do
Mediterrâneo medieval/moderno, mas com aquelas do nordeste da Europa
medieval/moderno. Por que várias gerações de especialistas consideraram que essa
comparação era válida? Por que nunca tentaram comparar o Mediterrâneo antigo com
períodos anteriores de sua história?20 Por que eles nunca tentaram comparar as cidade e
economias do Mediterrâneo antigo com qualquer outra economia pré-industrial não
européia? O que permite esse tipo e torna invisível qualquer outra possibilidade
comparação é o estudo da história antiga a partir da perspectiva da Europa.21 O
desenvolvimento econômico e social da Europa medieval e moderna é assumido como
caminho universal do desenvolvimento histórico e da modernidade.22 Visto no âmbito
deste discurso, é possível perguntar por que as cidades e economias antigas não se
desenvolveram da mesma forma, e tentar explicar a divergência por meio de uma
análise comparativa.
Nas páginas que se seguem, muitas das premissas eurocêntricas por trás dessa
comparação serão criticadas. A comparação se baseia numa distinção entre a economia
antiga e a medieval/moderna, uma distinção que faz sentido apenas a partir de uma certa
perspectiva européia. Ela reifica processos complexos com diferentes níveis e
enquadramentos espaciais e temporais, a fim de torná-las parte da genealogia da Europa.
Por que deveríamos falar de uma "economia antiga" ou de uma "economia medieval" ao
invés de aceitar que toda economia em qualquer período compreende um certo número
de estágios e setores, que podem se desenvolver por vias muito diferentes e mesmo
opostas?
Além disso, essa abordagem toma as cidades e economias da Europa medieval e
moderna como o padrão, contra o qual as cidades e economias de todos os outros
períodos e áreas tem que ser julgados. É fácil imaginar o resultado; se temos a
observação de David Washbrook: "a economia e a história social da Ásia do sul foi

20
Dado o majestoso trabalho de Braudel 1972 sobre o Mediterrâneo moderno, poderíamos esperar que
uma tal comparação seria altamente proveitosa e vigorosamente perseguida. Contudo caracteristicamente
para o estado da pesquisa em história antiga isso nunca aconteceu. Espera-se que o trabalho de Horden e
Purcell 2000 leve a uma tal mudança de perspectiva, ver Harris 2005.
21
Sobre os usos de comparações em história antiga, ver Detienne 2000.
22
Ver problemas similares discutidos por Aymard 1982.

120
escrita mais para explicar porque a região não se desenvolveu como a Europa, ou talvez
não tenha se desenvolvido de modo algum, do que para dar conta de mudanças e
desenvolvimentos que efetivamente aconteceram."23 Substituamos a Ásia do sul por
antiga e isto se tornará perfeitamente aplicável à história antiga - precisamente pelas
mesmas razões.24 Ademais, essa abordagem separa as cidades e economias da Grécia
antiga e as economias e cidade da Europa medieval e moderna de seu lugar no âmbito
de sistemas contemporâneos mais vastos, e de suas relações com outras sociedades não
ocidentais. Elas são tomadas como cidades autônomas e solitárias desenvolvendo-se
sozinhas, novamente para fazer parte de uma genealogia da Europa. Finalmente, a
genealogia do Ocidente que se movimenta de modo linear da antiguidade, através da
Idade Média até a modernidade, é responsável pela desaparição da conjuntura histórica.
Nas páginas a seguir analisaremos como essas agendas eurocêntricas são perseguidas no
estudo da história econômica e social das pólis gregas.

DEFINIÇÕES LEGAIS VS. ECONÔMICAS

A diferenciação entre a cidade antiga, que é vista menos como uma cidade do
que um local de residência para proprietários de terras e a cidade medieval e moderna
que retratada como funcionando como um local "apropriado" para o comércio e
manufatura é problemática; em ambos os casos existe um corte importante entre as
definições econômica e legal/social da cidade. Um grande número de cidades medievais
eram cidades apenas nominalmente; elas adquiriram o direito de ser cidades e de ter a
sua própria muralha ou jurisdição, mas não eram nada além do que grandes aldeias.25
Dizer então que a cidade antiga era simplesmente local de residência para proprietários
de terras, enquanto a cidade medieval era o centro do comércio e da manufatura é
equivocado. Muitas cidades medievais eram meras aldeias ou pequenas cidades apenas
com o estatuto legal de cidade, enquanto muitos centros de comércio e manufatura
nunca adquiriram esse status legal.26 Portanto, se procuramos uma comparação válida
devemos colocar lado a lado seja definições legais/sociais pelos contemporâneos, seja
definições econômicas elaboradas pelo próprio historiador. Devemos comparar centros
antigos de manufatura e comércio com centros medievais, e não pólis antigas com
cidades medievais e modernas.

23
Washbrook 1988: 62.
24
Ver, caracteristicamente, Finley 1973b: 137-8.
25
"Na Alemanha como um todo no final da Idade Média, considera-se que três mil localidades garantiram
seu status de cidades; a sua média populacional não ultrapassava 400 indivíduos"; Braudel 1981: 482.
26
"Apenas o tamanho não era um teste: muitas cidades genuínas não eram maiores do que aldeias em
população ou área. E a economia não era levada de modo algum em consideração, para além da
requisição de que os bens materiais indispensáveis para amenidades civilizadas tinham que estar
disponíveis de algum modo"; Finley 1973b: 124. O mesmo permanece verdadeiro quanto as cidades
medievais.

121
A DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO

Ao contrário da crença geral dos historiadores da antiguidade, muitas cidades


medievais possuíam populações substanciais de camponeses e trabalhadores agrícolas.
Um exemplo clássico é a cidade de Romans em 1579/80, tal como retratada no
maravilhoso livro de Le Roy Ladurie; 36% da população urbana da cidade era de
trabalhadores agrícolas, enquanto a cidade incluia um número importante e proprietários
de terras e mercadores que adquiria terras e o status de nobreza.27 Braudel oferece um
outro exemplo posterior:

As coisas pouco mudaram em 1722, quando um tratado sobre


economia lamenta o fato de que artesãos ao invés de
camponeses estavam se envolvendo com a agricultura nas
pequenas cidades e principados da Alemanha. Seria melhor se
cada um "permanecesse em seu próprio posto". As cidades
seriam mais limpas e mais saudáveis, se fossem liberadas do
gado e de suas "pilhas de esterco". A solução seria "banir toda a
atividade de fazenda das cidades e colocá-las nas mãos daqueles
apropriados para tal". Artesãos poderiam vender mercadorias
aos camponeses; camponeses teriam a certeza de vender o
equivalente regular ao citadinos, e todos estariam melhor.28

Além disso, em muitos casos na Europa medieval e na maior parte dos casos em
períodos posteriores, as elites proprietárias residiam na cidade, vivendo de seus ganhos
agrícolas, e tomavam parte em sua vida econômica e administração. Uma narrativa da
Itália medieval diz o seguinte:

Muitos imigrantes urbanos eram ou tornaram-se grandes,


médios ou pequenos proprietários de terras; a propriedade de
terras, e para os ricos uma villa rural, era a primeira ambição de
todas as classes urbanas; e sobre uma área abrangente em torno
das cidades uma crescente e mesmo dominante parcela de terras
juntamente com gado era mantida ou adquirida pelos citadinos
(...) As cidades concentravam tanto riqueza agrária quanto
mercantil. E em graus variáveis, communes e universitates,
fundadas por possessores, reafirmavam seu caráter de
comunidades de proprietário de terras. Em fontes urbanas de
todos os tipos o típico civis aparecia como um proprietário de
terras (...) Uma parte substancial e mesmo talvez a maioria da
legislação urbana encontrava-se devotada com outras questões

27
Le Roy Ladurie 1980: 5-20.
28
Braudel 1981: 488.

122
agrárias à proteção, administração e consolidação de
propriedades dos cidadãos.29
Em Milão, em 1266, numa lista de sorteio de 2000
cidadãos todos sem exceção eram proprietários registrados no
contado. Em San Gimignano em 1314, 61,8% de todos os
proprietários de terras, possuindo 84% de toda terra, eram
citadinos residentes.30

Finalmente muitas cidades medievais tentaram, e algumas conseguiram


possessões territoriais substanciais (como o contado italiano). 31 Como resultado,
impostos e alugueis dessas áreas rurais pertencendo a cidades constituíam parte
essencial dos ganhos urbanos. Portanto, é muito equivocado dizer que as cidades
medievais adquiriam seus meios de subsistência comercializando seus bens
manufaturados e lucrando com seu comércio.
Recapitulando: é verdade que a maioria das cidades medievais/modernas não
eram cke b e d e. Os camponeses residiam principalmente fora das cidades, no
contado; nesse ponto, elas se parecem com aquelas cidades helenísticas e romanas no
Oriente Próximo com proprietários gregos vivendo na cidade e camponeses nativos
vivendo no campo;32 mas certamente diferem da maior parte das cidades gregas, em que
a grande maioria dos camponeses residia no centro da pólis e tinham direitos políticos
na comunidade cívica.33 É igualmente verdadeiro que, em média, mercadores e artesãos
formavam uma proporção muito mais vasta e tinham um papel muito mais proeminente
nas cidades medievais/modernas do que era o caso nas cidades antigas. Mas é
impossível argumentar que as cidades medievais/modernas eram cidades produtoras
enquanto que as cidades antigas eram consumidoras. Em ambas, uma grande proporção
de residentes urbanos era de proprietários de terras substanciais; alugueis e impostos
consistiam em uma parte considerável de seu lucro; e uma grande parte do campo
pertencia a residentes urbanos. Assim, pois, Weber estava correto ao diferenciar a
cidade consumidora da cke b e d , e Finley e seus seguidores estavam errados
34
em achatá-las em uma única categoria. O resultado é natural: "A comparação entre as
cidades antigas e medievais é assimétrica: a discussão da cidade antiga naturalmente
abarca a sociedade como um todo, enquanto a discussão da cidade medieval exclui o
campo, suas elites e valores."35
Mas mesmo se aceitarmos que a cidade antiga conseguia seus meios de
subsistência através de rendas e impostos da produção agrícola, isso não responde a

29
Jones 1997: 280.
30
Jones 1997: 286. Para outras cidades italianas, ver Griffiths 1981: 98-101.
31
Berengo 1999: 111-70.
32
Ste Croix 1981: 9-19.
33
Sobre a proporção da população vivendo em assentamentos urbanos na Grécia antiga, ver Hansen
2004a: 11-16; sobre camponeses vivendo em cidades ver ibidi.: 160-18.
34
Ver conclusão similar de Hansen 2004a, que no entanto parece responsabilizar Weber pelo que era de
fato uma aplicação errônea de Finley.
35
Wallace-Hadrill 1991: 243.

123
questão de como a proporção substancial de população não agrícola das grandes cidades
provia suas necessidades. Os thêtikon (assalariados), agoraion (comerciantes) e
banausikon (artesãos), mencionados enfaticamente por Aristóteles em sua análise na
pólis antiga,36 poderiam prover suas necessidades apenas pela troca de seus produtos
com os proprietários e camponeses. Por que não se deveria espera, prima facie, que eles
procurariam aumentar a sua parte produzindo novos produtos de luxo ou mais baratos?
O mesmo é verdadeiro para os artesãos, trabalhadores e comerciantes medievais. O
local de residência dos proprietários de terras é mais uma questão de conjuntura que um
fator estável.

EXPORTAÇÃO-IMPORTAÇÃO

Vamos para a questão do papel da produção para a exportação. De acordo com


Finley, "o mundo feudal agrário europeu proporcionou às cidades medievais mercados
externos que as cidades antigas não possuíam. Os reis, lordes e dignitários da Igreja,
vivendo em seus próprios domínios ou em pequenas aglomerações, criaram uma relação
cidade-campo fundamentalmente diferente daquela de seus predecessores altamente
urbanizados."37 Finley acreditava que a manufatura nas cidades antigas existia apenas
para o mercado local, enquanto nas cidades medievais estava destinada à exportação.
Ele cita Xenofonte dizendo "de todas as atividades que conheço a mineração da prata é
a única em que a expansão não causa inveja (...) se existem mais artesãos do cobre, por
exemplo, o trabalho do cobre se torna mais barato e esses artesãos se retiram. O mesmo
é verdade no caso do comércio de ferro",38 e ele comenta: "Em ambas as passagens
Xenofonte concebe a manufatura apenas para o mercado local; de outro modo, suas
observações não fariam sentido". 39
Mas em toda sociedade antes da Revolução industrial e da emergência da
produção capitalista, a maior parte da produção girava em torno do mercado local. Isso
é verdade tanto para a cidade antiga quanto para a medieval. Comparem esse relato
sobre as cidades medievais italianas ao norte de Roma:

Mas mesmo nessas regiões mais vigorosas, a despeito de seus


altos clamores a atividade econômica da grande maioria das
cidades limitava-se principalmente a empreendimentos e
mercados locais. Não envolviam nenhuma indústria notável de
exportação e não produziram nenhuma plutocracia mercantil de
"ricchi populari merchatanti". As guildas típicas eram
corporações menores ligadas a comércios básicos,
abastecimento, vestuário, construção (...) Mais importante, na
maioria das cidades, que combinavam alguma indústria de
36
Aristóteles, Política, 1291a, 1-7, 1291b, 17-28, 1296b, 25-31, 1329a, 35-9.
37
Finley 1973b: 140-1.
38
As Rendas, IV, 3-6.
39
Finley 1973b: 135.

124
exportação com comércio ou bancos, há muito a indicar que não
obstante as perspectivas contemporâneas, a industrialização era
marginal, o capitalismo em todas as suas formas tinha um
desenvolvimento limitado e o empreendimento internacional,
qualquer que tenha sido seu prestígio e poder, basearam-se em
um sistemas muito mais voltado para troca local do que para o
comércio de longa distância. O núcleo da população comercial
constituía-se de simples retalhistas e artesãos negociando com a
cidade e com o campo.40

O sistema medieval de guildas nunca teria existido se a descrição acima


estivesse errada. Tentativas de regular o número de artesãos e de seus empregados, seu
salário e o preço de seus produtos jamais teria sido factível, se a maior parte d produção
não se destinasse ao mercado local. Afinal, os regulamentos das guildas tentavam
assegurar exatamente que "o trabalho do cobre não se tornaria tão barato a ponto dos
artesãos desistirem".41 Quando em períodos posteriores como no século XVIII, a
produção era muito mais controlada pelos mercadores com a exportação em mente, as
velhas cidade com suas guildas e regulamentos inflexíveis descortinaram-se como um
grande obstáculo. Nesse sentido, a produção voltou-se para o campo, onde os artesãos
camponeses não estavam protegidos pelos regulamentos de guilda.42 Não é por acaso
que Manchester, o local de nascimento do capitalismo moderno nunca foi uma cidade
medieval com corporações, mas uma cidade sob controle feudal. 43 De fato, retornando
as cidades antigas, poderíamos mesmo dizer que, na ausência de regras de guilda o
mundo antigo era mais favorável ao comércio e a manufatura que as cidades medievais.
Isto não significa dizer que toda produção era para consumo local. O próprio
Finley admitiu que alguns bens manufaturados destinavam-se à exportação no mundo
antigo;44 e o mesmo é verdadeira para o mundo medieval.45 Mas compreender quais
produtos, de quais materiais, em que áreas, para que mercados, em que períodos
destinavam-se à exportação não é uma questão de justapor dois tipos ideais.
Precisaríamos analisar padrões, tendências e ritmos de consumo,46 redes de
comunicação e transporte, relações no âmbito de sistemas mundiais, relações de
exploração e poder, mentalidades e por aí vai.47 Para realizar essa tarefa, é importante

40
Jones 1997: 272-4.
41
Ver os comentários de Barel 1977: 412-22.
42
Braudel 1982: 297–316; Kriedte 1983: 9–17; Berg 1985.
43
Ver Merrington 1976: 188–9.
44
Finley, 1973b: 136–7.
45
A maior parte dos produtos estava destinada à produção local. Apenas alguns poucos bens
manufaturados, principalmente têxteis, entravam no comércio de longa distância.
46
Ver Foxhall 1998.
47
Ver Mintz 1985 sobre todo o processo de produção, troca, consumo e as conseqüências sociais e
culturais do uso do açúcar no começo da idade moderna. Para história antiga, ver Vandermersch 1994
sobre a produção, troca e consumo de vinho na Sicília e Magna Grécia no quarto e terceiro séculos AEC..

125
diferenciar escalas temporais, regiões e níveis de produção, troca e consumo.48 É aqui
que a diferenciação de Braudel entre cultura material, mercado (ou economia) e
capitalismo é mais útil;49 ela ajuda a compreender como o alto consumo está
simultaneamente vinculado à produção para o mercado local e ao comércio de longa
distância.
Parece também relevante aqui sugerir que áreas diferentes, diferentes eras e
sistemas-mundo parecem conferir uma importância primária a diferentes mercadorias
para troca em larga escala e longa distância. Os metais tinham um papel particularmente
importante nos sistemas de troca do Oriente Próximo e do Mediterrâneo na Idade do
Bronze.50 O lingote couro de boi (ox-hide ingot), a forma padrão de comercializar o
cobre na Idade do Bronze, só é concebível com uma intensidade de troca que não
encontraremos em sociedades posteriores; é interessante que esse tipo de lingote seja
específico da Idade do Bronze.51 Por outro lado, têxteis e especiarias, e posteriormente
café e açúcar, eram os itens principais do comércio de larga escala no sistema-mundo
medieval e moderno.
Metais, têxteis e especiarias, como itens do comércio de grande escala parecem
ser de importância muito menor na antiguidade clássica.52 É por acaso que a ânfora de
cerâmica, o container de produtos agrícolas processadas, como o vinho e o azeite de
oliva, seja o principal indicador da troca de larga escala na antiguidade clássica? 53
Podemos argumentar que os itens mais importantes do comércio de larga escala e longa
distância na história da antiguidade grega eram produtos agrícolas processados e não
produtos manufaturados ou matérias-primas? E quais são as implicações disso para a
natureza da produção, da troca e do consumo e para a forma e o papel das cidades
antigas dentro de seus sistemas-mundo econômicos? Essas não são senão questões
sugestivas, admitamos; mas elas possuem um certo número de implicações que podem
levar à conclusões muito importantes. Elas supõem que exista uma relação recíproca
entre as características de cada sistema-mundo, suas cidades e suas formas de troca, por
um lado, e os principais itens do comércio de larga escala por outro.
Uma última questão permanece. De acordo com Finley,

o contraste antigo-medieval está intimamente ligado à diferença


em quantidade e importância da produção para exportação nos
dois mundos. O campesinato local permanecia uma constante:
homens com as pequenas propriedades que examinamos, mesmo
cidadãos-camponeses livres, representam o mercado mais baixo
e mais inelástico possível para a produção urbana (...) O que é

48
Wallerstein introduziu a noção de redes de mercadorias, a fim de descrever e estudar esses fenômenos
interligados, ver os artigos em Review, 23, 2000.
49
Braudel 1982: 455–7.
50
Gale 1991.
51
Ver Treister 1996: 97-103.
52
Horden e Purcell 2000: 346-50.
53
Horden e Purcell 2000: 372–5. Sobre a história da produção, troca e consumo de vinho e suas redes, ver
Unwin 1991.

126
verdadeiro para os camponeses com relação ao nível da
demanda (embora não a periodicidade) não é menos verdadeiro
para as plebes urbanas. A produção só pode saltar na medida
em que, e somente na medida em que existe mercados de
exportação.54

A idéia da constância da demanda dos camponeses e das massas urbanas


encontra-se agora claramente descartada pelos historiadores da economia
medieval/moderna.55 Não vejo nenhuma razão convincente pela qual essa idéia deva ser
a priori mantida para história antiga. Além disso, se excluirmos a plebe urbana e rural,
então os consumidores de bens exportados ficam sendo as elites proprietárias de terras.
Os proprietários de terras medievais tinham um desejo ou uma capacidade de compra
diferente ou maior do que os proprietários de terras na antiguidade? Isso é muito difícil
de aceitar prima facie. E poderíamos esperar que seria mais vantajoso para a economia
de uma cidade se ela se beneficiasse diretamente do consumo e dos dispêndios de uma
elite proprietária de terras, como no caso da cidade antiga,56 do que no tipo ideal da
cidade medieval.57

O LUGAR DAS CIDADES NO INTERIOR DE SISTEMAS MAIS VASTOS

A crença de que cidades medievais eram centros de manufatura e comércio


inter-regional, e que era através de seu papel e agência que o capitalismo emergiu foi
desacreditada pelo trabalho histórico nas últimas décadas. Vou me referir aqui a apenas
uma abordagem do assunto, o assim chamado debate Brenner.58 Esse debate girou em
torno do trabalho de Robert Brenner, que afirmava que a transição do feudalismo ao
capitalismo não pode ser compreendida como resultado do papel progressivamente
maior das cidades; as relações entre camponeses e proprietários no campo constituíam-
se como uma questão muito mais importante como foi revelado pelos diferentes
desdobramentos em países que tinham, todos eles, compartilhado a característica de
cidade produtora. Brenner argumentou que é impossível compreender o papel das
cidades se o abstrairmos da totalidade das inter-relações das quais fazem parte.59
Neville Morley mostrou a validade dessa observação para o caso de Roma. 60
Roma tem sido o arquétipo da cidade consumidora, um parasita do conjunto do império,
retirando seus meios de sustento de impostos do estado e das rendas dos grandes
proprietários rurais da aristocracia. Morley demonstra que mesmo a cidade consumidora

54
Finley, 1973b: 138.
55
Ver, por exemplo, de Vries 1994.
56
Osborne 1991a.
57
Sobre a importância do consumo da elite para as cidades e aldeias da Índia moderna, ver Bayly 1991:
110-62.
58
Aston e Philpin 1985.
59
Brenner 1977, 1982.
60
Morley 1996.

127
par excellence cria processos que transformam as estruturas econômicas e sociais do
conjunto da península itálica. A demografia de uma população que precisa de imigração
constante para assegurar a manutenção de uma população no mesmo patamar, tinha um
efeito profundo na estrutura demográfica de toda a Itália; a provisão de produtos
básicos, vinho, óleo e carne à Roma transformou as formas de exploração da terra, os
tipos de assentamentos, e as formas de cultivo em regiões inteiras da Itália.
Se isso é verdade para Roma, a cidade parasita par excellence, então isso é mais
verdadeiro ainda para aquelas cidades que não podiam depender dos privilégios de ser a
capital imperial para a sua manutenção e crescimento. Em 401/0 AEC, logo após a
perda do império e a guerra civil, Atenas importava mercadorias valendo 1800
talentos.61 Como Atenas pagava por essas mercadorias dada a falta de tributos, a
drenagem de recursos gastos ao longo da guerra e o cessar da mineração no Láurio?62
Devemos classificar Atenas como cidade produtora, ou há algo errado com o modelo
em primeiro lugar? O valor da cidade produtora como uma explicação para emergência
do capitalismo foi severamente reduzido; e sua gêmea, a cidade consumidora, deve
passar por um processo similar como uma explicação do desenvolvimento econômico
antigo.
De fato, a história da Europa moderna fornece muitos exemplos que mostram
quão problemática é a distinção entre cidades produtoras e consumidoras. Vemos uma
cidade produtora, como Veneza, conquistar toda Terraferma; nos séculos XVII e XVIII
seus mercadores trocam o comércio pelo campo e o refeudalizam. 63 Vemos uma cidade
como a Antuérpia, governada por sua aristocracia proprietária de terras, tornar-se o
centro do comércio e do câmbio europeu no século XVI.64 Vemos uma cidade
consumidora como Londres transformar toda economia inglesa sem desenvolver
contudo a sua própria produção.65 Vemos ao mesmo tempo uma antiga cidade
"consumidora" feudal, como Manchester sem corporações de ofício ou câmaras

61
Esse cálculo é baseado em Andócides, Sobre os Mistérios, 133-4.
62
Ver Hansen 2004: 23-5.
63
Woolf 1968. "Em síntese, os métodos intensivos de produção agrícola, pelos quais a Itália do norte era
famosa continuaram sendo usados, mas em um meio bastante modificado. O declínio da economia urbana
empurrou a maior parte da agricultura camponesa para uma postura menos orientada para o mercado.
Isso, em conjugação com a difusão da meação, transformou o cenário social e político para algo
decididamente mais 'feudal'- apenas para usar aquela palavra no sentido polêmico do século XIX - do que
tinham sido no século XVI. Agora a agricultura suportava diretamente muito mais do ônus de manter as
classes privilegiadas da sociedade italiana no estilo ao qual estavam acostumadas"; de Vries 1976: 55.
64
"Uma outra desvantagem, a cidade não era governada nem em 1500 nem depois disso por seus
mercadores. Seus magistrados municipais pertenciam a um punhado de famílias que compunham a menor
aristocracia agrária, e retiveram seu poder por vários séculos. Em tese, eles eram mesmo proibidos de ter
interesses comerciais - uma proibição curiosa, de fato, mas que era freqüentemente reiterada, sem dúvida
porque não era sempre observada. Finalmente a Antuérpia não tinha seus próprios mercadores nativos de
porte internacional: estrangeiros dominavam a cena - comerciantes hanseáticos, ingleses, franceses e
sobretudo mercadores sulistas: portugueses, espanhóis e italianos"; Braudel 1984: 145. Pense que seria
estimulante comparar este quadro com antigos centros como Atenas, Rodes, e Delos.
65
Wrigley 1967.

128
municipais, tornando-se o lugar de nascimento do capitalismo industrial por causa
dessas ausências.66
Em todos esses casos, como a classificação de cidade produtora vs. consumidora
nos auxiliaria a compreender e explicar? Em seu estudo, Morley demonstra
persuasivamente que o que diferencia a Londres do século XVII da Madrid do século
XVI não é a sua identidade como consumidora ou produtora, mas a totalidade das
interações e inter-relações de cada cidade com as economias inglesa e espanhola
respectivamente.67 O erro na comparação entre cidades consumidora e produtora é o
pensamento ontológico: a abstração de uma entidade (a cidade) de todo um complexo
de relações, processos e funções dos quais fazem parte e sua justaposição não
contextual.

CIDADES DENTRO DE SISTEMAS

Pode-se afirmar que a distinção entre cidades consumidoras e produtoras não


nos permite apreender o papel que uma cidade consumidora terá no interior de um
sistema econômico mais amplo; seu papel pode variar enormemente, de parasita à
estimulante, baseando-se em seu lugar e sua articulação no interior desse sistema
econômico mais amplo. Mas e com relação as cidades produtoras mesmo se aceitamos
que as cidades consumidoras antigas não tinham apenas papéis negativos e parasitários
não permanece verdadeiro que existiam poucas cidades antigas produtoras? 68 Não é
verdadeiro que havia muito mais cidades produtoras medievais/modernas, e que isso faz
toda a diferença entre as economias antiga e medieval/moderna?
Existiam, de fato, cidades antigas que baseavam sua riqueza no comércio, como
Egina ou Quios; Finley acreditava que elas eram exceções. 69 Mas o quão menos
excepcional são as cidades medievais que ele tinha em mente como Veneza ou Gênova?
De acordo com as figuras de Paul Bairoch, de cerca de 1450 cidades e aldeias na Europa
da Baixa Idade Média com uma população de mais de 2000 pessoas, 62% eram
pequenas aldeias de 2000 a 6000 habitantes com importantes funções locais (isto é,
prover um mercado para troca de produtos agrícolas e manufaturados locais), 22% eram
centros regionais com populações entre 4000 e 12000 pessoas e menos de 14% eram
cidades com população com mais de 8000 habitantes e com uma importância maior que
a regional, tendo um foco comercial, manufatureiro ou administrativo, como Veneza,
Bruges ou Paris.70
Certamente, há muitas outras cidades mercadoras no medievo do que no mundo
grego antigo. Mas uma análise deve levar em consideração o sistema-mundo do qual

66
Merrington 1976: 188–9
67
Morley 1996: 25-31.
68
Sobre uma tentativa de observar a cidade romana de Leptiminus como cidade produtora, ver Mattingly
et al. 2001.
69
Finley 1973b: 131.
70
Bairoch 1988: 164–9. Ver também de Vries 1984.

129
participavam.71 O mundo medieval tinha duas áreas chaves de cidades "produtoras", a
Itália do Norte e Flandres; Essas cidades estavam altamente envolvidas com o comércio
de longa distância e a manufatura de bens em sua maioria têxteis. Mas a emergência das
cidades "produtoras" nessas áreas e nesse período é compreensível apenas se for
observada através do funcionamento do sistema-mundo medieval, e não através de uma
construção ideal típica atemporal e a-espacial. Elas emergiram como parte de um
sistema-mundo concêntrico, conectando áreas deste de o Mar Báltico até a China, um
sistema que foi tornado possível pelo império mongol.72 Mas dificilmente este era o
caso para a maioria das cidades medievais que tinham uma função e um papel muito
diferente como discutido.
Também as pólis antigas precisam ser vistas de acordo com seus vários papéis
no interior de um sistema-mundo mediterrâneo e não como tipos ideais isolados.73 Dado
que as cidades gregas participavam de um mundo muito menor,74 onde a maior parte da
Europa ainda era altamente subdesenvolvida,75 não é natural que o comércio e a
manufatura medievais tivessem uma escala e importância muito maior? O pequeno
número de cidades como Egina e Quios deve estar relacionado com seu pequeno nicho
no interior do sistema-mundo que é controlado por outros. Essas são apenas sugestões já
que ainda carecemos de um estudo sobre o funcionamento dos sistemas-mundo da
antiguidade mas parece haver muito sentido em explorá-los mais.76

O PAPEL DA CIDADE NA ERA PRÉ-INDUSTRIAL

Mas parece haver um ponto sobre o qual podemos ser mais positivos com
relação as cidades antigas, ponto este que tem sido usualmente ignorado em sua
totalidade. A definição finleyana de cidade consumidora está assentada numa noção pré-
determinada de cidade e de seu papel econômico adequado. A suposta separação entre
cidade e campo e a identificação da cidade com comércio e manufatura não é uma
realidade manifesta. Antes da revolução industrial não havia razão por que a cidade
tivesse que ser o centro de uma produção manufatureira.

71
Sobre os sistemas-mundo das cidades medievais, ver Abu-Lughod 1989: 51–134.
72
Sobre os sistemas-mundo ver Wallerstein 1974, 1991; Braudel 1982, 1984; Nitz 1993; mas também
Stein 1999.
73
Uma observação similar, de uma perspectiva um tanto diferente, é formulada em Horden e Purcell
2000: 89–122.
74
"O continente [europeu] pode ser dividido em dois: de um lado uma região antiga, de há muito tempo
explorada pelos homens e história e enriquecida por seus esforços; de outro lado uma nova Europa, por
muitos séculos não civilizada. O grande feito do medievo foi a colonização, educação desenvolvimento e
urbanização dessa Europa não civilizada - indo tão longe quanto o Elba, o Oder e o Vístula, e tão longe
quanto a Inglaterra, a Irlanda, a Escócia e o países escandinavos"; Braudel 1982: 569.
75
Não se deve esquecer que qualquer relato da emergência das cidades medievais começa com o grande
movimento de arroteamento e aproveitamento que precedeu e acompanhou essa emergência. A criação de
um mundo agrícola novo, forte no nordeste da Europa é a base da emergência das novas cidades
medievais.Ver Bartlett 1993.
76
Sherratt e Sherratt 1993 vão nesta direção, mas de um modo altamente esquemática.

130
De 1500 a 1800 mais ou menos, o capital comercial permanecia
móvel e disperso. Uma grande porção de produção era de
alimentos e têxteis, e a elevação da produção geralmente
acontecia através da multiplicação de unidades de produção
pequenas, dispersas, conectadas comercialmente, como casas e
lojas. O capital movia-se freqüentemente em direção à
localização do trabalho antes que o seu oposto. Conseqüência:
uma hierarquia bem articulada de mercados do local ao
internacional com mercados locais que correspondiam à
geografia do trabalho. Os séculos XIX e XX trouxeram a
expansão e a concentração do capital em um limitado número de
lugares (principalmente urbanos), a movimentação do trabalho
em direção a esses lugares, o aumento da produção comercial de
bens duráveis e serviços e uma divisão cada vez mais acentuada
entre o campo agrícola e o serviço acrescido de produção
industrial nas cidades.77

A expectativa frustrada de ver as cidades antigas como centros de manufaturas


emana de uma premissa concebida erroneamente. A localização da produção
manufatureira nas cidades com a exclusão do campo é historicamente contingente; ela
era encontrada apenas em pequenas partes do sistema-mundo da Baixa Idade Média
européia antes da Revolução Industrial. Quando se é lembrado do quanto a manufatura
moveu-se novamente em direção ao campo no período seguinte, pode-se compreender
que essa premissa não deve ser tomada como norma e medida para qualquer outro
sistema de cidades no passado.78 A maior parte da produção manufatureira no passado
destinava-se ao consumo e ao mercado local. Não havia razão aparente, fora as trocas
dependentes das tendências do consumo da moda, por que uma cidade em particular
devesse desenvolver uma especialização na produção de um bem manufaturado e
depender de sua troca inter-regional.
Deveríamos começar pelo lado oposto. Mecanismos de troca de intensidade
significativa eram instituídos primariamente por conta de quedas naturais nas
necessidades primárias, com produtos agrícolas, metais, madeira ou outras matérias-
primas. Considere-se o Velho Oligarca:

Se alguma cidade é rica em madeira naval, onde ela irá distribuí-


la sem o consentimento dos governantes do mar? Novamente, se
uma cidade é rica em ferro, cobre, linho, onde ela vai distribuí-
los sem o consentimento dos governantes do mar? Contudo, é a
partir dessas mesmas coisas que eu tenho meus navios: madeira
de um lugar, ferro de um outro lugar, cobre de um outro, linho

77
Tilly 1989: 170.
78
Esse é o famoso fenômeno da proto-industrialização; ver o clássico Kriedte et al. 1981; Prak 2001a:
123–58.

131
de um outro, cera de um outro. Além disso irão proibir a
exportação para qualquer lugar que estejam nossos inimigos, sob
pena de serem incapazes de usar o mar. E eu, sem fazer nada,
tenho tudo isso da terra por causa do mar; porém, nenhuma
outra pólis tem sequer duas dessas coisas: a mesma pólis não
tem madeira e linho, mas em qualquer lugar onde exista linho
em abundância a terra é lisa e não tem madeira. Não há mesmo
cobre e ferro da mesma pólis, nem mesmo duas ou três outras
coisas em uma única pólis, mas há um produto aqui e outro lá.79

Essas especializações regionais não eram casuais. Demóstenes fornece uma boa
ilustração de troca inter-regional no século IV:

Agora, homens do júri, reflitam com seus próprios pensamentos


se vocês alguma vez souberam ou ouviram dizer de alguém
importando vinho por meio do comércio do Ponto à Atenas, e
especialmente vinho de Cos. Exatamente o oposto é o caso, com
certeza. O vinho é levado ao Ponto de lugares próximos a nós
(ek tôn topôn tôn peri hêmas), de Peparethos, e Cos e Thasos e
Mende, e de várias outras pólis; enquanto as coisas importadas
aqui vindas do Ponto são bem diferentes.80

A especialização de área inteira (o mar Negro) na produção de trigo 81 levou um


certo número de pólis (pólis insulares ou pólis costeiras do norte do mar Egeu) a decidir
explorar sua posição geográfica crucial dentro de redes marítimas, a fim de se
especializarem em culturas mais lucrativas como as da vinha ao invés das do trigo.

Ao contrário da teoria geográfica moderna, a produção de


mercadorias não se centrava nem nos lugares onde matérias-
primas eram produzidas nem nos lugares onde os produtos finais
eram consumidos. Antes, ela está localizada dentro do próprio
meio da comunicação. Aqui também as ilhas tem um papel
importante, por conta de suas comunicações, o que confere a
elas um lugar especial na rede de conectividade e redistribuição,
e portanto as habilita a manter uma alta densidade populacional
inesperadamente.82

A especialização na produção de bens manufaturados era uma atividade


oportunista derivada dessa troca mais comum de bens agrícolas. Essa concepção
remonta a Adam Smith. Todo o Livro III da The Weath of Nations devota-se à
79
Constituição dos Ateniense, II, 11-12. Segui a tradução de G. Bowersock na série Loeb.
80
Demóstenes, XXXV, 35. Segui a tradução de A. T. Murray na série Loeb com alterações.
81
Ščeglov 1990.
82
Horden e Purcell 2000: 346.

132
elaboração dos dois caminhos do avanço do comércio na Europa desde a Idade Média.
O primeiro, a manufatura urbana para exportação é caracterizado por Smith como
anormal, resultado de conjunturas européias específicas; enquanto ele considera como
natural e particularmente bem-vindo o desenvolvimento da manufatura que é baseada
no escoamento de produtos naturais do campo, um desdobramento que é dependente do
anterior desenvolvimento da agricultura.83
Essa sugestão é reforçada por Fenand Braudel; ele dizia que o vinho e o azeite
de oliva eram os equivalentes mediterrâneos da indústria rural da Europa do norte:

Contudo, é improvável que essas indústrias rurais no


Mediterrâneo tenham alguma vez atingido algo como a
importância que já teriam adquirido na Inglaterra, ou na Europa
do norte; ela nunca tomaram a forma de todo um grupo de
centros rurais sob o controle de mercadores urbanos, como era
tão freqüentemente o caso da França do século XVIII (...) Se for
correta, essa observação provaria duas coisas: primeiro, que a
área rural no Mediterrâneo possuía inerentemente o melhor
equilíbrio de recursos do que muitas regiões ao norte (e
possivelmente isso é verdade já que as vinhas e as oliveiras eram
freqüentemente o equivalente das indústrias rurais dos países do
norte - arboricultura equilibrava o orçamento do camponês).84

De fato, o texto de Xenofonte fala de pessoas ricas em produtos naturais que


vêm à Atenas para vender seus produtos, mas no caso da manufatura fala de artesãos
mudando-se eles próprios para Atenas:

Pois se o estado é tranqüilo, que tipo de homens não precisará


dele? Donos de navio e mercadores encabeçarão a lista. Então
haverá aqueles que são em milho e vinho e óleo e gado; homens
possuindo cérebro e dinheiro para investir; artesãos e
professores e filósofos; poentas e as pessoas que fazem uso de
seu trabalho; aqueles a quem qualquer coisa sagrada ou secular
apela que seja válido ver ou ouvir. Além disso, onde aqueles que
querem comprar e vender muitas coisas irão encontrar-se
rapidamente com mais sucesso em seus esforços do que em
Atenas?85

A mobilidade dos artesãos, mais que a mobilidade dos produtos, deve ser um
fator importante dos processos econômicos antigos. "É essencial enfatizar que a

83
Ver Smith 1976: 376-427. Acredito fortemente que há muito valor em voltar às observações de Smith
para construir uma economia histórica para história antiga. Garlan 1999b desenvolve uma tal abordagem
para história antiga.
84
Braudel 1972: 429.
85
Xenofonte, As Rendas, V, 3-4.

133
redistribuição mediterrânea está intimamente ligada à mobilidade do produtor: o artesão
itinerante é uma figura chave. Essa é uma das razões pelas quais a busca da 'indústria'
no mundo antigo é um tanto absurda.86 O modelo da cidade consumidora, ao tentar
julgar as cidades antigas por um padrão problemático, não consegue perceber o que é
mais interessante sobre seu desenvolvimento. As questões levantadas acima sugerem
que devemos prestar mais atenção à natureza mediterrânea das pólis gregas antigas,87 ao
invés amalgamá-las como cidades antigas a serem comparadas com as européias da
época medieval e moderna. Parece haver características particulares das cidades e
economias mediterrâneas que foram bastante obscurecias pelo hábito eurocêntrico de
compara as cidades e economias antigas apenas com as cidades e economias do período
da Baixa Idade Média e Idade Moderna no norte europeu, excluindo comparações
mediterrâneas.88 As várias funções das cidades no âmbito das economias mediterrâneas
em diferentes períodos da sua história é uma via que parece particularmente
promissora.89

CONCLUSÃO

Recapitulando: o modelo de cidade consumidora apresenta alguns sérios


problemas. A distinção entre uma economia "antiga" e uma economia
medieval/moderna é altamente esquemática; isso não significa dizer que não haja
diferenças importantes, mas elas nem foram localizadas adequadamente nem
corretamente interpretadas. A percepção das cidades antigas como entidades unitária
através de uma única perspectiva leva a equívocos; e o modelo de cidade consumidora
não fornece uma pluralidade de modelos interpretativos apropriados para a compreensão
da variedade de pólis gregas. Além disso, o modelo de cidade consumidora concebe as
pólis antigas como entidades isoladas; ele não nos permite compreender a interação e a
interdependência das pólis antigas no âmbito de seu sistema-mundo. Já vimos como a
definição aristotélica de pólis como consistindo de várias partes (merê), aponta para
uma tal concepção diferente. Igualmente, sua concepção a priori do papel da cidade
num arranjo pré-industrial obscurece os padrões reais de relacionamento entre cidades,
territórios e redes mais amplas na antiguidade.
Finalmente, nenhuma economia deve ser compreendida como entidade
homogênea: toda economia é constituída por uma variedade de processos em diferentes
escalas temporais;90 encontra-se conectada espacialmente e socialmente com outras
86
Horden e Purcell 2000: 346.
87
Uma observação será feita nos capítulos posteriores também sobre seu caráter particular egeu. O
arquipélago egeu como um sistema que conjugando ilhas estreitamente ligadas e costas continentais, É
único no mediterrâneo. Sistemas insulares semelhantes serão encontrados apenas em alguns poucos
lugares no mundo: o arquipélago da Indonésia é provavelmente o único outro sistema igualmente
importante. Sobre os sistemas insulares ver o fascinante Broodbank 2002.
88
Ver os comentários de Bresson 2005.
89
Ver os artigos de Nicolet 2000.
90
Refiro-me às durações múltiplas do tempo histórico formuladas por Braudel. Abordando as cidades e
sua demografia e tamanho, podemos distinguir entre o tempo do evento (uma guerra, uma grande carestia,

134
regiões e distritos em conjunturas concretas e contextuais; é constituída por diferentes
níveis e esferas de atividades econômicas, sociais, políticas e mentais que coexistem.91
Precisamos construir nossos próprios modelos positivos de cidades antigas, agricultura,
manufatura e comércio antigos. Tal tentativa constitui a próxima parte desse estudo.

uma praga), o tempo da conjuntura (a cidade está em fase de expansão ou contração? O tamanho da
família está crescendo, estabilizado ou declinando?) e o tempo da longue durée (formas nucleadas ou
dispersas de assentamento) Um modelo de cidade ateniense pode funcionar sem levar em consideração
todas as três escalas de tempo?
91
Nas cidades antigas, por exemplo, existe produção concomitante para a casa, para o mercado local e
para o comércio local; produção pelo uso do trabalho doméstico, do trabalho assalariado e do trabalho
dependente. Do mesmo modo, existe troca concomitante por reciprocidade, redistribuição e comércio.
Finalmente, há concomitantemente alto consumo, consumo conspícuo privado e público. Precisamos
compreender de que maneiras todos esses vários níveis e esferas coexistem e interagem, e em benefício
de quem. Ver Davies 1998.

135
PARTE III

Além da pólis: a pólis como parte de um système-monde

Até agora, este trabalho buscou três objetivos. O primeiro foi mostrar como a
abordagem dominante para o estudo da história grega surgiu, como a pólis emergiu
como o princípio organizador chave, como outras abordagens alternativas têm sido
marginalizadas e como os problemas discursivos mais amplos fundamentalmente
moldaram o curso das pesquisas acadêmicas em história grega. Depois disso, eu tentei
recuar para como os gregos antigos falaram sobre suas pólis, com particular atenção
para as várias concepções aristotélicas da pólis, e argumentando que o seu valor
analítico ainda é relevante para os historiadores modernos. Finalmente, eu apresentei
uma crítica à ortodoxia vigente no estudo da pólis grega: uma ortodoxia que vê a pólis
grega como uma entidade unitária e solitária, a ser justaposta a outras entidades
similares. Persegui esta crítica em dois estudos de caso: a oposição das pólis gregas ao
despotismo oriental; e a oposição das pólis gregas, como cidades consumidoras, versus
as cidades produtoras da Europa da Idade Medieval e início da Idade Moderna.
Provavelmente, a questão já se delineou a muito tempo no pensamento do leitor:
se a crítica foi bem sucedida, o que há para substituir essas abordagens criticadas?
Como podemos escrever a história grega a partir de uma abordagem alternativa? Como
a história grega pode ser integrada à história do Oriente Próximo e do Mediterrâneo em
geral? Na verdade, é legítimo esperar um exemplo positivo de como seria tal história.
Contudo, o leitor que espera encontrar nas páginas a seguir uma narrativa alternativa da
história grega, ficará totalmente desapontado. A razão não é preguiça intelectual; mas
antes, existem algumas limitações importantes para qualquer passo a frente.
A primeira é uma limitação imposta pela ausência dos trabalhos acadêmicos
necessários que tenham se desenvolvido a partir da perspectiva defendida no presente
estudo. Tal apontamento não é para minimizar as conquistas de outros estudiosos, é
apenas para argumentar que a predominância da perspectiva eurocêntrica e o interesse
limitado em abordagens e resultados obtidos fora da disciplina de história antiga tornam
algumas perguntas e algumas agendas de pesquisa impossíveis de prosseguir. Qualquer
um, é claro, tem o direito de perseguir quaisquer questões que lhes pareçam relevantes;
sejam elas quais forem, contudo, a partir da perspectiva delineada neste estudo, há ainda
uma enorme quantidade de trabalho que não foi realizado até o momento. Algumas
lacunas e limites já foram apontados; outros se seguirão nas próximas páginas; até que
esse trabalho seja realizado, é impossível tentar uma abordagem alternativa consolidada.
Além disso, se as abordagens anteriores foram criticadas por seus procedimentos
metodológicos e analíticos, o que é necessário agora é um quadro analítico e
metodológico alternativo. Antes de tentar escrever uma narrativa alternativa da história
grega, precisamos de ferramentas analíticas que nos permitam fazê-lo. A última parte
deste trabalho é dedicada à exploração de uma oficina de análise dessas alternativas. Se
tiver sucesso em convencer o leitor de que tal quadro analítico tem consistência
metodológica e analítica, que concorda com as evidências sobre a história antiga grega

136
que temos disponível e fornece novos insights e novas formas de olhar para estas
evidências, então seus objetivos terão sido realizados. Resta para futuros trabalhos
aplicar o método e as ferramentas a fim de construir uma narrativa histórica positiva.
A tarefa de criar um quadro analítico tem sido particularmente difícil e incerta,
mas ao mesmo tempo um desafio. Muitas influências por trás da abordagem adotada
aqui se encontram fora do campo da história antiga. Em certo sentido, a abordagem e
suas ferramentas tiveram que ser construída a partir de um diálogo contínuo com várias
outras disciplinas: a história moderna europeia, a teoria dos sistemas mundiais, pós-
colonialismo e a teoria política. Falar sobre um diálogo sugere o que ficará claro mais
tarde: minha tentativa não foi apenas tomar emprestado ou adotar abordagens que se
desenvolveram fora do campo da história antiga. Na verdade, eu tentei modificar estas
abordagens para as necessidades particulares do estudo da história antiga e, em uma
série de casos, tive que criticar algumas abordagens por não darem conta das evidências
da história grega, nestes casos, o estudo da história grega pode até mesmo contribuir
para repensar e adaptar alguns princípios centrais destas abordagens.
Em contraste com as abordagens criticadas nos capítulos anteriores, o meu
objetivo aqui é mostrar que a pólis deve ser tratada não como uma entidade
independente, mas como parte de um sistema. Que tipo de sistema? Até agora, tenho
utilizado a expressão "sistema-mundo" para transmitir esse significado. Mas o termo foi
sobrecarregado com uma série de significados dos quais eu gostaria de dissociar o meu
uso. Nesse caso, o termo, um tanto embaraçoso, système-monde, tomado de empréstimo
à Fernand Braudel, vai nos servir melhor; um système-monde não abrange o mundo
inteiro, em vez disso, é um mundo em si, baseado na interdependência e interação entre
suas várias comunidades, seus grupos e regiões.1 O système-monde pode ser tão
pequeno (por exemplo, o mar Egeu), ou tão grande (o Mediterrâneo), quanto o nosso
foco de análise requiser, e isso depende dos parâmetros em estudo, da escala de tempo e
de uma série de outras questões. Meu uso do termo système-monde carrega tanto
significado como este; os parâmetros específicos devem ser explicitados
minuciosamente para cada sistema particular em estudo. Deste modo, é importante
dissociar o meu conceito de système-monde de outras noções relacionadas, tais como
centro e periferia, intercâmbio desigual e, é claro, capitalismo. Estes conceitos são
relevantes para alguns systèmes-mondes, mas eles não são acompanhamentos
necessários de cada système-monde,2 e não encontro relevância neles para os sistemas
em estudo aqui. Portanto, os parâmetros gerais limitados que tentarei estabelecer nos
próximos capítulos abarca a três questões: (a) que a pólis é uma parte de um sistema
maior (b) que existe uma multiplicidade de níveis temporais e espaciais coexistentes
dentro desse sistema e (c) que as pólis devem ser analisadas en ro o “am ien e”
criado pelo sistema e seus vários níveis.

1
Braudel 1984: 21–70.
2
Janet Abu-Lughod argumentou que o sistema mundial medieval não tinha centro, nem poder
hegemônico, mas consistia, antes, em certo número de círculos concêntricos; Abu-Lughod 1989: 3-40.
Ver também, Stein 1999: 3-81.

137
CAPÍTULO 6

A pólis como uma unidade de análise: pólis e koinôniai

Tem sido um lugar-comum que as sociedades, estados e culturas são as unidades


de análise que os historiadores têm que usar. Vou me restringir ao tratamento da noção
de sociedade nesse contexto. Desde o século XIX, estabeleceu-se como senso comum a
ideia de que as sociedades são entidades distintas, com suas próprias regras, leis e
fronteiras, e elas são as unidades de análise que os historiadores usam. Alguém poderia
estudar as relações ou interações entre diferentes sociedades, mas ainda assim estudaria
as relações e interações entre entidades distintas e definíveis. É essa visão justificada?
Acredito que não, e na verdade ela teve uma influência muito perniciosa sobre o estudo
da história grega. Ouvimos sobre o contraste entre aristocracia e pólis; entre pólis e os
ethnos; entre o cidadão-hoplita e o mercenário; entre a Grécia e o Oriente. Estas
distinções emanam de uma visão estática e internalista de sociedade. Quero então
colocar duas questões disitntas, ainda que inter-relacionadas: podemos falar da pólis
como um tipo de sociedade? E é a pólis um quadro adequado para a análise da história
social das comunidades gregas antigas?
O que é a sociedade grega antiga, então? Vamos aceitar por um momento a visão
usual de que uma sociedade é coincidente com os limites de um governo. O que é a
sociedade ateniense? É a sociedade da pólis ateniense? Há razões para duvidar disso.
Pois, para começar, os metecos frígios e lídios, que lutam como hoplitas atenienses para
o desalento de Xenofonte, são parte da sociedade ateniense?1 São os clerucos atenienses
de Esquiro, Imbros, Lemnos, Quersoneso, Samos parte da sociedade ateniense?2 E o
que dizer sobre os mercenários atenienses na Ásia Menor ou Egito?3 Poder-se-ia pensar,
talvez, que seria possível fornecer uma resposta simples, afirmativa ou negativa, a essas
questões. Mas, na realidade, a sociedade ateniense é dependente de uma variedade de
comunidades, redes e instituições que vão além da pólis ateniense. Para colocar a
questão à maneira de Aristóteles, seria a sociedade ateniense a mesma, se tudo isso não
existisse?4
(a) Os metecos não eram uma parte dispensável da sociedade ateniense.5 Seu papel
foi muito importante em vários aspectos. Para dar apenas um exemplo, eles
forneceram um contingente de alguns milhares de hoplitas, uma contribuição
considerável para o exército ateniense.6 A existência e manutenção contínua de
uma população meteca considerável pressupõe redes de mobilidade humana,
redes de mobilidade de bens suficientes para fornecer os meios de subsistência

1
As Rendas II, 3; Adak 2003: 67–72.
2
Gauthier 1973; Cargill 1995.
3
Pritchett 1974: 59–116.
4
Para um enfoque da sociedade ateniense que vai para além da abordagem usual centrada no cidadão, ver
Cohen 2000.
5
Whitehead 1977.
6
Tucídides, II, 13, 7; 3,000 metecos hoplitas em II, 31, 2.

138
para uma grande população e, finalmente, um porto que seja capaz de coordenar
todos esses recursos e redes.7
(b) Pisístrato conseguiu voltar à Atenas, usando os lucros de seus negócios com as
minas do Pangeu;8 Tucídides tinha o direito de trabalhar nas minas de ouro na
Trácia e consequentemente fortes relações e influência na aristocracia da área;9
Alcibíades, depois de sua queda em favorecimento dos atenienses, recuou para o
seu teichê (forte) na Quersoneso.10 Eram possessões adquiridas por meio das
instituições e mantidas através de relações sociais (você precisa de trabalhadores
para trabalhar nas minas, e um sistema de relações para controlar seu trabalho e
dispor o produto). Seria a sociedade ateniense a mesma se essas possessões,
instituições e relaçãoes não existissem?
(c) A sociedade ateniense clássica seria impensável sem um grande número de
escravos que foram importados regularmente. A importação de escravos
pressupõe dois fatores: relações sociais nas comunidades de exportação que
podem manter um fornecimento estável de seres humanos subordinados o
suficiente para se tornar mercadorias; e uma rede sofisticada o suficiente para
garantir a manutenção da ligação entre importadores e exportadores. Se é
impossivel compreender a história das colônias americanas sem a história da
criação e manutenção de redes de fornecimento e as dinâmicas "internas" das
comunidades africanas fornecedoras,11 como entenderemos a sociedade
ateniense sem essas considerações? No início da República, Sócrates vai até o
Pireu para celebrar a introdução do culto trácio de Bendis; como esta introdução
reflete sobre os inumeráveis escravos da Trácia em Atenas?12
(d) A frota era vital para a manutenção do império ateniense e da sociedade
ateniense. Mas a frota dependia, entre outros, de um grande número de
remadores. Já deveria estar bastante claro que uma grande parte dos remadores
não eram cidadãos atenienses, nem seus escravos ou metecos, mas estrangeiros
de várias comunidades do Mar Egeu;13 caso contrário, o conselho lacedemônio a
Ciro para oferecer um dracma como pagamento diário, a fim de recrutar os
marinheiros atenienses, seria incompreensível.14 Assim, a marinha ateniense
dependia da disponibilidade de uma vasta quantidade de mão-de-obra excedente
em todas as comunidades egéias, e esta disponibilidade era ela mesma
dependente de uma variedade de relações sociais, redes e instituições.15

7
Para a mobilidade de bens e pessoas, ver Purcell 1990; Horden e Purcell 2000: 342-400.
8
Heródoto, I, 61–4; Aristóteles, Constituição dos Atenienses 15; Lavelle 1992.
9
Tucídides, IV, 105.
10
Xenofonte, Helênicas, I, v, 17, II, i, 25.
11
Para tal perspectiva, ver Lobo, 1982, 195-231; Kelley 2002.
12
República, 327a; ver Parker 1996: 170–5.
13
Van Wees 1995.
14
Xenofonte, Helênica, I, v, 4.
15
Para expor isto de outra maneira: poderiam as sociedades egeias serem as mesmas na ausência das
enormes frotas imperiais que requisitavam mão-de-obra excedente? Como elas manteriam suas
populações e seus modi vivendi sociais? Acho que este é um exemplo muito claro de como a existência de
redes de mobilidade e de meios de empregar a mão-de-obra excedente influencia as relações sociais.

139
Pode-se levantar o argumento de que esta é uma análise que se adequa bem à
Atenas, mas Atenas é, obviamente, um caso atípico, que dificilmente pode ser usado
para generalizar sobre as pólis gregas. De fato, mas o argumento é precisamente que de
Atenas a uma comunidade interiorana da Arcadia existe todo um espectro de
interrelações e interdependências possíveis entre comunidades, grandes e pequenas,
costeiras e interioranas. Mas, deixe-me dar outro exemplo a partir da pequena pólis de
Arcesine na ilha Cicladica de Amorgos. Arcesine era uma das três pólis em Amorgos.
Não obstante, nas “Lis as enienses e Tri u os” as r s p lis aparecem como uma
única entidade (Amorgioi) pagando um talento de tributo à Atenas.16 Se este talento é
dividido entre as três pólis, é porque todas elas fazem parte do vasto grupo de
“pequenos paga ores” comunidades que pagam menos de um talento como tributo.
Como Lucia Nixon e Simon Price têm mostrado, as taxações nas Listas de Tributos são
baseadas não no território ou na população, mas no montante total de recursos e riqueza
disponível à comunidade.17
As três pólis insulares, portanto, não parecem ter qualquer tipo especial de
recursos, e suas riquezas devem ser semelhantes as da vasta maioria das outras pequenas
pólis gregas. No entanto, temos algumas inscrições, a partir do final do século IV,
registrando empréstimos contraídos pela pólis de Arcesine de uma variedade de
credores provenientes de outras ilhas Cíclades.18 O que é notável nessas inscrições é que
os empréstimos são garantidos pela propriedade pública e privada (que é dividida em
patrimônio imobiliário e riqueza "marítima"), tando dos cidadãos de Arcesine, quanto
dos ‘oikoun es en rkesin i’, ou seja, os metecos de Arcesine. É ainda mais notável que
as propriedades desses metecos sejam importantes o suficiente para serem citadas como
penhor em todos os empréstimos registrados, e em todos os casos em que há menção
das garantias em cada inscrição. Como poderia uma minúscula pólis de uma pequena
ilha do mar Egeu, sem recursos particulares ou riqueza "adquirir" uma tão importante
comunidade de metecos? Não é este um testemunho claro de que a vasta maioria das
comunidades do Mar Egeu participavam em redes de relações que tornam problemática
a noção de uma sociedade distinta e delimitada?19
Defendo, então, que uma determinada sociedade (sociedade ateniense), ou até
mesmo a sociedade grega como um todo, não pode ser a única unidade de análise.20
Para além da formação política individual, encontra-se uma unidade de análise, que,
para usar as palavras de Immanuel Wallerstein, é um sistema mundial: "Trata-se de um
sistema mundial, não porque abrange o mundo todo, mas porque ele é maior do que
qualquer unidade política juridicamente definida” grifo meu).21 Toda sociedade é uma
parte interdependente desse sistema, embora, obviamente, de diferentes graus de
influência, poder ou subordinação dentro do sistema. A sociedade grega como uma
entidade distinta com fronteiras claras é uma quimera. Sociedades não são algo dado;

16
Ver Meiggs 1972: Apêndice 14, Distrito Cário.
17
Nixon and Price 1990.
18
Sobre estas inscrições, ver Gauthier 1980.
19
Ver mais em Brun, 1996: 163-82.
20
Ver preocupações simulares de Pocock 1975b a respeito desse assunto na história britânica.
21
Wallerstein 1974: 15. Ver também Wallerstein 1991: 229–72.

140
elas não são realidades observáveis e distintas. Ao contrário, a sociedade, para usar uma
frase braudeliana, é "um con un o e con un os” “ ara o his oria or que é tão
intimamente ligado ao mundo concreto, a sociedade total, apenas pode ser uma soma de
realidades vividas, estejam ou não relacionadas entre si: para ele, ela não é um único
recipiente, mas vários recipientes – e seus conteúdos ”22 É o elo e a interdependência de
diversas comunidades, formações políticas, instituições e redes empíricas e contextuais.
Vamos agora focalizar o contexto da sociedade e examinar a pólis como uma
comunidade de cidadãos e como uma espécie de sociedade. Pode a pólis grega ser
pensada como uma forma de sociedade? É adequado pensar em uma pólis grega como
uma comunidade de cidadãos? Vamos começar com a pólis como um tipo de
comunidade. Ora, este é realmente um conceito muito útil para o pensamento sobre a
pólis.23 Mas é necessário qualificar este conceito de dois modos.
Primeiro, em muitos casos, a pólis não compreende apenas uma comunidade de
cidadãos; não estou me referindo aqui aos escravos, “ser os” mulheres metecos e os
cidadãos com menos direitos, embora mencioná-los seja muito útil para evitar a
armadilha de criar uma imagem monolítica dominada pelos cidadãos.24 Refiro-me,
principalmente, aos casos em que a formação política compreende tanto a comunidade
de cidadãos quanto as comunidades dependentes, mas livres, com diversos status e
mantendo diversas relações com a comunidade dominante dos cidadãos. A pólis
lacedemônia era uma unidade indivisível da comunidade de cidadãos espartanos e as
comunidades dependentes dos perioikoi, cada uma com sua própria constituição e
cidadania.25 Pode-se citar exemplos similares de Elis, Creta e Locris. Temos uma lei dos
lócrios de Hypocnemidia (leste), regulando suas relações com os seus colonos da pólis
lócria ocidental de Naupactus.26 A partir deste documento fica claro que os lócrios
orientais formam um koinon de comunidades com suas próprias leis e magistrados, que
são explicitamente chamadas pólis. No entanto, as decisões políticas são tomadas em
nome e pelos cidadãos da pólis dominante de Opous.27 Assim, o estado de Opous não é
simplesmente sua comunidade de cidadãos, mas uma formação política composita.
Mas esta não é nem simplesmente uma questão de relações jurídicas, nem uma
questão relativa somente a algumas áreas atrasadas da Grécia. Vamos considerar o caso
das relações entre mêtropoleis e apoikiai. A. J. Graham escreveu há muito tempo um
livro bastante estimulante sobre elas. Seu saudável empiricismo britânico lhe permitiu
evitar as armadilhas da abordagem tradicional legalista alemã para a questão; em vez de
tentar definir, de qualquer maneira possível, as relações jurídicas e obrigações entre
elas, ele estava mais interessado em ver a repercussão dessas relações na vida real dos
povos antigos.28

22
Braudel 1982: 458.
23
Ver, por exemplo, Walter 1993.
24
Ver, com cuidado, a abordagem de Cohen 2000.
25
Shipley 1997; Hall 2000.
26
Meiggs e Lewis 1969: no. 20.
27
Nielsen 2000.
28
Graham 1983.

141
O resultado é muito estimulante. Pólis como Tasos mantinham um controle
direto sobre as relações políticas, sociais e econômicas de suas apoikiai, apesar do fato
de que as apoikiai eram elas mesmas pólis com capacidades e obrigações distintas:
como exemplo, Tasos legislou para evitar a stasis em sua apoikiai.29 Pólis como Corinto
criaram apoikiai em lugares cruciais para a manutenção de suas ligações mais distantes
e ainda enviaram magistrados para algumas destas apoikiai.30 Pólis como Mileto
criaram uma enorme rede de apoikiai em seu campo de interesse, no Mar Negro, o que
permitiu uma infinidade de possíveis estratégias para seus próprios cidadãos: os
decretos que permitem a igual participação política, econômica e religiosa aos cidadãos
milésios, nas várias apoikiai milésias, mostram a importância dessas práticas.31
Finalmente, vê-se as grandes vantagens do controle imperial: as apoikiai e clerúquias
atenienses, assentamentos de longo e curto prazo no exterior.32 Elas demonstraram
importância suficiente a ponto de forçar os atenienses a se retirarem de uma guerra (Paz
do Rei em 387 AEC.)33 e participar de outra (a guerra de Lâmia em 322 AEC).34 Os
casos mais difundidos das peraiai insulares (comunidades nas ilhas possuindo
territórios no continente) servem para nos lembrar da importância dessas questões.35
Em todos esses casos, as relações legais precisas não são muito importantes. O
que é importante é que vemos a pólis alcançando o exterior, para além do seu próprio
território, e tendo controle para além dos seus próprios cidadãos. Não devemos, de fato,
diminuir a importância dessas relações, devido à relativa ausência de evidências. A
descoberta de uma única inscrição com uma lei ateniense impondo um imposto sobre
grãos de 8,5 por cento nas três clerúquias de Lemnos, Imbros e Esquiro,36 uma realidade
totalmente inesperada a partir das evidências pré-existentes, mostra a importância
dessas relações para as nossas pólis.
Em segundo lugar, o fato de que a pólis é uma comunidade de cidadãos não
significa que ela seja, realmente, governada por uma comunidade de cidadãos.37 De
acordo com os filósofos políticos gregos, a pólis pode ser regida por uma única pessoa,
por alguns, ou por muitos, sem qualquer discriminação à sua condição de pólis. Pode-se
mencionar os inúmeros casos em que as lutas, internas e externas, pelo poder resultaram
em tiranias mais ou menos permanentes, que têm sido erroneamente divididas entre uma
“era os iranos” original e recorren es iranias ar ias As moedas cunhadas pelos
tiranos sicilianos são inscritas com o nome da comunidade de cidadãos, e não com os
seus próprios nomes ou com o nome de um reino (como no Reino Unido da GB e IN).

29
Graham 1983: 83–4.
30
Magistrados em Potideia: Tucídides, I, 56,2; Graham 1983: 135-7. Ver Fornis 1997.
31
Relações entre Mileto e Olbia: Tod, 1948: n º 195; Graham 1983: 98-117.
32
Cargill 1995.
33
O medo de perder as cleruquias de Lemnos, Imbros e Esquiros foi crucial nas negociações de paz de
392 AEC e a capitulação ateniense em 387 foi feita a fim de preservá-los, como de fato aconteceu;
Xenofonte, Helenicas, IV, VIII, 15.
34
A fim de evitar que a cleruquia de Samos fosse devolvida aos sâmios; Diodoro, XVIII, 8, 7.
35
Brunet 1997; Funke 1999.
36
Stroud 1998.
37
A atitude característica em Morris, 1991: 27: "Se os cidadãos se tornaram sujeitos, sua comunidade
deixou de ser uma pólis”

142
O tratado ateniense com Dionísio I de Siracusa em 367 AEC é característico: o tratado é
entre os atenienses e Dionísio e seus descendentes. Dionísio escri o como “arcon e a
ic lia” o en an o o juramento deve ser tomado não apenas por Dionísio, mas
juntamente com "os arcontes e a boule dos siracusanos, e o strategoi e o trierarchoi” 38
Embora o juramento seja entre os atenienses e Dionísio, arconte da Sicília, os diversos
arcontes e o conselho de Siracusa são parte dele.
A distinção entre o monarca e a pólis é difícil de fazer neste contexto, porque a
monarquia e até mesmo a existência de um estado-macro, que abrange a maior parte da
Sicília, não exclui a existência de uma comunidade de cidadãos e seus arcontes e órgãos
dirigentes. Além do caso de Cirene e sua realeza bem conhecida,39 pode-se
proveitosamente recorrer à situação em Chipre. Mesmo que as referências de Isócrates a
reinos cipriotas como pólis sejam rejeitadas como parte de uma propaganda política,40 o
famoso tablete de bronze de Idálio é ilustrativo: lá, além do rei, encontraremos
referências diretas à pólis, no sentido explícito da comunidade cívica.41
Para recapitula; é importante não esquecer o fato de que muitas pólis eram mais
do que simplesmente uma comunidade de cidadãos. Muitas pólis hegemônicas
conseguiram incorporar em suas fronteiras uma multiplicidade de comunidades livres
ou não livres com variados status. Nenhuma definição de pólis pode usar como um
critério um dispositivo que se aplique apenas a uma minoria; mas por outro lado, é
importante não perder de vista essa realidade sob afirmações homogeneizantes. Isso é
altamente significativo, quando nos recordamos que formações políticas com níveis
múltiplos e hierárquicos de participação são encontradas universalmente tanto em outros
lugares (como no Oriente Próximo), como em outros períodos da história egeia (como
as cidades micênicas). Ao invés de criar estágios da história grega, poderíamos estudar
paralelamente essas organizações políticas hierárquicas e traçar processos de
consolidação e fragmentação.
Além disso, devemos reconhecer o fato de que a organização do poder no
interior das comunidades gregas é fluida e multiforme; ao invés de criar histórias de
etapas e de tratar o grande número de exemplo do contrário como exceções, podemos
nos concentrar na mecânica e nos processos de consolidação e fissão do poder em
diversas formas de comunidades políticas em sua longue durée.42 Certamente, se
poderia descartar essas características como exceções.43 Mas temos que ter em mente
não apenas que o número de exceções será inconvenientemente alto e que estaremos
fazendo exceções para a maior parte das pólis importantes; e que também um tipo ideal
de construção como esse torna impossível compreender a mudança e a transformação,
os processos de poder e fragmentação e consolidação territorial.
Nos ocuparemos agora do conceito de pólis como um tipo de sociedade. Nada
pode ser mais improfícuo do que isso. Para citar as palavras de James Whitley,

38
Tod 1948: nº. 136.
39
Mitchell 2000.
40
Isócrates, Euagoras, 49–50, 52–7; Nikokles, 9, 19, 24, 31.
41
Demand 1996, 1997.
42
Ver, por exemplo, Morris 1991.
43
Ver, caracteristicamente, Runciman 1990: 348.

143
A pólis é pensada usualmente como uma forma social única e
específica, que pressupõe um estado de uniformidade
antecedente [...] Se o conceito de cidade-estado deve reter
alguma validade, é o de que ela deveria ser vista como uma
instituição. Ela nunca foi um tipo de sociedade, o princípio
definidor da vida e do pensamento gregos, cujo o exemplo mais
representativo seria a Atenas do quinto século. Ao contrário, a
cidade-estado era uma instituição bem sucedida, com funções
muito limitadas que conseguia acomodar-se a um espectro muito
grande de formações sociais. O termo pólis deveria delimitar um
grupo de formações institucionais; ele não deve ser identificado
com a sociedade grega em nenhum estágio de seu
desenvolvimento.44

“nascimen o” “apogeu” e “ ecl nio” a p lis n o o “nascimen o” “apogeu”


e “ ecl nio” e um nico ipo e socie a e; an es comuni a es iferen es ou regi es
diferentes desenvolveram-se de formas diferentes ou divergentes; o fato de que a
diversidade dessas comunidades era identificada como pólis não deveria nos levar a
pensar nelas como compartilhando uma mesma forma social.
Para dar um exemplo esclarecedor, W.G. Runciman45 tentou demonstrar que o
que os vários tipos de pólis compartilhavam era um beco sem saída evolutivo: fossem
democracias ou oligarquias, elas eram demasiado democráticas para se expandir de
qualquer modo sistemático , consolidado e de longo prazo; assim, estavam destinadas a
ser dominadas por entidades maiores, como estados territoriais ,46 reinos (Macedônia )
ou repúblicas (Roma) . Elas não podiam se transformar internamente , tiveram que ser
dominadas a fim de mudar. É bastante óbvio que esta visão está relacionada com a visão
da pólis como uma forma de sociedade. A declaração de Runciman é sofisticada , mas
se sustenta apenas por ignorar um grande número de casos contrários .
As pólis gregas da Sicília foram incorporadas em um estado territorial sob a
dominação dos tiranos e reis de Siracusa.47 Em Creta, o período arcaico com a lendárias
cem pólis foi seguido por um processo de consolidação territorial , em que no período
helenístico algumas cidades passaram a dominar grande parte da ilha; Gortina passou a
controlar todo o centro-sul Creta, Knossos centro-norte , Hierapytna o leste, etc.4848
Durante os períodos arcaico e clássico inicial, Esparta , Elis e Argos foram capazes de
adquirir ou conquistar de uma forma mais ou menos permanente , e por vários métodos ,

44
Whitley 1991: 194.
45
Runciman 1990
46
Sobre o estado territorial , ou, para adotar o termo mais apropriado de Hansen , o macro-estado, ver
Hansen 2000a : 16
47
Davies 1978: 187-97, 246 -9.
48
Chaniotis 1996: 27-8; Hansen e Nielsen 2004: 1144-1195.

144
grandes territórios, dentre eles controlaram mais de 60% do Peloponeso.49 Pólis gregas
participando de Koina e ethne regionais (as pólis e phylai etólias e acaias) conseguiram
transformar a sua organização estatal e incorporar por vários meios um número
surpreendente de comunidades, criando formas trans-regionais de organização.50 E se
nos recordarmos do envolvimento ateniense no mar Egeu, na Sicília e no Egito, a
criação de colônias e clerúquias e a aquisição de propriedades rurais em terras
estrangeiras pela elite ateniense, fica-se a imaginar o que teria acontecido se o
atenienses tivessem sido bem sucedidos em uma das suas frentes. Como J. K. Davies
colocou,

seu fracasso (da expedição ateniense à Sicília) decidiu a guerra


e, assim, determinou que a história grega não iria seguir o
caminho da história italiana. Lá, um poder dominante , Roma,
coordenou recursos preponderantes , e, finalmente, fundiu a sua
soberania em uma entidade de escala maior. A Grécia deveria
continuar a ser policêntrica, competitiva, multifacetada e sujeita
a influência e pressão do exterior.51

Então, não havia nem um beco sem saída evolutivo , nem uma única resposta a
questões de relacionamentos internos e externos . Nós não podemos usar a pólis como
uma forma de sociedade nestes termos gerais.
Para resumir: a pólis não pode ser tomada como a única unidade de análise para
a história grega . Pólis gregas foram sempre , mas em diferentes graus e formas , parte
de um mundo mais amplo, que necessita de mais ferramentas de análise a fim de ser
concebido. Ao mesmo tempo, as pólis gregas não podem ser tomadas simplesmente
como uma forma de sociedade ou como uma comunidade de cidadãos . As pólis gregas
formaram sociedades muito diferentes, incluindo elementos muito variáveis; muitas
delas incluíram muito mais pessoas do que a sua comunidade de cidadãos . O que deve
ser feito?

49
Ver Hansen e Nielsen 2004: 70-4 (tamanho dos territórios) , 489-504 , 540-6 (Elis) , 547-98 (Esparta),
598-619 (Argos).
50
Etólia: Funke 1997; Scholten 2000. Acaia: Larsen 1968: 215-40; Morgan 2000, 2001.
51
Davies 1978: 133. Ver também crítica similar de Runciman por Morris 1997b

145
CAPÍTULO 7

Pólis e espaço

Após nossa discussão sobre se a pólis deve ser tratada como a única unidade de
análise para a história grega, é hora de tentar definir unidades alternativas de análise e
ferramentas de pesquisa. Nessa seção iremos focalizar a dimensão espacial das pólis
gregas. Infelizmente, a localização das pólis gregas no espaço tem sido um dos lados
mais negligenciados do estudo da história grega. O índice mais característico dessa
atitude é o hábito de figurar as pólis gregas como simples pontos no mapa, sem mostrar
a extensão de seus territórios. Posso estar obviamente enganado, e mesmo assim o único
mapa que consigo localizar e que tenta representar as comunidades gregas como
entidades territoriais encontra-se na publicação do Die Dorier de Müller de 1824. Nas
palavras de Archibald, "a representação usual de comunidades históricas como pontos
em um vazio branco reforça a impressão estática de oásis isolados e nucleados".1
Outro problema muito comum com o uso de mapas no estudo da história grega é
a maneira equivocada de representar os territórios da pólis. O caso de Atenas é
característico: todos os mapas em trabalhos gerais de história da Grécia, e mesmo em
estudos especializados, retratam apenas a Ática como o território da pólis ateniense.
Não conheço nenhum mapa do território da pólis dos atenienses que procure retratar os
assentamentos ultramarinos dessa pólis (cleruchies e outras comunidades dependentes).
De fato, é preciso que se volte ao livro de Kahrstedt de 1934 intitulado Staatsgebiet und
Staatsangehörige in Athen,2 para encontrar uma análise de Atenas preocupada com
espacialidade, que reúne cidadãos, metecos, cleruchs e comunidades periécas (Oropos,
Eleutherai). Várias gerações de leitores e acadêmicos acostumaram-se com a idéia de
que se pode simplesmente ignorar essas comunidades quando se concebe e se escreve
sobre Atenas. Certamente, não é simplesmente o caso de que as cleruchies não sejam
representadas por serem aquisições temporárias; algumas delas o eram de fato (Eretria,
Samos), embora os atenienses tenham ido à guerra contra os macedônios por elas, uma
guerra que aboliu a democracia ateniense por muitos anos. Porém, muitas e talvez
algumas das mais importantes (Lemnos, Imbros, Skyros), fizeram parte da pólis
ateniense ao longo de todo período clássico e mesmo até o período romano.3
Poderíamos ignorar o assentamentos ultramarinos de Veneza em mapas da história
veneziana? Eu duvido.
Nas páginas que se seguem, procuro observar o aspecto espacial das pólis gregas
a partir de três pontos de vista em ordem descendente: o primeiro é a unidade espacial
mais vasta, aquilo que até agora temos chamado de "o sistema-mundo"; o segundo é o
nível intermediário que podemos chamar de "região"; e o terceiro é a configuração
espacial de cada pólis grega, com relação tanto ao seu arranjo espacial dentro de suas

1
Archibald 2002: 49.
2
Kahrstedt 1934.
3
Seu estudo está agora muito mais fácil graças a Cargill 1995.

146
próprias fronteiras como em seus arranjos com os dois níveis mais amplos que
acabamos de definir. Uma última observação que quero fazer é a de que esses níveis de
análise não devem ser reificados; devem ser vistos como arranjos e configurações
dinâmicas e não como novas unidades analíticas que venham a substituir a pólis-
entidade.

PÓLIS E TERRITÓRIOS

Variedades de territórios de pólis: uma classificação

Começando pelo terceiro nível, é certamente bem conhecido que cada pólis (por
exemplo, a pólis dos coríntios) compreendia um centro político (Corinto) e um território
(Coríntia). Sobre isso seria equivocado afirmar que aspecto espacial da pólis foi
negligenciado. O problema reside antes, na compreensão desse relacionamento. Em
realidade, essa relação apresenta enormes variações.4 Nas linhas que se seguem procuro
classificar três diferentes formas básicas de relacionamento entre uma pólis e a
exploração de seus recursos e territórios. Havia pólis que dependiam da exploração de
seus territórios para a sua própria subsistência e reprodução; nesse caso, lidamos com
comunidades agrícolas envolvidas principalmente coma cultura de cereais e
secundariamente com a produção daqueles outros produtos agrícolas básico (óleo,
vinho, frutas) e produtos de origem animal que eram indispensáveis para suas próprias
necessidades.5 De certo, eles teriam ainda que importar um certo número de
mercadorias não disponíveis localmente (metais, sal, escravos), mas seus arranjos
econômicos e sociais eram guiados primariamente em direção à produção e consumo
próprios. Um grande número de pólis gregas continentais e não litorâneas pertenciam a
essa categoria.
A segunda categoria compreendia as pólis que dependiam novamente da
exploração de seu território para sua subsistência e reprodução; mas a diferença crucial
com relação primeira categoria era a de que a exploração de seus recursos era guiada em
grande medida em direção à mercadorias básicas que eram para troca (vinho, óleo,
peixe, madeira, metais) e não simplesmente para o autoconsumo.6 Isso não significa que
suas economias eram monoculturas, como as economias açucareiras das Índias
Ocidentais, ou as modernas economias africanas de monocultura.7 Tais economias de
monocultura eram, e ainda são, usualmente o resultado de imposição imperial externa;
este raramente era o caso das pólis gregas antigas.8 As pólis dessa categoria teriam
devotado certamente uma área substancial de sua terra aos cereais e outros produtos que

4
Ver Gehrke 1986: 96–176; Osborne 1987: 113–36.
5
Ver Gehrke 1986: 97–116, 150–63.
6
A questão é antiga: ver Morel 1983: 558; mas ela ainda não alcançou a literatura anglo-saxônica sobre a
história grega. A influência do finleyanismo é certamente responsável. Ver os comentários
redirecionadores de Osborne 1996a; também Gehrke 1986: 116–49.
7
Ver Wolf 1982: 310-53.
8
Mas ver Horden e Purcell 2000: 284-7.

147
seriam localmente consumidos; mas as suas lavouras comerciais tinham efeitos
extremamente importantes sobre seus padrões de assentamento, comunicações,9
sistemas de rede, disposições creditícias e comerciais10 e instituições e práticas sociais.11
O caso da Acragas siciliano é característico: apesar de que as fontes literárias
nos contam que o cultivo de cereais tinham um importante papel em sua economia,12 eis
aqui a narrativa de Diodoro sobre seu estado no final do século V:

Nesse tempo, assim acontecia, que a pólis e a chôra dos


acragantinos desfrutavam de grande prosperidade (...) Seus
vinhedos excediam em extensão e beleza e a maior parte de seu
território estava plantada com oliveiras das quais retiravam uma
colheita abundante e vendiam à Cartago; pois já que a Líbia
naquele tempo ainda não tinha árvores frutíferas cultivadas os
habitantes do território pertencente à Acragas recebiam em troca
por seus produtos a riqueza da Líbia e acumulavam fortunas de
tamanho inacreditável (...) e Policleto em suas histórias descreve
a adega de vinho na casa [de um acragantino] como ainda
existindo (...) havia nele, diz ele, trezentos grandes pithoi
talhados a partir da própria rocha, cada um deles com uma
capacidade de mil ânforas, e ao lado deles havia um lagar,
coberta com estuque e com uma capacidade de mil ânforas.13

Como se pode supor, a concentração na exploração de recursos para o


comércio14 tinha como corolário uma maior ou menor dependência, de acordo com o
caso, da constante importação de cereais para subsistência dessas pólis. Contrastando
com as expectativas primitivistas de autarquia, existem evidências em número suficiente
de que muitas comunidades egéias importavam cereais em bases regulares;15 portanto,
através da interdependência de necessidades vitais as relações entre pólis diferentes
eram mais acentuadas.
Ademais, a construção de fornos de cerâmica no campo, a fim de facilitar a
coleta e troca de produtos comerciais, é uma característica peculiar desses mecanismos
de troca. O exemplo melhor analisado é aquele de Thasos; 16 mas fornos de cerâmica no
campo particularmente próximos ao litoral, também foram encontrados em

9
Bonias et al. 1990 sobre Thasos.
10
Etienne 1985.
11
No caso de Thasos, por exemplo, pode se ver como as principais famílias dessa cité commerçante
investiam no cultivo de vinhas e na construção estufas rurais para a emballage e comércio do vinho; ver
Garlan 1999b.
12
Referências em Nenci 1993.
13
Diodoro, X I I I , 81, 4–83, 3.
14
A exploração das minas deve ser incluída aqui; sobre os efeitos das minas do Láureo no uso da
paisagem da Ática do sul e Atenas em geral, ver Osborne 1985: 93–126, 1991b; Rihll 2001.
15
Ver Bresson 2000a.
16
Picon e Garlan 1986.

148
Peparethos,17 Cnidos,18 Paros e Naxos,19 e Samotrácia;20 são todas comunidades cujas
as ânforas marcadas são encontradas amplamente distribuídas em todo Mediterrâneo e
mar Negro.
O exemplo de Cnidos é particularmente interessante. Foi encontrada uma
variedade de fornos de cerâmica costeiros; porém, mais impressionante é o grande
complexo de oficinas de ânforas localizadas no interior de Resadiye; isso demonstra que
dicotomias simplísticas entre agricultura e manufatura e entre cidade e campo não se
aplicam de forma útil aos padrões da história grega. 21 Já comentamos isso, mas
repitamos mais uma vez: não existe nenhuma razão inerente pela qual a produção
manufatureira deva se restringir à cidade, excluindo o campo. Se não fosse por qualquer
outro motivo a proto-industrialização européia no campo mostra como devemos evitar
essas rudes simplificações.22
Finalmente, é característico dessas pólis com a exploração comercial de seus
territórios que exista um mercado de terra muito ativo e outras formas de propriedade;23
em grande medida a terra é tratada como um meio de extrair lucro e não simplesmente
subsistência.
Um grupo importante entre essas duas categorias é aquele das pólis que embora
devotadas ao cultivo de cereais em grande medida, eram capazes de exportar
regularmente grandes quantidades de cereais; portanto, embora essas pólis pudessem
cobrir suas necessidades de subsistência por seus próprios meios, suas grandes
exportações regulares de excedentes colocava-as em um nível diferente daquelas pólis
autocentradas da primeira categoria, e mais próximas daquelas pólis voltadas para o
exterior da segunda categoria.24 Essas pólis estavam situadas principalmente no mundo
grego mais vasto (por exemplo, as pólis sicilianas,25 Olbia,26 e Cirene27).
Por último, uma terceira categoria abarca aquelas comunidades que baseavam
sua subsistência e reprodução não primariamente não na exploração de seu território,
mas em grande medida em redistribuição, serviço e posição: redistribuição no sentido
de que elas estavam envolvidas na movimentação e comércio de mercadorias
basicamente produzidas por outros;28 serviço no sentido de que seus membros
ganhavam a vida trabalhando para outros como marinheiros,29 mercenários30 ou

17
Doulge ri-Intzessiloglou e Garlan 1990. Sobre o vinho de Peparethos e sua exportação, ver
Demóstenes, XXXV, 35.
18
Empereur et al. 1999.
19
Empereur e Picon 1986.
20
Karadima-Matsa 1994.
21
Ver Garlan 1999b.
22
Kriedte et al. 1981.
23
Ver o caso das Cíclades: Etienne 1985.
24
Ver de Angelis 2000, 2002.
25
Carter 1990; Fantasia 1993; Nenci 1993.
26
Ščeglov 1990.
27
Rhodes e Osborne 2003: 486–93. Ver Laronde 1996.
28
Gehrke 1986: 172–6. O caso mais característico é de certo aquele de Egina; ver Figueira 1981.
29
Rauh 2003: 146–68.
30
Sobre os mercenários arcádios, ver Roy 1999.

149
artesãos; posição no sentido de que essas comunidades exploravam sua localização
privilegiada nas geografias material31 e cultural.32 Poder-se-ia, é claro, adicionar pólis
que dependiam da manufatura, mas é muito difícil encontrar tais comunidades antes
dos períodos helenístico tardio e romano.33
Meu objetivo ao construir a classificação acima não é apresentar uma outra
classificação ideal-típica das pólis. Ao invés disso, trata-se de uma classificação dos
relacionamentos entre as pólis e seus territórios. É óbvio que para algumas pólis, em
alguns períodos e mesmo em toda sua história, uma forma específica de exploração do
território de seus recursos predominava, se é que não existisse apenas uma. Mas na
maior parte do tempo, e para a maioria das pólis, existia uma variedade de relações
entrecruzadas fosse ou não fosse uma única predominante. Portanto, o objetivo é utilizar
essa classificação a fim de estudar as formas mutáveis dos relacionamentos entre as
pólis e seus territórios e não reduzir as pólis à personificações estáticas de tipos-ideais.
Deixem-me dar um exemplo: a pólis arcádia de Mantinéia era uma comunidade
interiorana que parece pertencer ao conjunto daquelas pólis que dependiam da
exploração de seu território para seu próprio uso.34 E contudo, sabemos que muitos dos
seus cidadãos ganhavam a vida lutando no estrangeiro lutando como mercenários;35 não
se trata então simplesmente de uma comunidade focada em si mesma. O que quero
enfatizar é a relatividade e a mobilidade inerente desse tipo de relações, que só podem
ser estudas para comunidades específicas, em conjunturas específicas e em contextos
específicos.
Deve ficar bastante claro a partir da exposição acima que o espaço tem um papel
fundamental na história das pólis gregas. Isso pode ser qualificado de algumas
maneiras. Em grande medida a diferença entre as duas primeiras categorias de pólis é
geográfica: as pólis da primeira categoria seriam usualmente encontradas em áreas do
interior do Peloponeso, Beócia e no resto da Grécia continental (Esparta, Phleious,
Tegea, Tebas); enquanto as comunidades costeiras e insulares figuravam
proeminentemente na segunda categoria. Todos os grandes produtores de ânforas de
transporte, a indicação mais clara da orientação para o comércio da segunda categoria,
eram comunidades insulares (Rhodes, Thasos, Cos, Quios) ou costeiras (Cnidos,
Sinope, Heracleia Pontica, Mende).
Mas não se trata simplesmente de uma diferença entre comunidades insulares e
costeiras. Uma observação de Políbio é bastante reveladora nesse sentido. Descrevendo
as expedições ilírias para saquear Elis e Messenia, ele comenta: "os ilírios pilhavam
essas áreas todo tempo; por conta da extensão de sua costa e do fato de que as cidades
que dominavam essa áreas localizavam-se no interior (mesogeious einai tas
dynasteuousas pólis), a ajuda a essas pessoas contra os ilírios vinha de longe e

31
Por exemplo, pólis com localizações estratégicas, como Bizâncio: Políbio, IV, 38-44.
32
Por exemplo, pólis santuários, como Delfos e Delos; Reger 1994; Gehrke 1986: 166–72.
33
Sobre a manufatura nas cidades romanas, ver Morel 1985. Embora, de acordo com Sócrates a maioria
dos megarenses vivessem de sua manufatura de roupas; Xenofonte, Memorabilia, 2 (II), VIII, 6.
34
Sobre todas as referências que se seguem à Mantinéia, ver Hodkinson e Hodkinson 1981.
35
Roy 1999: 346–9.

150
lentamente.36 Elis e Messenia eram duas áreas que pertenciam com certeza a primeira
categoria de pólis, explorando seu território em proveito próprio; e apesar do fato de que
elas possuíam um vasto litoral, era a maneira como exploravam seu território que
determinava a localização das cidades e sua relação com o mar. A topografia por si só
não determinava nada.
Ademais, as comunidades que dependiam da redistribuição do serviço ou da
posição são mesmo mais reveladoras da inadequação de uma abordagem puramente
topográfica. Viver da redistribuição do serviço ou da posição não depende de um
simples determinismo geográfico (não existe nenhuma razão puramente geográfica pela
qual Egina devesse ser uma pólis comercial; apesar de que existam é claro razões
puramente geográficas pelas quais Orchomenos na Arcádia não poderia ter sido); isso
depende da exploração conjunturas vantajosas; da natureza das interações e do sistema
mais amplo; e da natureza dos próprios atores. Não há nenhuma razão intrínseca pela
qual as ilhas devam ser ricos nós de comunicação e de exportação agrícola; elas
igualmente podiam ser lugares de exílio empobrecidos e isolados.37 Da mesma forma,
não há razão intrínseca pela qual comunidades do interior ou de regiões montanhosas
devam ser direcionada para a produção e consumo próprios.38
Não é simplesmente a topografia, mas a configuração histórica de relações
espaciais que tem um importante papel na história da humanidade: "conectividade não é
uma questão de geografia física, mas de padrões de mobilidade humana". 39 É então
importante prestar atenção a dois diferentes aspectos da configuração espacial das pólis.
O primeiro é a localização das pólis no âmbito de redes de poder, cultura ou
redistribuição de bens e pessoas. O segundo são os efeitos de rede em arranjos espaciais
na exploração do território.

Pólis e redes

Muito revelador é o caso das seis pólis de Lesbos analisado por Alain Bresson.40
Ele mostra que as duas pólis mais poderosas, Methymna e Mitilene, não possuíam
territórios maiores ou terras mais férteis que as do resto das pólis da ilha; ao invés disso
o seu dinamismo dependia de sua posição na parte da ilha que ficava em frente a costa
da Ásia Menor, e sua habilidade de explorar o tráfico do Mediterrâneo oriental que
passava entre a costa oriental de Lesbos e a Ásia Menor, em direção aos Estreitos do
norte e em direção à Rodes e Egito no sul.

36
Histórias, 2 (II), 5.
37
Sobre a variedade das imagens gregas de insularidade, ver Vilatte 1991; sobre a variedade de
possibilidades de ilhas egéias, ver Brun 1996; sobre as ilhas do Egeu como refúgios isolados e
empobrecidos em épocas posteriores a antiguidade, ver Vacalopoulos 1976; Slot 1982; Sanders 1996.
38
Comunidades gregas montanhosas do interior eram centros de artesãos e comerciantes itinerantes na
Grécia otomana; ver Tsotsoros 1986; Asdrachas 2003: 357–67.
39
Horden e Purcell 2000: 395; ver também 53–88.
40
Bresson 1983.

151
Um outro exemplo é Córcira. Sabemos que a produção de vinho e outros
produtos era uma atividade muito importante para a ilha; o começo da notória guerra
civil deveu-se a punição dos líderes oligarcas com uma multa muito alta por cortarem
estacas para suas vinhas nos solos sagrados de Zeus.41 Contudo, Córcira não era
simplesmen e uma comuni a e e pro u ores agr cola De acor o com Tuc i es “ e
fato, foi apenas um pouco antes das Guerras Médicas e da morte de Dario o sucessor de
Cambises, que os tiranos da Sicília e os homens de Córcira adquiriram um grande
número de galés. Porque depois disso não havia armadas de nenhum tipo na Grécia até a
e pe i o e er es ”42 Tucídides diz que no início da Guerra do Peloponeso Córcira
tinha uma frota de 110-20 trirremes,43 que eram manejadas em larga medida por
escravos.44 Na medida em que não temos nenhuma evidência de que os homens de
Córcira usavam sua frota a fim de conquistar territórios ou extrair tributos (i.e. aquilo
que os atenienses faziam), então a questão óbvia era qual a razão para se manter uma
frota tão grande. Parece provável que o objetivo era proteger o traffique do Mar
Adriático da pirataria.45 Vemos aqui como a localização dessa comunidade dentro de
uma rede muda seus arranjos internos – nesse caso criando uma grande frota, com todas
as enormes questões logísticas, sociais, econômicas e políticas que a criação de uma
frota grega suscitava.46
A ilha de Pepareto (a moderna Skopelos) no norte do Egeu, fornece um outro
exemplo. Diz-se que no quinto século essa pólis insular pagava um tributo anual de três
alen os à Liga e Delos; isso a coloca no con un o a lis a pequena e “gran es
gas a ores” 47 O que é mais interessante é o fato de que o tributo de Pepareto era
dezoito vezes maior do que aquele da ilha vizinha de Ikos (1000 dracmas) e doze vezes
maior do que aquele de Aloneso (1500 dracmas);48 essas diferenças não podem ser
explicadas simplesmente por um território agrícola maior ou por uma melhor fertilidade.
Parece provável que seja a produção vinícola de Pepareto para o comércio de longa
distância que faz a diferença. Pepareto tinha uma posição estratégica entre as rotas
marítimas que levavam ao Mar Negro; para os negociantes navegando por ali, comprar
na rota o vinho de Pepareto para trocar pelo grão do Mar Negro era uma opção
favorável, como a passagem de Demóstenes já citada demonstra. 49 A construção de
fornos de ânforas no território costeiro de Pepareto, com o objetivo de beneficiar-se
desse comércio está hoje em dia seguramente atestada.50

41
Tucídides, III, 70.4.
42
Tucídides, I, 14.2.
43
Tucídides, I, 25.4, I, 54.2.
44
Tucídides, I, 55.1.
45
Kiechle 1979.
46
Gabrielsen 2001a.
47
Ver Nixon e Price 1990.
48
Bruneau 1987.
49
Demóstenes, XXXV, 35.
50
Doulgéri-Intzessiloglou e Garlan 1990. Temos inclusive um naufrágio da época clássica perto de
Aloneso, carregado com ânforas de Pepareto, para tornar o caso mais claro; Hadjidaki 1996.

152
Pólis, redes e arranjos espaciais

Essa tentativa de explorar as rotas de comércio e longa distância tinha


importantes repercussões no arranjo espacial da pólis. As Cíclades oferecem alguns
exemplos bastante característicos.51 No quarto século, vemos um movimento do centro
de algumas pólis insulares do interior em direção à costa. Tenos construiu de fato um
novo centro de cidade inteiro na costa em meados do quarto século;52 Cythnos, onde o
centro antigo não é tão longe da costa para requerer o movimento de um assentamento
in eiro em ire o ao mar cons ruiu “gran es muralhas” em es ilo a eniense para
conectar o novo porto fortificado ao centro antigo.53 O movimento em direção a costa é
mais impressionante se considerarmos o ressurgimento da pirataria no Egeu do quarto
século.54
Em contraste com períodos posteriores da história cicládica, na antiguidade os
centros das ilhas do Egeu eram majoritariamente localizados na costa; e é apenas nas
ilhas pequenas e pobres como Pholegandros e Sikinos, cuja subsistência dependia da
exploração de seu próprio território para seu próprio uso, que encontramos os antigos
centro políades localizados no interior.55 Um exemplo similar é o de Cnidos, outra pólis
costeira famosa por sua produção e comércio de vinho; o centro arcaico da pólis estava
localizado no interior da península cnidia, uma excelente localização para exploração do
território agrícola; mas no final do quinto e início do quarto século um novo centro foi
construído na ponta da península, onde não havia potencial agrícola; o objetivo claro era
capturar o tráfico marítimo entre os Estreitos e o Egito.56
A relação de várias pólis com essas redes comerciais é de uma clara importância.
Mas existem outras redes para além daquelas comerciais; e as repercussões da inserção
das pólis nessas redes não podem ser vistas simplesmente em termos de padrões de
assentamento. Existem implicações políticas e sociais profundas; o exemplo mais
significativo é o caso da inserção de comunidades grandes, interioranas, principalmente
agrícolas na alta política e nas redes de redistribuição e mobilização. Atenas e Roma são
dois exemplos característicos de comunidades com centros no interior e nenhum porto
importante que optaram ou foram forçadas a construir avant-ports (Pireu, Ostia)
grandes e importantes no período de sua história em que entraram para alta política e
redes distributivas.57 A alta política na antiguidade era dependente em grande medida do
poder naval;58 e o poder naval dependia não apenas da construção de instalação
portuárias, mas também de redes de mobilização para a força de trabalho que construiria
e manejaria a frota,59 e em redes de redistribuição que forneceriam os materiais

51
Ver Brun 1996: 144–53.
52
Etienne 1990: 16–22.
53
Mazarakis 1993.
54
A própria Tenos foi saqueada por Alexandre de Feras; Demóstenes, L, 5.
55
Brun 1996: 152–3.
56
Berges 1994.
57
Ver Tchernia e Viviers 2000.
58
Gabrielsen 2001a.
59
Amit 1965.

153
necessários para a construção da frota,60 e os cereais para a manutenção da força de
trabalho excessiva que a marinha trouxe à tona.61
Para nos restringirmos a Atenas, é impossível enfatizar suficientemente, que
antes do quinto século, os atenienses não tinham nenhum porto importante e o seu
centro estava localizado no interior. O contraste com o desenvolvimento anterior do
porto de Oropos, que não era originalmente parte da pólis ateniense, embora fosse de
tempos em tempos dominado por ela é interessante.62 A criação do porto do Pireu foi
uma etapa decisiva na história da pólis; mas o que atraiu pouca atenção foi o fato de que
os atenienses recusaram a mudar o seu centro para o litoral, como as pólis que
discutimos fizeram (uma decisão que teria sido factível após o desenlace da destruição
persa).63 Assim, a história ateniense foi caracterizada por uma polaridade entre um
centro interior e um avant-port.64 Esse não era o caso de muitas das cidades que tinham
um território orientado para o comércio (pensar em Thasos, Córcira, Quios, onde o
porto e o centro da cidade coincidem) e a maior parte da pólis baseadas na
redistribuição, nos serviços ou localização (Egina, Bizâncio, Rhodes).65
É portanto errôneo tomar Atenas como o caso típico de cidade comercial e então
surpreender-se, por exemplo, pelo baixo status de seus comerciantes e a relutância dos
atenienses em engajar-se no comércio. Atenas não era uma pólis comercial desde o
princípio: ela foi bem sucedida em atrair e manter as redes e relacionamentos que já
estavam estabelecidos por outras pólis e suas populações. É para essas pólis, como
descrito acima, que devemos voltar a nossa atenção se queremos estudar a importância
do comércio na estrutura política.

Assentamento, território e exploração

O estudo do território das pólis gregas prova ser de grande importância; tem
havido avanços significativos no estudo dos territórios das colônias gregas, tanto no
Mar Negro como na Sicília-Magna Grécia,66 e as últimas duas décadas assistiram ao
início dos estudos dos territórios das pólis gregas do Egeu e do continente.67 Existem

60
Timber: Meiggs 1982: 116–53.
61
Garnsey 1988: 89–164, embora minimizando os números a serem importados.
62
Ver Mazarakis-Ainian 1998.
63
Garland 1987: 2–4, é o único estudo que conheço que formula a questão sobre o que a história de
Atenas teria sido se ela tivesse se decidido realocar o seu centro para o Pireu, ao invés de construir as
grandes muralhas.
64
“ ssim as e es as ci a es en ram em i is o por ra es geogr ficas quan o a na ure a a regi o n o
é adequada para que haja ali uma única cidade, como por exemplo em Clazomena a população próxima à
Chytrum estão em contenda com os habitantes da ilha, os de Colophon e os de Notos; e em Atenas a
população não é uniformemente democrática em espírito, mas os habitantes do Pireu são mais
emocr icos o que aqueles a ci a e”; ris eles 1303 8-13. Ver Riy 1998.
65
Contudo Corinto mostra um padrão similar à Atenas.
66
Sobre a Magna Grécia-Sicília: Lepore 1968; Osanna 1992. Sobre o Mar Negro: Kryjickij 1999;
Wasowicz 1999 sintetizando um estudo anterior.
67
Brunet 1999.

154
duas questões importantes que as pesquisas especializadas ainda não discutiram
totalmente. Uma delas concerne à escala: a exploração e assentamento do território de
uma pólis vai depender obviamente da escala de seu território. Não se trata
simplesmente da questão de uma dicotomia simplista, na qual um pequeno território
políade pudesse ser explorado a partir de um único assentamento nucleado de pólis,
enquanto um vasto território necessitaria da existência de aldeias ou fazendas isoladas.
A questão importante concerne aos relacionamentos entre essas várias formas de
assentamento e entre as várias formas de exploração.
Sabemos de uma variedade de maneiras de explorar o território a partir da
experiência das pólis do mundo colonial. No caso das cidades da Criméia oriental
(Bósforo) vemos dois modos opostos em funcionamento; Pantikapaion, no lado europeu
do Bósforo, parece ter tomado o controle do território interior através da criação de
grandes assentamentos secundários (pólis dependentes ou autônomas e aldeias) e sem
construir fazendas isoladas em seu hinterland;68 de outro lado, as pólis na parte asiática
do Bósforo parecem ter caminhado no sentido de criação de fazendas rurais, um grande
número das quais já estavam construídas no período arcaico.69 Graham Shipley notou
uma disparidade similar entre as pólis insulares de Samos e Quios.70 Em Samos há um
centro políade muito proeminente, mas há uma quase completa ausência de qualquer
tipo de evidência material da parte oeste da ilha; há apenas um grande santuário
(Heraion) e nenhum rural e periférico; em Quios, de outro lado, há um grande número
de assentamentos periféricos e importantes santuários rurais existindo com o centro
políade.71
A outra questão importante é a da relação entre os padrões de assentamento e o
tipo de exploração do território que uma pólis emprega. Robin Osborne argumentou que
as fazendas isoladas com torres que são predominantes no sul da Ática, 72 são resultado
das necessidades de subsistência criadas pela exploração das minas vizinhas com sua
grande concentração de força de trabalho; ele argumenta, contudo, que no resto da Ática
o padrão dominante de assentamento era nucleado (aldeias demoi).73 Temos aqui um
caso claro em que um padrão específico de exploração leva a um padrão específico de
assentamento em um conjuntura específica. Mas a questão não foi perguntada nesses
termos mais gerais ainda sobre a totalidade das pólis gregas e seus territórios.

PÓLIS E REGIÕES

Este é provavelmente o aspecto menos estudado da história grega. Infelizmente,


a ausência de estudos nesse campo dispõe limites claros as observações que se seguem.

68
Maslennikov 2001.
69
Kuznetsov 2001.
70
Shipley 1987: 231–47.
71
Sobre Quios, ver Yalouris 1986.
72
Lohmann 1992, 1993.
73
Osborne 1991b, 1996a. Se aceitamos o seu argumento sobre o resto da Ática (contra Lohmann 1995) é
irrelevante com relação ao seu ponto de vista justificado sobre a Ática do sul.

155
A região é uma área geográfica que mostra certos traços comuns, padrões e formas
comuns de interação entre as várias comunidades, territórios e grupos que a abarcam.
Uma região pode compartilhar uma percepção comum de identidade, mas essa não é
uma característica necessária: as comunidades da Jônia compartilhavam um grande
número de práticas culturais e instituições,;74 mas as comunidades e organizações
políticas do norte do Egeu não partilhavam nenhuma identidade comum, embora
formasse uma região distinta. Ademais, uma região pode ser politicamente unificada em
alguns períodos, mas novamente isto não é necessário: a Tessália tinha uma forma de
unidade política que variava em sua intensidade a cada período,75 a Arcádia foi uma
unidade política apenas por um período curto no quarto século 76 e as Ciclades jamais
foram politicamente unificadas, com exceção de estarem sob o mesmo suserano de
tempos em tempos.77
O uso da comunidade política individual (costumeiramente a pólis) como a
única categoria analítica para o estudo da história da Grécia resultou no fato de que os
historiadores da antiguidade não construíram instrumentais analíticos para estudar
padrões, processos e formas de interação que envolvem um certo número de formações
políticas concomitantemente. Os poucos e marginalizados estudos que existem quase
sempre concernem à regiões que tinham uma unidade política e/ou cultural; mesmo
assim, a maior parte dos estudos que existe devota-se usualmente quer à topografia e à
histoire évènementielle tradicional,78 quer aos cultos e instituições.79 A região como
uma categoria geográfica é bastante ausente.80 É característico que apesar de que o norte
do Egeu tenha sido uma das regiões mais importantes da história grega,81 ainda não há
nenhum estudo das comunidades da região como unidade, claramente porque não havia
aí a unidade política ou cultural que poderia se prestar a uma abordagem tradicional.
Existem estudos separados para a Calcídica, a Trácia, a Macedônia costeira e as ilhas de
Thasos e Samotrácia, mas nenhum estudo da região como um todo; e a maior parte
desses estudos tem as limitações que já citamos.
A exceção aos comentários negativos acima deve estar para ser encontrada de
fato na arqueologia. O estudo da cultura material tornou a muito tempo necessário o uso
de unidades alternativas de análise, para além da pólis; era claro que a produção de
muitos artefatos e construções mostravam aspectos similares considerando-se áreas
mais vastas.82 A cerâmica da Grécia oriental é um bom exemplo; ela descreve os
produtos de uma área mais vasta com similaridades suficientes na produção e

74
Graf 1985.
75
Archibald 2000.
76
Nielsen 2002a: 121–57.
77
Brun 1996.
78
Ver Isaac 1986 sobre a Trácia; Zahrnt 1971 sobre a Calcídica.
79
Ver por exemplo Schachter 1981–94.
80
Existem três exceções efetivas, nenhuma das quais, curiosamente, é anglosaxônica: Vinogradov 1987
sobre o mar Negro; Brun 1996 sobre as Cíclades, e Freitag 2001 sobre o golfo Coríntio. Ver também os
comentários de Morgan 2003: 213-22.
81
A importância da região como um todo é enfatizada em Heskel 1997, que se restringe, contudo, a
reconstrução da história política de uns poucos anos.
82
Shapiro 1996.

156
distribuição para serem classificadas juntas.83 Podemos documentar o fenômeno
contrário; o vinho produzido na cidade de Mende na Calcídica, acabou por constituir
uma marca para os vinhos da região da Calcídica e não simplesmente de Mende.84
Outros arqueólogos ampliaram recentemente a noção de regiões arqueológicas
para incluir outras questões para além da produção; eles observaram a existência de
práticas regionais no uso e consumo da cultura material, nos campos das casas,
sepultamentos e construção de templos. Ian Morris em alguns estudos enfatizou a
formação e manutenção de grupos regionais no Egeu e no continente da idade obscura
até o período arcaico.85 Tendo definido quatro grupos (Grécia central e Egeu, Grécia
ocidental, Grécia do norte, Creta), ele argumentou que os processos sociais, econômicos
e políticos encontram-se articulados de formas variáveis ou contrastantes em cada
região; que as mudanças ocorrem em cada região com ritmo diferente, em direções
divergentes e com resultados diversos; e que as novas comunidades medianas do
período arcaico estão particularmente e são fortes em sua região centra e egeia.
O que permanece um desiderato, contudo, é um estudo da criação, manutenção,
fragmentação e reinvenção dessas práticas regionais.86 O que faz com que uma região
que não é unificada nem politicamente nem eticamente, como o Peloponeso ocidental,
siga práticas similares em sepultamentos e construção de templos?87 Que formas de
articulação e que tipo de agentes articuladores são necessários para que tais práticas
regionais se desenvolvam? Que modalidades de comunicação e qual intensidade de
comunicação?88 Como esses sistemas regionais se dissolvem? O que cria a
convergência regional em certas matérias e a divergência em outras? E permitam-me
repetir a minha reclamação usual; precisamos que tais estudos sejam estendidos ao
período clássico e além.

AS PÓLIS E O SYSTÈME-MONDE

É chegado o momento o último nível de nossa análise espacial. É importante


esclarecer algumas concepções equivocadas que se encontram frequentemente
associadas com essa noção.89 A primeira é de que système-monde implica
necessariamente em uma distinção entre um núcleo dominante e uma periferia
explorada (e uma semi-periferia). Assim, se é impossível procurar uma distinção clara
entre centro e uma periferia explorada, então não existiria um système-monde. Um
centro dominante e uma periferia explorada é apenas uma forma possível de um
système-monde. O système-monde moderno é sem dúvidas estruturado numa forma
83
Cook e Dupont 1998.
84
Papadopoulos e Paspalas 1999.
85
Morris 1997b, 1998b, 2000.
86
Um estudo nessa direção é Morgan 1990.
87
Morris 1998b: 54–5.
88
“ ual o m nimo n mero m io e na ega es anuais en re uma ci a e e ou ra para promo er uma
arqui e ura religiosa em am as ”; e “que ensi a e e r fego po e ser pos ula a para ar con a a
ifus o e uma arqui e ura e emplo mais ou menos can nica por o o me i err neo grego ”; urcell
1990: 37.
89
Cf. Shipley 1993.

157
centro-periferia, mas isso não significa que todo système-monde no passado tivessem a
mesma característica ou que não houvesse systèmes-mondes antes da emergência do
moderno. Pode-se visar uma variedade de formas diferentes: Janet Abu-Lughod afirmou
de forma convincente que o système-monde medieval dos séculos XIII e XIV EC
tinham uma forma de círculos concêntricos, ao invés de um único centro e periferia.90
“De fa o, podemos aceitar a definição mínima de Wallerstein que [um sistema] é um
sistema-mundo, não porque ele abranja o mundo inteiro, mas porque ele é maior do que
qualquer uni a e pol ica uri icamen e efini a ”91 Se assim for, a questão crucial é a
de que uma única comunidade ou forma política (uma pólis grega) não pode ser uma
unidade de análise auto-suficiente.92 Ao usar o termo système-monde, estou tentando
retratar e analisar um quadro maior de referência histórica. Argumentarei que existe
várias formas de interação e processos que se poderia denominar systèmes-mondes; eles
vão de sistemas de intensidade baixa à intensidade alta; e de anárquicos a organizados
de forma centralizada. Deve existir então duas qualificações primárias: um système-
monde não abarca necessariamente o mundo inteiro; pode haver vários sistemas-mundo
coexistentes; e a extensão de cada um deles pode mudar a cada período e portanto só
pode ser reconstruída historicamente. E um système-monde é um sistema, mais não
necessariamente altamente coerente ou estruturado; novamente, sua intensidade pode
ser descrita apenas na análise histórica concreta e não numa teoria a priori. Portanto, um
système-monde pode, de fato, ser um sistema (altamente estruturado) do mundo
(inteiro), como é atualmente; mas ele também pode tomar formas historicamente
contingentes, variando em extensão, estrutura e intensidade. Nas páginas que se seguem
tentarei delinear três aspectos gerais desses systèmes-mondes.

Ambiente mundial: espaços de fronteira, comunidades limítrofes

O primeiro aspecto é que todas as comunidades e formações políticas ocupam


um espaço e fazem fronteira com outras comunidades e formas políticas. Não podemos
abstrair a natureza do espaço que elas ocupam nem a natureza das comunidades e
formas políticas com as quais fazem fronteira de uma análise do desenvolvimento
histórico das comunidades sob estudo.93

A natureza do espaço

A civilização das cidades–estados etruscas é de muitas formas comparável com


o sistema grego das pólis;94 mas o sistema grego era centrado em torno do arquipélago
egeu enquanto o sistema etrusco carecia de comunidades insulares. Assim também, na
maior parte dos casos os principais centros das organizações políticas etruscas estavam

90
Abu-Lughod 1989.
91
Wallerstein 1974: 15.
92
Wallerstein 1991: 229–72.
93
Ver Abulafia 2005.
94
Torelli 2000.

158
situados no interior, enquanto muitos deles construíam avant-port para facilitar suas
conexões marítimas; isso era bem diferente da situação de muitas pólis gregas, como
vimos. De que formas específicas a história das cidades-estados etruscas era diferente
daquela das pólis gregas por conta de seu meio geográfico diferenciado? Que resultados
e desdobramentos específicos podemos atribuir a isso? As mesmas questões podem ser
formuladas para a história da Grécia; não devemos tomar a sua natureza costeira como
dada ou não problemática em particular quando pensamos no surgimento tardio de
alguns poderes continentais (Macedônia), e na aparente falta de habilidade de outros
poderes continentais, (como por exemplo o Épiro) para dominar a história grega. Essas
questões não são comumente formuladas, apesar de que nos parece que o estudo
comparativo a partir de uma tal perspectiva conseguiria obter resultados altamente
estimulantes.

A natureza das comunidades limítrofes

A história da Grécia teria sido muito diferente se muitas comunidades gregas


não tivessem fronteira com o império tão grande e poderoso quanto o persa. E
comunidades diferentes desenvolveram-se de modos muito diferentes por conta da
natureza das comunidades com as quais faziam fronteira. Alguém pode explicar o
desenvolvimento histórico diverso das comunidades da Grécia ocidental por essa fator?
Não se deve falar sobre ethnê vagarosos e pólis dinâmicas, a menos que se preste
atenção ao cenário regional mais vasto dessas comunidades.
As comunidades gregas ocupavam, então, um espaço específico e fazia fronteira
com comunidades específicas; faziam parte de um sistema mais vasto historicamente
específico que não pode ser abstraído de um estudo de sua história. 95 Marshall Sahlins
desenvolveu o conceito de sismogênese complementar para dar conta de
desenvolvimentos diferentes apesar de estreitamente interligados, de Atenas e Esparta.96
Contrariamente aos estudos acadêmicos que explicam as mudanças e os
desdobramentos em ambas as sociedades como puramente resultantes de causas
internas, ele argumenta que muito dos aspectos distintivos de Esparta (como por
exemplo a xenêlasia espartana, a opressão severa dos hilotas, a decisão de renunciar ao
poder naval no final das Guerras Médicas) podem ser explicadas como resultado de uma
oposição sismogênica com relação aos seus adversários, primariamente Atenas, mas
ainda Argos e Arcádia. Portanto, o conceito de sismogênese complementar pode nos

95
Permitam-me oferecer exemplos da história moderna: pode-se compreender a natureza da realeza e do
estado da inglês medieval e moderna sem se considerar o fato de que ele não tinha que combater
constantemente em guerras de fronteira, como os reinos francês e espanhol tinham que fazê-lo por conta
da insularidade inglesa? Pode-se compreender a história americana sem se considerar o fato de que os
EUA nunca tiveram que temer a invasão e a guerra por parte de um vizinho poderoso? Os estudos da
relações internacionais devotaram muita atenção à essas questões, apesar de sua visão restrita em termos
de temporalidade (história moderna e contemporânea) e de suas pressuposições ahistóricas
frequentemente limitando a utilidade desse tipo de trabalho para os historiadores da antiguidade. Para
estudos mais promissores, ver Hobden 1998; Buzan e Little 2000; Hobden e Hobson 2001.
96
Ver Sahlins 2004: 69–82.

159
ajudar a compreender o desenvolvimento das pólis gregas com relação ao seu meio
externo.
Uma primeira percepção elementar de um système-monde, portanto,
simplesmente presta atenção à natureza do espaço no âmbito de unidades espaciais mais
vastas e em relação a natureza das comunidades vizinhas. A natureza dessas relações,
quer sejam esporádicas ou altamente intensificadas, possui um efeito formativo no
desenvolvimento de uma comunidade, uma organização política, uma cultura. Poder-se-
ia falar, possivelmente, de um ambiente mundial no caso de relações mais esporádicas e
menos intensas; e de um système-monde no caso de relações mais constantes e
intensificadas.

Processos mundiais: processos para além do controle

Mas precisamos de interações e trocas intensificadas para falar de um système-


monde de um nível mais elevado. Nesse segundo sentido, que existe lado a lado com o
primeiro, um système-monde existe porque aparecem processos, trocas e interações que
conectam muitos grupos comunidades e organizações políticas; e esses processos, trocas
e interações, mobilizam pessoas, bens e ideias, alcançam além das fronteiras de um
único grupo, comunidade ou organização política. Apresenta-se também uma
elaboração mais aprofundada dessas questões no próximo capítulo, que aborda pólis e
organizações políticas.97
Podemos distinguir grosseiramente três processos mundiais diferentes: processos
mobilizando pessoas; processos mobilizando bens e processos mobilizando
ideias/tecnologias.98 Nós nem precisaríamos adicionar que os três processos não
precisam necessariamente ser distinguidos; frequentemente pode ser o caso de que os
mesmos agentes mobilizem pessoas, bens e ideias/tecnologias ao mesmo tempo.
Alternativamente, como Horden e Purcell observam,
em mui os casos a conec i i a e gera a por “mo ili a es”
sendo que a causa primeira disso não é a redistribuição. Nessas
instâncias os padrões de redistribuição, as oportunidades para a
intensificação especial da produção oferecidas pela
conectividade, não serão moldadas nem pelo suprimento nem
pela demanda, mas pelos acasos dos canais de mobilidade
humana.99

Enquanto a migração de mercadores da Heracléia Pôntica para Atenas era o


resultado de processos de mobilidade de bens e ideias,100 a migração de artesãos jônios
nas vésperas da conquista persa discutida abaixo foi causada em larga medida pelos

97
Capítulo 8, 190-202.
98
Ver Charpin and Joanne`s 1992 para uma perspectiva similar sobre o Oriente Próximo.
99
Horden e Purcell 2000: 396.
100
Sobre os heracleotes em Atenas, ver Osborne e Byrne 1996: 72–94.

160
desdobramentos políticos da conquista persa e da revolta jônia;101 mas certamente a
migração jônia teve efeitos importantes nos processos de mobilidade de bens e
ideias/tecnologias. Portanto, a relação entre os três processos não pode ser estabelecido
a priori e necessita ser contextualmente estudado.

Mobilidades de bens

O movimento de bens em trocas de longa distância é bem atestado para a


antiguidade. Uma das imagens mais ilustrativas é a descrição de Políbio sobre o Mar
Negro:

O Ponto, sendo portanto rico naquilo que o resto do mundo


requeria para subsistência, os bizantinos são mestres absolutos
em todas essas coisas. Pois aquelas mercadorias que são de
primeira necessidade para existência, gado e escravos, são
confessamente fornecidas pelos distritos a volta do Ponto em
grande profusão e de melhor qualidade, do que por qualquer
outro: e em relação aos supérfluos, eles nos fornecem mel, cera,
e peixe salgado em grande abundância; enquanto eles adquirem
nossos estoques excedentes de oliva e todos os tipos de vinho.
No que se refere ao milho há uma troca mútua, fornecendo ou
adquirindo, como parece ser conveniente.102

Vemos aqui duas questões importantes. A primeira delas é a interdependência:


O Egeu é dependente da importação de gado e escravos do Mar Negro; enquanto o Mar
Negro é dependente da importação de vinho e óleo a partir do Egeu. Os vestígios
arqueológicos fornecem evidências em abundância para verificar esse quadro: a imensa
quantidade de ânforas de várias comunidades egeias do Mar Negro atesta a intensidade
desses elos.103 A segunda questão é a distinção entre artigos básicos e supérfluos. Essa
distinção é importante mas precisa ser contextualizada. A distinção entre aquilo que
constitui um supérfluo e o que uma necessidade não pode ser estabelecida a priori.
Existem poucos bens que pertençam certamente a uma categoria ou a outra; para a vasta
maioria, há um espectro de posições que podem ocupar. Dada uma demanda suficiente,
um supérfluo pode ser tornar uma necessidade;104 a história moderna do açúcar é um
bom exemplo a esse respeito.105 Mas são também os padrões culturais de consumo que
determinam que tipos de bens são considerados necessários para um certo modo de
vida.106

101
Sobre o caráter misto da migração jônia ver Gras 1991.
102
Políbio, IV, 38.
103
Ver Garlan 1999a.
104
Ver os comentários instigantes de Vallet e Villard 1963: 263-5.
105
Mintz 1985.
106
Foxhall 1998.

161
Uma história da mobilidade dos bens no système-monde mediterrâneo teria que
tratar de um certo número de questões interligadas. A primeira é a relação entre
produção, demanda e consumo, que sublinhamos acima. A segunda é o grau de
interdependência. Robin Osborne argumentou que já no período arcaico a distribuição
de produtos diferentes de diferentes oficinas de cerâmicas atenienses em todo
Mediterrâneo mostra padrões bem marcados e consistentes, que podem ser explicados
como produção visando mercados específicos; a esse respeito ele pensa ser possível
falar de uma conglomeração de mercados interdependentes.107 A questão é em que
medida esse modelo pode ser estendido para outros bens. Certamente é o caso de que
muitas mercadorias circulavam primariamente no âmbito de redes locais e sua produção
e preço refletiam necessidades locais.108 Precisamos de modelos que levem em
consideração os variados níveis de mobilidade, como os diferentes níveis irão moldar a
circulação de bens e em que circunstâncias e conjunturas certas mercadorias se
moveriam de um nível a outro.109 Para dar um exemplo, grãos poderiam ser produzidos
para consumo local, mas em certas circunstâncias poderiam mover-se para uma escala
regional ou mesmo internacional; de modo alternativo, grãos poderiam ser produzidos
diretamente para redes comercias regionais ou internacionais.110 A produção não é
equivalente à capacidade de produzir: quando um especialis a se pergun a “o inho e
Quios foi um dia a principal fonte de riqueza e reputação da ilha. Por que agora o vinho
e uios n o o famoso ” 111 ele aponta para as constantes mudanças na produção e
mobilidade dos bens que tomam um longo caminho em direção a solapar o modelo de
agricultura pré-moderna estática que até recentemente era a ortodoxia acadêmica.112 A
relação entre padrões de consumo e conexões de rede é igualmente importante a esse
respeito.
Isso introduz a questão das mudanças de longa duração na mobilidade de bens.
Infelizmente, da época em que Rostovtzeff escreveu seu magnífico capítulo sobre o
desenvolvimento econômico do mundo mediterrâneo no quarto século,113 houve poucas
tentativas de traçar os desdobramentos concernentes à mobilidade de bens. Em parte,
is o resul a a influ ncia o “finleyismo”; uma a or agem que nega a o
desenvolvimento econômico na antiguidade, descrevendo uma economia antiga estática
por mais de mil anos.114 E contudo, há evidências claras de transformações nas
movimentações das mercadorias. Para dar um exemplo, o desenvolvimento da produção
de vinho da Itália do sul e Sicília no período clássico tardio e no período helenístico
gerou uma reorientação nos padrões de troca; a importação de vinhos do Egeu assumiu
uma configuração bastante diferente.115

107
Osborne 1996c.
108
Ver Reger 1994 sobre mercadorias e preços na Delos helenística.
109
Davies 1998. Ver as observações fundamentais de Braudel 1982.
110
Bresson 2000a.
111
Sarikakis 1986: 127.
112
Ver Vlassopoulos n.d.; Sutton 2000: 41–70.
113
Rostovtzeff 1941: 74–125.
114
De modo notável, em Finley 1973b não existe uma discussão dos fatores de mudança.
115
Vandermersch 1994.

162
Finalmente, da maior importância são as redes através das quais as mercadorias
circulam. O comércio de diáspora é um bom exemplo: na história mundial,
frequentemente é o caso de que o comércio entre duas comunidades seja conduzido por
uma comunidade de mercadores na diáspora, frequentemente vindos de uma terceira
comunidade, que fisicamente realoca e controla a mobilidade de bens através de seus
agentes.116 As comunidades de diáspora são diferentes; as vezes tem uma única origem
em comum, frequentemente possuem backgrounds múltiplos e cambiantes; muitas
vezes trata-se de comunidades sem estado, em poucos casos, tem o suporte ativo de sua
comunidade de origem. Em outras circunstâncias o movimento das mercadorias se
baseia em comunidades itinerantes.
Ao mesmo tempo encontramos o emporion, uma forma de assentamento
regulado abrigando comunidades de troca comuns a muitas comunidades mediterrâneas
diferentes; o emporion é um assentamento organizado e mantido costumeiramente pela
comunidade hospedeira.117 Vemos portanto, de um lado várias comunidades de diáspora
(por exemplo, comerciante fenícios ou de Egina) espalhadas sobre amplas áreas e
criando e mantendo laços de solidariedade e apoio; de outro lado, emporia, onde várias
comunidades de diáspora são conjugadas em relação de colaboração, conflito ou
exploração tanto entre elas quanto com a comunidade que as hospeda.118 Houve
algumas tentativas recentes muito fascinantes de estudar os emporia, mas muito ainda
permanece a ser feito.119

Mobilidade de pessoas

No nível da movimentação das pessoas as coisas se complicam um pouco mais.


Alguns desses movimentos são forçados e acontecem sem a vontade das pessoas que
são movidas; a escravidão talvez seja o melhor exemplo dessa categoria de
mobilidade.120 A crônica dos efeitos recíprocos da mobilidade de escravos tanto em suas
comunidades de origem como em suas comunidades de destino permanecem
inteiramente a ser escrita. Estudamos muito pouco os efeitos na história e na cultura da
Grécia daquelas centenas de milhares de escravos que viveram através das eras nas
comunidades gregas, além de fazerem o necessário trabalho sujo; dado o grande número
de exemplos comparativos que sugerem a forte influência de escravos nas suas
comunidades de acolhimento,121 existe muito trabalho a se fazer para acessar qual seria
essa contribuição para o caso da Grécia antiga.122

116
Curtin 1984: 1–12; Kuhrt 1998.
117
Bresson e Rouillard 1993.
118
Sobre as comunidades de diáspora fenícias e seu lugar no âmbito dos emporia, ver Baslez 1986, 1987,
1988, 1996.
119
Bresson 1993; Gras 1993; Hansen 1997e; também Möller 2000.
120
Horden e Purcell 2000: 388–91.
121
Ver por exemplo Bastide 1978; Sobel 1987; Gilroy 1993; Dubois 2004.
122
Para uma tentativa recente ver Morris 1998a. Não é preciso concordar com suas conclusões para
apreciar a novidade e importância de formular essas questões.

163
Ouvimos sobre trácios visitando Mitilene a fim de resgatar outros trácios
(parente?), que foram vendidos como escravos.123 O que os escravos libertados traziam
de volta à sua terra a partir da experiência de escravidão? O pai do acusado em um
discurso de Demóstenes supostamente adquiriu o seu sotaque estrangeiro por ter sido
capturado durante a guerra da Deceléia e ter sido vendido como escravo em Leucas;124 o
que mais ele adquiriu e como um escravo ateniense contribui para a cidade de Leucas?
No começo da República, Sócrates vai até o Pireu para celebrar a introdução do culto
trácio de Bendis, e fica claramente impressionado com a procissão dos trácios. 125 A
procissão incluía tanto metecos trácios livres como escravos da Trácia? Como um
ateniense conversou com seu escravo trácio quando voltou para casa após o evento? O
rústico descrito por Teofrasto anuncia e discute todos os seus negócios com seus
escravos;126 que conselhos eles lhe davam baseado em seu background cultural?
Além da escravidão a mobilidade de pessoas atingia um amplo espectro de
opções do mais ao menos voluntário.127 A migração em face ao perigo é a opção mais
próxima do movimento forçado da escravidão. A migração de milhares de jônios para o
ocidente ao longo da última metade do sexto século devido a conquista persa é um dos
desdobramentos mais importantes na história arcaica que precisa ainda ser levado
seriamente em consideração.128 A migração e as catástrofes que a envolveram mudaram
a Jônia decisivamente; pode se imaginar o que teria sido de Mileto, essa grande potência
colonizadora do período arcaico, se ela não tivesse que sofrer a hemorragia de
destruição e migração forçada trazida por cinquenta anos de domínio persa.129 Ao
mesmo tempo, ela mudou o Ocidente de maneiras importantes, trazendo novos estilos
arquitetônicos,130 novas escolas filosóficas e ideias políticas131 e novas formas de
empreendimentos coloniais, como aquele dos foceus.132
Temos também migração de pessoas que parecem ser mais voluntárias que
forçadas. A migração de ceramistas atenienses para a Itália do sul no final do quinto
século AEC e seu papel na criação de um novo estilo de cerâmica inovador é bem
conhecido dos arqueólogos.133 Ao contrário, ela está ausente como um fato nas
discussões de história clássica. O que fez com que esses ceramistas emigrassem? O
quão comum era esse tipo de atividade? O que mais trouxeram com eles para além de
sua contribuição para a cerâmica italiota do período clássico tardio?
Infelizmente, o estudo da mobilidade no Mediterrâneo do primeiro milênio é
desfigurado por abordagens focadas na colonização como ato oficial. De acordo com
essa abordagem, a mobilidade só é importante no período arcaico quando é organizado

123
Antifon, Sobre o assassinato de Herodes, 20.
124
Demóstenes, Contra Euboulides, 18.
125
República, 327a; ver Parker 1996: 170–5.
126
Caracteres, IV, 3.
127
Ver Horden e Purcell 2000: 377–89.
128
É praticamente inexistente em por exemplo Osborne 1996b; contudo ver Gras 1991; Lombardo 2000.
129
Davies 1997a: 139; Ehrhardt 1983.
130
Barletta 1983.
131
Von Fritz 1940; Mele 1982.
132
Lepore 1970; Morel 1966, 1975, 1982.
133
MacDonald 1981; ver também Papadopoulos 1997b.

164
pelas pólis em forma de colônias, e novamente no período helenístico dessa vez
organizado pelos monarcas helenísticos; consequentemente a mobilidade desaparece das
narrativas históricas que lidam com o período clássico que supostamente não eram
período de crise ao menos no século V.134 Felizmente, essa visão é atualmente
contestada por um número crescente de especialistas. No que concerne ao movimento
de colonização arcaico, observam-no mais como o resultado da mobilidade individual e
dos empreendimentos oportunistas privados.

“empreen imen o pri a o” que amplamen e e com


certeza corretamente presumido como tendo sido responsável
pelo assentamento em Pithekoussai, deve ser visto como
responsável também pela ampla maioria dos assentamentos dos
séculos VIII e VII como se demonstra pela maneira pelo modo
como atraem o trabalho de cerâmica e metal a partir de uma
vasta, mas usualmente peculiar, variedade de áreas gregas e
italianas, por seus traçados variados e pelo fato de que grades
ortogonais são demonstravelmente tardias em muitos casos, e
pelas descontinuidades marcadas com as quais a história do
assentamento em muito desses sítios é visitada.135

Acredito que não haja necessidade de restringir esse comentário ao período


arcaico, o que não significa negar que do quinto século em diante tenhamos casos muito
claros de aventuras de colonização que são dirigidas de forma central pelas autoridades
políticas da metrópole. Mas é altamente sugestivo que mesmo nesses casos
administrados de forma centralizada os colonizadores ainda são oriundos de muitos
lugares;136 a colônia ateniense em Amphipolis e a recolonização de Sybaris são grandes
testemunhos da ampla mobilidade pessoal no Mediterrâneo antigo.137
Chegou o momento de ver a colonização simplesmente como uma forma de
mobilidade:138 precisamos estudar o colono junto como mercenário,139 o marinheiro,140

134
Uma rara tentativa de analisar a mobilidade em suas dimensões mais vastas encontra-se em
McKechnie 1989, apesar de que ele não esteja completamente fora da visão que toma a mobilidade como
fenômeno de crise.
135
Osborne 1998: 268; ver também Gras 1991.
136
Isso já foi reconhecido pela primeira literatura sobre a colonização no século XVIII; ver Vlassopoulos
no prelo. Uma outra boa ilustracão de que o desenvolvimento da historiografia nunca é linear.
137
Ver os vários artigos em Sordi 1994. A resposta às questões de Osborne em Malkin 2002 é muito
estimulante. Muitos de seus argumento são realmente fortes, em particular seus argumentos
historiográficos. Malkin é a favor de manter a terminologia da fundação colonial, apesar de que ele
também concorde que a colonização vinda de cima, como uma ação de estado, deva ser abandonada. Ao
invés disso ele fornece um modelo de colonização vinda de baixo, que pode se acomodar ao argumento
de Osborne. Sua comparação da colonização grega vinda de baixo com a moderna formação de kibutz
judeus na Palestina é uma ideia bastante estimulante; pode-se apenas deplorar e protestar que alguns
povos modernos tenham que lidar com o destino antigo dos killyrios e mariandinos.
138
Apesar dos argumentos de Purcell 1990, poucos tomaram essa direção na história clássica.
139
Argumentei em favor desta abordagem em Vlassopoulos 2003; Tagliamonte 1994.
140
Rauh 2003: 146–68.

165
o comerciante,141 o artesão,142 o médico, o sofista143 e o exilado;144 a crônica da
mobilidade desses termos mais amplos ainda precisa ser escrita.145
É também importante abandonar as narrativas helenocêntricas da mobilidade
146
grega. Com efeito, na idade obscura e no período arcaico os fenícios tenham um
papel aceito nas narrativas na mobilidade e colonização grega, 147 apesar de que as
abordagens etnocêntricas sejam fortes mesmo aqui. O que é verdadeiramente digno de
nota é a completa desaparição dos fenícios e de outros povos mediterrâneos nas
narrativas da história da Grécia do período clássico; nesse período os povos
mediterrâneos aparecem apenas na medida em que entram em conflitos políticos com os
gregos ou caem sob o seu controle. O Iscômaco de Xenofonte e seus contemporâneos
atenienses ficaram impressionados com a chegada de um enorme navio fenício no porto
do Pireu, o que deve ter sido o acontecimento do ano; ele debateu extensamente com a
tripulação a organização das atividades e o arranjo do material abordo do navio;148 sobre
o que mais eles debateram e o que mais Iscômaco aprendeu?
Um exemplo fascinante, mostrando quão equivocada é a abordagem
tradicional é Athenogenes, um meteco egípcio envolvido na venda de perfumes na
Atenas do final quarto século.149 O astucioso Athenogenes combina em colaboração
com Antígona, uma prostituta, vender a um jovem e rico cidadão ateniense dois
escravos junto com sua loja de perfumes, que porém se encontra altamente endividada.
Os detalhes da história não são de interesse direto aqui mas o que acontece depois é
bastante revelador (§§ 29-31):

Durante a guerra contra Felipe, ele deixou a cidade um


pouco antes da batalha e não serviu com vocês em Queroneia.
Ao invés disso, ele se mudou para Trezena desrespeitando a lei
que diz que o homem que se muda em tempo de guerra deve ser
indiciado e sumariamente preso quando retorna. A razão para a
mudança, ao que parece, foi a seguinte: ele pensou que a cidade
de Trezena iria sobreviver, enquanto ele nos deu uma sentença
de morte [...] Ele é tão degradado e tão fiel ao tipo onde quer
que esteja, que mesmo após a sua chegada em Trezena, quando
fizeram dele cidadão, ele tornou-se ferramenta de Mnesias o
argivo e, após ter sido tornado por ele magistrado, expulsou os
cidadãos da cidade.

141
Velissaropoulos 1980; Reed 2003.
142
Burford 1969.
143
Sobre a mobilidade dos médicos e sofistas, ver Thomas 2000: 9–16. A questão dos intelectuais
itinerantes é infelizmente pouco explorada até muito recentemente; mas ver agora Montiglio 2005.
144
Seibert 1979.
145
Mas ver Giangiulio 1996, caracteristicamente para o período arcaico.
146
Ver Papadopoulos 1997a.
147
Shaw 1989; Docter e Niemeier 1995; Hoffman 1997.
148
Econômico, VIII, 11-14.
149
Hipérides, Contra Athenogenes.

166
Um vendedor de perfumes egípcio tinha a obrigação de lutar por Atenas junto
com milhares de outros estrangeiros vivendo em Atenas; ao invés disso ele escapa, vai
para um pequeno e obscuro lugar como Trezena, se transforma em cidadão, e se torna
mesmo um magistrado.150 O quão comum era um tal evento? Se julgamos pelo tom da
passagem não parece muito extraordinário; o ultraje moral é contra os seus cidadãos
privados de direitos e não em ele ter se tornado um. O que Athenogenes carrega de sua
bagagem cultural egípcia quando se torna um cidadão e magistrado? Precisamos de um
horizonte mais amplo.151

Mobilidade de ideias/tecnologias

Finalmente, chegamos ao movimento de ideias e tecnologias. E em certa medida


essa questão foi melhor estudada que as anteriores. Temos excelentes estudos sobre a
difusão do orfismo do oeste para o leste do Mediterrâneo e para o Mar Negro; 152 sobre a
ideia, as práticas e os aparatos do banquete em sua difusão a partir do Oriente Próximo
em direção à Grécia e ao Mediterrâneo ocidental;153 sobre a propagação da tecnologia
de construção e emprego de trirremes, em lugar dos penteconteres, do Mediterrâneo
oriental para o ocidental ao longo do período arcaico;154 sobre a disseminação de novas
técnicas de cercamento e fortificação dos experimentos de tiranos gregos na Sicília e na
Magna Grécia até as campanhas de Filipe e Alexandre na Grécia continental e Ásia
Menor.155
A verdadeira questão aqui é que embora problemáticas individuais sejam muito
bem estudas, falta-nos um quadro mais amplo. Não temos estudos das interconexões
entre os diferentes processos de mobilização de ideias/tecnologias. Em que medida a
transferência de uma ideia é seguida ou acompanhada pela transferência de uma
tecnologia? E quais são as redes e agentes pelos quais se espalham ideias/tecnologias?
A difusão do orfismo passa pelas mesmas redes e agentes que distribuem vasos de
perfume?
O caso de Zópiro de Heracleia/Tarento é uma ilustração fascinante dessas
questões.156 Atribui-se a Zópiro, um personagem da passagem do quinto para o quarto
século AEC, a autoria do trabalho pitagórico Cratera; mas a ele também se atribuem
engenhos e inovações no campo dos instrumentos de guerra. Isso não é muito
surpreendente dada a conexão entre os pitagóricos e a ciência; 157 mas o que é mais
fascinante são as conexões da rede. Pois no quarto século, Dioniso de Siracusa recebeu

150
Ver Whitehead 2000: 287–8, 339–41.
151
Nossos colegas que estudam a Idade do Bronze egeia têm sido mais abertos a esse respeito: ver Knapp
1993; Cline 1995.
152
Ver os artigos em Tortorelli-Ghidini et al. 2000.
153
Dentzer 1982.
154
Wallinga 1993: 103–29.
155
Garlan 1974.
156
Sobre o que se segue ver Kingsley 1995: 143–58.
157
Ver, por exemplo, Huffman 2005.

167
sobressaiu-se pela atração bem sucedida de trabalhadores especializados que levaram a
importantes avanços na arte do cerco de guerra,158 e Zópiro de Tarento poderia ser
ligado a ele plausivelmente; mas também se credita a Zópiro o desenvolvido de uma
catapulta para os milésios. O único contexto plausível para esse serviço é a expedição
siracusana para auxiliar os espartanos durante a última parte da guerra do Peloponeso.159
E então vemos um homem difundir a arte do cerco de guerra de Siracusa a Mileto; mas
esse mesmo homem é conectado à difusão de ideias filosóficas e religiosas pitagóricas.
Se as redes que movimentam ideias e tecnologias religiosas e militares parecem
conjugar-se nesse caso, o quão longe podemos estender tal exemplo?
Muitas vezes, o problema mais difícil é a identificação dos agentes desse
processo. As câmaras mortuarias da Citia e da Tracia nos fornecem uma ilustração
interessante dessa questão:160 elas mostram fortes similaridades, a despeito da enorme
distância entre as duas áreas; elas também parecem transferir a ideia do banquete para o
contexto da tumba, dadas a sua iconografia, arranjo espacial, assentos para reclinar, etc.
Gocha Tsetskhladze argumentou que trabalhadores jônios das colônias jônias no Mar
Negro e na Trácia respectivamente construíram essas tumbas para as elites locais; dado
que câmaras mortuárias de uma construção bem semelhante eram muito populares em
várias regiões da Ásia Menor adjacente à Jônia (Frígia, Lídia), é plausível argumentar
que temos aqui um bom exemplo no qual podemos identificar um grupo de pessoas
propagando uma ideia e uma tecnologia, e conectando Ásia Menor, Trácia e Mar Negro.
Vou terminar essa seção enfatizando qual é para mim uma lacuna frustrante do
estudo: a mobilidade de ideias e práticas políticas. É aqui novamente que uma
concepção da pólis como uma entidade autônoma teve um de seus efeitos mais
malignos. Pois ela fez com que se pensasse que os desdobramentos políticos em cada
pólis eram o resultado de processos puramente internos (a história política de Atenas)
ou de grandes processos metahistóricos (o desenvolvimento da pólis). A troca de ideias
e experiências e a realocação de agentes políticos, por meio de todos aqueles exílios
bastante comuns, não recebeu tratamento adequado. Houve poucos estudos de pequena
dimensão sobre o movimento de ideias políticas que valem a pena referir. Anthony
Snodgrass e Irad Malkin argumentaram que foi a experiência de estabelecimento de
comunidades no mundo colonial aquilo que gerou a ideia de pólis no continente;161 e
David Lewis e Wolfgang Schuller analisaram em que medida podemos ver a difusão de
instituições democráticas atenienses para o resto do mundo grego.162
Essa falta de interesse é particularmente infeliz; pólis uma das descobertas mais
fascinantes dos recentes trabalhos em história social e política é o caráter internacional
de movimentos sociais e políticos mesmo nas épocas pré-modernas. Apenas para dar
um exemplo, Peter Linebaugh e Markus Rediker nos presentearam com um relato
maravilhoso sobre o Atlântico revolucionário nos séculos XVII e XVIII mostrando

158
Diodoro, XIV, 41-3.
159
Tucídides, VIII, 26-39.
160
Sobre o que se segue, Tsetskhladze 1998b.
161
Snodgrass 1980: 119–22; Malkin 1994a.
162
Schuller 1979; Lewis 1997; ver também Robinson 1997 sobre as democracias fora de Atenas e Rhodes
e Lewis 1997.

168
como pessoas de diversas nações e raças, da Grã-Bretanha, Irlanda, Europa, África e as
Américas, criaram movimentos de resistência e solidariedade e abrigaram novas
ideologias e novos argumentos para suas lutas.163 Sabemos que a cultura das classes
superiores em Atenas era de fato internacional: estrangeiros como Heródoto, Lísias,
Dinarco e Anaxágoras tiveram um papel importante na formação da cultura
ateniense;164 os diálogos platônicos mostram de forma exemplar como os atenienses das
classes superiores se relacionavam com estrangeiros em pé de igualdade discutindo
política, filosofia e artes. A mistura de filosofia e matemática com a política
aristocrática no sul da Itália criou a teoria antidemocrática da igualdade aritmética e
geométrica, que finalmente desenvolveu-se em Atenas.165 Mas e sobre as classes
inferiores? Se podemos agora observar o caráter internacional dos movimentos pré-
modernos, e podemos ver facilmente o papel importante dos intelectuais estrangeiros no
mundo da elite ateniense, não deveríamos supor que algo semelhante acontecia entre as
pessoas comuns? Não deveríamos supor que a criação e manutenção da política
democrática na Atenas clássica deve efetivamente alguma coisa ao grande número de
estrangeiros vivendo entre os atenienses?
Em 355 AEC, Dion derrubou a tirania de Dionísio o Jovem em Siracusa. O que
se seguiu foi um movimento popular que tirou vantagem do sucesso de Dion e tentou
continuar em uma direção muito mais radical do que aquela que Dion desejou ou
imaginava. Uma reunião da assembleia acabou por decidir a redistribuição de toda
proprie a e na ci a e a us ifica i a i eol gica essa me i a era e que “o primeiro
princípio da liberdade era a igualdade, e da escravidão, a pobreza para os não
possi en es” 166 Ao fim e ao cabo a tentativa da elite de anular a decisão da assembleia
mostrou-se bem sucedida. Mas o que me interessa aqui é a articulação de uma ideologia
democrática das classes subalternas, que propõem a igualdade de riqueza como uma
pré-condição da democracia, e tenta uma redistribuição prática da riqueza. 167 Se um
pobre siracusano se descobrisse vivendo com um meteco em Atenas, na sequência desse
explosão popular e seguindo essa ideologia democrática radical, como iria ele conversar
e discutir com os atenienses de classe baixa? Ou de outro modo, se atenienses se
encontrassem vivendo ou em uma estadia em Siracusa durante esses incidentes, como
iriam eles configurar esses acontecimentos para os seus compatriotas, bem como os
debates ideológicos subjacentes? Ou, finalmente, como os atenienses de classe baixa
reagiriam às notícias de tais desdobramentos em Siracusa? Adotamos uma postura
profundamente atenocêntrica e raramente pensamos sobre as repercussões de
desdobramentos, acontecimentos e debates fora de Atenas sobre os próprios
atenienses.168

163
Linebaugh e Rediker 2000. Ver também Durey 1997; Tise 1998.
164
Ver Thomas 2000 sobre a diáspora intelectual jônia..
165
Harvey 1965/6.
166
Plutarco, Vida de Díon, 37-5.
167
Sobre esse evento, ver Fuks 1984.
168
Franco Venturi escreveu uma obra-prima, na qual ele focaliza o Iluminismo através do prisma das
reações contemporâneas a acontecimentos que estavam tendo lugar em toda Europa e Atlântico,
enfatizando a importância em particular das implicações de eventos que aconteciam na periferia da

169
CENTROS MUNDIAIS: CENTROS, PERIFERIAS E REDES

A história mediterrânea conhece muitos centros. Existem santuários, centros


religiosos que reúnem comunidades, forjam laços de identidade comum, disseminam
práticas e ideologias; o papel de Delfos e Olímpia é bastante reconhecido para requerer
muita discussão aqui.169 Há também os já mencionados emporia: aqueles nós que
organizam, atraem e direcionam a mobilidade de bens, pessoas e ideias/tecnologias. Há
centros de práticas culturais científicas e acadêmicas: eles se classificam amplamente,
das cortes dos tiranos sicilianos170 ou de um rei anatólio,171 as escolas filosóficas da
Atenas do quarto século,172 ou dos centros de medicina de Cnidos e Cós. 173 E existem
ainda é claro os centro políticos, mas esses são discutidos extensivamente no capítulo 8,
e são retirados de discussão aqui. O que deve ficar claro dessa discussão é que a criação
de centros de processos desafia a abordagem centrada na pólis, que vê as pólis como
entidades autônomas, e precisa de uma abordagem de sistema mundial.
Atenas no período clássico é um bom exemplo. Ela operava para controlar o
comércio de cereais e embasava sua subsistência e reprodução na manutenção bem
sucedida desse controle. Certamente não nos surpreende que toda vez que esse controle
encontrava-se sob pressão ou era destruído, os atenienses se viam em uma situação
muito difícil. Ademais, Atenas explorava em larga escala, como já descrevemos acima,
a mobilidade internacional de força de trabalhos, bens e ideias. Da produção artística e
troca intelectual até o trabalho servil e as fileiras das frotas atenienses, Atenas dependia
de atrair, esmagadoramente e com sucesso, grande número de estrangeiros, tanto gregos
quanto não gregos. Isócrates colocou isso bastante boa:

Além disso, ela [Atenas] estabeleceu sua política em geral em


um tal espírito de acolhimento a estrangeiros e amabilidade em
relação a todos os homens que ela se adapta tanto aqueles que
não dispõem de meios como aqueles que desejam desfrutar dos
meios que possuem, e que ela não deixa de prestar serviços nem
aqueles que são prósperos nem aqueles desafortunados em suas
próprias cidades; mais que isso, ambas as classes encontram
entre nós aquilo que desejam, a primeira os passatempos mais
prazerosos, a última o mais seguro refugio. Novamente, já que
as diferentes populações não possuíam em nenhum caso uma

Europa para o desenvolvimento do pensamento iluminista. Ver os volumes III-IV de seu Settecento
riformatore, traduzido por Venturi 1989, 1991. Se escrever um tal trabalho para história antiga devido à
falta de fontes, a abordagem é assim mesmo brilhante.
169
Sobre sua emergência ver Morgan 1990. Ver também Rougemont 1992; Sanchez 2001.
170
Dunbabin 1948: 298–9.
171
Hornblower 1982: 332–51.
172
Ostwald e Lynch 1994.
173
Sherwin-White 1978: 256–89.

170
região que fosse autossuficiente, cada uma carecendo de
algumas coisas e produzindo outras em excesso com relação as
suas necessidades, e já que elas estavam em grande prejuízo,
onde iriam dispor do seu lucro, e de onde iriam importar aquilo
de que necessitavam, no que se refere as essas dificuldades
também a nossa pólis veio em auxílio; pois ela estabeleceu o
Pireu como um mercado no centro da Grécia – um mercado de
tal abundância que os artigos que temos dificuldade em
encontrar, um aqui, outro lá, do resto do mundo todos eles se
encontram facilmente em Atenas.174

Bizâncio fornece algumas boas ilustrações daquilo que um tal centro poderia
parecer.

Naquilo que concerne ao mar, Bizâncio ocupa a posição mais


segura e em todos os sentidos a mais vantajosa do que qualquer
cidade em nossa região do mundo: em se tratando da terra, a
situação é em ambos os casos a mais desfavorável. No mar ela
comanda tão completamente a entrada do Ponto que nenhum
comerciante pode entrar ou sair pela navegação contra a sua
vontade. O Ponto, sendo então rico naquilo que o resto do
mundo requisita para subsistência, os bizantinos são mestres
absolutos de todas essas coisas [...] os próprios bizantinos
sentem as vantagens da situação, no fornecimento de bens
necessários a vida mais do que qualquer outro; no que tange aos
supérfluos encontram-se meios prontos para exportação, e
aquilo de que necessitam é prontamente importado em proveito
deles mesmos, e sem nenhuma dificuldade ou perigo: mas
outros povos também, como eu disse, obtêm muitas mercadorias
através deles.175

Bizâncio lucrava por sua condição favorável de duas maneiras: era capaz de
controlar o comércio para o Mar Negro e portanto de lucrar com taxas, impostos e
lucros invisíveis de um porto comercial. A guerra ródia com Bizâncio (220-19 AEC)
sobre a imposição bizantina de taxas sobre o comércio através do estreito ilustra essa
capacidade; mostra também o conflito inevitável quando o outro centro emergente
precisa proteger seus próprios interesses: um grande número de ânforas ródias no Mar
Negro testemunha amplamente aquilo que está em jogo.176
De outro lado, Bizâncio lucrava por conseguir explorar por sua posição a fim de
importar mercadorias facilmente e exportar seu excedente com segurança; pode-se

174
Isócrates, Panegírico, 41-3.
175
Políbio, IV, 38.
176
10000 selos r ios foram ca aloga os no ar egro a al’ anc 1999

171
observar que dada a garantia de consumidores devido a passagem de navios, havia lucro
na intensificação da produção agrícola. Os bizantinos tiveram que pagar um alto preço
por isso como narra Políbio, vendo-se em guerra constante com os trácios, e mais tarde
com os gauleses, a fim de proteger seu território preciosos e fértil.177 Finalmente, seria
equivocado assumir que os bizantinos tinham um papel passivo, simplesmente
explorando sua posição geográfica ideal e tirando proveito das redes mantidas por
outros. A guerra entre Bizâncio e Calates no mar Negro por volta de 260 ACE evidencia
suas políticas ativas: a guerra emergiu quando Calates decidiu reservar o emporium de
Tomis para os seus próprios mercadores; obviamente isso ameaçou os interesses de
comerciantes bizantinos.178 Vemos aqui a guerra causada por tentativas de impor
pol icas “mercan ilis as”
Também é relevante mencionar aqui a criação de zonas de influência. Muitas
comunidades descobriram-se em posição de impor seu controle sobre áreas mais amplas
e criar zonas de influência no âmbito das quais exerciam formas de controle que
variavam amplamente e em intensidade. O caso de Cártago e a criação de uma zona
comercial dentro da qual o comércio se restringia ao mercadores cartagineses é bem
conhecido.179 Mas muitas comunidades gregas possuíam práticas similares: Thasos
criou a sua própria zona no norte do Egeu; Olinto na Calcídica; Sinope no mar Negro;
Massalia no Mediterrâneo ocidental.180 Vemos aqui tentativas propositais de forjar uma
região em torno de um centro dominante; é uma questão interessante a de se saber em
que medida a criação dessas zonas comerciais tinham um efeito mais amplo em outros
aspectos.
Os exemplos que estou usando aqui são todos bem conhecidos dos historiadores
da antiguidade; mas carecemos de um estudo combinado da diversidade dos centros
sociais, econômicos, políticos e culturais do mundo grego como um todo. Um tal estudo
terá que suscitar um certo número de questões importantes.
A primeira delas é a da relação entre todas esses diferentes tipos de centro. O
período arcaico é um período no qual esses vários centros tendem a se distinguir e se
separar; mas ao longo do século quinto Atenas emerge como um centro político,
econômico e cultural ao mesmo tempo. Infelizmente, isso nos levou à imagem
atenocêntrica padrão da história grega clássica ao obscurecer a existência de outros
centros durante o mesmo período.181 Ao mesmo tempo tem havido pouco estudo do
fenômeno mais amplo à mão: quais são as conexões entre as diferentes formas de
centro?182 Como um centro de um tipo se transforma em centro múltiplo? Isto se aplica
igualmente bem à Atenas clássica e a Delos helenística, um centro religioso tornando-se
o principal centro comercial do Mediterrâneo oriental.183

177
Políbio, IV, 45.
178
Ver Vinogradov 1987: 41–4, mas com uma interpretação diferente da minha.
179
Ver os tratados com Roma mencionados por Políbio, I, 82.6, I I I , 23.2, X X X I , 21.1.
180
Bresson 1993: 201–14.
181
Ver os protestos de Thomas 2000: 9-16.
182
Mas ver Engberg-Pedersen 1993.
183
Ver Rauh 1993. Sobre a Rhodes helenística tornando-se tanto um centro comercial quanto um centro
cultural, ver Rossetti e Furiani 1993; Gabrielsen 1997.

172
A segunda questão é a escala. O Mediterrâneo teve milhares de emporia em
diversos períodos de sua história; embora ainda careçamos de estudos sobre o
desenvolvimento de cada um desses emporia ao longo do tempo, sua distribuição e
funções, etc., o que é mais importante é reconhecer o desenvolvimento em escala e
poder desses centros. Podemos distinguir entre emporia locais, atraindo bens de áreas
locais; emporia regionais baseado em trocas inter-regionais; e emporia internacionais
que funcionam como locais de comércio internacional.184 A criação do último tipo de
centro é um dos desdobramentos mais interessantes da história do Mediterrâneo. 185 Ela
se reflete na diferença entre as diversas cargas encontradas em naufrágios arcaicos e
clássicos e as cargas homogêneas que caracterizam os naufrágios romanos; evidência
dentre outras coisas, da emergência de centros internacionais de comércio, que tornam
factível para muitos mercadores ultrapassar a cabotage de emporia locais e regionais, e
ter acesso direto aos grandes centros internacionais. Mas há também casos em períodos
anteriores que apontam para as mesmas direções: os muitos achados de vasos ródios na
Sicília durante o período de 650-550 AEC contrastam significativamente com a sua
quase completa ausência do sul da Itália; podemos considerar que isso seja uma
evidência de redes diretas entre Rhodes e a Sicília, que o sul da Itália? 186 O caso de
Régio e Zancle, cidades no estreito da Sicília, fornece outro exemplo interessante. Os
vasos aí encontrados têm padrões similares aqueles encontrados na Etrúria,
particularmente na preponderância de cerâmica ática de primeira qualidade; mas
contrastam incisivamente com os achados nas cidade do golfo de Tarento e na Sicília;
vemos aqui novamente o papel da emergência de um centro mediando duas áreas de
comércio internacional, e a posição diferente das cidades que permanecem fora dessa
rede.187
A emergência de Gravisca no Mediterrâneo ocidental e Naucratis no
Mediterrâneo oriental ao longo do final do período arcaico exemplifica bem a mudança
em magnitude e escopo.188 A criação desses centros comerciais e internacionais de
Atenas a Rhodes, Alexandria e Delos é da maior importância.189
Uma terceira questão é a do controle e da competição. Um centro pode tentar
não apenas atrair, mas efetivamente controlar as atividades e processos nos quais
encontram-se baseados; além disso, ele pode tentar transformar seu poder de controle
em um campo a poder em outros campos; ou, de modo alternativo seu papel como um
centro em um campo pode precisar da criação de centros em outros campos também. Há
uma diferença óbvia entre atrair e controlar; entre o controle ateniense sobre o
movimento de cereais e a atração de força de trabalho. A razão pela qual são tratados
juntos aqui não é porque eu queira minimizar a diferença. Ao contrário, é porque eu
quero chamar a atenção para um espectro de reações formas de controle que um centro
emergente pode utilizar para explorar em benefício próprio essas redes internacionais.

184
Ver as observações de Bresson 1993: 199.
185
Para uma prospecção dos centros marítimos helenísticos tardios, ver Rauh 2003: 33-92.
186
Ver Vallet 1963: 316.
187
Vallet e Villard 1963: 268.
188
Giangiulio 1996: 519–21.
189
Ver as abordagens em Nicolet 2000.

173
Uma descoberta recente de um peso de chumbo do mar Negro ocidental, datado
do final do quinto século, é uma boa ilustração das questões envolvidas; 190 o peso traz a
coruja, emblema de cunhagem ateniense, em um lado, e o atum, emblema da cunhagem
de Cyzicus do outro lado. Seu peso parece visar uma equiparação dos padrões áticos aos
de Cyzicus, dois dos mais importantes padrões desse período, e podem mesmo ser
equiparados ao de Egina; tratava-se de um resultado das necessidades criadas pela
intensificação dos laços no âmbito do système-monde que reunia o mundo egeu e o mar
Negro, ou da imposição imperial ateniense como se observa no notório Decreto de
Padrões? A primeira parece mais provável, mais a diversidade de respostas possíveis
demonstra bem a complexidade da questão em tela aqui.
O que precisa ser enfatizado é que os níveis que eu divisei são dessemelhantes e
coexistentes. Possuem temporalidades diversas e propriedades diferentes, mas esses
níveis não se superpõem uns aos outros, como os andares de uma casa, mas
diversamente se interpenetram.

Epílogo

Toda essa discussão das pólis como parte de um système-monde tinha um duplo
objetivo. Por um lado fazia-se necessário enfatizar que ver a pólis como uma entidade
solitária é profundamente equivocado; precisamos ver as pólis gregas como partes
interdependentes, de formas variadas, de um sytème-monde mais vasto; e tentei sugerir
algumas maneiras e conceitos que podem nos permitir estudá-las a partir de uma tal
perspectiva. Por outro lado, havia uma crítica mais ampla: nossas histórias gerais da
Grécia são abertamente atenocêntricas e helenocêntricas.
As abordagens modernas da história grega oscilam entre duas atitudes que me
parecem igualmente problemáticas. Uma delas é tomar a história, sociedade, economia e
cultura atenienses como equivalentes à história, sociedade, economia e cultura
gregas.191 A abordagem centrada na pólis teve um papel fundamental a esse respeito.
Atenas fornece um bom exemplo de formação, apogeu e declínio da pólis (emergindo
no período arcaico tendo uma idade do ouro no período clássico e decaindo em relativa
obscuridade no período helenístico), que combina-se bem com a periodização
tradicional; Atenas se tornou uma democracia, portanto sua história conforma-se bem à
narrativa teleológica de desenvolvimento da democracia a partir da monarquia em
direção à aristocracia e à tirania; ela também permite a identificação demasiado comum
entre pólis e democracia, e a varredura do mapa mental das várias experiências
oligárquicas que constituíam a regra da história grega; Atenas era um poder
independente e perdeu sua autonomia apenas no período helenístico, o que auxilia a
fazer equivaler os conceitos de pólis e autonomia; ao mesmo tempo Atenas era um
centro político, econômico e cultural, o que reforça a visão de que a pólis tinha a sua
própria economia, política, sociedade e cultura imbricadas, e despreza os processos e
centros maiores dos quais a grande maioria das pólis eram constantemente dependentes.

190
Sobre o que se segue ver Meyer e Moreno 2004.
191
Ver, por exemplo, Dillon 2004, onde grego ocupa o lugar de ateniense.

174
Seria injusto concluir que todos os especialistas adotaram uma perspectiva
atenocêntrica. De fato, a tradição de tomar o mundo grego como um todo utilizando
evidências de um vasto número de comunidade gregas é igualmente antiga e comum.
Um problema com essa abordagem é que ela ainda aceita usualmente a moldura
centrada na pólis, que determina amplamente quais serão as questões a serem
perguntadas e quais serão os fatos e eventos para os estudos históricos modernos;
consequentemente, muito permanece fora de questão, mesmo quando se adota uma
perspectiva grega mais vasta. Mas o problema mais importante é aquele de aceitar vasto
mundo grego como um dado; todo aquele que falava grego de alguma forma fazia parte
da cultura e da civilização gregas. A premissa por trás desse perspectiva é a de que
cultura e sociedade são entidade fechadas, homogêneas, e delimitadas. A cultura grega é
compreendida como uma entidade fechada e delimitada justaposta a outras entidades
fechadas e delimitadas.
Isso tem um efeito duplamente negativo: falhou em criar instrumentais
metodológicos e analíticos para o estudo da diversidade das culturas gregas, de seus
elos e formas de interação; entre a organização política individual e um mundo ou
cultura grega reificados não há conceitos para analisar níveis intermediários, a variedade
de laços entre eles, e as formas pelas quais as variedades de comunidades e níveis,
espalhadas por todo Mediterrâneo, veio a formar um único sistema com suas próprias
regras. Criou também reificações problemáticas: a história grega é escrita como uma
história nacional, e separada de outras histórias nacionais no Mediterrâneo (por
exemplo, a egípcia ou a persa). Mesmo quando os especialistas levam em consideração
as interações entre os gregos e outros povos ele tendem a compreendê-las como uma
interação entre duas entidades fechadas, delimitadas.
Esforcei-me muito nesse livro a fim de demonstrar por que esses pressupostos
são metodológica e historicamente equivocados. Felizmente, existem outras vozes para
os mesmos protestos. Um volume recente editado por Carol Dougherty e Leslie Kurke
tentou defender um ponto de vista similar.192
De forma importante, se existe alguma razão em falar sobre a unidade do mundo
grego, fragmentado em um grande número de organizações políticas diferentes,
espalhadas por todo Mediterrâneo e mar Negro deve ser enfatizado que essa unidade foi
criada e mantida pelo grande número de pessoas se movimentando: marinheiros,
comerciantes, soldados, artistas, médicos, poetas, intelectuais. Como disse Filippo
Cassola “essas a i i a e essas milhares e pessoas se mo en o] eram o as an e para
criar uma rede conectada que abarcava todo mundo grego e provocava uma troca de
experiências que garantia não a homogeneidade da cultura, mas a compreensão
rec proca e o in eresse rec proco en re o os os cen ros ha i a os” 193 Mas se aceitarmos
ser este o caso, é crucial reconhecer que as redes de mobilização e movimento dessas
pessoas não eram controladas apenas por gregos e não envolviam apenas gregos.

192
Dougherty e Kurke 2003a
193
Cassola 1996: 10.

175
A arte funerária monumental ateniense do período clássico fornece um bom
exemplo.194 Um dos monumentos mais impressionantes monumentos da arte do quarto
século ateniense é o monumento funerário de Nicerato, um meteco da cidade de Istria
no mar Negro; o monumento é claramente inspirado e imita o famoso mausoléu de
Halicarnasso. Mas a criação dessa nova forma de arte funerária, que funde a arquitetura
de templos grega e a escultura grega com os temas decorativos e monumentos
funerários próximo-orientais, não é nem simplesmente uma imitação nem uma outra
ilustração da criatividade ateniense; ela se baseia em uma longa experimentação entre
práticas artísticas gregas e não gregas que aconteceu no mundo grego mediterrâneo.
Os artista gregos em Sinope (mar Negro), Cyrene (norte da África) e nas cidades
gregas da Ásia Menor trabalhando para consumidores gregos e não gregos,
experimentaram por um longo período, combinando a tradição da arte pública grega
com as várias tradições não gregas de monumentos funerários, que se podia ver em suas
áreas adjacentes. No quarto século essa experimentação desdobrou-se em Atenas
criando uma das conquistas artísticas mais impressionantes do mundo grego. Vemos
aqui claramente a interação entre diversos componentes de culturas gregas e de outras
culturas mediterrâneas; o papel do mundo grego em sentido lato como um laboratório
de experimentação e interação; a introdução de novas práticas em Atenas; e o papel dos
metecos na cultura ateniense. Mas penso nos navios que transportavam esses artistas, ou
qualquer um que auxiliasse na transmissão dessas práticas do Mediterrâneo mais vasto à
Atenas; o que mais transportavam esses navios? O que mais essas pessoas carregavam
em suas mentes?
Uma das consequências mais importantes de uma tal abordagem seria a de
reconsiderar a história do mundo grego mais vasto, na Magna Grécia, na Sicília, na
Cirenaica, na Ásia Menor, no mar Negro, e inseri-la em nossas principais narrativas
sobre a história grega. A abordagem centrada na pólis levou a marginalização de todas
essas comunidades do mundo grego mais vasto, já que elas não se adequam aos seus
critérios: delas estão ausentes linhas claras de evolução, da emergência passando pelo
apogeu até o declínio; elas mostram periodizações diferentes daquelas que se aceita na
história grega; na maior parte de sua história elas estavam sob o controle de outras
potências; as distinções categóricas entre os de dentro e os de fora, masculino e
feminino, grego e bárbaro, tão importantes para o estuda da pólis parecem menos
significa i as oses inley e mo o carac er s ico fala a so re “a incapaci a e os
gregos sicilianos serem bem suce i os em seu mo o e i a pol a e” 195
Mas não há necessidade de recorre a tais marginalizações. O mundo grego mais
vasto era parte essencial do système-monde grego; não apenas no que se refere a
economia (poder-se-ia pensar quão diferente o Egeu do quinto século teria sido sem as
redes comerciais vitais com o mar Negro), mas em todos os assuntos possíveis. Apenas
para ar um e emplo “um mapa esenha o para marcar local e nascimen o e
filósofos pré-socráticos importantes e de sofistas do quinto século AC deixaria a Grécia
continental no sul da Trácia inteira totalmente vazia [com a única exceção de Hippias de

194
Sobre o que se segue, ver Hagemajer Allen 2003.
195
Finley 1979: 48.

176
lis] ”196 Uma outra consequência importante disso seria a desintegração de muitas
generalizações sobre a história grega. James Redfield tentou fazer isso com os lócrios
epizefrinos da Itália do sul, criando um terceiro modelo de cultura grega próximo aquele
de Atenas e Esparta, afirmando que a sociedade lócria era culturalmente distinta por
causa da posição particular que concedia às mulheres.197 Tornou-se um topos que os
gregos faziam uma distinção categórica entre gregos e bárbaros, como muitas de nossas
fontes atenocêntricas sugerem (embora nem todas); mas as evidências da Magna Grécia,
por exemplo, onde muitos não gregos conseguiam obter cidadania nas pólis gregas
mos ra como “nem o os os gregos re ira am sua is o o mun o a ico omia en re
grego e n o grego” 198
Concluindo: a abordagem do sistema-mundo pode nos permitir desvelar uma
nova história grega, levando em consideração a totalidade das comunidades gregas e a
inserir a história grega no âmbito da história do Mediterrâneo e do mar Negro.

196
Tarrant 1990: 621.
197
Redfield 2003.
198
Lomas 2000: 175.

177
CAPÍTULO 8

Pólis e comunidades políticas

Talvez, o grande problema no estudo das pólis gregas tem sido o modo como elas
foram percebidas e tratadas como uma entidade isolada. Nenhuma definição ou estudo
da pólis grega tentou ainda incorporar o fato de que cada pólis histórica grega era parte
de um sistema de interações entre pólis, ethnê, koina e comunidades e organizações
políticas não gregas. O ambiente institucional histórico das pólis gregas tem sido
frequentemente ignorado pelo uso de duas estratégias complementares. A primeira é a
bem conhecida prática Ocidentalista do evolucionismo1: diferentes formas de
organização política são classificadas como etapas em uma escala evolucionista, com
formas “arcaicas” e ethnê, coexistindo com pólis clássicas progressivas, e pólis gregas
“o sole as” coe is in o com “mo ernos” reinos e koina helenísticos. Ao mesmo tempo,
o outro discurso Ocidentalista sobre as origens e a história do Ocidente cria uma
dicotomia entre uma Grécia de pólis e um Oriente, cada qual com sua própria história
separada, ainda que, por vezes, eles pudessem interagir nesse já conhecido jogo de
contatos. Um dos resultados mais perversos dessas abordagens é o abandono da história
política em detrimento da mais tradicional histoire évènementielle. As definições
estáticas, evolucionistas e reificadas da pólis deixam pouco espaço para uma abordagem
processual e teórica da história política e militar grega2.
Nosso objetivo, aqui, é superar essas práticas já enraizadas e tentar observar as
pólis gregas como parte de um système-monde de organizações políticas no contexto
mais amplo do Mediterrâneo oriental e do Oriente Médio. As várias formas de unidades
políticas gregas não eram um conjunto de espécimes tirado de diferentes caixas
evolucionárias: elas coexistiam, interagiam entre si e se interconectavam de maneiras
que moldaram decisivamente a sua história coletiva. Ao mesmo tempo, o
desenvolvimento histórico das comunidades gregas se deu dentro de um (des)equilíbrio
e de um ambiente internacional mais amplo. Temos que apresentar, então, um número
de conceitos chaves para lidar com o nosso objeto de estudo.

PÓLIS E SOBERANIA

Tem-se pensado que uma das características sine qua non da pólis é a sua
autonomia, o direito de conduzir suas relações externas em seus próprios termos e
através de suas próprias decisões. Essa visão já não pode mais ser sustentada. O

1
Ver em geral, Chakrabarty 2000: 237–55.
2
Ste Croix 1972: 89–166 estabeleceu as bases para um estudo dessa natureza, mas suas explicações não
foram totalmente bem sucedidas e o foco do seu livro estava, de qualquer modo, um pouco mais restrito.
Cartledge 1987 (em especial pp. 180-330) apresenta a mais bem sucedida abordagem que já tivemos, no
entanto, seguindo os mesmos passos do livro de Ste Corix em vários aspectos. Mas ainda há muito mais a
ser alcançado. A introdução de Balcer 1984 é bastante ambiciosa, mas o livro não traz muitos resultados.

178
trabalho do Copenhagen Pólis Centre demonstrou, para além de quaisquer dúvidas, que
a autonomia, no sentido de uma independência política em relações externas, nunca foi
parte do conceito grego de pólis tanto em termos teóricos como práticos3.
Teoricamente, os pensadores gregos jamais discutiram o conceito de autonomia, quando
eles tentaram definir a essência da pólis.4 Além disso, os gregos não tinham qualquer
problema em chamar de pólis uma variedade de comunidades e assentamentos que
obviamente não estavam aptos a conduzirem suas relações externas em seus próprios
termos.5
Existiam pólis que eram parte de um estado mais amplo, governadas por uma
pólis dominante em termos de relações externas e, em algumas vezes, internas. 6
Exemplos não faltam: é possível citar as pólis dos perioikoi de Esparta7, que junto aos
espartanos constituíam os lacedemônios8; as pólis de periecos de Elis9; as pólis
dependentes de várias pólis arcades10, como Mantineia e Orcómeno; e as pólis
dependentes das pólis cretenses, como Gortina, Praisos e Eleutherna11. Para dar um
exemplo de Creta, temos um tratado entre os praisianos e a comunidade dos stalitai. Os
stalitai tinham um número de obrigações militares e financeiras em relação à pólis de
Praisos que deixa claro seu status de dependentes. Por outro lado, os stalitai tinham o
direito de impor as suas próprias taxas, tinham leis e magistrados próprios e a eles era
garantido o direito em suas terras (chôra), cidade (pólis) e algumas ilhas não
especificadas. A primeira observação, portanto, diz respeito ao fato de que Stalai
deveria ter controle de um território claramente demarcado, como qualquer outra pólis
independente teria. A segunda observação tem a ver com o uso do termo pólis para
descrever Stalai. No caso de alguém assumir, então, que a designação de pólis refere-se
a Stalai apenas no sentido de que se trata de um assentamento urbano, é importante,
contudo, ressaltar que posteriormente em inscrições, Stalai e Setaia são mencionadas
como pólis no sentido explícito de uma comunidade política. 12
Havia a pólis que formava uma organização política regional, 13 que os gregos
chamavam de ethnos ou koinon14. O ethnos foi por muito tempo identificado

3
Hansen 1995b.
4
Ver Sakellariou 1989: 213–90 para a discussão de Aristóteles a respeito das definições da pólis.
5
A respeito da soberania, o status de uma pólis e a cunhagem de moedas, ver Martin 1985.
6
A melhor introdução, embora incompleta, às comunidades dependentes na Grécia Antiga ainda é
Gschnitzer 1958.
7
Shipley 1997; Hansen 2004c.
8
Hall 2000.
9
Roy 1997.
10
Nielsen 1996b.
11
Perlman 1996.
12
Inscriptiones Creticae, I I I , vi, 7B, ll. 17–18 ‘ean e pou allai pros a i ho kosmos ho raisi n
hopoterai n] am pole n = alai e e aia] hou oi pleon n’ ica io a par ir essa passagem que
quando os cidadãos de Gortina queriam se referir a uma comunidade de pessoas, eles simplesmente não
tinham outro termo para descrevê-la a n o ser como “pólis” Perlman 1996: 257–8 não foi capaz de
captar este aspecto. Chaniotis 1996: 385–93, por outro lado, reconhece esse uso da pólis no sentido de
uma comunidade de membros.
13
Podemos definir como organização política regional uma organização política que consiste em um
número de comunidade com status igual ou desigual a uma mesma região.

179
erroneamente pela academia moderna como uma alternativa a pólis, um estado arcaico
tribal que teria florescido em áreas onde não havia pólis. Isso também não se sustenta15.
Regiões com uma identidade distinta poderiam formar koina com pólis como
participantes (ex.: as pólis dos beócios)16, mas, mesmo nos casos como a Acaia e a
Arcádia, o ethnos consistia, tanto nas pólis (Mantineia, Tégea, Pelene) como nas phylai,
em entidades sub-regionais que eram, por sua vez, ainda formadas por pólis menores (as
comuni a es “ ri ais” e mainálios, parrásios, cinúrios).17 As pólis que participavam
nessa koina ou ethnê, tanto em condições iguais ou sob a hegemonia de pólis
dominantes, ainda assim consideravam-se e eram reconhecidas por outras como pólis.18
Por último, em termos práticos, várias pólis durante longos períodos de suas
histórias estiveram sob o domínio de outros estados, sejam eles outras pólis (Atenas, 19
as decarquias espartanas20), poderes imperiais não-gregos (as pólis iônicas e a Pérsia21),
ou reis e tiranos gregos (as pólis sicilianas e os tiranos de Gela e Siracusa22, as pólis de
Trôade e os tiranos gregos 23). Ainda assim, elas consideravam a si mesmas e, eram
reconhecidas por outras, como pólis. A definição de pólis como um estado autônomo
excluiria, tanto em termos teóricos como práticos, a maior parte das comunidades e
assentamentos arcaicos e clássicos que eram reconhecidos pelos gregos como tais.
Seria mais útil dividir as pólis gregas em três categorias gerais: pólis hegemônicas
(ex.: Atenas, Esparta), pólis poderosas em termos médios ou regionais (ex.: Tasos,
Samos, Tegea) e pólis pequenas (Koressos e Plateias). Não se trata de uma construção
de tipos ideais, ou que seja capaz de incluir tudo. Consiste simplesmente em um esforço
de chamar a atenção para as diferentes capacidades, recursos, potencialidades e
aspirações de cada categoria distinta que não pode ser incluída dentro do guarda-chuva
generalizante de cidade-estado. Já chegamos a chamar a atenção para os comentários de
Políbio em relação a esse aspecto. Uma pólis hegemônica pode formar uma variedade
de relações com uma pólis média ou pequena, que podem incluir desde alianças ou
oposição até a dominação ou mesmo a incorporação.24 Nossos modelos e conceitos
precisam levar em conta essa diferença importante e suas várias configurações.

PÓLIS, ETHNÊ, KOINA

eu uso a e press o “organi a o pol ica” implica uma ecis o e con ornar a
antiga distinção entre pólis, ethnos e koinon. As formas gregas de comunidades políticas

14
Beck 1997.
15
Ver as observações já feitas por Giovanni 1971: 71–93.
16
Hansen 1995d, 1996a, 1997c.
17
Arcádia: Nielsen 1996a; Acaia: Morgan and Hall 1996.
18
Em geral, ver Morgan 2003.
19
Meiggs 1972: 205–54.
20
Cartledge 1987: 90–4.
21
Tuplin 1987.
22
Hansen & Nielsen 2004: 172–248.
23
Xenofonte, Helênica, I I I, i, 10–27; Hansen and Nielsen 2004: 1000–17.
24
Ver Amit 1973.

180
não são espécimes advindos de diferentes estágios de uma suposta evolução. Ao
contrário, elas precisam ser encaradas de duas maneiras complementares: a forma
organizacional depende dos objetivos, capacidades, recursos e aspirações da
comunidade, e também depende do seu lugar e de suas possibilidades dentro de um
système-monde mais amplo.
Já comentamos, anteriormente, que um grande número de pólis participava em
ethnê e koina. Mais ainda, o antigo mito de um mundo urbanizado de pólis e de um
mundo de ethnê dominados por vilas deve finalmente ser posto de lado. Pólis no
sentido de assentamentos nucleados são amplamente encontradas em regiões dominadas
por ethnê e seus tamanhos são comparáveis diretamente com aqueles da grande maioria
das demais pólis (algumas chegam até a atingir o tamanho de verdadeiros centros
urbanos).25 Para dar um exemplo da Acaia que durante boa parte de sua história compôs
um ethnos e um koinon, as dozes merides, já descritas por Heródoto,26 eram
assentamentos nucleados e centralizados que poderiam ser perfeitamente qualificados
como centros políticos de pólis27. Nas palavras de Fritz Gschnitzer,
“as pólis aparecem em todos os lados, até mesmo nas regiões dos ethnê, como
sujeitas às relações socais, às comunidades da vida social; por outro lado, os ethnê eram
as verdadeiras unidades políticas, sujeitas à lei internacional, e apenas fora das áreas
organizadas como ethnê é que as pólis desempenhavam esse papel. A concordância
entre essas duas formas de unidade social e política não era, portanto, uma regra geral,
mas, ao invés disso, uma característica de um determinado tipo de ordenamento político
como, por exemplo, a pólis independente ou, mais precisamente, a Normalpolis
independente.28
Além disso, uma vez que a pólis é normalmente encarada como uma comunidade
de cidadãos, é impossível diferenciar a pólis do ethnos nesse respeito. Abordagens mais
antigas do ethnos representaram-no como o resquício de um passado tribal em áreas
menos desenvolvidas do mundo grego.29 Essas abordagens já foram refutadas com
sucesso ao longo das três últimas décadas, tendo sido mostrado que as divisões internas
das pólis gregas (as phylai, etc.) não eram resquícios de uma organização tribal da
sociedade que persistiram no ethnê, mas criações artificiais do período arcaico. 30 Do
mesmo modo, as supostas afinidades tribais do ethnos são fictícias: os gregos dos ethnê
eram capazes de inventar e forjar vínculos de afinidade política, social e religiosa tal
como as pólis faziam. 31 O ethnos é, atualmente, encarado não como uma alternativa a
pólis, mas como um conjunto organizacional complexo de formas políticas e
comunidades tanto acima como abaixo da pólis. 32 Vários ethnê tinham suas próprias
assembleias e, embora eles pudessem incluir comunidades com cidadania própria, eles

25
Jost 1986, 1999.
26
Heródoto, I, 145.
27
Morgan 2000.
28
Gschnitzer 1991: 433.
29
Ver Ehrenberg 1960: 24–7; Snodgrass 1980: 42–4.
30
Bourriot 1976; Roussel 1976; Finley 1985a.
31
Davies 2000.
32
Ver os comentários de Archibald 2000; ver também Morgan 2000.

181
também possuíam sua própria cidadania que poderia ser conferida por eles aos
indivíduos.33
A distinção entre pólis e ethnos como formas de organizações políticas e sociais é
uma construção acadêmica moderna. De fato, uma classificação com mais sentido
distinguiria entre Normalpoleis, com um único assentamento nucleado atuando como
centro político, Großpoleis, consistindo em um assentamento nucleado atuando como
centro político e um número de outros assentamentos, tanto demes (vilarejos) ou pólis
dependentes, e organizações políticas regionais (ethnê), que consistem em pólis
(assentamentos nucleados), ou kômai (vilarejos).34 Porém, novamente é preciso dizer
que meu intuito não é o de substituir uma divisão em duas partes por uma divisão em
três partes. O importante é atentar que diferentes formas de organizações políticas
devem ser vistas tanto como alternativas sincrônicas, como a partir de seus
desenvolvimentos e interações diacrônicas; e que nós deveríamos estudar processos de
formação e fragmentação, ao invés de criar rótulos e engavetar nossos objetos
conceituais. Um estudo recente demonstrou com grande eloquência porque pólis e
koinon não devem ser sobrepostos, mas, sim, vistos em sua interdependência:
analisando os processos pelos quais as pólis eram abandonadas nos períodos clássico
tardio e helenístico, perecebeu-se que os vínculos de syngeneia e os vínculos forjados
em um koinon eram, com frequência, o que permitia às pólis sob ameaças sobreviverem
em exílio, se reagruparem sob condições mais favoráveis e resistirem ou serem
absorvidas em relação a outras comunidades. 35 O papel do koinon em promover uma
adaptabilidade social a estresses locais de pequena escala tais como baixas
populacionais, doenças e pobreza, deve ser seriamente levado em consideração.
Devemos abandonar a concepção teleológica da história na qual o ethnos está
destinado a ser sucedido pela cidade-estado e a cidade-estado a ser substituída pelas
monarquias e pelos koina do período helenístico. Temos de encarar todas as formas de
comunidades políticas como alternativas que coexistiam, com diferentes objetivos e
habilidades, ou até mesmo como formas de organização com diferentes escalas que não
necessariamente excluíam umas as outras. Devemos observar a totalidade de estruturas
políticas disponíveis aos agentes passados a fim de entendermos como elas passaram a
existir, como elas foram moldadas por esses agentes, como elas antagonizavam-se entre
si de acordo com as afinidades de seus agentes e, por fim, porque algumas delas, em
determinados contextos espaciais e temporais, foram mais bem sucedidas que outras.
Um exemplo fascinante de como proceder dessa forma é oferecido por Hendrik
Spruyt em seu livro intitulado The Sovereign State and its Competitors: an Analysis of
System Change.36 Spruyt estudou as várias formas de organização política na Europa
moderna argumentando contra uma visão teleológica, na qual os reinos feudais e os
principados estariam destinados a serem substituídos pelos estados nacionais soberanos.
Ele tentou mostrar como uma variedade de formas políticas foi concebida a fim de lidar
com a crise do mundo medieval e como diferentes agentes em períodos e regiões
33
Davies 2000.
34
Gschnitzer 1991: 439–42. Ver também os comentários de Hansen 2004a.
35
Mackil 2004.
36
Spruyt 1994.

182
distintas optaram por soluções diferentes (França e o estado territorial dos capetíngeos,
Alemanha e a liga de cidades como a Hansa, Itália e as cidades-estados). O autor ilustra
como diferentes formas faziam parte de um sistema inter-relacionado e interagiam umas
com as outras, e como processos políticos e econômicos influenciaram e foram
influenciados pelos políticos. Por fim, ele tenta mostrar como dentro da conjuntura
política, econômica e social específica da Europa moderna, o estado nacional surgiu
como uma solução mais eficaz para os desafios do período. A obsessão com a pólis e a
negligência dada às demais formas de comunidades políticas assegura que nós
criaremos uma imagem equivocada.37

PÓLIS, REDES E O SYSTÈME-MONDE

Dada a nossa diferenciação entre os vários níveis de organização política, o


funcionamento do système-monde político é dependente do fluxo de recursos e das redes
para sua produção e redistribuição. Isso pode ser melhor detalhado: por um lado, os
fluxos de recursos e as redes de produção e redistribuição possuem uma lógica e escala
de tempo próprias que independe do système-monde político. A lógica e os motivos da
migração ou da produção de mercadorias em uma área não advém obrigatoriamente das
necessidades e do funcionamento do système-monde político. As organizações políticas
tentam se aproveitar desses fluxos e redes independentes de acordo com seus próprios
objetivos; um bom exemplo pode ser encontrado no comportamento de Lisandro no
final do século V a.C.:

Quando ele chegou a Éfeso, encontrou a cidade simpática a ele e


zelosa à causa espartana, embora ela estivesse na ocasião em um
baixo estado de prosperidade e correndo o risco de se tornar
altamente barbarizada pela mistura com os costumes persas, já
que ela tinha sido absorvida pela Lídia e os generais do rei
tinham lá feito seus quartéis. Ele, portanto, acampou no local e
ordenou que os navios mercantes de todos os cantos fossem
atracar ali e fizessem os preparativos para a construção de
trirremes. Assim, ele revitaliou o tráfego que havia nos portos,
os negócios que ocorriam no mercado e encheu as suas casas e
oficinas com rendimentos, de modo que daquele momento em
diante e através de seus esforços, a cidade passou a ter
esperanças de alcançar a imponência e a grandeza que
atualmente possui. 38

O poder e a prosperidade de Éfeso derivam da ação de atrair para a cidade o fluxo


de recursos em processos mais amplos. Do mesmo modo, as formas e as mudanças em

37
Ver os comentários e artigos em Brock and Hodkinson 2000.
38
Plutarco, A Vida de Lisandro, 3.2-3.

183
um système-monde político dependem parcialmente de mudanças imprevisíveis,
caóticas e incontroláveis nesses mesmos fluxos e redes. Mas ao mesmo tempo, as
organizações políticas tentam canalizar e controlar esses fluxos e redes e deste modo
elas acabam por redirecioná-los de forma substancial. Mckechnie apresentou um
argumento convincente de que a ascensão e o domínio dos potentados e reis do período
clássico tardio e helenístico estavam baseados na exploração de um grande número de
“e clu os e is en es nas ci a es gregas” eslocamen o e um gran e n mero e
indivíduos era o que permitia os potentados consolidarem seu poder na medida em que
se beneficiavam disso.39 Portanto, há uma dialética entre o sistema, os fluxos e as
redes.40
Este é provavelmente um dos temas mais negligenciados pelas pesquisas atuais. A
manutenção, reprodução e expansão de cada uma das organizações políticas gregas
dependiam desses fluxos e redes; no entanto a forma, o grau e a extensão dessas
relações estão baseados na posição e status de cada uma dessas formas dentro do
système-monde. Uma pólis pequena, rural e do interior teria o mínimo de recurso aos
fluxos e redes: a sua posição interiorana restringiria severamente sua capacidade de tirar
proveito de redes de conectividade para fornecer, por exemplo, os seus cereais, de modo
a se especializar em outras atividades além de uma mera cultura de auto consumo de
cereais; seu baixo status não a inspiraria a procurar estratégias de poder mais sérias que
a forçariam a fazer parte das redes de recursos (por exemplo, madeira para construção
naval) e mão de obra (por exemplo, remadores, mercenários).
Mas ao mesmo tempo, sua posição pequena e precária pode torná-la seriamente
dependente das redes e dos fluxos do système-monde político: uma parte substancial de
cidadãos de pequenas comunidades da Arcádia ganhava seu modo de subsistência a
partir de serviços mercenários no exterior.41 Logo, suas pequenas comunidades eram
dependentes de redes internacionais de mobilização de poderio militar e de suas
fortunas. 42 De fato, essas redes podiam levar as pessoas a lugares bem distantes:
mercenários arcades lutaram por Ciro, o pretendente ao trono persa, até a
Mesopotâmia;43 e existem ainda inscrições do século IV a.C. do Mar Negro que vão
desde monumentos honoríficos de mercenários arcades ao rei Leicon do reino de
Bósforo até inscrições fúnebres e decretos de proxenia para outros arcades.44 Ao mesmo

39
McKechnie 1989: 1–3.
40
A globalização dos fluxos financeiros do mundo moderno é um bom exemplo. Nenhum governo é
capaz de controlar esses fluxos mundiais, embora possam sempre tentar tirar proveito e vantagem deles, e
suas práticas têm um efeito de redirecionamento desses fluxos; ver Arrighi 1994.
41
oy 1999; o s culo a C “um maior n mero e hopli as a rc ia ser iam como mercen rios no
exterior do que várias das mais poderosas pólis a rc ia po eriam recru ar”; ielsen 2002 81
42
É claro que aqui nos deparamos novamente com o caso em que organizações políticas tentariam se
aproveitar dessas redes. Após a formação do koinon arcádio em 360, os arcádios tentaram utilizar sua
enorme força mercenária, que as redes internacionais há muito já tinham criado, para os seus próprios
fins; daí surge a criação do exército dos Eparitoi e os problemas concomitantes de se garantir os recursos
para a sua manutenção; Roy 2000: 316–21. No final, a posição periférica das comunidades arcadias fez
com que o experimento acabasse por ter de ser abandonado.
43
Roy 1967.
44
Ver Vinogradov 1987: 30-2.

184
tempo, uma comunidade pequena pode se encontrar em um estado de dependência no
système-monde político, forçada a se tornar uma pólis dependente, ou a se dissolver em
uma entidade política maior.
Nesse meio termo, para organizações políticas regionais e hegemônicas, o
funcionamento desse sistema era ainda mais crítico. Para as pólis hegemônicas a
situação é bem clara: para exercer a hegemonia era necessário ter controle sobre
dinheiro, recursos e mão de obra.45 O dinheiro poderia ser fornecido por dependentes e
aliados, adquirido através da exploração dos recursos locais (por exemplo, as minas
atenienses), ou obtido através do comando de redes de troca. Os recursos poderiam ser
captados localmente, mas, na maior parte das vezes, eles precisavam ser importados, tal
como a madeira necessária para qualquer construção naval mais séria. 46 A mão de obra
era crucial: mercenários e soldados metecos, remadores e marinheiros no tocante aos
aspectos militares e uma enorme força de trabalho para garantir as redes necessárias de
fornecimento e troca. A vantagem contada por Jasão de Feras de que ele poderia muito
facilmente abastecer às tripulações de seus navios com penestai47 nativos era
formidável: na maioria dos outros casos, as forças marítimas dependiam da
disponibilidade e da importação de uma enorme força de trabalho.
Nossa dificuldade em compreender essas realidades parece resultar de dois
fatores: por um lado, o fato de que nenhuma organização política poderia exercer total
controle desses fluxos e redes encorajou os estudiosos, com expectativas ocidentalistas,
a ignorá-las quase completamente: estudiosos que esperavam encontrar políticas estatais
mercantilistas de controle de trocas, de moeda e de exportações, grandes companhias
comerciais e estatais controlando o comércio internacional e a existência de nítidos
centros e periferias ficaram obviamente decepcionados, daí a conveniente solução de se
esquecer toda a questão e construir modelos inerentemente incapazes de levar isso em
consideração.48 O segundo problema, é claro, diz respeito à documentação: isto é, a
ausência de recursos arquivísticos que nos permitiriam reconstruir os fluxos e redes de
recursos materiais e humanos como os estudiosos da história medieval e moderna da
Europa foram capazes de fazer.
Devemos, portanto, tentar reparar esse desequilíbrio em nossa produção. Vincent
Gabrielsen destacou a importância da mobilização de mão de obra e de trabalho para as
estratégias de poder de várias organizações políticas:

Movimentos migratórios em torno, sobretudo de prósperos


centros urbanos (sejam eles no Oriente ou no Ocidente) devem
ser considerados como uma atividade econômica de primeira
importância, já que essencialmente consistiam na realocação e
exploração de recursos e forças de trabalho valiosos: refiro-me
ao abastecimento e ao uso de energias físicas e mentais de
pessoas com livre status. Desde o período clássico, as cidades-
45
Ver Gabrielsen 2001ª sobre a guerra naval e as pólis gregas.
46
Meiggs 1982: 116-53.
47
Xenofonte, Helênicas, VI, i, 11-12.
48
Finley 1973b: 154-76.

185
estado sempre dispostas a aumentar as suas populações de
cidadãos com reservas externas de pessoas (periódica ou
permanentemente) tornaram-se conscientes a respeito de três
fatores: 1) que a mão de obra era um recurso sempre escasso; 2)
que, tal como certos outros tipos de recursos (por exemplo,
aqueles de ordem estratégica) ela, em algumas ocasiões, não
poderia ser obtida, mesmo nos casos em que se possuísse o
poder de compra necessário; e 3) que sua indispensabilidade
para não somente uso militar mas também para
engrandecimento civil dos estados fazia com que ela fosse
considerada algo que valesse a pena ser disputado, muitas vezes
até mesmo de modo feroz.49

Isso possui implicações para a natureza e a extensão do système-monde político


que estamos examinando. Muito frequentemente, as discussões a respeito do sistema
político grego têm incluído apenas organizações políticas da Grécia continental e
excluído o restante das comunidades gregas e não-gregas de outras partes do
Mediterrâneo. A justificativa teria que ser que provavelmente as ligações diretas
político-militares entre as comunidades da Grécia continental e as demais organizações
políticas teriam sido um tanto secundárias e restritas. Isso é verdade até certo ponto,
embora a intensidade de tais vínculos tenha sido, provavelmente, menosprezada. Mas
uma vez que somos capazes de entender que até mesmo o funcionamento do sistema
político continental dependia dos fluxos de recursos, que tinham uma vasta extensão
mediterrânea, torna-se então importante pensar nesses termos mais amplos. É possível
se perguntar, por exemplo, sobre a relação entre a migração de milhares de gregos rumo
a uma Sicília repovoada após a expedição de Timoleão 50 e a derrota das pólis gregas
para a Macedônia: teria o escoamento de mão de obra disponível às pólis gregas
desempenhado um papel fundamental em sua derrota?

ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS, O SYSTÈME-MONDE E FORMAS DE


MUDANÇA

Se reconhecermos que as organizações políticas não são entidades individuais,


mas partes de um système-monde político, então é preciso que diferenciemos claramente
as várias formas de interações e mudanças dentro desse sistema. O tratamento da pólis
como uma unidade individual embora unitária ajudou a obscurecer e a confundir a
variedade de formas distintas.
De acordo com Robert Gilpin51, podemos definir três formas de mudança. A
primeira i respei o à “na ure a os a ores ou e i ersas en i a es que comp em um

49
Gabrielsen 2001b: 221.
50
Talbert 1974: 146-60.
51
Gilpin 1981: 39-40; eu modifiquei os nomes que o autor dá às diferentes formas de mudança.

186
sis ema in ernacional” e po e ser chama o e mudança de ator. Ela está relacionada a
mudanças como a transformação para o sistema político arcaico composto por
organizações políticas gregas, para o modelo clássico composto por organizações
políticas gregas e um grande império (Persa) para o modelo helenístico com o
surgimento e a dominação dos grandes reinos helenísticos. O segundo tipo de mudança
a “mu an a na forma e con role ou governança de um sistema internacional; este tipo
de mudança será chamada de mudança sistêmica” por e emplo a mu an a e um
equilíbrio tripolar entre Atenas, Esparta e Pérsia no século V a.C. para o equilíbrio
anárquico a partir do IV século a. C.). erceira forma e mu an a “a mu an a que
pode ocorrer na forma de interações ou processos regulares entre as entidades em um
sistema internacional em curso; este tipo de mudança será rotulada simplesmente como
uma mudança de interação” Den ro essa esquematização podemos incluir, por
exemplo, a mudança de trocas principalmente culturais e encontros menos frequentes
políticos e militares entre as organizações políticas gregas no período arcaico para um
novo modelo de relacionamento, em que conflitos de fronteiras em uma região qualquer
poderiam acarretar uma guerra mais ampla entre todas as organizações políticas
gregas.52
A incapacidade de se diferenciar formas de mudanças distintas no système-monde
político cria problemas graves. Um exemplo é a famosa discussão a respeito do declínio
da pólis e a crise e queda de Atenas no final do século IV a.C.53. J.K. Davies tratou
desse discurso com sua usual lucidez. Ele argumenta que criar uma ligação entre os dois
temas e argumentar que a derrota de Atenas para a Macedônia tenha sido um aspecto
mais amplo do declínio da pólis seria algo pouco convincente porque:

ela oscila entre determinadas proposições a respeito de uma


pólis individual e proposições a respeito do sistema de cidades-
estado como um todo. Isso seria legítimo apenas, e tão somente
apenas, se elas fossem organismos do mesmo tipo com o mesmo
propósito, o que na verdade elas não são, embora a distinção
seja obscurecida por conta do nosso hábito pernicioso de usar os
ermos ‘ enas’ e ‘ spar a’ quan o, na verdade, estamos nos
referin o aos ‘recursos e erra inheiro e pessoas con rola as
por Atenas e Esparta em um dado momento particular.54

As razões por detrás da perda de uma posição hegemônica por parte de Atenas
parecem ter menos a ver com a crise geral da pólis, ou da pólis Ateniense, e mais com
mudanças de relacionamentos em conjunturas dinâmicas de relações interestaduais.

[Isto nos remete] ao acordo de poderes do século IV a.C. quando


o ritmo da mudança era rápida, para desvantagem de Atenas,
52
Ver o caso dos Lócrios e Fócios em torno de 390 a.C. e a eclosão da guerra de Corinto; Hellenica
Oxyrhynchia, XI I I , 3–4.
53
Uma abordagem clássica pode ser encontrada em Mossé 1962; a questão é reexaminada por Eder 1995.
54
Davis 1995:34.

187
haja visto o caso da transferência de tecnologia. Em um contexto
grego, Atenas esteve à frente dos demais em alguns aspectos de
tecnologia militar (especialmente na guerra naval e na guerra de
cerco) e na tecnologia administrativa (dirigindo um império).
Essas vantagens competitivas foram sendo gradualmente
desgastadas, não porque os atenienses se esqueceram de suas
habilidades, mas porque os outros os copiaram e/ou
desenvolveram suas próprias técnicas... O mais importante
provavelmente é o que é menos visível: os modos pelos quais
um Felipe, ou um Jasão, ou um Mausolo fizeram para as suas
próprias áreas o que Atenas tinha feito para o Egeu no século V
a.C.. Ela havia imposto um sério regime fiscal com a
experiência administrativa para executá-lo, colocando as
engrenagens para funcionar na forma de estradas, fortes e novas
cidades e, em geral, aproveitando assim os recursos de modo a
fazer desta ou daquela expressão geográfica uma verdadeira
comunidade política unificada. É esse desenvolvimento que
comporta a principal pressão do ambiente externo no século IV
a.C. em Atenas, muito mais que as ambições e as capacidades de
bloqueio por parte de Tebas ou Esparta, em especial porque esse
desenvolvimento se deu acima de tudo dentro das áreas que
Atenas considerava como fazendo parte de sua esfera de
influência – Tessália, Macedônia, Trácia, Ásia Menor e Sicília.55

O tempo é importante para a história e não podemos nos abstrair de nossos


modelos e conceitualizações quando as coisas acontecem. No caso das relações
interestatais, como de fato em qualquer outro tipo de relacionamento, as formas
políticas que interagem podem estar em diferentes ou variantes escalas de tempo e
conjuntura. E a conjuntura de sua interação é absolutamente crucial.
O problema se manifes a quan o por e emplo oses inley fala so re “o
fracasso dos gregos da Sicília em garantir, com sucesso, o modelo de vida da cidade-
es a o ”56 Isto é, como se houvesse um modelo de vida da cidade-estado que poderia ser
encontrado em alguma região da Grécia continental e imitado. Estamos lidando, mais
uma vez, com uma visão evolucionista do passado: existe, assim, uma forma de
sociedade grega que teve de evoluir para sua forma do século V, a partir da qual ela
poderia apenas entrar em declínio do século IV em diante. Na verdade, o que aconteceu
foi que uma multiplicidade de caminhos divergentes regionais e interregionais foi
obscurecida pelo crescimento sem precedentes da arché ateniense e seu antagonismo
mortal com Esparta. É, principalmente, devido a Tucídides que tendemos a perceber o
século V a.C. através do prisma único do antagonismo entre as duas pólis imperiais,
ele an o ao mesmo empo es a con un ura empor ria o s culo a C à “ r cia

55
Davies 1995: 35.
56
Finley 1979: 48.

188
Cl ssica” que cons i ui a me i a a normali a e; um pon o de vista a partir do qual
tudo o que restava era ou um precursor arcaico ou um declínio proto-Helenístico.
Ao invés disso, uma alternativa seria observar o século VI a.C. em toda a sua
pluralidade divergente com: pólis ampliando seu próprio território e subjugando as
populações derrotadas (Esparta);57 pólis dominando regiões inteiras, na medida em que
expulsavam seus antigos habitantes (Argos);58pólis dominando regiões inteiras, na
medida em que incorporavam-nas em sua organização política (Élida); 59 comunidades
em expansão a partir da criação de redes de apoio de interesses com apoikiai
dependentes em áreas particulares (Tasos, Corinto e Mileto);60 tiranos tentando assumir
o controle de áreas inteiras do mar Egeu (Polícrates de Samos,61 Histieu de Mileto62);
tiranos criando apoikai e controlando redes de comunidades (Cípselo de Corinto,63
Psístrato64); cidadãos magnatas promovendo seus próprios principados em uma
variedade de relações com suas pólis (Milsíades e o Quersoneso65). Essa mesma
variedade poder ser encontrada no século IV a.C., depois que o antagonismo bipolar
desaparece: criação de organizações políticas federais com comunidades
compartilhando direitos de casamento e propriedade (koinon Calcídeo);66 ethnê
incorporando outras comunidades (os aqueus e Calidão em 389 a.C.);67 reis criando
organizações políticas federais sob os seus domínios (os reis molóssos e o koinon de
Épiro);68 magnatas tomando controle de grandes organizações políticas para criar a sua
própria arché (Jasão de Feras); 69 magnatas criando seus próprios principados (Mausolo,
Cária e as pólis gregas );70 cidadãos criando suas próprias redes e vínculos de riqueza,
poder e aquisições territoriais através de relações variadas com suas pólis (Ifícrates,
Chábrias,71 Agesilau, Arquídamo72); e é claro, a velha história que ainda continua da
expansão através da anexação de territórios (Élida), dominando outras comunidades
dentro de uma estrutura federal (Tebas) e criando cleruchias (Atenas).
Espero que não haja necessidade, no presente contexto, de destacar que os
mesmos processos continuaram a ocorrer ao longo do século V a.C., ainda que,
naturalmente, o antagonismo bipolar central seja dominante. E, certamente, se vistas
a ra s esse pano e fun o as his rias ‘an malas’ as comuni a es a agna r cia,
L ia Ásia enor e o ar egro que n o se encai am no pa r o i eal a ‘ r cia
57
Shipley 1997.
58
Pierart 1997.
59
Roy 1997.
60
Graham 1983: 71-153.
61
Heródoto, III, 39.
62
Histieu e Mircino na Trácia: Heródoto, V, II; 23-25; Aristágoras e Mircino: V, 126.
63
Salmon 1984: 209-17.
64
Berve 1967: 61-3.
65
Loukopoulou 1989: 67-94.
66
Xenofonte, Helênicas, V, ii, 19; ver Zahrnt 1971.
67
Xenofonte, Helênicas, IV, vi, I.
68
Davies 2000.
69
Diodoro, XV, 60, I-4; Xenofonte, Helênicas, VI, i, 4-16.
70
Hornblower 1982: 107–37.
71
Ver Pritchett 1974, que tende a minimizar as suas estratégias e motivos pessoais.
72
A respeito de Agesilau e Arquídamo, ver Cartledge 1987:314-30.

189
Cl ssica’ eriam uma apar ncia mui o iferen e o in s e ser por an o o i eal
clássico com o qual todo outro período deveria ser comparado, o século V a.C. torna-se
uma conjuntura altamente instigante: no lugar de escrever um testemunho teleológico de
como a história grega foi pré- e ermina a a se ornar o “mun o cl ssico” o s culo
a.C. e, levado ao seu declínio evolutivo do século IV a.C., o padrão do século V a.C.
torna-se, assim, um padrão altamente idiossincrático, que precisa de uma explicação. 73
Por que e como as várias e divergentes imagens dos séculos VI e IV a.C. foram
reduzidas pela imagem bipolar do século V a.C.? Ao invés de uma narrativa linear e
atenocêntrica que parte do surgimento da pólis no período arcaico, o seu apogeu no
clássico e seu declínio e substituição pelos koina e monarquias helenísticas, precisamos
de uma nova narrativa histórica que leve em consideração as questões discutidas
acima.74

73
Ver os comentários de Ma 2003:36-7.
74
Davies 1978, 1997a fornece um bom exemplo de como alcançar isso.

190
CAPÍTULO 9

Pólis e tempo

O objetivo desse capítulo é fornecer um quadro temporal para o estudo da


história grega; ele servirá como acompanhamento aos quadros analíticos e espaciais que
foram apresentados nos capítulos anteriores. Vimos como o eurocentrismo modelou a
construção de temporalidades nas quais a história grega foi estudada ao longo dos
últimos dois séculos. O capítulo 5 procurou demonstrar que a temporalidade que
justapõe a antiguidade e modernidade, ou que vê a antiguidade apenas através do prisma
da emergência da modernidade, é profundamente problemática e equivocada. No que se
segue exploro uma diversidade de quadros temporais diferentes para o estudo da história
grega.

AS CONSEQUÊNCIAS DAS TEMPORALIDADES EUROCÊNTRICAS

A construção da história grega como um campo dentro de uma perspectiva


eurocêntrica teve um duplo efeito. De um lado, a incorporação da história grega numa
metanarrativa eurocêntrica precisava da construção da história grega como uma
entidade com começo, apogeu e fim; precisava de uma narrativa nacional homogênea;
de outro lado, a história grega existia como entidade apenas na perspectiva de como ele
funcionava como um estágio na evolução do Ocidente.
Vou lidar primeiro com essa segunda questão. Podemos chamar essa perspectiva
de visão túnel do tempo.1 Trata-se da ideia de que existe uma espécie de trajetória linear
na história que se move em última instância em direção a modernidade. É a imagem de
um trem (um verdadeiro Orient Express de fato), que passa por várias estações enquanto
move-se para frente para alcançar a modernidade (da Mesopotâmia à Grécia, à Roma, à
Itália medieval, à Holanda, à Inglaterra industrial, etc.). As estações não têm
importância, não têm nenhuma história delas mesmas: a sua única função é receber e
despachar o tremo do progresso em sua jornada para a modernidade.2 A história das
estações depois que o trem partiu é uma história paroquial deixada os especialistas e
com pouco impacto nas percepções naquilo que acontece dentro do túnel onde o trem se
move.3
Vimos como funciona essa perspectiva temporal no capítulo sobre a cidade
consumidora. É a cisão túnel eurocêntrica que legitima uma comparação entre as antigas
cidades mediterrâneas e as cidades do ocidente medieval/moderno. O resultado é a
abstração da história antiga grega das história contínua do Egeu e o Mediterrâneo
oriental. O impacto dessa abstração foi tremendo. Um de seus efeitos é a incompreensão

1
Sobre o termo, ver Blaut 1993: 3-8
2
Sobre uma narrativa não teleológica da história europeia, ver Fontana 1995.
3
Sobre uma tal perspectiva a respeito do Oriente Próximo, ver Larsen 1989.

191
e a representação errônea de várias características da história grega. 4 A colonização
grega é um bom exemplo. A expansão de assentamentos gregos na Ásia Menor, Mar
Negro, no sul da Itália e na Sicília ao longo do período arcaico não foi um aspecto único
da história mediterrânea; de fato, é impressionante notar que os gregos do Egeu
voltaram-se para as mesmas áreas (Ásia Menor, Mar Negro, Egito junto com os Balcãs)
em uma nova fase de expansão externa ao longo dos séculos XVIII e XIX AD. 5
Certamente, é verdade que muitos aspectos da colonização grega antiga são diferentes
da expansão mais recente (as colônias gregas antigas eram frequentemente autônomas,
enquanto nas paroikies do século dezoito nunca foram assim); mas espero que não seja
necessário argumentar extensivamente que a colonização grega antiga vai parecer
bastante diferente de suas colorações presentes se for abordada a partir de uma
perspectiva histórica mediterrânea.6
Precisamos fornecer outras perspectivas temporais ao estudo da história antiga
diferentes da perspectiva eurocêntrica. Até recentemente, as únicas perspectivas
temporais de transformação histórica que existiam eram marcadamente eurocêntricas. A
história era apresentada como o desenvolvimento que levava ao surgimento do Ocidente
e a criação da modernidade. O resto das sociedades não ocidentais do passado ou
modernas ou tinham que construir um enquadramento temporal baseado no modelo
eurocêntrico, ou lhes era negado qualquer desenvolvimento ou mudança sendo
apresentadas como estáticas ou estagnadas.
As tentativas de escrever uma história econômica, social e política das
comunidades gregas giravam em torno de atitudes múltiplas e contraditórias ao
paradigma ocidental. Antes da Segunda Guerra Mundial, a atitude preponderante era
aquela dos modernistas que transformaram a história grega em um signo precursor do
paradigma ocidental; o desajuste óbvio entre suas narrativas e os fatos reais por sua vez
impulsionaram as abordagens primitivistas que forneciam uma proposta diferente, mas
estavam baseadas, novamente, no paradigma ocidental: se a história antiga grega não se
parecesse com aquilo que o paradigma ocidental dizia, então tratava-se de uma história
de falhas, estagnação e círculos viciosos.

Hipoteticamente, tivesse o Império Romano abarcado o mundo


civilizado, como os panegiristas diziam, não há razão pela qual a
Europa, Ásia ocidental, e o norte da África não sejam ainda hoje
governados pelos imperadores romanos e a América não
pertença ainda aos peles-vermelhas.7
Um círculo vicioso de males estava a pleno vapor. O fim
do mundo antigo foi acelerado por sua estrutura social e política,
por seu sistema de valores profundamente arraigado e
institucionalizado, e sustentando isso tudo, pela organização e

4
Discuti essas questões em Vlassopoulos n.d.
5
Tsoukalas 1977: 269-371; Kardasis 2001.
6
Ver Jacoby 1994.
7
Finley 1973b: 176.

192
exploração de suas forças produtivas. Eis aí, se alguém desejar,
uma explicação econômica do final do mundo antigo.8

Tanto primitivistas quanto modernistas estavam enganados, embora por diferentes


razões que já foram analisadas.9
Contudo, trabalhos recentes na pesquisa histórica fornecem-nos uma saída para
o impasse. A descoberta de que o Oriente moderno teve o seu próprio desenvolvimento
histórico e não apenas estagnação e círculos viciosos, embora o seu desenvolvimento
histórico não tenha seguido os padrões ocidentais, abre novos enfoques extremamente
estimulantes.10 A expansão dos mercados, a extensão da moeda, o crescimento das
manufaturas comerciais, o desenvolvimento de redes financeiras sofisticadas, o
surgimento de capitalistas influentes e de formas de estado mais burocratizadas foram
descobertos não apenas na Europa, mas ainda no sul da Ásia, China e na África
ocidental.11 Entretanto, as interconexões entre esses vários aspectos da transformação
eram diferentes no Oriente e na Europa moderna; tiveram também resultados
claramente diversos.12
O impacto coletivo de tudo mencionado acima é desafiar a lógica do próprio
paradigma ocidental: a ideia de que o emergiu na Europa ocidental do século XIX foi de
certo modo uma consequência natural e necessária do desenvolvimento humano; um
objetivo o qual a humanidade estava em ultima instância destinada a alcançar; um
estado que períodos e civilizações anteriores falharam em alcançar e apenas o Ocidente
moderno com suas características peculiares inatas foi capaz de atingir primeiro; uma
con i o que iria ifun ir em l ima ins ncia anomalias glo ais “arcaicas”
“ ra icionais” entre outras. Nas palavras de um historiador indiano,

É claro, que esses desenvolvimentos [acadêmicos] fazem parte


de um grande momento para os historiadores do sul da Ásia. O
que é menos visível é o desafio que eles colocam para os
historiadores da Europa, pois as ideias que os estudiosos do sul
da Ásia estão rejeitando formam a base da antítese clássica entre
a Europa e a Ásia. Essa antítese, que opõe uma Europa dinâmica
a um sul da Ásia tradicional e estático embasa a historiografia
europeia. Sua rejeição, portanto, não é nada mais do que um
apelo para um completo repensar do passado europeu.13

Essas descobertas têm uma relevância direta para o estudo da história grega.
Podemos agora conceber uma história grega que não será uma narrativa de o quão
intimamente os gregos se aproximaram dos gregos modernos, ou do porquê deles terem

8
Finley 1973b: 176.
9
Ver a crítica de Nafissi 2005: 235-83.
10
Prakash 1990; Wong 1997; Bayly 2002.
11
Ver Perlin 1994a; Wong 1997; Brook e Blue 1999; Pomeranz 2000.
12
Washbrook 1988.
13
Parthasarathi 1998: 105–6.

193
falhado em fazê-lo; ao invés disso, agora começa a se tornar possível escrever uma
narrativa baseada no por que e como os gregos realmente fizeram o que fizeram.
Podemos começar a observar a história grega como um desenvolvimento histórico que
não leva necessariamente ao surgimento do Ocidente, mas que possivelmente levou a tal
e compartilhou elementos com o desenvolvimento histórico de sociedades fora dele. 14
Não há ambiguidade no fato de que em um tal experimento historiográfico inovador
nossos pro lemas resul em e que “enquan o a narra i a euroc n rica o
desenvolvimento humano foi altamente linear, essa linearidade mesma significava que
ela podia ser apresentada como uma narrativa. Diferentemente, a abordagem
policêntrica da história humana é por sua própria natureza não linear e, portanto, mais
if cil e ser apresen a a em forma narra i a ”15 Não existe nenhuma sugestão clara
sobre como esse problema poderia ser superado; mas há certamente um debate crescente
entre os historiadores em outros campos, e os historiadores da antiguidade teriam
apenas a ganhar prestando atenção e contribuindo com eles.16 Vivemos, provavelmente,
em um período em que a realidade e a pesquisa acadêmica colocam em questão as
premissa de todo o empreendimento da historiografia moderna; mas ao mesmo tempo
eles oferecem a ou uma saída para o impasse.
Tomemos agora a construção da história grega como uma narrativa unificada.
Algo que era extremamente problemático na medida em que os gregos não tinham
centro nacional, estado nacional, estavam espalhados por todo o Mediterrâneo e pelo
Mar Negro. A solução foi a construção da história grega como uma forma de história
quase nacional, como a de uma entidade (Grécia antiga) que podia ser justaposta a
outras entidades (Roma).
Havia diferenças importantes entre compreensões diversas da história grega
como uma forma de história nacional, dependendo de se tal história era concebida como
a de uma área geográfica (Grécia, qual seja a maneira em que isto seja definido), de uma
entidade imaginária (como, por exemplo, falamos de Grécia e Roma) ou de um povo (os
gregos). Apenas para exemplificar, a história da Grécia concebida como uma entidade
imaginária pode terminar com a batalha de Queroneia em 338 AEC (como em Grote)
porque uma tal entidade imaginária pode ter um certo fim, a partir de como ela é
definida; mas isso dificilmente pode acontecer com uma história dos gregos, já que as
populações de língua grega continuaram a existir após Queroneia (e de um certo modo,
ainda existem atualmente). É característico que, com poucas exceções, nenhum
especialista ocidental tentou escrever uma história dos gregos;17 a história da Grécia tem
um determinado final (seja o período clássico ou helenístico) e então é seguida pela
história de Roma. Não estudamos os gregos a partir da perspectiva de como um povo
em particular se desenvolveu na história, mas de um certo ponto em diante (seja o
período helenístico ou romano) presumimos que eles estão sob a história de uma outra
entidade imaginária (seja helenismos, ou Roma). Mas eu não quero entrar aqui numa

14
Ver Nafissi 2005: 257-62.
15
Birken 1999: 18.
16
Bender 2000a; Guha 2002; Stuchtey e Fuchs 2003.
17
Ver Miliori 2000. A exceção mais notável é certamente George Finlay.

194
discussão das ambiguidades e contradições entre uma História da Grécia eurocêntrica e
uma História da Nação Grega etnocêntrica.18
Durante o século XIX a construção das identidades nacionais modernas e as
lutas para criar novos estados nacionais legitimaram uma leitura nacionalista da história
grega.19 A história grega era vista a partir da perspectiva da resistência à agressão
estrangeira, o empenho pela unidade nacional e pela criação de um estado nacional. 20 A
aparente falta de habilidade ou fracasso dos gregos para criar uma tal unidade e um
estado era assunto de longas e calorosas discussões.21 Mas depois da Primeira Guerra
Mundial quase todas as nacionalidades na Europa conquistaram seu próprio estado, e as
fronteira e territórios permaneceram em grande medida os mesmos até a década de 90; a
derrota da Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial foi um duro golpe às leituras
nacionalistas e racistas da história. Portanto, da década de 50 em diante a velha meta
narrativa da busca da unidade e unificação perdeu muito de seu poder embora jamais
tenha sido superada completamente.22 Agora, era a pólis quem tinha um papel
proeminente em uma narrativa nacional da história grega. A pólis era acomodável a uma
narrativa da emergência, apogeu e declínio; e também tinha a vantagem de conjugar a
história social, econômica, cultural e política.
Existem muitos aspectos diferentes dessa periodização que são profundamente
problemáticos. As comunidades gregas estavam espalhadas por todo Mediterrâneo e
tinham uma variedade de trajetórias históricas; contudo, a necessidade de constituir uma
só evolução nacional unificada e homogênea resulta na exclusão da grande maioria
dessas comunidades das abordagens padrão da história grega, e sua segregação em
estudos locais de pequeno valor e influência para o resto da disciplina. Porém, se
tivéssemos tentados quebrar nosso tempo linear e compreender que a escala temporal de
uma grande pólis imperial é bem diferente da escala temporal de uma pólis pequena e
mediana, teríamos alterado nossas perspectivas sobre ambas as escalas. Nas palavras de
John Davies,

Uma história grega, desdobrada como foi em uma


multiplicidade de microhistórias regionais e cívicas, a maioria
das quais se fosse documentada, seria apenas esporadicamente,
apresentou – diferentemente da história romana – o agudo
problema técnico de costurar diferentes narrativas em diferentes
teatros de tal modo a se demonstrar tanto sua independência
como seus graus de interconexão. Isto, por sua vez, colocou o
desafio de equilibrar os negócios e as agendas dos grandes
jogadores (Atenas, acima de tudo, mas ainda Esparta,
Macedônia e Siracusa) de um lado contra aqueles de menor
porte, e de outro lado contra a presença crescente do Império

18
Sobre uma discussão dessas questões, ver Kyrtatas 2002: 91–131.
19
A relação entre nacionalismo e a escrita da história Thiesse 1999.
20
Funke 1996.
21
Ver, por exemplo, Mathieu 1925.
22
Will 1956 é uma boa indicação na mudança das atitudes.

195
Persa aquemênida, seus predecessores e seus sucessores. Com
efeito, se não fosse pela influência poderosa da tradição cultural
helenocêntrica, seria tentador – senão mais racional – escrever a
maior parte da histórica político-militar grega como uma
subparte da história persa.23

Ademais, a periodização precisa ser conectada com questões espaciais. 24 Cada


comunidade ocupa um lugar no espaço que não pode ser abstraído de sua historia; uma
história social, política e econômica que ignora os parâmetros espaciais de cada
processo está fadada a ser inconclusiva e equivocada; além disso, espaço significa que
a velha distinção entre fatores e influências externos e internos é ilusória; internos e
externo tem significado apenas se especificamos qual é a unidade de análise. Conferir a
uma comunidade um lugar no espaço significa que necessariamente ela se relaciona
com outras comunidades que ocupam um espaço fronteiriço concomitantemente; que a
interação com aquelas outras comunidades não é um fator secundário ou externo, mas
delimita o campo dos processos e redes que tem lugar. Isso quer dizer que cada
abordagem, tal como aquela da cidade consumidora, que tenta definir seu fenômeno
como uma entidade solitária, como se pudesse existir sozinho e não em relação com
outras comunidades, é seriamente deficiente. A grande maioria das definições e
abordagens da pólis sofre precisamente dessa deficiência: elas definem a pólis como
uma unidade solitária como se a pólis pudesse existir sozinha e não apenas em um
sistema de interações com outras formas políticas e comunidades que define o campo de
interações e processos entre elas. Não podemos escrever a história grega adequadamente
a menos que seja uma história no espaço: isto é, de uma parte de um mundo
Mediterrâneo próximo e Oriental mais vasto.
A diferença entre um sul e leste do Egeu (Grécia central, Peloponeso, ilhas
egeias “progressis a” e e r pi o esen ol imen o e um con inen e oci en al e nor e
(Etólia, Épiro ace nia mais “a rasa o” e e len o esen ol imen o em
25
conhecida pelos especialistas; de fato, é interessante notar que essa divergência
regional esgarça o afastamento entre as histórias micênica e arcaica/clássica.26 Essa
divergência foi explicada em termos evolucionistas: entre regiões de ethnos mais
primitivas, representando uma estagnação em uma fase mais antiga de desenvolvimento
e as regiões de pólis que galgaram um degrau além nas escadarias da evolução.27
Já demonstramos por que esta distinção entre ethnê e pólis é altamente
equivocada.28 O que deve ser enfatizado aqui é o papel do espaço: é por acaso que as
comunidades que entram em contato e em uma variedade de relacionamentos com
sociedades e formas políticas mais avançadas e complexas do Mediterrâneo oriental
sejam aquelas que desenvolvem arranjos políticos, sociais e econômicos mais

23
Davies 2002: 228.
24
Ver Berlin 1980.
25
Ver Bintliff 1997.
26
Ver Halstead 1994.
27
Ehrenberg 1960: 24–7.
28
Ver o capítulo 8.

196
complexos? E que a falta desses contatos e pressões intensificadas no ocidente e no
norte levem a arranjos menos intensivos e complexos? Em outras palavras, uma
periodização da história grega tem que levar em consideração os diferentes arranjos
espaciais que diferentes regiões do Egeu e de outras áreas habitadas por comunidades
gregas mantêm entre si e com regiões não gregas.

TEMPO LINEAR

Os historiadores da antiguidade aceitaram uma temporalidade e uma


periodização única e linear: dividimos usualmente a história da antiguidade grega nos
períodos micênico, obscuro, arcaico, clássico, helenístico e romano. Essa periodização
remonta à tentativa de Winckelmann 29de dividir por épocas a história da arte grega. Ela
foi adotada subsequentemente pela história política em que os períodos foram divididos
por eventos significativos: as guerras pérsicas marcaram a divisão entre os períodos
arcaico e clássico, a batalha de Queroneia ou a morte de Alexandre separaram o clássico
do helenístico, a batalha de Pydna ou Actium separaram o helenístico do romano.30 Ao
longo do tempo, a restrição original da narrativa histórica à história política e militar foi
superada: aspectos sociais, culturais e econômicos foram emancipados das narrativas
estáticas e acrônicas das Antiquitates e passaram a ser apresentadas como fenômenos
interligados caracterizando cada período e constituindo parte do desenvolvimento
histórico. Portanto, a periodização original politicamente orientada veio a abarcar a
história social, econômica e cultural.31 Assim sendo, chegou-se a um esquema de
periodização que dividia a história política, social, econômica e cultural nos mesmos
períodos distintos e autônomos. Ao mesmo tempo, a descoberta da civilização micênica
e da idade obscura adicionou novos períodos ao esquema que eram criados não apenas
por critérios políticos. 32
Ainda abraçamos uma forma de periodização do século XIX sem tentar construir
qualquer esquema alternativo. O esquema corrente baseava-se no conceito de Zeitgeist
estabelecendo que cada período era definido por certo espírito; em uma compreensão
funcionalista de que todos os aspectos da vida humana devem ser coerentes e formar um
equilíbrio33; e numa percepção evolucionista de que todos os aspectos das comunidades
humanas se movimentam no mesmo passo e na mesma direção.34 Poucos especialistas
provavelmente aceitariam explicitamente essas pressuposições hoje em dia. E mesmo
assim, nenhuma periodização alternativa emergiu.

29
Haskell 1991; Potts 1994: 11–46.
30
Infelizmente, existe muito pouco trabalho historiográfico sobre a periodização da história grega. Sobre
a construção do período helenístico, ver Bichler 1983; Canfora 1987.
31
Esse desenvolivmento está associado com o trabalho de Jacob Burckhardt que foi o primeiro a
apresentar uma tal periodização da história social, cultural, política grega: o homem heróico, o homem
agônico, o homem do quinto século, o homem do quarto século, o homem helenístico. Ver Nippel 1998.
32
Ver Morris 1997a.
33
Ver Perlin 1985a, 1994b.
34
Para as origens novescentistas do funcionalismo e evolucionismo, ver Burrow 1967.

197
Meu argumento é que essa pressuposições estão equivocadas. O funcionalismo
está errado porque esse todo imaginário não existe. Cada instituição, prática ou
processo não serve ao mesmo fim na mesma direção: ocupam diferentes níveis, em
diferentes contextos, em diferentes escalas temporais e espaciais.35 O serviço
mercenário e o serviço cidadão, ou a ideologia/política da pólis e a ideologia/política
aristocrática não são práticas incompatíveis minando uma a outra, como numa análise
funcionalista, ou estágios sucessivos de crescimento/declínio, como nas análise
evolucionistas: são apenas campos diferentes de atividades em diferentes níveis e
contextos. (E isto não significa que todas as práticas sejam sempre compatíveis: mas
apenas uma análise histórica pode mostrar quando e como elas colidem.) Alguns
especialis as e pressaram isso a ra s o concei o e he erarquia “um sis ema
heterárquico é um sistema em que cada elemento pode ser não classificado de acordo
com outros elementos ou possuir o potencial para ser posicionado em um certo número
e formas iferen es” 36 A existência do sistema não significa a existência de um
sistema. As várias instituições, práticas e processos não formam entidades claras e
delimitadas com funções mecânicas: são certamente interligadas, mas numa variedade
de configurações cambiantes com extensões temporais e espaciais diferentes; e todas
elas não seguem necessariamente os mesmos ritmos e têm a mesma direção.
Ao mesmo tempo, o evolucionismo é igualmente problemático: se ao invés de
nossas entidades emergindo, desenvolvendo-se, declinando e movendo-se em um
padrão linear de progresso (ou regressão), substituirmos uma imagem de uma variedade
de níveis, numa variedade de configurações espaciais e com uma variedade de escalas
temporais, conjunturas e ritmos, nossa abordagem deverá necessariamente modificar-
se.37 Uma combinação de enfoques funcionalistas e evolucionistas é o efeito bola de
bilhar. Se as sociedades, economias e estados são unificados como entidades distintas e
separadas, então a única forma de interagir é como bola de bilhar: um agente externo
(não pode ser outra coisa) gera vibrações transmitidas de uma bola a outra. Esta é a
lógica clássica do difusionismo: as bolas não têm um espaço real; elas ocupam um
espaço apenas na medida em que um agente externo as coloca em contato, o que
necessita de um espaço, mas meramente como substrato, exterior a bola em si mesma.
Elas não têm um tempo real: uma bola de bilhar é a mesma, seja de manhã ou a tarde,
tenha um jogador prévio jogado na mesa de sinuca ou não. A partir dessas observações,
eis o porquê de que tanto o efeito bola de bilhar quanto o evolucionismo sejam
enganadores. Se as bolas de bilhar não existem como entidades claramente delimitadas,
mas antes mudam de forma e configuração, então a imagem da bola de bilhar induz ao
erro; e as entidades compactas necessárias à qualquer abordagem evolucionista não
mais existem.
A implicação da minha análise é que devemos abandonar o tempo uniforme e
linear da narrativa nacional baseada na pólis e aceitar as múltiplas temporalidades e
durações do tempo histórico. Os vários níveis de análise que apresentamos são

35
Ver Yoffee 1979, 1988.
36
Crumley 1987: 156; para uma aplicação dessa teoria à Idade do Bronze em Chipre, ver Keswani 1996.
37
Ver, Yoffee 1993.

198
caracterizados por várias formas de temporalidades; e muito frequentemente as
temporalidades de um nível acabam por tomar uma direção diferente das
temporalidades de outro nível. Tudo isso deveria ser algo ultrapassado. Mais de meio
século atrás, Fernand Braudel publicou o seu revolucionário Méditerranée;38 aí ele
argumentava contra o tempo linear da histoire évènementielle, propondo o seu esquema
de três durações de tempo histórico (o evento, conjoncture, longue durée, ou
alternativamente histoire évènementielle, história social, geohistória).39
Infelizmente, os historiadores da antiguidade permaneceram indiferentes a
descoberta de Braudel.40 Eles preferiram se ater a uma temporalidade linear de
acontecimentos e períodos seguindo-se claramente um após o outro; e os únicos níveis
de análise temporal são ainda um período (o arcaico, o clássico e o helenístico), ou um
século (por exemplo, Atenas do quinto século) indiferenciados. Além disso, a maioria
dos trabalhos em história antiga mantêm ainda uma crença no fato de que a periodização
da história social, política e econômica é essencialmente a mesma: raramente há
qualquer esforço para explorar se a periodização que se fundamente na história política
(por exemplo, o período clássico) faz sentido para a história social, ou se alguns
processos seguem suas próprias temporalidades mesmo que contraditórias. Os
historiadores da antiguidade surpreenderam-se ao perceber que a periodização política
não coincidia com a periodização da paisagem da exploração e assentamento, tal como
revelada pelas prospecções arqueológicas intensivas. Ao invés da periodização política
(arcaico, clássico e helenístico), as prospecções intensivas encontraram uma
periodização diferente (arcaico/clássico inicial, clássico tardio/helenístico); além disso,
é claro que, semelhanças gerais a parte áreas diferentes seguiram seus próprios
caminhos.41 E com tudo, apesar de todas essas descobertas, pouca coisa mudou na
forma como os historiadores da antiguidade recortam períodos e estudam a história da
Grécia.42
O meu argumento não é o de que o retorno a Braudel per se vai resolver nossos
problemas. Tem havido várias críticas ao trabalho de Braudel que se justificam.43
Braudel tendia a enfatizar a longue durée conferindo muito menos atenção às
temporalidades médias e curtas que ele tão famosamente caracterizava como poeira.44
Ademais, os três níveis de análise de Braudel permanecem como três níveis separados:
ele fracassou em mostrar como os três níveis interagiam e se interpenetravam, e como
conjunturas históricas específicas ditavam ou influenciavam desenvolvimentos
históricos de um modo específico e não de outro. Dito isso, o valor das descobertas de
Braudel das múltiplas durações do tempo histórico permanece enorme. A única forma
de melhorar seu trabalho e obter sucesso na ligação das várias durações temporais,

38
Braudel 1972, originalmente publicado em 1949.
39
Ver também Braudel 1980, 25-54
40
Embora os arqueólogos da Grécia, ao contrário dos historiadores, tenham mostrado interesse; ver as
duas conferências sobre os Annales e Arqueologia em Bintliff 1991a; Knapp 1992.
41
Ver, Alcock 1993: 217–20, 1994; Bintliff 1997.
42
Ver recentemente Osborne 2000; Hornblower 2002; Rhodes 2006.
43
Ver, por exemplo, Kinser 1981.
44
Braudel 1973: 20–1, 901–3.

199
juntamente com a importância das conjunturas históricas e configurações espaciais, é
pela análise específica de circunstâncias históricas concretas. Não posso fornecer nada
de mais útil no nível de análise geral e abstrato que vem sendo empregado nesse estudo.
Portanto, precisamos relativizar nossas periodizações. Devemos aceitar que não
há nenhuma razão necessária para que a história política, econômica, social e cultural
precisa seguir a mesma periodização; que diferentes periodizações podem se encaixar
em diferentes questões à mão; e que o elo entre as periodização de diferentes aspectos,
processos e instituições é historicamente contingente e não pode ser estabelecido a
priori. Além do mais, a natureza conjuntural da ligação entre diferentes escalas
temporais implica que o tempo não qualitativamente homogêneo. É a esta qualidade do
tempo que os gregos se referiam à palavra kairos: disso se segue que os acontecimentos
que têm lugar em momentos específicos adquiram importância excessiva por causa da
natureza da conjuntura.45 Um exemplo vindo das transformações na teoria científica é
apropriado:

A teoria do caos, em outras palavras, não significa que cada


pedaço de história seja igualmente caótico. A ação de duas
partículas de gás pode ter tido grandes implicações em um certo
estágio do desenvolvimento do nosso sistema solar; mas uma
vez que a ordem presente do Sol e dos planetas estava
emergindo, o movimento de trilhões de partículas poderia ter
contado como nada.46

Conjunturas como a da emergência da supremacia ateniense ou a queda do


império persa foram raramente estudas como tal na história grega: são antes tomadas
como adventos naturais, ou como coisas de acaso ou sorte. Ao invés disso precisamos
de estudo que levem em consideração o jogo entre uma diversidade de processos de
longa e curta duração e o papel qualitativo das conjunturas e eventos.

UMA TEMPORALIDADE DA PÓLIS?

Finalmente, as periodizações acima fundamentam-se em uma concepção da pólis


como uma etapa da história da Grécia. Existem alguns problemas sérios com esta
periodização; alguns já foram apontados; outros o serão em breve. O primeiro problema
concerne às exclusões: efetivamente, o esquema de história da Grécia baseada na pólis
exclui os períodos minoico/micênico da história grega, que são concebidos como
dominados por monarquias redistributivas, e foram abandonados como campo de estudo
aos filólogos do linear B e os arqueólogos da pré-história; e os períodos helenístico
tardio e romano. Nos períodos helenístico e romano a história das comunidades gregas
deixa de ser um campo independente de estudo; agora ela está compreendida sob

45
Ver os comentários de Wallerstein 1988: 146–8.
46
Birken 1999: 21–2; ver também Perlin 1985a: 220–2.

200
entidades diferentes que são o mundo helenístico, o império romano, respectivamente.
Não há história da Grécia helenística nem uma história da Grécia na época helenística
apenas para dar um exemplo.
Essas exclusões baseiam-se numa premissa fundamental: a concepção da pólis
como uma organização política autônoma, compreendendo uma cidade e seu território e
governada por sua comunidade de cidadãos. Nessa premissa, as formas política
micênicas podem ser excluídas como monarquias territoriais controlando regiões
inteiras; enquanto as pólis helenísticas podem ser subordinadas a diferentes entidades, já
que a elas faltava autonomia política, e eram dominadas por monarquias helenísticas
mais vastas e pelo império romano. Infelizmente, a premissa é seriamente indutora de
erros. Exploramos extensivamente a enorme variedade de formações políticas gregas
dos períodos arcaico e clássico. Enquanto muitas comunidade compreendiam apenas
uma cidade e seu território, várias outras compreendiam regiões inteiras ou tentavam
controlar regiões por uma variedade de formas de incorporação política. Também era
sempre o caso de que os grandes poderes do mundo grego arcaico e clássico abarcavam
muito mais que uma cidade e seu território: Esparta controlava dois quartos do
Peloponeso; Atenas, toda região da Ática; Argos controlava todo planície da Argolia;
Tebas, todas as vezes em que foi poderosa, controlou a maior parte da Beócia; e isto
para não mencionar pólis como de Siracusa ou Cirene.47 Esses dois últimos exemplos
introduzem uma segunda qualificação: as pólis grega eram governadas costumeiramente
por suas comunidades de cidadão; mas frequentemente acontecia que as formações
políticas gregas fossem governadas por reis, tiranos ou viessem a estar sob controle de
poderes externos gregos ou estrangeiros.
Finalmente, se tomarmos a autonomia política como critério, descobriremos
pouquíssimas pólis gregas que eram autônomas em qualquer sentido significativo, desde
o período em que temos uma primeira narrativa política após as Guerras Pérsicas em
480 AEC até a Batalha de Queroneia em 338 AEC. Desde 545 AEC as cidades da Jônia,
o berço da filosofia e do templo jônio, estiveram sujeitas ao domínio persa, ateniense,
espartano e hecatomida.48 Do final do século seis em diante muitas, ou a maioria a cada
vez, das cidades da Sicília e do sul da Itália, outro berço da filosofia e da ciência,
estiveram sob o domínio dos tiranos de Siracusa e Gela,49 os fenícios e os diversos
povos italianos.50 Na Grécia continental, a maior parte das pólis estiveram sob o
domínio sucessivo ou coexistente de Esparta, Atenas e Tebas, e, tardiamente no quarto
século, Macedônia. E ainda, deve-se levar em conta as numerosas pólis dependentes de
Esparta, Elis, Arcádia e Creta, e as pólis igualmente numerosas que participavam de
koina, seja sob o domínio de uma pólis hegemônica ou em termos igualitários. Como
ficou claro, se tomamos a autonomia política como a característica definidora da pólis
arcaica e clássica, então por definição precisaremos excluir a grande maioria das pólis

47
Hansen e Nielsen 2004: 70–4.
48
Cook 1962.
49
Eu não me refiro à dominação de Gela e Siracusa por tiranos de Gela e Siracusa, o que é uma questão
de política interna, mas à dominação de outras cidades sicilianas pelos tiranos de Gela e Siracusa.
50
Lomas 2000.

201
gregas e restringir-nos a um punhado de exceções proeminentes e atípicas.51 Portanto, a
periodização da história grega sobre o desenvolvimento da pólis grega autônoma
compreendendo a apenas uma única cidade e seu território e governada por seus
cidadãos, só pode abarcar com muita dificuldade algumas poucas pólis gregas arcaicas e
clássicas. Para grande maioria, esses critérios não fazem sentido.
Uma vez que compreendamos isso torna-se mais fácil desafiar as exclusões. Este
não é o lugar para revisar as evidências sobre a natureza e a forma das sociedades
micênicas. O presente autor acredita que a visão ortodoxa sobre as formas políticas
micênicas é extremamente problemática e necessita de uma reconstrução radical. Mas
os limites de espaço e coerência fazem com que deixemos essa questão a um tratamento
futuro.52 Por enquanto, o que precisa ser enfatizado é a enorme diversidade do mundo
político micênico. Algumas regiões eram controladas por um nico cen ro “palacial”
(Messênia,53 Ática); outras estavam divididas entre mais centros (Argólida: Micenas,
Tirinto, Midea; Beócia: Tebas, Orchomenos); enquanto em muitas regiões partilhando a
cultura micênica, a organização política é ainda mais fragmentária e nenhum centro
parece emergir (Acaia, Coríntia, Lacônia).54
A Argolida micênica encontrava-se dividida em três centros (Micenas, Tirinto,
Midea); mas a Argolida clássica era dominada por um único centro, Argos. 55 Em que
caso deveríamos falar de uma cidade-estado? Faz sentido falar de reinos territoriais no
período micênico e de uma cidade-estado no período clássico? A Beócia parece estar
dividida entre Tebas e Orchomenos, lutando para controlar toda a região tanto no
período micênico quanto no período clássico. Podemos descartar essa aparente
semelhança tão facilmente? É uma pena que os estudiosos do período micênico tenham
aceitado um modelo uniforme e ahistórico em sua essência da sociedade micênica,56
desconsiderando as razões e processos por trás das fortes diferenças regionais, além dos
contextos e conjunturas temporais e espaciais. Essa indisposição ainda se encontra
lamentavelmente visível nos esforços, por exemplo, para explicar a fragmentação do
controle político na Argolida apontando Tirinto como a residência de verão do rei de
Micenas.57 Tanto no período micênico e em períodos posteriores da história do Egeu, a
característica mais essencial é que essa área nunca se encontra unificada sob um único
poder, mas está sempre fragmentada em uma multiplicidade de comunidades políticas
de formas diversas.58
Além disso, se nos lembrarmos de que as pólis gregas eram frequentemente
governadas por monarcas (reis, tiranos) ou oligarquias extremas,59 e de que a nossa

51
Hansen 1994: 17.
52
Para visões revisionistas, ver Galaty e Parkinson 1999; Driessen 2001; Sherrat 2001.
53
Bennet 1995.
54
Shelmerdine 1999.
55
Pierart 1997.
56
Chadwick 1976; Halstead 1988; Wright 1995.
57
Maran 2000.
58
Ver também os comentários de Haggis 1999; Manning 1999.
59
Barcelo 1993.

202
visão tradicional sobre o governo das sociedades micênicas é altamente problemática,60
então torna-se fácil defender que devemos observar as comunidades políticas do Egeu
em longue durée. A pluralidade de formas de comunidades políticas em cada período da
história grega, as variações regionais, as continuidades e transformações podem ser
compreendidas apenas em se adotando um quadro diferente.
De outro lado, devemos abandonar a crença de que a Batalha de Queroneia e as
conquistas de Alexandre criaram uma linha divisória fundamental na história da Grécia,
entre a cidade-estado clássica autônoma e as pólis dominadas por super potências
helenísticas.61 A cidade-estado clássica autônoma é uma ficção: a maior parte das pólis
não era independente e não há diferença fundamental em uma pólis ser dominada por
outra pólis ou por um monarca.62 Os habitantes de Thasos no quinto século não veriam
a sua situação de uma forma muito diferentes dos calcídios do século três. Em segundo
lugar, o desfecho de Queroneia não significou a anexação das pólis gregas pela
Macedônia. Os macedônios nunca conseguiram subordinar, consolidar e unificar a
península grega permanentemente: eles controlavam mais pólis em uma região e menos
em outras, mais pólis em uma década e menos em outra, mas acima de tudo eles tinham
que lidar com outras pólis autônomas (Esparta, Atenas, Rhodes), alianças e federações
de pólis.63 O cenário político estava igualmente fragmentado e instável tanto quanto no
século cinco, e mais ainda no século quarto.
Não obstante, os koina helenísticos não representavam uma subversão da
autonomia da pólis clássica, já que de muitas formas a autonomia nunca existiu
realmente como uma opção viável para a maior parte das comunidades clássicas.64
Além disso, já observamos que a autonomia não era uma pré-condição para a qualidade
de pólis e que a participação em um koinon ou uma liga era a experiência de muitas
pólis clássicas. De fato, pode-se observar o problema ao revés: quando Temístocles
insistiu que seu adversário da obscura Seriphos não seria Temístocles se fosse um
ateniense, ele, contudo, tomou por certo que ele mesmo não seria Temístocles se fosse
de Seriphos.65 Suas palavras mostram maravilhosamente as limitações e realidades dos
cidadãos da grande maioria das pólis. Mas no período helenístico, um cidadão da
pequena pólis de Sicyon poderia tornar-se general de um grande exército federal e
decidir sobre as políticas de todo o Peloponeso. Ele ainda era um cidadão de Sicyon
apesar disso.66
A intervenção ou mesmo a dominação de potências estrangeiras e o
relacionamento com o Mediterrâneo ocidental e oriental não era nenhuma novidade no
período helenístico: no Ocidente a expedição de Pirro e a intervenção dos romanos

60
Ver a voz solitária de Hooker 1979, 1987, 1988; também Darcque 1987. E sobre a falta de evidências
para governantes na Grécia pré-histórica, ver os capítulos em Rehak 1995.
61
Uma observação semelhante em Gruen 1993; Camp 2000.
62
De fato, muitas pólis no mundo helenístico beneficiaram-se realmente por serem controladas por uma
monarquia, ao invés de por outras pólis, como no período clássico. Ver, Gauthier 1987/9.
63
Comparar com o quadro das pólis da Ásia Menor em Ma 1999: 150–74.
64
Beck 1997.
65
Platão, República, 329e-330a.
66
Walbank 1933.

203
possuem suas contrapartes clássicas na intervenção ateniense,67 na expedição de
Timoleon,68 e na expedição de Alexandre, o rei molosso.69 No Oriente, deve-se lembrar
da invasão persa e do contínuo papel dos persas na Guerra do Peloponeso, da Paz do
Rei, etc.70 Da contínua intervenção ateniense e espartana e mesmo da invasão na Ásia
Menor e Egito;71 e da presença de milhares de gregos no Oriente, do irmão de Alceu até
o ponto em que havia mais gregos lutando no exército persa do que no exército de
Alexandre.72 Finalmente, a alegada extinção da democracia e da participação popular no
período helenístico não deveria mais ser afirmada.73
Tem havido também um reconhecimento do fato de que a interação e a
interpenetração entre o mundo grego e o Oriente Próximo, que costumava ser o ponto
chave da época helenística, precisa ser recuada até pelo menos o quarto século. Simon
Hornblower argumentou anteriormente que Mausolo, o dinasta da Cária, poderia ser
visto como um governante proto-helenístico, antecipando muitas das técnicas e
realizações dos futuros governantes do período helenístico.74 Josette Elayi estudou a
crescente interação grega com a fenícia ao longo século IV AEC em matérias como a
adoção da cunhagem e a criação de novas formas artísticas. 75 Thurstan Robinson
apontou para as crescentes interações dos gregos com a Lícia, evidente na cunhagem,
nas novas formas de expressão política e estilos artísticos.76 O relacionamento não tinha
apenas um lado; de fato, uma das características libertadoras dos estudos recentes é o
reconhecimento de que perceber esse processo como helenização é profundamente
equivocado. Já mencionei o estudo de Hagemajer Allen mostrando como os gregos
durante o final do quinto e o quarto século adotaram um novo tipo de monumento
funerário derivando das culturas do Oriente Próximo, a fim de expressar novas
necessidades em sua sociedade.77
Também é um fato que a velha imagem de uma transformação radical do
Oriente Próximo após a conquista de Alexandre e a supremacia das novas classes
dirigentes greco-macedônias tornou-se alvo de duros ataques. Por um lado, tem havido
uma crescente consciência da variedade de culturas, economias e sociedades do antigo
Oriente Próximo:

Sondagens nesse material confirmam o que uma leitura atenta de


Heródoto já teria revelado, que o império aquemênida mostrava
uma quantidade surpreendente de padrões e sistemas
econômicos e fiscais. Ele abarcava as economias centradas no

67
Wentker 1956.
68
Talbert 1974.
69
Hammond 1967: 534; Manni 1962.
70
Lewis 1977.
71
Cartledge 1987: 314–30.
72
Hofstetter 1978.
73
Habicht 1997; Rhodes e Lewis 1997.
74
Hornblower 1982: 352–3.
75
Elayi 1988.
76
Robinson 1999.
77
Hagemajer Allen 2003.

204
templo do reino de Judá ou de parte do Egito ou Ásia Menor, a
agricultura de irrigação sofisticada e milenar do Egito, do sul da
Mesopotâmia ou da Ásia Central, os complexos negócios
privados ou paraestatais dos bancos e contratos que são
observáveis no Murasu e outros arquivos da Babilônia do quinto
século, e as economias políades da Fenícia e do oeste da Ásia
Menor.78

Algumas dessas sociedades, culturas e comunidades possuíam semelhanças


marcantes com certas sociedades, economias e culturas do mundo grego (que não é em
nada um mundo mais unificado do que o Oriente Próximo), em parte por causa da
interação e interpenetração como observamos acima.79 Por outro lado, as evidências
para a continuidade nas práticas e processos mesmo após o controle greco-macedônio
tornou-se cada vez mais forte.80 Não se trata de negar as mudanças reais que tiveram
lugar;81 mas deveria haver uma reconsideração das transformações no âmbito mais
vasto do mundo mediterrâneo oriental, adotando-se um recorte temporal mais longo; o
quarto século adquiriria uma nova importância nessa perspectiva renovada.82 A questão
n o apenas ransformar o quar o s culo em um per o o “pro o-helen s ico” o que seria
apenas encerrar a questão; antes, deveríamos questionar seriamente as categorias
metahistóricas maiores que se encontram por trás de nossos esquemas de periodização.
Portanto, a velha narrativa justapondo a pólis grega as monarquias do Oriente
Próximo ao longo dos períodos arcaico-clássico, a serem seguidas pelas novas
monarquias helenísticas e os koina no período helenístico, parece altamente redundante.
Ela cria uma periodização que é profundamente problemática e não leva em conta as
grandes mudanças que acontecem já no quarto século, senão antes; e justaposição entre
a pólis grega e o mundo próximo oriental é extremamente indutora de erros em ambos
os casos. A imagem da pólis autônoma não pode servir como um critério satisfatório
para uma periodização da história grega, já que ela exclui a ampla maioria das pólis
gregas do período arcaico e clássico; e as realidades variáveis do mundo político dos
períodos arcaico e clássico mostram semelhanças significativas aos períodos excluídos,
micênico e o helenístico.
Mas a presente periodização da história grega sofre também por conta de seus
pilares evolucionistas. A pólis é apresentada como um estágio na evolução da história
da Grécia, uma etapa com começo, apogeu e fim. Essa percepção junta um certo
número de processos com temporalidades, ritmos e direções obviamente diferentes ou
mesmo contrastantes. Reificar esses processos e representá-los como uma entidade
ontológica única é ao mesmo tempo um equívoco e um desserviço. Além disso,
colocando-se dessa forma, é impossível compreender a mudança e variação. O que leva

78
Davies 2001: 13.
79
Debord 1999; Briant 2002.
80
Kuhrt e Sherwin-White 1987; Sherwin-White e Kuhrt 1993.
81
Para um perspectiva equilibrada sobre a continuidade, a mudança e excepcionalidade no caso do Egito,
ver Rathbone 1989; ver também McClellan 1997 sobre a Síria.
82
Ver Carlier 1994.

205
as pólis sicilianas a consolidar-se como um estado territorial sob o poder de um tirano,
enquanto as pólis jônias, diante de problemas semelhantes, não o fazem? O que leva as
centenas de pólis da Creta arcaica a serem substituídas por pólis com vastos territórios e
pólis dependentes no período helenístico?83 O que faz da Pellene acaia parte de um
ethnos, mas da vizinha Sicyon uma pólis?84
Para ilustrar mais ainda o meu ponto, considerarei o problema do declínio da
pólis. A resposta a essa questão tem sido um problema perene para os historiadores da
antiguidade.85 Pensava-se antes que a pólis declinara com a Batalha de Queroneia.86 A
maioria dos historiadores hoje em dia não adotaria essa resposta, mas o problema
persiste.87 A razão disso é que uma diferente resposta será obtida de acordo com o
critério que se escolhe. Se escolhermos definir a cidade-estado a partir de sua
autonomia, então ela deve declinar após as Guerras Pérsicas no continente e mesmo
antes na Ásia Menor: o advento das hegemonias ateniense, espartana, tebana,
macedônia e outras caminharam passo a passo com a ausência de independência das
pólis menores. Se escolhermos o critério do urbanismo e nos restringirmos ao mundo
egeu, então a pólis nem sequer emergiu na maior parte dos casos, ou ela continuou
mesmo após o império tardio.88 Se escolhermos o critério do auto governo local, então
devemos optar pela antiguidade tardia.89 Se escolhermos o critério da participação
popular, então a cidade-estado declinou no período helenístico tardio ou mesmo
posteriormente.90
Não deveríamos falar sobre a emergência ou declínio da pólis, portanto. Isso
ainda precisa ser enfatizado. Apesar de que tenha se tornado mais e mais impopular e
irrelevante falar sobre o declínio da pólis com a maior parte dos especialistas
argumentando que se deveria observar diferentes funções e processos da pólis em
diferentes períodos o mesmo não é verdadeiro sobre a emergência da pólis, que é ainda
um tema popular. Mas parece contraditório reter o conceito de emergência da pólis, se o
conceito gêmeo de declínio foi abandonado.91 Como John Davies já afirmava trinta anos
atrás,

Falar da pólis ‘le c d e e en el de l c v l on ecque’


conduz a uma confusão fundamental entre a pólis como (a) uma
unidade administrativa, (b) como uma unidade cultural, (c)
comunidade de poder. O aspecto (a) não mostra uma queda no
quarto século ne por muitos séculos após, continuando com

83
Ver, por exemplo, Viviers 1994.
84
Ver Hansen e Nielsen 2004: nos. 228, 240.
85
Ver Hansen e Nielsen 2004: 19–20.
86
Ver, por exemplo, Thomas 1981: 39–43; Runciman 1990.
87
Ver, Gauthier 1993; Shipley 2000: 33–6, 105–6.
88
Sobre as populações e urbanização das pólis gregas, ver Hansen 1997a, 2004a, 2004b; Ruschenbusch
1983, 1984a, 1984b, 1985.
89
Sobre a continuidade do auto governo nos períodos helenísticos e romanos, ver Jones 1940; Dmitriev
2005.
90
Ver Rhodes and Lewis 1997: 502–49 sobre a participação popular nas pólis helenísticas.
91
Ver os comentários de Polignac 1995: 7–9.

206
vitalidade extraordinária no período romano; o aspecto (b)
mostra pouco declínio até muito recentemente, com a
emergência de cortes reais como focos alternativos para
patronagem e de novos cultos, que os governos das cidade não
se preocuparam em naturalizar; enquanto o aspecto (c) tinha
dado lugar há muito tempo, em área após área – Jônia, Sicília,
sul da Itália, Peloponeso, o Egeu -, à archai pessoais, ou às ligas
e hegemonias (anfictionias secularizadas, se assim se quiser) ou
a dominação externa. O declínio da cidade como unidade de
poder é um fenômeno do século seis completado por volta de
480.92

Como podemos evitar os problemas criados pela periodização atual? Um


caminho é desconstruir o uso corrente da pólis como princípio organizador da história
da Grécia. Os capítulos anteriores procuraram fornecer um quadro alternativo à
concepção etnocêntrica e internalista da pólis como a única unidade de análise para a
história grega. Apresentei uma variedade de unidades de análise, indo desde níveis
inferiores a pólis (koinonia, merê) até processos interligando uma variedade de
comunidades e formações políticas em systèmes-mondes políticos, econômicos e
culturais.93 Apresentei também uma variedade de formas de organizações políticas
gregas e um certo número de ferramentas analíticas que podem nos permitir estudar as
suas múltiplas interações.94 Finalmente, argumentei a favor da importância primária do
espaço no estudo das comunidades gregas e explorei um certo número de níveis de
análise espacial, aquém e além da pólis (pólis e seus territórios, pólis e regiões, pólis e o
système-monde).95 Mas há algo a ser adicionado no último capítulo.

92
Davies 1975: 97–8.
93
Ver os capítulos 3 e 6.
94
Capítulo 8.
95
Capítulo 7.

207
CAPÍTULO 10

Rumo a grandes novas narrativas da história grega?

Este último capítulo irá servir como uma resposta à questão que muitos leitores
possivelmente gostariam de perguntar. Esse livro tentou mostrar como viemos
estudando a história grega de uma maneira eurocêntrica; buscou também apresentar por
que esse modo de se estudar a história grega é equivocado e problemático; e,
finalmente, tentou oferecer um aporte em relação a quais conceitos nós precisamos de
modo a construir uma tal história alternativa. A questão agora é: como você poderia
conceber a escrita de tal história? Já está muito bem argumentado que precisamos evitar
um relato centrado na pólis, que por sua vez acaba sendo na maioria das vezes uma
história atenocêntrica; mas dado o tipo de evidência de que dispomos, o que mais
podemos fazer? Já está muito bem argumentado que precisamos ir além de relatos
helenocêntricos; no entanto, dado às evidências que sobreviveram, como nós
poderíamos introduzir, por exemplo, os fenícios em nossos relatos já que nenhum dos
seus registros foi preservado? Já está muito bem argumentado que precisamos de uma
história que contenha vários níveis e várias durações do tempo histórico, ao invés de
relatos unidimensionais e teleológicos; mas como é possível realmente escrever tal
narrativa? As falácias dessas grandes narrativas eurocêntricas já foram bem
apresentadas, mas será que podemos construir algum outro tipo de grande narrativa, ou
ser que e emos nos con en ar com uma “his oire en mie es n o-eurocêntrica?
Muitas outras questões poderiam ser acrescentadas entre essas e eu não pretendo
fingir que tenho a resposta definitiva para nenhuma delas. O que vou tentar fazer aqui é
indicar as maneiras pelas quais eu busquei essas soluções. A tarefa que se segue, para
aqueles que acreditam que precisamos de uma história alternativa, é, de fato, enorme.
As questões mencionadas anteriormente tocam em dois aspectos: evidência e narrativa.
Busquei, anteriormente, mostrar que Aristóteles pode ser de grande valor para nossa
tentativa de se construir ferramentas metodológicas alternativas e tentei reabilitar (ao
menos em parte) sua visão acerca da pólis grega. O que eu quero fazer, agora, é mostrar
que muitas das respostas aos nossos problemas podem ser encontradas em um estudo
aprofundado dos historiadores gregos antigos.

EVIDÊNCIA

Uma abordagem alternativa da história grega, que seja capaz de reunir as


diferentes áreas e regiões de comunidades gregas e seus relacionamentos e interações
com um mundo maior, deve começar a partir de denominadores comuns. Isso implica
uma dependência primária de uma forma de evidência que esteja disponível tanto para
os períodos iniciais e tardios, o centro e a periferia, a Grécia e o Mediterrâneo mais
amplo, a cidade e o campo, a elite e os subalternos. Ou seja, a evidência arqueológica.
Nossas fontes textuais foram escritas pela elite; elas estão focadas em Atenas e algumas

208
outras grandes comunidades gregas, contando-nos muito pouco a respeito das demais
comunidades gregas, e elas, também, tendem a ignorar o campo. Já que não possuímos
fontes escritas para outras populações mediterrâneas, nós acabamos tendo uma imagem
bastante distorcida e helenocêntrica da história do Mediterrâneo. Em comparação, a
potencialidade da evidência arqueológica de modo a dar voz aos que foram esquecidos e
não têm fala é, de fato, impressionante1. Mas não vamos simplificar. Seria ingênuo
acreditar que até a evidência arqueológica, não obstante seu potencial igualitário, seria
expressiva e esclarecedora do mesmo modo a respeito de todos os tipos de coisas e
pessoas: até mesmo em termos de evidência arqueológica, a elite é mais visível que os
subalternos, a cidade é mais visível que o campo, as comunidades mais ricas e
poderosas tendem a deixar evidências mais fáceis de serem recuperadas que as
comunidades pobres e fracas2.
Mas ainda assim esse é um problema comum a todos os períodos da história e em
todas as formas de evidência. Apesar das limitações, as possibilidades abertas por uma
abordagem histórica baseada nas evidências arqueológicas, que permite uma
comparação e contraste e uma inclusão muito mais abrangente, são impressionantes.
Esse é o caso, dada a expansão da pesquisa arqueológica nas últimas décadas. A
arqueologia de assentamento e da paisagem, para dar um exemplo, mudou nosso
entendimento da história grega: ela desafiou periodizações históricas convencionais3;
permitiu a existência de perspectivas diacrônicas4; mostrou a utilidade e a necessidade
de uma história comparada e atraiu os arqueólogos a olharem para além da antiguidade
em direção a outros períodos da história grega5; adentrou em áreas periféricas nas quais
as fontes escritas são completamente silenciosas 6; possibilitou-nos estudar um objeto
que às vezes torna-se quase invisível a partir de nossa perspectiva e de nossas fontes
focadas no urbano7. Seria possível multiplicar o número de exemplos: a arqueologia do
espaço doméstico8, a arqueologia do ritual funerário e da identidade social 9, a
arqueologia da exploração e do poder10, a arqueologia da memória e do passado11, a
arqueologia da troca12.
Esses resultados mostram conclusivamente como nós temos a ganhar com o uso
da evidência arqueológica. O que nos falta é a síntese: incorporar os resultados da
evidência arqueológica em nossas narrativas da história grega13. Até agora isso ainda

1
Snodgrass 1987; Morris 1992, 2000.
2
Ver, por exemplo, Foxhall 1990.
3
Alcock 1993: 217–20.
4
Bintliff 1991b.
5
Davies 1991; Sutton 2000.
6
Jameson et al. 1994; Mee e Forbes 1997.
7
Snodgrass 1990.
8
D’ n ria e anino 1996; Nevett 1999; Cahill 2002.
9
Morris 1987, 1992, 2000; Whitley 1991.
10
Luraghi e Alcock 2003; ver também a edição especial de WA, 33:1, 2001; Osborne 1999; Morris e
Papadopoulos 2005.
11
Alcock 2002; van Dyke e Alcock 2003.
12
Garlan 2000a.
13
Para um primeiro passo: Whitley 2001.

209
não foi alcançado por razões que não são difíceis de compreender: a camisa de força da
pólis, as temporalidades lineares e as metodologias funcionalistas e evolucionistas que
já mencionamos.
Um exemplo de para onde deveríamos ir é a tentativa de Michel Gras de estudar o
Mediterrâneo arcaico em sua totalidade, reunindo gregos, etruscos, fenícios e
cartagineses14. Historiadores e arqueólogos têm se contentado com esse tipo de
a or agem quan o ela li a com per o os “pr -” ou “pro o-hist ricos” quan o a
ausência de fontes escritas permite esses tipos mais amplos de abordagens e
comparações15 as quan o se ra a e per o os “his ricos” rela os e uais a
dominação de Atenas e, em segundo plano, de Esparta em nossas fontes escritas e a
ausência de documentação textual para comunidades e culturas não-gregas, acabam
conduzindo ao já bem conhecido padrão de escrita da história grega: centrado em textos,
atenocêntrico, orientado pelas elites, helenocêntrico. Dispomos de consideráveis
trabalhos sobre formas de assentamentos na Grécia arcaica16; nada semelhante em
aprofundamento e extensão está disponível para o período clássico. O que precisamos
fazer é estender as tentativas como as de Gras ao estudar o Mediterrâneo arcaico para os
per o os “his ricos”17. A tentativa de Ian Morris de se traçar através de mudanças de
longa duração nas práticas funerárias tendências mais amplas rumo a um igualitarismo
ao longo do mundo grego da pólis e até além18, é um passo bastante positivo nessa
direção, não importa o quanto se concorde inteiramente ou não com as interpretações
dele das evidências.19 O volume editado por Hansen sobre as culturas da cidade-estado é
igualmente importante ao oferecer uma perspectiva mediterrânea ainda mais ampla,
embora seu universo temático não permita explorar interações20.
O próximo passo em termos de formas de evidência é, de fato, o da numismática.
Infelizmente, os historiadores da antiguidade, até muito recentemente, fizeram pouco
uso das evidências vindas de moedas, mesmo se tratando da história econômica21. Mas
nos últimos anos a situação mudou bastante: acadêmicos têm lidado com moedas a
partir de uma variedade de perspectivas diferentes, observando os aspectos sociais,
econômicos, culturais e políticos de sua produção, uso e disseminação22. Depois das
evidências arqueológicas, as moedas são a forma de evidência disponível para a maior
parte das comunidades gregas; elas nos permitem também superar o aspecto
tendencioso das fontes escritas, centradas nas comunidades grandes e poderosas. Além
disso, a cunhagem de moedas oferece uma das ligações mais fascinantes a respeito da
interconectividade do mundo Mediterrâneo. Inventada pelos lídios, adotada pelos
gregos, expandida através do mais vasto mundo grego no Mediterrâneo e no Mar Negro,
14
Gras 1995b; também 1985, 1993.
15
Ver Andersen et al. 1997, um trabalho que observa a urbanização do Mediterrâneo durante o período
arcaico; a ausência de trabalhos semelhan es para “per o os his ricos” fala por si s
16
Lang 1996.
17
Um caso raro que busca quebrar essas divisões entrincheiradas: Dentzer 1982.
18
Morris 1992: 145–9.
19
Eu expressei minha reação mista em relação a esse aspecto em detalhes em Vlassopoulos 2000.
20
Hansen 2000c; Niemeyer 2000; Torelli 2000.
21
Ver as queixas de Lombardo 1997.
22
Figueira 1998; Kurke 1999; Meadows e Shipton 2001; Schaps 2004; Seaford 2004.

210
adotada na Pérsia, Fenícia e outras sociedades bem desenvolvidas do Oriente Próximo,
introduzida pelos gregos na população nativa da Cítia e da Trácia, a cunhagem de
moedas fornece pistas tentadoras sobre a escrita de tal história23.
Pois bem, é o que alguns críticos poderiam dizer; isso pode ser uma empreitada
possível e até mesmo vantajosa. Mas não há como negar que as evidências
arqueológicas e numismáticas possuem seus limites e que existe um grande número de
assuntos sobre os quais apenas as evidências escritas, literárias e epigráficas podem nos
oferecer as respostas: pensem a respeito da política, escravidão, ideias e literatura. Esse
tipo de evidência, contudo, está disponível em apenas alguns poucos casos: de todas as
comunidades do Mediterrâneo no período clássico, é apenas sobre Atenas e, em grau
menor, Esparta, que dispomos de evidências suficientes para escrever de modo
significativo e aprofundado uma história política, social, econômica e cultural.24 Será,
portanto, que não somos forçados a nos tornar atenocêntricos por conta da própria
natureza de nossas evidências, uma vez que desejamos escrever uma narrativa ou
perguntar certos tipos de questões? Para o resto das comunidades gregas e
mediterrâneas dispomos apenas de fragmentos e lampejos, algumas vezes mais
iluminadores, outras vezes, menos. Nessas circunstâncias, será que a decisão mais
significativa não seria a de se fazer exatamente o que foi criticado nesse livro: um relato
principal atenocêntrico e outros relatos separados para o resto dos gregos e bárbaros?
Essa crítica é válida; no entanto, como eu espero mostrar, ela não é inescapável.
Mas antes de tentar responder a essa crítica, deixe-me tentar enfatizar o quanto nós
podemos ganhar em nosso estudo sobre a própria Atenas ao aplicar a abordagem
metodológica apresentada nesse estudo. Nós precisamos situar Atenas dentro de um
mundo complexo e multifacetado. A abordagem tradicional da história ateniense tem
sido a de tratar a pólis ateniense como um clube exclusivo de cidadãos homens e
adultos. Na realidade, o que é mais fascinante a respeito da Atenas clássica é a imagem
variada de múltiplos grupos sociais, panos de fundo culturais, experiências de vida,
locais e interconexões. Tem-se focado demais na elite de homens atenienses, que eram
os autores dos textos clássicos e que desempenhavam funções principais nesses textos.
Não houve qualquer tentativa de se estudar o demos ateniense, os sapateiros, ferreiros,
marinheiros e comerciantes que formavam a base da democracia ateniense. Do mesmo
modo, é importante o estudo das mulheres e dos escravos não como objetos separados
de um grupo principal de cidadãos masculinos, mas como partes de uma complexa
interação, indo da subordinação até a colaboração e solidariedade25.
Além disso, Atenas era uma sociedade cosmopolita. A maioria de sua população
consistia claramente em estrangeiros, gregos e não-gregos, livres e escravos. Ainda
assim, até muito recentemente, foram poucas as tentativas de se levar seriamente em
consideração todos esses estrangeiros que viviam em Atenas e a interação entre
atenienses e estrangeiros26. Mais ainda, Atenas tinha um alto nível de interação política,
econômica e cultural com o mundo contemporâneo do Mediterrâneo. Apesar disso,
23
Ver brevemente Kraay 1976.
24
Moses Finley tem sido um expoente importante dessa visão: Finley 1983: 103–5, 1985d: 61–6.
25
Ver, por exemplo, Katz 1999.
26
Mas ver agora Bäbler 1998; Adak 2003.

211
foram poucos os esforços de se ver Atenas como um centro de redes de conectividades
mediterrâneas, de movimentação de bens, pessoas e ideias27; ou de se enxergar Atenas a
partir do ângulo de suas relações com um Mediterrâneo oriental, com o Egeu e o Mar
Negro. Igualmente fascinante é o fato de que Atenas comportava os mais variados
lugares, dando vida às mais diversas experiências28: viver no porto comercial marítimo
e multicultural do Pireu era algo bem diferente de se viver em um demos amplamente
agrícola, ou em uma fazenda isolada29. É importante tentar representar todos essas
diferentes circunstâncias e experiências, mas é ainda mais importante entender a
coexistência e a interação entre elas30.
Não obstante, representar Atenas, por exemplo, no séc. V-IV AEC como uma
“ enas monol ica” algo igualmente problemático. É necessário entender como
diferentes escalas temporais podem apontar para direções diferentes, coexistir e se
interrelacionar. É possível estudar como os padrões de longa duração de assentamentos
e os usos da terra podem coexistir dentro de flutuações de curta-duração; como
discursos sobre a política ou a sociedade são reproduzidos, modificados ou
transformados pelo seu uso em conjunturas específicas31; como diferentes formas da
cultura material seguem diferentes escalas temporais bem como a complexidade das
práticas que emerge disso.
Por fim, houve poucas tentativas ainda de se estudar Atenas a partir de uma
perspectiva comparada32. Como será que a política ateniense iria parecer se nós a
comparássemos com a política democrática norte-americana do século dezenove33?
Atenas era um centro cosmopolita, ainda assim não houve qualquer esforço de se
entendê-la à luz de outros centros cosmopolitas, como Veneza ou Amsterdã34. Atenas
era um centro comercial mediterrâneo; como isso poderia funcionar em comparação
com a Esmirna otomana ou Marselha35? Eu espero que os comentários anteriores
mostrem claramente o quanto é possível alcançarmos no estudo de Atenas ao mudarmos
nossa perspectiva.
Deixe-me, agora, retomar a questão principal: dado o tipo de evidência que nos
está disponível, será que podemos ser qualquer coisa que não atenocêntricos? Como é
que podemos inserir as peças e pedaços que nós sabemos a respeito do resto do mundo
grego e do Mediterrâneo mais amplo em um novo tipo de história? Isso levanta a
questão em torno da forma do texto histórico e da forma da narrativa histórica.
Obviamente, trata-se de uma questão gigantesca, muito debatida nos dias atuais. Não é
minha intenção sobrecarregar ainda mais um livro já altamente sobrecarregado, com
uma análise detalhada de onde eu me situo e como eu vejo o futuro nesse sentido.

27
Mas ver agora Tchernia e Viviers 2000.
28
Osborne 1985.
29
Von Reden 1995; Roy 1998.
30
Osborne 1985; Cohen 2000; Jones 2004 infelizmente não alcança esse objetivo.
31
Ver os comentários de Wolpert 2002: xvii–xviii.
32
Uma exceção, mas em termos bastante distintos daqueles que proponho aqui, é Finley 1973a.
33
Ver agora Wilentz 2005. Porém, ver Rosivach 1993.
34
Burke 1974; ver por exemplo Braudel 1984: 184–8.
35
Sobre a Esmirna otomana, ver Frangakis-Syrett 1992.

212
Quero, apenas, dedicar as poucas últimas páginas ao problema que este livro vem
tentando trazer à tona: o abandono de perspectivas eurocêntricas, etnocêntricas,
funcionalistas e evolucionistas leva a uma fragmentação do objeto e do método. Uma
saída a esse impasse é a construção de ferramentas metodológicas alternativas, como eu
tentei fazer na terceira parte deste livro. Uma outra, e que requer um esforço ainda
maior, é reconsiderar a forma de narrativa histórica. Qual narrativa nós devemos
escrever que não seja eurocêntrica, etnocêntrica, funcionalista e evolucionista?

NARRATIVA

Qual tipo de história? Uma história das koinai praxeis

Qual é objeto da história que nós queremos escrever? Uma resposta fácil é dada
com frequência: a de que é a história da Grécia ou dos gregos. Existem diferenças
importantes, como nós já vimos, dependendo se concebe uma tal história como uma
história de uma área geográfica (a Grécia, seja como for definida), ou de uma entidade
imaginária (quando falamos a respeito da Grécia e Roma), ou de um povo (os gregos).
Muito já foi dito a respeito do eurocentrismo e do etnocentrismo em outros contextos de
modo a ser desnecessário que eu repita os problemas que são levantados a partir desses
pressupostos centrais36.
Talvez, alguém poderia pensar que a história de uma área geográfica é uma
es ra gia mais “o e i a” e por an o mais a equa a e ser usca a no en an o os
problemas tais como essa concepção são enormes. Como alguém poderia definir uma
área geográfica? Os limites naturais são dificilmente objetivos ou imediatos;
atualmente, chegamos a dar conta de que até mesmo as ilhas, antes consideradas como
casos ideais de áreas claramente definidas, dificilmente são isso37. Se a intensidade ou a
importância das interações são o fator limitador, então a história de Atenas, por
exemplo, teria mais a ver com o Mar Negro do que com a Etólia; do mesmo modo, uma
história de uma área geográfica definida pela geografia natural, e não pelas
configurações e relações históricas, tem pouco a recomendar. Esse é ainda mais o caso
quando as características culturais que poderiam nos ajudar a definir a unidade de uma
área geográfica específica estão, na verdade, dispersas ao redor de todo o Mediterrâneo,
como no caso dos gregos. Logo, não é possível haver uma história, por exemplo, do
Egeu: no século IX essa história não comportaria muito além do Egeu, mas no século V
não pode haver uma história do Egeu que não seja, ao mesmo tempo, uma história do
Mar Negro; uma não pode ser vista sem a outra. Portanto, pode-se escrever apenas uma
história a partir do Egeu (a partir da perspectiva do Egeu)38.
Talvez nós devêssemos buscar nossa solução na história universal? Isso é,
igualmente, problemático. Uma história universal supõe dar conta do mundo inteiro;
36
Ver Kyrtatas 2002: 91–131.
37
Ver Horden e Purcell 2000: 224–30, 381–3; Broodbank 2002: 16–35.
38
ara a is in o en re uma “his ria no” e uma “his ria o” er Horden e Purcell 2000: 1–5; e também
o artigo de Harris 2005.

213
independentemente de quais seriam os verdadeiros problemas técnicos de se fazer isso,
a história é por necessidade uma seleção do todo o passado, baseada em certos critérios
(do mesmo modo como um mapa é uma seleção daquilo que é retratado e não uma
representação de tudo que existe; no caso em que não é um mapa, é uma réplica do
objeto a ser retratado)39. E qual seria o critério em se escrever uma história de toda a
humanidade (ou, ainda, da humanidade na antiguidade)? É aqui que as premissas
teleológicas do eurocentrismo e as filosofias da história entram para distorcer a escrita
de formas que, a essa altura nós podemos concordar, são equivocadas e problemáticas.
Benedetto Croce estava correto ao dizer que nenhuma história universal digna de seu
próprio nome jamais poderia existir: uma história universal é sempre uma história a
partir de uma única perspectiva.

Histórias universais, na medida em que são histórias, ou em que


parte delas sejam histórias, acabam sendo elas próprias nada
mais do que "histórias particulares" - isto quer dizer, elas
existem devido a um interesse particular centrado em um
problema particular, e elas compreendem apenas os fatos que
fazem parte desse interesse ou que podem fornecer uma resposta
a esse problema específico.40

Isso não quer dizer que uma pessoa não seja capaz de escrever uma história que
cobriria o mundo inteiro a partir de uma única perspectiva (por exemplo, a partir da
perspectiva do Mediterrâneo e suas relações com o resto do mundo, ou sobre o
desenvolvimento da guerra, ou da emergência do nacionalismo, ou da difusão do
monoteísmo etc.). Mas o ponto essencial, como Croce destacou, é que essa história é
universal apenas no seu nome; uma história universal no verdadeiro significado da
palavra é impossível, e ao menos que isso tenha sido explicitado claramente, corre-se o
risco de se fazer uma história parcial e dependente de um foco passar por uma história
do mundo. Nós já vimos exemplos demais de histórias eurocêntricas se passando por
histórias universais 41 e, a esta altura, os riscos dessa abordagem devem estar bastante
claros.
Qual é, então, a solução ao nosso problema, se é que ela existe? Acredito que os
próprios gregos tenham nos dado uma resposta. Vários historiadores gregos tentaram
escrever o que eles chamavam de uma historia tôn koinôn praxeôn, uma história dos
atos comuns de gregos e bárbaros42. Os autores antigos deixaram bem clara a diferença
entre a estratégia de Tucídides e aquela da história comum:

39
Ver Carr 1961: 1–24.
40
Croce 1921: 57.
41
Ver as críticas dos historiadores indianos à história universal eurocêntrica: Chakrabarty 2000; Guha
2002; e os artigos em Stuchtey e Fuchs 2003.
42
Ver, por exemplo, Dionísio de Halicarnasso “ le er o o pro u iu uma his ria comum os a os
os gregos e os r aros”; Carta a Pompeu, 3. Sobre a história universal antiga, ver Burde 1974;
Alonso-Nuñez 1990; Mortley 1996; Clarke 1999.

214
Ele (Heródoto) optou por não registrar a história de uma única
cidade, ou de uma única nação, mas em recolher testemunhos de
vários eventos diferentes, que ocorreram na Europa e na Ásia, e
reuniu-os em um trabalho simples e compreensível. Ele fez do
império da Lídia seu ponto de partida e estendeu seus relatos até
as Guerras Pérsicas, incluindo em uma única narrativa todos os
atos importantes de gregos e bárbaros durante um período de
220 anos. [...] Tucídides veio depois desses historiadores, mas
ele não queria confinar a sua história a uma única localidade
como Helânico e seus imitadores tinham feito e também não
queria seguir Heródoto, reunindo em uma única história as
façanhas realizadas por gregos e bárbaros ao redor do mundo (ex
apasês chôras).43

Ao invés de uma história autossuficiente da Grécia, por que não tentar, então,
escrever uma história dos atos comuns de gregos e bárbaros (ou qualquer que seja o
outro termo que nós optássemos por utilizar para substituir essa terminologia negativa,
ainda que inclusiva)44? Esse projeto teria uma vantagem dupla. Por um lado, ele
mantém o ponto essencial de que a história é sempre um relato a partir de uma
perspectiva específica: não é um relato propositalmente universal e impossível, mas um
relato a partir da perspectiva dos gregos e de seus atos comuns com outros povos. Do
mesmo modo, seria possível escrever sobre os atos comuns dos persas e dos bárbaros
(nos quais os gregos seriam, então, incluídos) e assim por diante. Por outro lado, esse
projeto vai contra uma história grega autossuficiente, a favor de uma estratégia
inclusiva. Em suas obras históricas, vários gregos incluíram a história, etnografia e
geografia dos bárbaros; algo que nós omitimos deliberadamente de nossas abordagens
da história grega, para o pior45. Eis minha primeira proposta: uma história das koinai
praxeis deveria substituir nossas histórias da Grécia ou dos gregos; e os historiadores
gregos têm muito a nos dizer sobre como fazer isso.
Se nós aceitarmos essa primeira proposta, a próxima questão é como iremos
organizar nosso material. Isso traz uma implicação dupla. Por um lado, precisamos
arrumar nosso material de tal modo que ele conte uma história, por exemplo, criando
enredos; por outro lado, nós precisamos encontrar um modo de arrumar um material que
seja o mais inclusivo possível; isso faria sentido e acrescentaria parafusos e pedaços ao
nosso saber não-ateniense. As duas últimas sessões finais irão lidar com essas duas
questões.

43
Dionísio de Halicarnasso, Sobre Tucídides, 5-6.
44
Eu tomo os bárbaros no sentido apontado por Heródoto, quando ele descobriu que os egípcios
chamavam o resto do mundo da mesma maneira que os gregos faziam, e achou isso perfeitamente
plausível; Heródoto, I I , 158.
45
Uma análise sobre a separação progressiva da história grega em relação ao Oriente Próximo, é
oferecida por Bernal 1987.

215
Uma história de cima: enredos e metanarrativas

Desde Metahistory de Hayden White46, os historiadores têm se tornado cada vez


mais conscientes em relação aos aspectos literários de seus trabalhos e às categorias e
figuras de linguagens metahistóricas nas quais eles baseiam sua pesquisa e narrativa.
Embora haja um número crescente de estudos que, seguindo White, tentaram examinar
os fundamentos meta-históricos e narratológicos da literatura histórica moderna47, os
historiadores da Antiguidade estão sempre ficando para trás. Ainda não existe nenhum
estudo dos fundamentos meta-históricos e narratológicos dos trabalhos dos historiadores
modernos sobre a Antiguidade. É, portanto, de suma importância prestar atenção às
histórias que nossas fontes gregas narram e os enredos que nós construímos. Vou tecer
alguns comentários sobre os modos de construção de enredo utilizados pelos
historiadores da Antiguidade, antes de discutir se os historiadores gregos antigos têm
qualquer coisa a contribuir no sentido de uma reconceitualização da história antiga.
Sabe-se muito bem que o século XIX foi o século das nações e dos
nacionalismos; é também verdade que da Revolução Francesa à Russa, a Europa foi
dominada por gigantescas disputas sociais, deixando o mundo inteiro de cabeça para
baixo. E é claro que os trabalhos modernos sobre a história antiga não se abstiveram de
refletir tais tensões. A história grega foi enredada de tal modo a contar uma história do
destino nacional e racial48. Alguns leem a história grega como a história não vitoriosa de
uma disputa de unificação nacional que resultou em uma subjugação nacional; outros
veem na Macedônia o deus ex machina que foi capaz de superar divisões nacionais e
liderar rumo a uma unidade e triunfo nacional49. Naturalmente, a disputa entre Atenas e
a Macedônia, Demóstenes e Filipe, era apresentada de modo a se parecer com aquela
entre a França e a Alemanha50. Por outro lado, as grandes disputas sociais desse período
da história europeia, onde terra e propriedade eram pontos fundamentais, tiveram um
reflexo direto na apresentação de uma história da história antiga: disputas sobre leis
agrárias, a proteção ou anulação de propriedade privada, e daí em diante51.
O período pós-guerra, ou ainda o período da Guerra Fria, testemunhou dois
importantes fenômenos: a secessão de conflitos e movimentos nacionais na Europa
(embora, exatamente o oposto no resto do mundo), onde as fronteiras nacionais
estabelecidas tanto no tratado de Versalhes ou no de Potsdam pareciam finais e
inalteráveis. Os crimes do nazismo fizeram muito de modo a levar questões raciais para

46
White 1973.
47
Ver Gossman 1990 sobre a poética da historiografia romântica; Carrard 1992 sobre a poética da
historiografia dos Annales.
48
Sobre o estudo da história grega através das lentes do estado nacional, ver Funke 1996. Sobre o aspecto
racial na história grega, ver Ampolo 1997: 140–9.
49
Ver Beloch 1925; Glotz 1928, 1936. Para a produção alemã sobre a Grécia antiga, ver Christ 1999:
capítulos 3–5; para o caso francês, ver Simon 1988.
50
No começo do século XIX, a Macedônia lembrava a França expansionista das Guerras Napoleônicas;
mais tarde no mesmo século, quando a unificação nacional e a oposição do autoritarismo alemão vs. a
Terceira República Francesa veio a se intensificar, as identificações se inverteram. Ver Funke 1996: 89–
91, 99–105.
51
Ver Ampolo 1997; 79-106.

216
fora do campo do academicamente aceitável52. Por outro lado, sob a estabilidade do
terror e da reconstrução econômica da Europa, as revoluções e os grandes embates
sociais de uma escala novecentista estiveram largamente ausentes na cena (ocidental)
europeia (embora, dificilmente, no resto do mundo)53. Seria um equívoco olhar para
esses fenômenos de modo a se comentar a ausência de narrativas influentes e de larga-
escala da história grega no período pós-guerra? Em oposição ao século XIX e à primeira
metade do século XX54, nenhum grande pesquisador do período pós-guerra voltou seus
trabalhos no sentido da construção de uma narrativa da história grega55.
Na ausência das preocupações anteriores, o enredo da história grega provou ser
um tema difícil; essa é provavelmente uma das principais razões porque as grandes
mentes da era pós-guerra mantiveram uma distância disso. É bem característico que as
únicas narrativas novas e inspiradoras que nós temos do período pós-guerrra dizem
respeito à Grécia arcaica, onde a relativa ausência de narrativas históricas antigas dá aos
estudiosos modernos certo espaço para a originalidade; aqui, nova evidência, novas
formas de evidências e novas abordagens acabaram levando a novas narrativas 56. A
diferença em relação à história clássica ou helenística não poderia ser maior.
Precisamos, então, repensar nossas formas de construir enredos e nossas narrativas.
Abordemos novamente a mesma questão: com o que teriam os historiadores gregos a
contribuir nessa busca? Será que podemos aprender com o desenvolvimentos de seus
enredos? Será que podemos utilizar as suas estratégias narrativas para nossos próprios
fins?
Os grandes historiadores gregos enredavam suas narrativas históricas de várias
maneiras. De acordo com uma recente e engenhosa interpretação de Pascal Payen57,
Heródoto não foi o historiador das guerras entre gregos e persas, como muitos
acadêmicos modernos gostariam que ele fosse. Ao invés disso, seu objeto é uma
narrativa da conquista e da resistência. Heródoto tomou como modelo as Vidas de
grandes monarcas; a estrutura de sua narrativa segue a sucessão de cinco deles (Creso,
Ciro, Cambises, Dario e Xerxes) e suas conquistas. Porém a grande inovação de
Heródoto é a introdução em um discurso histórico de pessoas que resistiram a esses
monarcas; o que os his oria ores mo ernos escre eram como as “par es e nogr ficas”
do trabalho de Heródoto, porque eles não conseguem encaixar na concepção deles das

52
Para questões raciais na história grega, ver caracteristicamente K. O. Müller, Die Dorier, Breslau,
1824; Myres 1930. A eliminação no pós-guerra de tais temas que formam a problématique do historiador
é assinalada por Will 1956.
53
Hobsbawm 1994
54
Uma simples menção aos nomes de Niebuhr, Droysen, Grote, Meyer, Beloch, Rostovtzeff e de Sanctis
seria o suficiente.
55
A exceção óbvia seria o marxista de Ste Croix 1981; e, no entanto, não se trata exatamente de uma
exceção, já que ele não está buscando escrever uma narrativa total da história grega. Ao invés disso, ele
está tentando estabelecer que a análise marxista de classes pode fazer sentido para a história antiga e, ao
fazer isso, ele acaba cobrindo a história inteira dos gregos e romanos. Não é provavelmente um acidente
que uma das poucas histórias narrativas inovadoras de larga escava da Grécia clássica, no período pós-
guerra, tenha vindo de um de seus alunos; Cartledge 1987.
56
Ver consecutivamente Finley 1970; Murray 1980; Osborne 1996c.
57
Payen 1997.

217
Historiê como uma história das Guerras Pérsicas, o fato de que elas são (entre várias
outras coisas, para ser justo)58 uma explicação e descrição por parte de Heródoto de
como populações foram capazes de resistir à conquista. Por um lado, as ethê kai
nomima, e por outro, os espaços que elas ocupavam e utilizavam (nas palavras de
Payen, sua altérité e insularité) eram os meios através dos quais essas populações
conseguiam resistir. Além disso, não obstante a distinção entre gregos e bárbaros, existe
uma distinção mais importante na obra de Heródoto que transpassa a oposição gregos-
bárbaros: é a oposição entre conquistadores e aqueles que resistem. A escolha de
Heródoto de finalizar seu relato com a batalha de Mícale, ao invés de continuar a
descrever as gloriosas vitórias gregas contra os persas até a batalha de Eurimedo, ou
mesmo depois, é um indício de que os próprios atenienses tinham se tornado
conquistadores.
Essa é uma interpretação bastante inspiradora da obra de Heródoto. O método de
Heródoto nos permite superar oposições arraigadas (gregos/ bárbaros,
história/antropologia, descrição/narrativa); mais ainda, o tema conquista/resistência nos
permite observar em perspectiva, simultaneamente, os grandes poderes e aqueles que
resistiram a eles; e, por fim, dadas as conjunturas do nosso mundo atual, trata-se de um
objeto bastante intrigante de ser investigado. Como seria a história dos períodos arcaico
e clássico do Mediterrâneo se nós a narrássemos a partir da perspectiva de Heródoto da
conquista/resistência (isto é, se nós estendêssemos para trás a abordagem de Políbio)?
Tucídides, é claro, escreveu uma grande narrativa de kinêsis, com a Guerra do
Peloponeso funcionando como o maior ponto de culminância até o seu tempo em
relação a esse processo. O ponto central de sua obra é o processo de dynamis e arché, o
processo no qual as pré-condições materiais para a construção da archê e do exercício
da dynamis são criadas, o processo através do qual outras comunidades são dominadas e
os perigos e infortúnios da archê59.
Os exemplos podem se multiplicar. A história grega, tal como nós a encaramos,
desde o séc. XIX até a Segunda Guerra Mundial esteve baseada na metanarrativa da
unificação nacional, das disputas sociais e da emergência do Ocidente. Infelizmente, os
enredos e as metanarrativas dos historiadores gregos têm sido com frequência
descartados pelas narrativas modernas da história grega60.
Não se trata, é claro, de destacar uma forma de enredamento, ou de
metanarrativa usada pelos historiadores antigos e segui-la em nossos relatos. Se nós
concordarmos que a história não é o passado, mas ao invés disso, nossa percepção e
apresentação textual dos vestígios disponíveis do passado, logo deveria estar claro que
não há nenhuma única perspectiva a partir da qual nós devamos ler o passado, tampouco
nenhum enredo que nós tenhamos que seguir. Isso não quer dizer que tudo é permitido,
igualmente correto ou importante. Em sua análise da historiografia do século XIX,
Hayden White observou uma maneira de construir enredos em quatro partes: romance,
tragédia, comédia e sátira61. Eu não vejo nenhuma razão por que um historiador deveria
58
Ver os pontos de Drews 1973: 84–96.
59
Hunter 1982.
60
No entanto, ver, por exemplo, Malkin 1994b.
61
White 1973: 7–11.

218
ser obrigado a adotar uma única forma de enredar sua narrativa. Afinal de contas, a
história tem muitas facetas: ela é romance para algumas pessoas, comédia para outros,
tragédia para muitos e sátira para aqueles sortudos o bastante para conseguir observar.
Frequentemente, a comédia de um é a tragédia de outro. Não há nenhum motivo para
não se adotar uma multiplicidade de perspectivas e uma multiplicidade de enredos e
entrelaçá-las, ao invés de aderir às cegas a uma única perspectiva e uma única grande
narrativa. Como fazer isso, creio eu, não é algo que pode ser estabelecido de antemão.

Uma história vinda de baixo: como juntar os pedaços

Já examinamos quais tipos de enredamentos nós iremos precisar de modo a criar


uma história (ou de fato múltiplas histórias) a partir de nossos materiais; mas como
podemos ser inclusivos, como nós podemos incorporar nossos cacos e pedaços em
nossas histórias? Acredito que, uma vez que reconheçamos a multiplicidade de
perspectivas, níveis, temporalidades e a natureza atenocêntrica fragmentada de nossas
fontes, nossa melhor solução é de recorrer a uma narrativa de larga escala.
Olhemos mais de perto nossas fontes. Os discursos legais atenienses são uma
das melhores fontes de que dispomos para a história social62. Eles se tornam
atenocêntricos somente porque nós tratamos esses discursos como fontes a partir das
quais o historiador extrai sua informação a respeito da sociedade ateniense. Mas se ao
contrário nós os tratamos como narrativas eles imediatamente abrem novas janelas para
um mundo mais amplo. Consideremos o caso de Apolodoro, filho de Pásion63.
Apolodoro foi nomeado trierarca64; ele quer investir abundantemente em sua liturgia
(§§7–10); consequentemente ele manda embora os marinheiros atenienses convocados,
que não eram de muito valor, e contrata seus próprios marinheiros (§§ 7-8), muitos dos
quais devem ter sido metecos ou até mesmo estrangeiros. Ao longo da sua trierarquia
extendida ele navega ao redor de todo o Egeu (passim); ele participa de alguns conflitos
e guerras locais no norte do Egeu e na Trácia (§§20-23); ele vê muitos de seus
marinheiros abandonarem-no para buscar emprego em navios do norte da Grécia (§§
16-17); ele se encontra no local de mercado de Tasos trocando algumas ameaças com
seu oponente ateniense ( §§ 29-30); ele pega dinheiro emprestado de uma rede de
amigos de seu pai na Ásia Menor (§§17-18, 56); ele tem que lidar com as reclamações
de seus marinheiros e a necessidade deles de prover suas famílias (§§11-13).
É só a nossa decisão de tratar esse discurso como uma fonte da história ateniense
que cria um relato atenocêntrico; se nós o tratarmos como uma narrativa, convertendo o
discurso legal de Apolodoro em uma história de sua missão trierárquica, nós abrimos
uma grande janela em relação à vida das classes subalternas, às redes de troca e de
crédito entre os ricos, à história regional do norte do Egeu, à história da ilha de Tasos e
à história interconectada de um mundo egeu mais amplo. É possível, ao contar tal

62
Hunter 1994.
63
Para abordagem convencional: Trevett 1992.
64
Demóstenes, Contra Policles; ver Balin 1978.

219
história, reunir o estudo do poder naval na história do Mediterrâneo, o estudo de redes
de mobilidade, o estudo da história e da arqueologia de Tasos, o estudo de sistemas
regionais de interação e o estudo de intervenção imperial.
Podemos ver aqui como os conceitos alternativos que nós buscamos delinear
podem se encaixar em um jeito alternativo de se escrever história antiga. E como muitas
outras janelas, como muitos outros círculos concêntricos a narrativa de uma tal história
não seria capaz de abrir! Imaginem Apolodoro na ágora de Tasos: não iria ele encontrar
todas aquelas famosas ânforas tasianas de vinho?65 Será que isso não daria ao narrador a
oportunidade de contar a história e a importância dessas ânforas? Preciso lembrá-los de
que nós conhecemos um grande historiador grego que se distingue em ser capaz de
construir exatamente esses tipos de vínculos narrativos?66 Preciso eu argumentar que
existe uma ligação entre a técnica narrativa de Heródoto e sua história não-
helenocêntrica e não-atenocêntrica?
As velhas narrativas estavam preocupadas com os grandes homens, a elite e a
histoire évènementielle. O alargamento do campo da história para incluir a história
social, econômica e cultural levou ao abandono da narrativa em favor de uma análise e
exposição estrutural sincrônica.67 Isso foi, é claro, uma grande vantagem, mas acabou
permitindo de quebra a sobrevivência da velha histoire évènementielle e criou os
problemas das abordagens unidimensionais, funcionalistas e evolucionistas com que nós
viemos lidando. Se nós juntarmos as vantagens de um novo aparato analítico, como o
que eu apresentei neste livro, com as possibilidades apresentadas pela história de
Apolodoro, nós precisamos claramente de um novo tipo de narrativa. A velha história
narrativa não dá espaço a tais histórias; a história social e econômica as desmembram
em análises estruturais e estáticas; como nós podemos proceder atualmente?
Eu não tenho uma resposta simples e não acredito que deve haver apenas uma
única resposta. O que certamente penso é que nós precisamos povoar nossas histórias
com pessoas reais e suas diferentes e divergentes experiências. Esse é o modo mais
seguro e mais fascinante de se transmitir a multiplicidade de perspectivas,
temporalidades, níveis e processos: sem dúvida, a atenção a múltiplas temporalidades,
níveis, processos e perspectivas muda não apenas o conteúdo da história, mas também a
natureza de como a história é contada68.
Deixe-me finalizar com duas sugestões de que tipo de narrativa eu concebo.
Ambas as minhas sugestões olham de volta para formas de narrativa que eram muito
comuns no passado, mas que foram descartadas desde a revolução historicista do século
XIX. Trata-se de mais um caso de como a história da historiografia pode lançar uma luz
sobre como resolver problemas atuais no estudo da história.
A primeira sugestão é a narrativa de viagem. Uma das maneiras mais fascinantes
de se escrever a história no início do período moderno era usar a narrativa de uma
viagem ficcional a fim de apresentar para o público a história, as instituições e a

65
Garlan 1988.
66
Ver de Jong 2002.
67
Ver Stone 1979; Carrard 1992.
68
Ver Klein 1995.

220
interação cultural dos povos do passado69. A Voyage du jeune Anacharsis en Grèce,
ve le l eu du qu è e ècle v n l’è e vul e70 de J. J. Barthélemy foi a obra
mais popular sobre a história grega durante décadas. Barthélemy era um dos mais
distintos estudiosos de seu tempo71; as viagens de Anacharsis reuniu o mais amplo
mundo mediterrâneo durante o período clássico e a obra foi suplementada por volumes
que mostravam as fontes literárias e iconográficas por trás do relato 72. Poderia alguém
imaginar uma história do Mediterrâneo arcaico e do Oriente Próximo melhor do que As
viagens de Demócedes, o médico do sul da Itália que trabalhou para Egina, Atenas e
Polícrates, o tirano de Samos, e que se encontrando na corte persa foi capaz de retornar
novamente à Itália?73
Minha segunda sugestão se refere à necessidade de superar as restrições das
metodologias funcionalistas e estruturalistas empregadas pela maioria dos historiadores
antigos. Em termos de metodologia, tentei mostrar por que os conceitos aristotélicos de
koinôniai e merê fornecem um modo muito melhor de abordar a história social,
econômica e cultural do que as polaridades estruturalistas e os modelos funcionalistas
que são usualmente empregados74. Mas como podemos dar uma forma narrativa a esse
tipo de análise?
Deixe-me dar um exemplo do que tenho em mente: as pessoas escrevem muito a
respei o as percep es gregas o “ u ro” o racismo grego e o espre o grego em
relação aos bárbaros 75; e, é claro, há muita coisa nessas obras que são verdade. Porém,
em parte porque nós estamos acostumados com o tipo de fontes que nós temos76, em
parte porque a maioria dos estudantes de história antiga não tem um treinamento como
historiadores77 de modo a se familiarizarem com o tipo de evidência que outros
historiadores usam e com as conclusões a que eles chegam, parece-me que nós
raramente pensamos o tipo de questões que os historiadores familiarizados com formas
de evidências mais completas se perguntam. Mais ainda, nossa forma não-narrativa de
apresentar esses aspectos cria uma imagem estática e unidimensional.
Imaginem um grego e um fenício bebendo uma taça de vinho após o trabalho no Pireu.
Como que o grego ar icularia seu iscurso so re o “ u ro” r aro Digamos que ele

69
Ver, por exemplo, J. Terrasson, é o , o e, ou V e ée de onu en necdo e de l’ nc enne
Egypte, traduite
d’un nu c ec, Paris, 1731; W. A. Becker, Charicles. Bilder altgriechischer Sitte zur genaueren
Kenntnis des griechischen Privatlebens, I–II, Leipzig, 1840.
70
7 vols., Paris, 1788–9.
71
Ele decifrou o fenício e escreveu grandes ensaios, a maior parte, de caráter antiquário: ver Badolle
1927.
72
J J ar h lemy ecueil e car es g ographiques plans ues e m ailles e l’ancienne rèce rela ifs
au oyage u eune nacharsis pr c ’une analyse cri ique es car es aris 1788; P. J. B.
Chaussar es e cour isanes e la rèce suppl men au oyages ’ nacharsis e ’ n nor –IV,
Paris, 1801.
73
Herodotus, I I I , 125–38.
74
Capítulo 3.
75
Ver, por exemplo, Hartog 1988a; Hall 1989. Cartledge 2002: 51–7 oferece uma apresentação bem
articulada de tais argumentos.
76
Finley 1985c.
77
Ver os comentários de Finley 1963a: 71–3; Reed 2003: 1–2.

221
seja ateniense e ele irá formular um discurso sobre a superioridade da democracia
ateniense em relação ao despotismo oriental; o que o fenício iria responder em troca?
Será que o grego iria falar com o fenício do mesmo modo como ele falaria se estivesse
falando com outro grego? Como é que o verdadeiro contato da vida real com o fenício
influenciaria sua percepção? No Pireu, gregos e fenícios moravam no mesmo bairro,
trabalhavam nas mesmas ruas, suas crianças brincavam na mesma rua e eles enterravam
seus mortos nos mesmos cemitérios. Como é que essa verdadeira experiência vivida
influenciou e formulou a percepção das pessoas? 78
Não dispomos das evidências diretas para responder a essas questões; nenhum
registro de encontros reais ou discussões sobreviveram, mas possuímos alguns pedaços
de evidências que poderiam nos dar uma imagem de uma resposta possível, se nós
fizermos as questões nesses termos. Por exemplo, nós temos uma inscrição ateniense
oficial, que já mencionamos, honrando o rei da Sidônia fenícia, mas garantindo direitos
“àqueles que têm direitos políticos (politeuousi na i nia e que moram l ” em ou ras
palavras, os cidadãos da Sidônia79. Logo, o fenício poderia argumentar que os próprios
atenienses reconheciam que o conceito oriental de despotismo era diferente da realidade
de fato. Como é que os atenienses sabiam que alguns sidonianos tinham direitos
políticos na Sidônia? Certamente, os discursos gregos que nós encontramos nos textos
gregos sobre o despotismo oriental não nos fornecem material para levantar tal
possibilidade. Não seria essa inscrição o resultado desses encontros reais que eu estou
postulando?
Nós temos em Heródoto o diálogo dos persas sobre a constituição e a insistência
do autor de que tal diálogo tenha, de fato, ocorrido, apesar da descrença de alguns de
seus leitores (ou ouvintes)80; então nós vemos pelo menos um grego que acreditava que
os bárbaros eram capazes de pensar e agir por conta própria, ao invés de simplesmente
obedecer a ordens. Como é que ele passou a acreditar nisso? Teria sido por conta de sua
experiência em suas viagens, em sua cidade nativa de Halicarnasso na Cária ou na
multiétnica Atenas?
Nós temos uma inscrição de um túmulo que data de depois de metade do século V. É
um epigrama no es ilo o he me ro hom rico que i o que segue “ ssa a bela
tumba de Manes, o filho de Orimaio, o melhor dentre todos os frígios que já estiveram
na grande Atenas. E, por Zeus, eu nunca vi nenhum cortador de madeira melhor do que
eu le morreu na guerra ”81 Temos, aqui, o epigrama de um estrangeiro, um frígio, que
é um trabalhador manual claramente orgulhoso de seu ofício e suas habilidades
manuais. Mais ainda, é razoável supor que ele tenha morrido lutando por Atenas durante
a Guerra do Peloponeso ou, igualmente possível, em algum outro enfrentamento

78
Para a importância fundamental da experiência real para qualquer análise e suposição histórica, ver o
clássico Thompson 1978.
79
Tod 1948: no. 139.
80
Herodotus, I I I, 80, VI, 43.3.
81
Inscriptiones Graecae, I 3 1361. Naturalmente, de modo previsível o interesse dos poucos historiadores
da antiguidade que lidaram com essa inscrição tenha se focado na sua datação, topografia, língua e
elementos orais do epigrama. Não é de se espantar que as implicações políticas e sociais desse documento
nunca tenham sido seriamente discutidas. Mas ver agora o comentário em Bäbler 1998: 159–63.

222
anterior. Milhares de metecos lutaram ao lado dos atenienses, todas as vezes que Atenas
estava em guerra82. Como o nosso frígio teria conversado com seus colegas atenienses
quando estava servindo o regime ateniense? O que um cidadão de baixa classe ateniense
pensaria quando lesse esse epigrama, enquanto passava para ir trabalhar em sua oficina?
Existem muitas questões com essa que raramente têm sido perguntadas. É possível
pensar discussões entre pessoas livres e escravos, a respeito da natureza da escravidão;
entre ricos e pobres, a respeito da igualdade; entre pessoas que trabalham a respeito do
status do trabalho manual; entre homens e mulheres a respeito da licença feminina. E eu
acredito que os historiadores antigos nos oferecem um exemplo de forma narrativa a ser
usado para se narrar e pensar sobre tais assuntos.
Trata-se, é claro, da fala inventada e de seu acompanhamento: o diálogo. A
brilhante concepção de Heródoto de incluir falas diretas na narrativa histórica83,
imitando uma vez mais o épico, foi abandonada muito facilmente e sem nenhuma
reflexão por parte dos historiadores modernos.84 Seu abandono foi o resultado do
Historismus do século XIX85. Depois do ataque pós-moderno à historiografia, nós
voltamos nossa atenção às convenções metahistóricas e narratológicas por detrás da
escrita histórica. Já que eu faço parte daqueles que acreditam que devemos reter tanto a
objetividade do passado e a subjetividade do nosso modo de estudá-lo, a forma antiga
do discurso inventado tem muito a oferecer a esse respeito.86 Como Keith Hopkins
observou:

Nós lemos as fontes antigas com mentes modernas. E se nós


reportamos o que sabemos em termos quase objetivos e
analíticos, então, inevitavelmente toda nossa linguagem de
entendimento e interpreção está fortemente influenciada pelo
mundo moderno e por aqueles que estão nesse mundo. Não
podemos reproduzir a antiguidade. E a história da religião é
necessariamente subjetiva. Por experiência, sabemos que outros
autores e leitores, muito provavelmente irão, e têm todo o direito
de, discordar. Então por que não incorporamos esse
questionamento empático, esse conhecimento, essa análise
pseudocientífica, essa ignorância, essas suposições que
competem e esses desacordos no texto de um livro?87

82
Adak 2003: 67–72.
83
Ver os comentários de Fornara 1983: 171–3.
84
Sobre o debate a respeito de falas inventadas na historiografia moderna, ver Hicks 1996.
85
Deixe-me impedir de repetir mais uma vez a frase muito usada de Ranke: o desenvolvimento tem, de
toda forma, mais a ver com as concepções tardias da historiografia do século XIX, com Langlois e
Seignobos, muito mais do que com a geração de Ranke; ver Iggers 1968; Carbonnel 1976; Novick 1988.
86
Munz 1997; Lorenz 1998.
87
Hopkins 1999: 2. Esse é um livro inspirador cheio de novas formas narrativas para o estudo da história
antiga.

223
O discurso, ou diálogo, inventado nos dá uma chance de narrativisar tais
questões e transformar nossos pedaços e fragmentos através da interpretação em um
caminho rumo a uma reflexão mais aprofundada88. Mas precisamos de uma
democratização da forma do discurso: queremos incluir em nossas narrativas aqueles
que foram deixados de fora pelo estilo tucidideano de história; queremos dar voz
àqueles a quem essa oportunidade foi negada.
Alguém poderia argumentar: não seria isso uma subversão da distinção entre
história e ficção? Acredito que não. Por um lado, estamos falando sobre situações onde
nós dispomos de evidências, ainda que altamente fragmentadas, sobre o que aconteceu e
como as pessoas enxergaram isso; não estamos falando sobre como fazendeiros do
Neolítico pensavam a respeito da guerra89. Por outro lado, todo trabalho historiográfico
está baseado em procedimentos como esse: perguntar questões baseadas em certas
suposições e inquietações, selecionando a evidência com base em certos procedimentos
aceitos e narrando-se as descobertas de certas maneiras que pressupõem certas
suposições90. A perspicácia de testar a validade de se usar um diálogo inventado na
prosa histórica é a contradição: o que está contido na parte inventada não deve ser
contradito pelo que nós temos como evidência (por exemplo, que os gregos acreditavam
em Alá); ainda que seja perfeitamente aceitável se essa parte estiver em contradição
com algumas fontes, mas apoiada em outras (que é precisamente o propósito de se
empregar tal método, dando-se fala aos que não têm voz). Estou contente de notar que
Nicholas Purcell argumentou em defesa de um procedimento semelhante:

Onde a evidência é particularmente irregular, isso pode ser


combinado com uma investigação contrafactual ao perguntar
questões cujas respostas jamais serão imediatas, mas que nos
deixem sensíveis à anatomia do problema. Logo, nós podemos
imaginar um tipo de homogeneidade cultural que permite um
c lculo nico a ser fei o em orno e coisas como ‘qual a
média mínima do número de navegações anuais entre uma
cidade e outra a fim de promover uma arquitetura religiosa
semelhan e em am as ’ e ‘qual a ensi a e e r fico que po e
ser postulada para se explicar a disseminação de um projeto
mais ou menos canônico de templo ao longo de todo o
e i err neo grego ’ fa o e que al índice é uma

88
Para uma tal abordagem da história de Creta, ver Chaniotis 2000. Nesse volume, cada ensaio lida com
um período particular da história cretense e combina narrativa fictícia e um comentário que acompanha,
estabelecendo as fontes por detrás dessa narrativa fictícia. Se ao menos pudéssemos ver mais esforços
como esse na história antiga...!
89
Isso não quer dizer que não possamos aprender nada sobre como os fazendeiros do Neolítico pensavam
sobre a guerra. Mas os modos de aprendizado nos quais só podemos nos basear em evidências materiais e
em escalas temporais de centenas de anos, que não fazem nenhum sentido na experiência humana real,
são totalmente diferentes daqueles que pertencem ao momento quando dispomos de uma combinação de
evidências enunciadas e materiais dentro de escalas temporais (por exemplo, período de cinquenta anos)
que fazem sentido para uma experiência humana real.
90
Ver Berkhofer 1995.

224
impossibilidade não nos priva de sua utilidade para a construção
de modelos [...] Tais questões possuem respostas reais, embora
elas sejam inverificáveis. Um espectro de possibilidades pode
ser imaginado e nós podemos dizer em que lugar esperamos que
a resposta esteja e por quê.91

A única diferença entre isso e o que estou argumentando é que, tendo-se em


vista a diferença entre os tipos de questões que eu quero responder, que não são
estatísticas mas da ordem da experiência, nós poderíamos tentar dar uma forma
narrativa à resposta a nossas perguntas.
Alguém poderia, é claro, argumentar que a história não tem a ver com a
probabilidade ou a verossimilhança, mas com o que de fato aconteceu 92. O que, é claro,
é verdade; mas, o propósito das partes inventadas não deve ser provar ou convencer,
mas, sim, sugerir. Essa diferença é belamente apreendida no italiano pelos verbos
dimostrare (demonstrar) e mostrare (mostrar)93. E, de fato, acho muito mais honesto
com os leitores restringir nossas sugestões e suposições em partes nitidamente
ficcionais, cujo intento é sugerir e inspirar, do que fazer com que elas entrem pela porta
os fun os em nossa apresen a o “o e i a” iscurso in en a o ao enfa i ar a
is in o en re a apresen a o his rica “o e i a” os “fa os” e a recons ru o his rica
“su e i a” e a in erpre a o po e ser na er a e mais us o com o lei or o que o
usual método histórico. Essa é a solução que eu daria ao problema da evidência: como
conectar nossos cacos e pedaços em uma história única e inclusiva; como introduzir o
subalterno, o periférico e não-grego; como entrelaçar uma variedade de perspectivas em
uma única história.
O que tentei fazer neste capítulo, e de certo modo neste livro como um todo, foi
argumentar que lado a lado com a utilização de metodologias e técnicas modernas da
escrita da história, nós deveríamos nos voltar e estudar seriamente as metodologias, os
gêneros e as técnicas desenvolvidas pelos próprios gregos a fim de analisar e narrar a
história deles. Não se trata de que os gregos inventaram tudo, ou de que eles conheciam
sua sociedade melhor do que nós, mas, ao invés, é apenas o caso de que o estudo da
historiografia nos ensina que não existe um caminho natural para se fazerem as coisas, e
que no processo de desenvolvimento e mudança, muitas coisas valiosas foram perdidas
ou esquecidas. A filosofia política aristotélica, o enredamento de Heródoto, a história
dos atos comuns, a narrativa de viagem e o diálogo inventado são todos exemplos de
formas de análise e de narrativa que podem se provar ainda de enorme valor para a
pesquisa histórica moderna.
Ao invés de elaborar mais, estou contente em observar como Quentin Skinner,
recentemente, fez um apelo semelhante94. Ele mostrou como os humanistas da
Renascença redescobriram a retórica antiga, que argumentava que em questões políticas
e morais, em oposição às ciências matemáticas e ao mundo natural, pode-se e deve-se
91
Purcell 1990: 37.
92
No entanto, ver Hawthorn 1991.
93
Ver Ginzburg 1982.
94
Skinner 1996.

225
sempre argumentar in utramquem partem. O diálogo pode apresentar dois lados sem
eliminar ambiguidades e contradições, usando as técnicas da eloquência para
argumentar o seu caso; é por isso que os humanistas afirmaram que essa seria a melhor
forma expressiva da teoria moral e política, em oposição à forma expositiva das
ciências. Skinner argumenta que os retóricos antigos e os humanistas da Renascença
estavam cientes de algo muito importante, e os teóricos modernos abandonam com
enorme facilidade algo que eles deveriam tentar recapturar. Eu espero que meus
argumentos criem uma discussão semelhante.
Não tentei reescrever a história grega a partir de uma perspectiva diferente neste
estudo; o que busquei foi apenas mostrar que a perspectiva atual é bastante problemática
e que uma perspectiva alternativa é tanto viável como esclarecedora. Mas, como os
ingleses dizem, para provar um pudim é preciso comê-lo. Ao final deste estudo, espero
que até o leitor menos favorável possa me conceder esse tanto: Hic Rhodus, hic saltus.

226

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