Você está na página 1de 32

A Literatura Portuguesa Através dos Textos.

 
Copyright © 1968 Massaud Moisés.
Texto revisto segundo o novo acordo ortográfico da língua
portuguesa.
33ª edição 2012.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser
reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio,
eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema
de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito,
exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou
artigos de revistas.
 
Coordenação editorial: Nilza Agua e Poliana Magalhães Oliveira
Diagramação: Join Bureau
Revisão: Maria Aparecida Salmeron
Produção de ebook: S2 Books
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Moisés, Massaud
A literatura portuguesa através dos textos / Massaud Moisés. – 33. ed.
rev. e ampl. – São Paulo: Cultrix, 2012.
 
ISBN 978-85-316-1154-4
 
1. Literatura portuguesa – História e crítica I. Título.
 
11-09971 CDD-869-09

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura portuguesa : história e crítica 869.09
1ª Edição Digital: 2019
eISBN: 978-85-316-1521-4

Direitos reservados.
EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA.
Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo, SP
Soneto
Carregada de aromas, vem do Oriente
Garbosa nau, que as quinas traz nas velas,
E, sentindo-lhe o olor, nereides belas
Seguem da quilha o sulco refulgente.
 
Mas eis que o fogo pega de repente
No profundo porão, e eis que às estrelas
Chegam as flamas rubras e amarelas,
Das quais se evola um fumo rescendente.
 
Ardida a carga, o galeão salvou-se
E, arca de cinzas, por manhã bem doce,
Docemente aproou em lusa enseada...
 
Como essa nau, ó nau da minha vida,
De perfumes largaste bem provida
Mas chegas só de cinzas carregada. [ 98 ]
 
(Sonetos Escolhidos, Lisboa, Clássica, 1966, pp. 109, 113.)
ANTÔNIO NOBRE
Nasceu no Porto, a 16/8/1867. Feitos os estudos básicos, segue
para Coimbra a fim de estudar Direito. Desgostoso com o ambiente
estudantil, refugia-se em sua “Torre de Anto”. Permanecendo o
desalento, vai procurar em Paris derivativos para sua sensibilidade
ferida e condições para levar avante o curso interrompido. Entra em
contato com o Simbolismo francês, o que será decisivo para sua
carreira poética. As composições escritas nesse tempo, reúne-as no
volume Só (1892), publicado ainda em Paris. Formado, e já sofrendo
os primeiros achaques da tuberculose, volta à pátria, em busca de
saúde e dos mitos da infância. Em vão. Muda-se para a Madeira e, de
lá, para a Suíça e Nova Iorque. Regressa por fim à terra natal e
falece a 18/3/1900. Deixou, além do Só, dois livros de poesia:
Despedidas (1902) e Primeiros Versos (1921).
Memória
Ora isto, Senhores, deu-se em Trás-os-Montes
Em terras de Borba, com torres e pontes.
 
Português antigo, do tempo da guerra,
Levou-o o Destino pra longe da terra
 
Passaram os anos, a Borba voltou,
Que linda menina que, um dia, encontrou!
 
Que linhas fidalgas e que olhos castanhos!
E, um dia, na Igreja correram os banhos.
 
Mais tarde, debaixo dum signo mofino,
Pela lua-nova, nasceu um menino.
 
Ó mães dos Poetas! sorrindo em seu quarto,
Que são virgens antes e depois do parto!
 
Num berço de prata, dormia deitado,
Três moiras vieram dizer-lhe o seu fado
 
(E abria o menino seus olhos tão doces):
“Serás um Príncipe! mas antes... não fosses”.
 
Sucede, no entanto, que o Outono veio
E, um dia, ela resolve ir dar um passeio.
 
Calçou as sandálias, toucou-se de flores,
vestiu-se de Nossa Senhora das Dores:
 
“Vou ali adiante, à Cova, em berlinda,
Antônio, e já volto...” E não voltou ainda!
 
Vai o Esposo, vendo que ela não voltava,
Vai lá ter com ela, por lá se quedava.
 
Ó homem egrégio! de estirpe divina,
De alma de bronze e coração de menina!
 
Em vão corri mundos, não vos encontrei
Por vales que fora, por eles voltei
 
E assim se criou um anjo, o Diabo, o lua;
Ai corre o seu fado! a culpa não é sua!
 
Sempre é agradável ter um filho Virgílio,
Ouvi estes carmes que eu compus no exílio.
 
Ouvi-os vós todos, meus bons Portugueses!
Pelo cair das folhas, o melhor dos meses,
 
Mas, tende cautela, não vos faça mal...
Que é o livro mais triste que há em Portugal!
Viagens na Minha Terra
        Às vezes, passo horas inteiras
        Olhos fitos nestas braseiras,
        Sonhando o tempo que lá vai;
        E jornadeio em fantasia
        Essas jornadas que eu fazia
        Ao velho Douro, mais meu Pai.
 
        Que pitoresca era a jornada!
        Logo, ao subir da madrugada,
        Prontos os dois para partir:
        — Adeus! adeus! é curta a ausência,
        Adeus! — rodava a diligência
        Com campainhas a tinir!
 
        E, dia e noute, aurora a aurora,
        Por essa doida terra fora,
        Cheia de Cor, de Luz, de Som,
        Habituado à minha alcova
        Em tudo eu via coisa nova,
        Que bom era, meus Deus! Que bom!
 
        Moinhos ao vento! Eiras! Solares!
        Antepassados! Rios! Luares!
        Tudo isso eu guardo, aqui ficou:
        Ó paisagem etérea e doce,
        Depois do Ventre que me trouxe,
        A ti devo eu tudo que sou!
 
        No arame oscilante do Fio,
        Amavam (era o mês do cio)
        Lavandiscas e tentilhões...
        Águas do rio vão passando
        Muito mansinhas, mas, chegando
        Ao Mar, transformam-se em leões!
 
        Ao Sol, fulgura o Oiro dos milhos!
        Os lavradores mailos filhos
        A terra estrumam, e depois
        Os bois atrelam ao arado
        E ouve-se além do descampado
        Num ímpeto aos berros: — Eh! bois!
 
        E, enquanto a velha mala-posta,
        A custo vai subindo a encosta
        Em mira ao lar dos meus Avós,
        Os aldeões, de longe, alerta,
        Olham pasmados, boca aberta...
        A gente segue e deixa-os sós.
 
        Que pena faz ver os que ficam!
        Pobres, humildes, não implicam,
        Tiram com respeito o chapéu:
        Outros, passando ao nosso lado,
        Diziam: “Deus seja louvado!”
        “Louvado seja!” dizia eu.
 
        E, meiga, tombava a tardinha...
        No chão, jogando a vermelhinha,
        Outros vejo a discutir.
        Carpiam, místicas, as fontes...
        Água fria de Trás-os-Montes
        Que faz sede só de se ouvir!
 
        E, na subida de Novelas,
        O rubro e gordo Cabanelas
        Dava-me as guias para a mão:
        Isso... queriam os cavalos!
        Que eu não podia chicoteá-los...
        Era uma dor de coração.
 
        Depois, cansados da viagem,
        Repousávamos na estalagem
        (Que era em Casais, mesmo ao dobrar...)
        Vinha a Sra. Ana das Dores
        “Que hão de querer os meus Senhores?
        Há pão e carne para assar...”
 
        Oh! ingênuas mesas, honradas!
        Toalhas brancas, marmeladas!
        Vinho virgem no copo a rir...
        O cuco da sala, cantando...
        (Mas o Cabanelas, entrando,
        Vendo a hora: “É preciso partir”).
 
        Caía a noute. Eu ia fora,
        Vendo uma estrela que lá mora,
        No Firmamento português:
        E ela traçava-me o meu fado
        “Serás Poeta e desgraçado!”
        Assim se disse, assim se fez.
 
        Meu pobre Infante, em que cismavas,
        Por que é que os olhos profundavas
        No Céu sem par do teu País?
        Ias, talvez, moço troveiro,
        A cismar num amor primeiro:
        Por primeiro, logo infeliz...
 
        E o carro ia aos solavancos.
        Os passageiros, todos brancos,
        Ressonavam nos seus gabões:
        E eu ia alerta, olhando a estrada,
        Que em certo sítio, na Trovoada,
        Costumavam sair ladrões.
 
        Ladrões! Ó sonho! Ó maravilha!
        Fazer parte duma quadrilha,
        Rondar, à Lua, entre pinhais!
        Ser Capitão! trazer pistola,
        Mas não roubando, — dando esmolas
        Dependuradas dos punhais...
 
        E a mala-posta ia indo, ia indo,
        O luar, cada vez mais lindo,
        Caía em lágrimas, — e, enfim,
        Tão pontual, às onze e meia,
        Entrava, soberba, na aldeia
        Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim!
 
        Lá vejo ainda a nossa Casa
        Toda de lume, cor de brasa,
        Altiva, entre árvores, tão só!
        Lá se abrem os portões gradeados,
        Lá vêm com velas os criados,
        Lá vem, sorrindo, a minha Avó.
 
        E então, Jesus! quantos abraços!
        — Qu’é dos teus olhos, dos teus braços,
        Valha-me Deus! como ele vem!
        E admirada, com as mãos juntas,
        Toda me enchia de perguntas,
        Como se eu viesse de Belém!
 
        — E os teus estudos, tens-me andado?
        Tomara eu ver-te formado!
        Livre de Coimbra, minha flor!
        Mas vens tão magro, tão sumido...
        Trazes tu no peito escondido,
        E que eu não saiba, algum amor?
 
        No entanto entrava no meu quarto:
        Tudo tão bom, tudo tão farto!
        Que leito aquele! e a água, Jesus!
        E os lençóis! rico cheiro a linho!
        — Vá, dorme, que vens cansadinho.
        Não adormeças com a luz!
 
        E eu deitava-me, mudo e triste.
        ( — Reza também o Terço, ouviste?)
        Versos, bailando dentro em mim...
        Não tinha tempo de ir na sala,
        De novo: — Apaga a luz! — Que rala!
        Descansa, minha Avó, que sim!
 
        Ora, às ocultas, eu trazia,
        No seio, um livro, e lia, lia,
        Garrett da minha paixão...
        Daí a pouco a mesma reza:
        — Não vás dormir de luz acesa,
        Apaga a luz!... (E eu ainda... não!)
 
        E continuava, lendo, lendo...
        O dia vinha já rompendo,
        De novo: — Já dormes, diz?
        — Bff!.. . e dormia com a ideia
        Naquela tia Doroteia,
        De que fala Júlio Dinis.
 
        Ó Portugal da minha infância,
        Não sei que é, amo-te a distância,
        Amo-te mais, quando estou só...
        Qual de nós não teve na Vida
        Uma jornada parecida,
        Ou assim, como eu, uma Avó? [ 99 ]
Soneto
Ó Virgens que passais, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.
 
Cantai-me, nessa voz onipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!
 
Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu Lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas
Que eu vi morrer num sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz... Cantai!
 
(Só, 10ª ed. Porto, Tavares Martins,
1955, pp. 11-12, 73-79, 150.)
 
Estes poemas nos habilitam a conhecer, se não todas, pelo menos
algumas das facetas principais da cosmovisão de Antônio Nobre, e
que fazem dele um poeta fora do comum, precursor da poesia
moderna (João Gaspar Simões, Antônio Nobre, Precursor da Poesia
Moderna, Lisboa, Inquérito, 1939). Note-se, em qualquer dos
poemas, o tom coloquial, narrativo, equivalente ao que Garrett
introduzira na prosa. A poesia, em Antônio Nobre, liberta-se do
espartilho formalista, que constitui uma força de inércia atuante ao
longo da literatura portuguesa, e ganha um à-vontade próprio de
quem obedecia ao pulsar da emoção. Com efeito, poeta emocional
(mas levando a emoção a um grau antes desconhecido, ao menos
em vernáculo), constrói os poemas segundo uma lógica psicológica,
resultante de procurar exprimir o fluxo da consciência, ou exercitar
uma inaudita liberação da linguagem, a ponto de prenunciar a
“linguagem automática”, apanágio, na primeira metade do século
XX, dos poetas de inclinação surrealista. Daí que o “corpo” dos
poemas se nos afigure composto de uma série de estilhaços, ou
melhor, de “manchas” ou “impressões” que se justapõem num
mosaico emotivo de variegada modulação. Tudo isso é moderno;
quando pouco, simbolista. Entretanto, o seu conteúdo poético
orienta-se conforme um vetor de sentido contrário ou destoante.
Explica-se: é patente, nos três exemplos oferecidos, que o poeta vive
sob o signo da tristeza (“É o livro mais triste que há em Portugal!”),
da desgraça (“Serás Poeta e desgraçado!”), da saudade da infância,
do lar paterno, dos pais, etc.; que cultiva, masoquistamente, o
sofrimento e o gosto de pressentir desventuras; que uma onda de
sentimentalismo (quase raiando pelo patético) varre as três
composições. Ora, tais ingredientes remetem para o Romantismo.
Aqui está: Antônio Nobre é uma sensibilidade romântica, expressa
de forma ao mesmo tempo simbolista e moderna. Acontece que o
Simbolismo prolonga e desenvolve o Romantismo, como sabemos. E,
neste caso, não haveria surpresa no fato de ele ser, no âmago, um
poeta romântico. Por outro lado, a sua maneira de ser romântico
tendia a repetir posições estéticas ultrapassadas, em vez de adaptá-
las à conjuntura coeva e desdobrá-las (como faziam os simbolistas
ortodoxos). Esclarecido este ponto, entende-se a razão do seu culto
a Garrett, patente em “Viagens na Minha Terra”, que reproduz,
liricamente, a obra homônima do autor de Camões, sobretudo na
antepenúltima estrofe, quando confessa: “Ora, às ocultas, eu trazia /
No seio, um livro e lia, lia, / Garrett da minha paixão...”. Em suma:
Antônio Nobre retomava o Romantismo dos começos do século XIX,
em razão da sua sensibilidade refinada, desconhecida durante
aquela quadra; e avançava para o futuro, pela descoberta de formas
novas para revestir o velho, ou para comunicar os aspectos novos
que a sua intuição descortinava no velho. É um poeta que emociona
sempre, pelo drama e pelo modo, entre ingênuo e divinatório, como
o transmite.
Menino e Moço
Tombou da haste a flor da minha infância alada.
Murchou na jarra de ouro o pudico jasmim:
Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.
 
Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo com torres de marfim!
 
Mas, hoje, as pombas de ouro, as aves da minha
infância,
Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, a distância!
 
Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus
ais:
Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...
 
(Ibidem, pp. 43-49, 139.)
CAMILO PESSANHA
Nasceu em Coimbra, a 7/9/1867, filho natural de um estudante e
de uma moça do povo. Escreveu o primeiro poema (“Lúbrica”) em
1885. Entre 1887 e 1891, cursa Direito na universidade da cidade
natal. Formado, em 1894 segue para o Oriente (Macau), na
qualidade de professor de liceu; trava amizade com Venceslau de
Morais. Adaptado à cultura oriental, vicia-se em ópio. Ingressa no
funcionalismo público (1900), como Conservador do Registro Predial.
Publica poemas em jornais de província. Visita Portugal algumas
vezes. Numa delas (1915), dita a João de Castro Osório composições
suas, que viriam a ser publicadas em 1920, com o título Clépsidra.
Falece em Macau, a 1º/3/1926. Em 1944, é publicado um volume de
artigos seus referentes à cultura chinesa, sob o título de China.
Inscrição
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
Caminho
I
Tenho sonhos cruéis; n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...
 
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
 
Porque a dor, esta falta d’harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d’agora,
 
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
— Bom dia, companheiro — te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.
 
É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei...
Na venda em que pousaste, onde pousei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.
 
E no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!... Foi no entanto
 
Que choramos a dor de cada um...
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.

III
Fez-nos bem, muito bem, esta demora:
Enrijou a coragem fatigada...
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.
 
Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada...
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora!...
 
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma!...
 
Deixai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar — encher a alma.
Soneto
Ó meu coração, torna para trás.
Onde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou... volvei; longas noites de paz.
 
Vergam da neve, os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
— Cismai, meus olhos, como dois velhinhos...
 
Extintas primaveras evocai-as:
— Já vai florir o pomar das macieiras.
Hemos de enfeitar os chapéus de maias —
 
Sossegai, esfriai, olhos febris.
— E hemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas... Doces vozes senis...
Soneto
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de
linho,
Onde esperei morrer, — meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?
 
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, — tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
— Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
 
Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
 
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.
Soneto
Foi um dia de inúteis agonias.
Dia de sol, inundado de sol!...
Fulgiam nuas as espadas frias...
Dia de sol, inundado de sol!...
 
Foi um dia de falsas alegrias.
Dália a esfolhar-se, — o seu mole sorriso...
Voltavam os ranchos das romarias.
Dália a esfolhar-se, — o seu mole sorriso...
 
Dia impressível mais que os outros dias.
Tão lúcido... Tão pálido... Tão lúcido!...
Difuso de teoremas, de teorias...
 
O dia fútil mais que os outros dias!
Minuete de discretas ironias...
Tão lúcido... Tão pálido... Tão lúcido!...
Soneto
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, por que não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
 
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
— Por que ides sem mim, não me levais?
 
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
— O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...
 
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
— Estranha sombra em movimentos vãos.
 
*
*      *
Chorai, arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
 
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.
 
Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...
 
Trêmulos astros...
Soidões lacustres...
— Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!
 
Umas quebradas!
Blocos de gelo...
— Chorai, arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.
 
(Clépsidra, Lisboa, Ática, 1945, pp. 31, 35-40,
Clepsydra, Campinas, Unicamp,
1994, pp. 43-44, 65-66, 71-72, 77-78, 103-104.)
 
Se Antônio Nobre pode ser considerado romântico retardatário,
Camilo Pessanha é o exemplo acabado de poeta simbolista, como
atestam limpidamente os poemas transcritos. Embora se desligue de
todo compromisso com o passado lusíada, continua preso às raízes
étnicas e culturais. Por outras palavras, a tradição lírica de Portugal
não o inibiu nem lhe condicionou a dicção. Esta parece brotar de
uma inconfundível fonte íntima e pessoal. Por certo que a sua
origem (“Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”) e a
vida no Oriente devem ter colaborado para modelar a sua visão do
mundo, mas são insuficientes para explicá-la no seu todo: para
tanto, há que recorrer às características peculiares da sua
individualidade. Assim, a emoção não irrompe exclusiva nem
predominante na sua poesia (como se verifica na de Antônio Nobre);
ao contrário, ganha força com uma tensão de nervos, a que somente
falta o pertinaz trabalho da inteligência para se tornar moderna. De
qualquer modo, o poeta progride no sentir e no esboçar um
pensamento em torno das sensações, e na forma empregada para o
dizer, a meio caminho para chegar a Fernando Pessoa e Mário de Sá-
Carneiro, que, aliás, dele recolheram algumas lições (compare-se a
sintaxe de “a mesa de eu cear” com o estilo desses dois poetas).
Esse progresso se manifesta pela coerência entre o desconexo da
forma e o desconexo da vida mental que nela se corporifica (note-se
o soneto “Foi um dia de inúteis agonias”). Como que desintegrado no
íntimo, entrevê o mundo real estilhaçado em espasmos de som, de
luz, de cor, — de sensações —, ou como se o espaço fosse o reino do
caos, onde boiam farrapos de seres, coisas e sensações, tudo de
mistura. Daí a Dor, “essa falta d’harmonia”, ser o tema fundamental
do seu lirismo, visto que “sem ela o coração é quase nada”.
Observe-se, de um lado, que o sofrimento de escala cósmica pode
estar vinculado ao pessimismo de Schopenhauer; e, de outro, que
não se trata de dor amorosa, mas de dor existencial, madura, adulta,
viril, — Dor com maiúscula. Ao mesmo tempo, observe-se que o
poeta aprofunda a análise do órgão em que ela se localizaria, o
coração, e procede de um modo que antecipa Fernando Pessoa (“O
meu coração, torna para trás”). É dessa Dor existencial que provém
o horror, ou a náusea, ou o medo da vida (“Sinto um vago receio
prematuro. / Vou a medo na aresta do futuro”), que cedo se converte
em niilismo, desgosto de viver, ânsia de evasão (para fugir à Dor),
num aniquilamento puxado ao budismo: “Oh! Quem pudesse
deslizar sem ruído! / No chão sumir-se, como faz um verme... “. Tudo
isso se ajusta como luva na estética simbolista; mas, como se não
bastasse, ainda encontramos a musicalidade evanescente e pura, à
Verlaine (“Chorai, arcadas”) para completar o quadro. Em conclusão:
pelos poemas que acabamos de ler, parece justo considerar Camilo
Pessanha um dos poetas mais relevantes da literatura portuguesa.
Preliminares

O movimento saudosista tem início em 1910, com a


fundação da revista A Águia, órgão da “Renascença
Portuguesa”, que circulou até 1932, ao longo de três fases.
Teixeira de Pascoaes, que a dirigiu na segunda fase, iniciada
em 1912, tornou-se o mentor e a figura mais relevante da
sua geração. Preconizava que a saudade é palavra sem
equivalente em outras línguas, visto ser um “sentimento-
ideia”, “emoção refletida”, “promessa de uma nova
civilização lusitana”, em suma, uma religião, uma filosofia,
uma política tipicamente portuguesa. Partilharam de suas
ideias, expressas em obras poéticas e em prosa, poetas
como Afonso Duarte, Jaime Cortesão, Augusto Casimiro e,
sobretudo, Mário Beirão, autor de O Último Lusíada (1913),
Ausente (1915), Lusitânia (1917), etc.
TEIXEIRA DE PASCOAES
Teixeira de Pascoaes, nome literário de Joaquim Teixeira de
Vasconcellos, nasceu em Gatão (freguesia do Concelho de Amarante,
distrito do Porto), a 21/7/1877. De família abastada, estudou Direito
em Coimbra, e formou-se em 1901. Inicia então sua carreira literária,
com o livro Sempre (1898), seguido de Terra Proibida, publicado no
ano seguinte. Terminado o curso, tenta a prática do Direito algum
tempo, até que a atividade agrícola e a literária o absorvessem por
completo. Em 1912, começa a dirigir A Águia, órgão da “Renascença
Portuguesa”, e em sua direção permanece até 1916, em meio à
segunda fase da revista. A pouco e pouco vai abandonando a vida
literária em favor da existência bucólica na vila natal, mas continua
a escrever até o fim, a 14/12/1952. Deixou obra numerosa, dividida
entre a poesia (Sempre, 1898; Terra Proibida, 1899; Jesus e Pã, 1903;
Para a Luz, 1904; Vida Etérea, 1906; As Sombras, 1907; Senhora da
Noite, 1909; Marânus, 1911; Regresso ao Paraíso, 1912; Elegias,
1913; O Doido e a Morte, 1913; Cantos Indecisos, 1921; Cânticos,
1925, etc.), e a prosa de vário tipo (O Gênio Português na sua
Expressão Filosófica, Poética e Religiosa, 1913; Arte de Ser
Português, 1915; Os Poetas Lusíadas, 1919; S. Paulo, 1934; O
Homem Universal, 1937; O Penitente — Camilo Castelo Branco,
1942; Santo Agostinho, 1945).
Marânus
Publicado em 1911, Marânus constitui um vasto poema em
dezenove cantos, composto em decassílabos brancos e rimados. O
entrecho gira em tomo de Marânus, figura mítica, entre visionário e
iluminado, que trava contínuos diálogos com símbolos ou seres
sobrenaturais, como Eleonor, a Saudade, a Primavera, a Montanha, o
Outono, Apolo, os Deuses, o Bruxo, a Paisagem, a Pastora, Jesus, D.
Quixote. O fragmento selecionado abrange os primeiros versos do
poema, em que se dá o encontro entre Marânus e Eleonor:

Marânus e Eleonor
Marânus era o ser que divagava,
Consigo, pelo mundo solitário.
A sua própria alma o alimentava
E dava-lhe a beber das suas lágrimas.
 
Empecera-lhe a noite. E, desde então,
Rodeado de espantos e de assombros,
Vive numa perpétua inquietação.
Falho de ânimo e pobre de esperança,
Apenas o salvou da negra morte
Esta misteriosa simpatia,
Que, semelhante à tua lira, Órfeu,
As feras enternece e a luz do dia!
Atrai as selvas virgens que murmuram,
Os inertes penedos taciturnos
E as estrelas do céu que nos procuram,
Com seus olhos de eterna claridade.
 
Por isso, ele ia andando, neste doce
Enlevo da paisagem, neste encanto,
Que paira, magoado, sobre as cousas,
Onde, em silêncio, jaz divino canto...
 
Nos princípios do outono, quando as nuvens
Aparecem nos montes revestidos
De folhinhas doiradas, e, nos vales,
Há frios tons de cinza, umedecidos,
Chegou, já tarde, a um sítio, com pinheiros,
Fragas cheias de musgo, tojo bravo,
Que domina dois íngremes outeiros,
Um rio, verdes campos e a montanha.
 
Ali, parou Marânus. Do infinito,
Uma infinita lágrima descia
E lhe tomava o coração aflito
E perturbado de íntimos receios,
Quando viu, perto dele, uma Figura
Desenhar-se, no escuro do arvoredo,
Em diluídas formas e apagados
Contornos de esplendor e de segredo.
 
E, atônito e surpreso, olhava, olhava,
Aquela milagrosa aparição,
Que, em brumas transcendentes, disfarçava
Seu angélico rosto de mulher.
 
A lua, que era nova e ia espargindo
Um luminoso e vago encantamento,
Nas ermas cousas lívidas, sorrindo,
Mostrou-se, dentre as nuvens, que se abriram.
E Marânus, ao vê-la, mais perfeita,
Banhada em luz, lhe disse, de repente:
 
“Quem és tu? De onde vens? Não te conheço!
És da terra e da vida? Ou simplesmente
Ilusório fantasma de beleza?
Destas sombras que surgem, ao luar
E à superfície vã da Natureza?
Sentimentos aéreos, flutuantes,
Do coração da noite, esparso e oculto?”
 
E o silêncio gemia, trespassado
Pela voz de Marânus, que era um vulto
De som, alada sombra que se ouvia...
 
E a noturna Visão, aproximando-se
Do noturno Viandante:
 
                        “Eu sou aquela
 
Nuvem que teu espírito derrama,
Sobre o mundo, que a sente, como a estrela
Sente, de longe, os olhos que a contemplam.
 
“Eu sou a tua alma aparecida,
Criatura imortal da tua dor!
E vivo, como tu, mas outra vida,
E choro, como tu, mas outras lágrimas...
 
“Um mistério me encobre, e faz de mim
A sombra que te empece...
 
                        Muito em breve,
 
Tu saberás, Marânus, por que vim
À tua soledade...”
 
(Obras Completas, Lisboa, Bertrand, s.d., vol. II, pp. 165-
167.)
 
Bastam estes poucos versos para se perceber o quanto Teixeira de
Pascoaes está substancialmente vinculado à melhor tradição da
poesia portuguesa, sobretudo a do século XIX, na faceta romântica
(João de Deus), ou na realista (Guerra Junqueiro e Antero de
Quental). Na verdade, o início de Marânus, conquanto breve, revela
até que ponto era um romântico extemporâneo; aliás, os próprios
poetas realistas que lhe marcaram a sensibilidade filiavam-se ao
espírito instalado por Garrett em 1825. Mas tudo isso torna Teixeira
de Pascoaes um poeta ainda comprometido com o Simbolismo, ao
menos na medida em que a estética romântica se prolonga nele. A
rigor, o seu enquadramento na estética simbolista obedece também
a outras forças, como, por exemplo, a presença do Vago, do Oculto,
do Mistério, do Sobrenatural. É que a sua adesão à moda simbolista
decorre da íntima afinidade entre a sua constituição e aquela
estética literária. Daí que apenas se pareça com Eugênio de Castro,
Antônio Nobre e Camilo Pessanha de forma geral e esquemática: não
há exagero algum em afirmar-se que trazia o Simbolismo na linfa, de
modo tal que seria simbolista em qualquer tempo e lugar. Por outro
lado, vê-se que supera o “eu odioso”, em cuja sondagem se
compraziam Eugênio de Castro e Antônio Nobre, ou o “eu profundo”,
no qual imergia Camilo Pessanha em companhia da Dor. E com a
superação, muda o “eu” para “ele”, e prepara-se a fim de utilizar o
“nós”, isto é, assumir-se como poeta épico, tornando-se apto a criar
sínteses cósmicas. Note-se que Pascoaes o realiza sem abdicar um
só momento de elaborar grande poesia. Pois bem: essa projeção do
“eu” para fora de si anuncia o Orfismo, por exemplo, de Fernando
Pessoa, apesar das diferenças marcantes entre ambos. Assim,
percebe-se, no encontro entre Marânus e Eleonor, um poeta de alto
fôlego e vasta concepção do mundo, transitando do Simbolismo para
a modernidade, ou seja, ultrapassando o plano da subjetividade
simbolista para o da fusão entre o sujeito e o objeto, operada com o
grupo de Orpheu e seguidores.

Marânus e a Saudade
Marânus, esse amante da montanha,
Ouvira aquela voz, e interpretava
O sentido da Vida que mais belo,
Mais claro e mais profundo se tornava.
O nosso velho mundo-criatura
Era um mundo criador, o ser humano
Um ser divino; e a terra, ingrata e dura,
Um céu verde, de flores esmaltado.
 
E via, além das almas sofredoras,
Esse inefável Reino espiritual...
E, deslumbrado, viu que a Natureza
Fez dele o Paraíso virginal,
Onde vive de amor e de harmonia
A criatura anímica e perfeita.
E viu seu frágil corpo de agonia
Ser o pomar do Fruto sempiterno.
 
E, pelos ermos cerros, divagando
No infinito silêncio e na infinita
Soledade, os seus olhos levantando
Para os astros, já próximos de nós,
Meditava e sentia o coração
No peito, alvoroçado! E tinha assim
Consciência de si própria e, ao mesmo tempo,
De outra existência trágica e sem fim.
 
E as nuvens lhe falavam, de passagem,
Os ventos e os rochedos lhe falavam.
E, entre ele e aquela mística paisagem,
A névoa da distância dissipou-se.
Ela estava integrada em seu espírito;
Seu espírito esparso através dela.
E, ao correr-lhe uma lágrima, na face,
Via também a pequenina estrela,
Que, dos confins da noite dolorida,
Voando, aflita, viera recolher-se
Ao seio dessa lágrima, onde a vida
É apenas humildade e comoção.
.........................................................
E Marânus, em cismas embebido,
Absorto em roxas brumas, contemplava
As distâncias do Limbo indefinido,
Onde, em segredo e sombra, os astros nascem.
E as quebradas, tão íngremes, dos montes,
E os casais, lampejantes e apagados,
Na poeira lilás dos horizontes,
Quando o sol-pôr incide nas vidraças.
O seu gosto era olhar, isto é, criar,
Converter em humano sentimento
A espiritualidade azul do ar,
Cores, perfumes, sons primaveris.
De noite, no luar, se refugiam
Seus olhos, como em templo recatado.
E seus ouvidos íntimos recolhem
Murmúrios do crepúsculo parado...
De dia, a luz ardente o embriagava;
E lhe beijava a face etérea brisa
Que nos longínquos mares se impregnava
De frescuras de espuma e alegres voos
De gaivotas, pousando, em multidão,
No colo vivo e lúcido das ondas.
 
E ali, naquela amável solidão,
As horas conversavam com Marânus.
 
Uma vez, distraído e descansando,
Numa fraga musgosa, de repente,
Viu, diante dele, um vulto de mulher.
E, conhecendo-a, exclama, ansiosamente:
 
“Serás tu, na verdade? Ou refletida
Imagem que, em meus olhos, aparece,
Quando doirada sombra dolorida
Sobe dos ermos vales?
 
                        Mas, agora,
És tu, de mim tão perto! Como és bela!
Eu quero que repouse, no teu seio,
Esta fronte cismática...”
 
                        E a Donzela
Lhe diz, toda contida em seu olhar:
 
“Tu julgas ver aquela que cingiste
Nos teus braços humanos? E, depois,
Abandonada, além... ficou mais triste
Do que uma sombra morta caminhando?
 
“Oh, a doce quimera! Tenho pena
Que esta minha aparência imaginária,
Esta vida translúcida e serena,
Não seja o corpo em flor do teu desejo!
 
“Ah, quem sou eu? Apenas a saudade
Da Pastora que, um dia, te encantou,
À luz do sol, que mostra a realidade
Em que a ilusão noturna se converte.
 
“Sou a eterna saudade que levaste
Dessa pastora, simples e adorada.
E nela foi seu vulto mais perfeito
Do que Jesus na Hóstia consagrada!
 
‘Toda ela existe e sonha, nesta imagem,
Que te contempla, sim! Mas que distância
Entre as formas inertes da paisagem
E a sua etérea sombra espiritual!
 
(Ibidem, pp. 210-211, 212-213.)

III
Sobre a paisagem erma, arrefecida e nua,
A muda ondulação da escuridão flutua.
Onde a treva é mais densa, há gestos doloridos
E vultos, a chorar, que perdem os sentidos.
Uma chuva, miúda e triste, nos beirais,
Põe murmúrios de dor, misteriosos ais...
De tudo a solidão extática dimana,
E parece que tem uma aparência humana
E uns olhos de terror, abertos, espantados...
As cousas são perfis apenas esboçados.
Entre elas e o Infinito há diálogos profundos,
Enche a noite sem fim a ignota voz dos mundos.

Você também pode gostar