Você está na página 1de 44

SUSSUROS DO SAPUCAÍ

Marco Antônio L. A. Corrêa


Marco Antônio L. A. Corrêa

Marco Antônio Lapagesse Alves Corrêa, filho de Antônio Alves Corrêa Netto e Maria
Lapagesse Alves Corrêa, nasceu a 29 de maio de 1941 no Rio de Janeiro e faleceu em 29
de maio de 2017, aos 76 anos.

Casou-se em primeiras núpcias em 29 de maio de 1970, com Maria Filomena Teixeira


Correa, nascida em 22 de setembro de 1946. Desta união nasceram em Brasilia, DF,
Flávio Franco Teixeira Corrêa em 24 de abril de 1973 e Roberto Franco Teixeira Corrêa
(Beto) em 28 de novembro de 1974.

Marco Antonio uniu-se em segundas núpcias com Maria Dalva Pereira da Silva nascida a
30 de maio de 1972.

Formou-se em Direito em 1978 pela UniCEUB – Centro Universitário de Brasília.

Iniciou sua vida profissional trabalhando na Prefeitura do Distrito Federal e fez carreira
na administração pública, na Polícia Civil do DF onde ocupou os cargos de perito e
escrivão e posteriormente como Oficial de Justiça na Justiça Federal.

Sempre foi extremamente ligado à família e aos filhos, seus maiores “tesouros” e sua
principal motivação para viver.

Depois de aposentado dedicou-se, entre outras coisas a escrever algumas memórias dos
tempos de infância e aqui estão partes destes escritos.

Marco Antônio sempre foi uma pessoa extremamente simples, não gostava de luxo e
ostentação, ainda que fosse para ter mais conforto. Isso se percebe até pela forma
simples e pueril com que escreveu este relato que pode ser classificado como um romance
ou uma autobiografia.

Ao mesmo tempo era muito estudioso e tinha gosto refinado para arte e literatura.

Sussuros do Sapucaí Página 1


Marco Antônio L. A. Corrêa

SUSSUROS DO SAPUCAÍ

Tempos Inocentes

1943 - Grajaú. .................................................................................................................................. 3


1944 - Itajubá ................................................................................................................................... 8
1946 - Nascia o Julio César ........................................................................................................... 19
1949 - Nasceu o Carlinhos ............................................................................................................ 24
1950 – Tragédias e mudanças ........................................................................................................ 33

Sussuros do Sapucaí Página 2


Marco Antônio L. A. Corrêa

1943 - Grajaú.

D
esde as quatro horas da tarde, aguardávamos na casa de meu avô,
no Grajaú, o automóvel de aluguel que nos levaria à Central do
Brasil. Estávamos inquietos, menos pela perspectiva da viagem do
que pelo bulício que se instalara na casa. Mamãe mantinha a calma e o humor,
arrumando nas malas coisas de última hora: uma roupinha engomada,
mamadeiras, bolachas e outras minúcias que poderiam ter serventia no trem.

Da cozinha, vinha um cheiro agradável de café que minha avó preparava. Meu
avô cuidava para que nada nos faltasse durante a viagem. Preocupava-se com
pequenos detalhes. Fazia observações aqui e ali, advertia sobre os riscos da
viagem, afirmando que a guerra deflagrada na Europa se fazia sentir no país
e em todo o mundo com escassez de gêneros alimentícios.

Sussuros do Sapucaí Página 3


Marco Antônio L. A. Corrêa

O governo vinha realizando manobras militares, movimentando tropas por


todo o território nacional até às zonas de fronteiras, promovendo o
racionamento de alimentos e de combustível. Não conseguia disfarçar sua
angústia, nem esconder as lágrimas de que teimavam em lhe aflorar aos
olhos. Às cinco foi até o "Verdun" e, meia hora depois, voltava com o
"chauffeur".

Partimos as seis em ponto. Da janela do trem o vi pela última vez em pé.


Morrera anos mais tarde totalmente paralítico. Deixávamos o Rio de Janeiro
rumo ao Sul de Minas, onde já nos aguardava meu pai.

Amanhecemos em Lorena, na divisa de Minas com São Paulo. Papai nos


aguardava na estação juntamente com um tal sargento Hélio que se
desmanchava em atenções para nos agradar. Tomando-me no colo, disparou
à mineira: "Você gosta de mim, bem?" A resposta foi imediata como são as
respostas das crianças: "Gostar eu gosto, mas "bem" eu não sou, não!".

O automóvel que nos levaria a Minas em pouco tempo começara a transpor a


Mantiqueira por entre plantações de marmelos e pessegueiros floridos. O ar
puro e frio das montanhas logo produzira seus efeitos enrubecendo-nos as
faces.

Sussuros do Sapucaí Página 4


Marco Antônio L. A. Corrêa

Após longa e sinuosa subida, na divisa com Bicas, hoje Wenceslau Braz, o vale
do Sapucaí apresentava vegetação exuberante permeada de plantações de
Café e Marmelo. Ali o rio nasce correndo rápido, espumando nas pedras até o
fundo do vale, onde se avoluma e se alarga em remansos profundos em meio
às plantações de milho e pastos verdejantes já no município de Itajubá.

Fomos para um hotel na cidade. Ficava na Praça Wenceslau Braz, esquina com
a Rua Nova, onde um comércio florescente já dava mostras de maior vigor,
prenunciando prosperidade. Eram arrojados comerciantes que se colocavam
altura dos novos tempos. A cidade crescia para as bandas do "Morro Chique",
onde belas casas estavam sendo construídas.

Na janela de um velho sobrado no outro lado da rua uma velhinha tomava


banho de sol todas as manhãs, e como ficássemos confinados no quarto do
hotel no segundo andar, esperando que meu pai chegasse para descermos
para o almoço, comecei a me divertir com a velha para total indignação de
meu irmão mais velho. Da janela do quarto comecei a implicar com ela:

- "Velha coróca!" - gritava eu me abaixando quando ela olhava. "Velha


coróca!". Ney Francisco, sempre bem comportado, incapaz de tamanha

Sussuros do Sapucaí Página 5


Marco Antônio L. A. Corrêa

insolência, não tardou em denunciar-me à minha mãe que estava ocupada


com o cagão do meu outro irmão menor que não parava de chorar.

Éramos então três filhos e minha mãe já estava grávida de novo.

Na frente do hotel havia um pequeno jardim coberto de hortênsias e violetas.


Na pracinha, um coreto imponente era o palco de retretas domingueiras,
quando não servia de palanque para algum político de prestígio em tempos
de eleições.

Do outro lado da pracinha via-se a imponente casa de Wenceslau Braz, que,


conforme me haviam dito, era um velho que tinha sido presidente do Brasil.

A casa mantinha as janelas sempre fechadas de modo que ali não se via
ninguém. Não obstante já existirem nas casas mais abastadas as geladeiras
"Frigidaire" ou "General Eletric", importadas, diziam que o velho presidente
não gostava de água gelada, pois tinha a mania de beber em folha de taioba.
Nunca lhe vi a cara, mesmo anos mais tarde, quando gazeteando as aulas no
ginásio, passava pela pracinha. O único testemunho que ouvi e de que era um
homem honesto.

Sussuros do Sapucaí Página 6


Marco Antônio L. A. Corrêa

Ficamos no hotel por alguns dias até a casa em que iríamos morar ficar pronta.
Ficava próxima ao bar "Sete de Ouros". Meu pai tinha alugado e mandara
pintá-la. Havia também o problema da mudança que só chegaria mais tarde
do Rio de Janeiro. Poucas são as lembranças dessa casa.

Recordo-me apenas de que tinha uma varanda, cuja escada em mármore


branco dava para um pequeno jardim, onde certa vez vi o jardineiro, o seu
Quincas estrebuchando no chão, comendo areia...

Achei estranho e chamei minha mãe. Não sei por quanto tempo moramos ali,
mas foi nessa casa que nasceu minha irmã...

Sussuros do Sapucaí Página 7


Marco Antônio L. A. Corrêa

1944 - Itajubá

N
o ano seguinte mudamos de vez para a Fábrica de Armas. A casa na
rua Coronel Aventino Ribeiro era simpática. Eram dez casas no
mesmo estilo alinhadas em um lado da rua. Haviam outras ruas e
vilas por onde se construíram casas destinadas a moradia de operários e suas
famílias. Do outro lado da rua havia um pequeno comercio que atendia as
necessidades básicas dos moradores da própria Fábrica.

Era uma rua movimentada. Por ali transitavam carroças, charretes,


caminhões, até mesmo um ou outro automóvel, quase sempre um "Chevrolet"
1939, uma camionete "Fargo", que enchia os olhos das crianças ao se
imaginarem hábeis condutores dessas preciosas máquinas, quiçá conduzindo
as senhoras mais abastadas até a cidade onde iam comprar tecidos recém-
chegados às lojas ao gosto da moda ditada pelos figurinos do Rio de Janeiro
e de São Paulo.

O maior movimento porém, era de moradores da própria Fábrica, que


passavam em suas bicicletas, o meio mais comum de transporte usados pelos
moradores, não sendo raro aqueles que, mesmo morando na cidade, as

Sussuros do Sapucaí Página 8


Marco Antônio L. A. Corrêa

preferisse ao trem de manobra que, pontualmente, às sete da manhã,


despejava no "Pacatito" - uma pequena plataforma em frente a Fábrica,
dezenas de operários para a jornada de trabalho que se estendia até às cinco
da tarde. Depois a locomotiva enorme manobrava resfolegante muito próximo
a nossa casa e engatava na extremidade oposta da composição de volta à
cidade. À tarde tudo se repetia. Agora levando os operários para a cidade.

Foi nessa casa que conhecemos "Gilda". Era uma cachorrinha que fez a nossa
alegria já nos primeiros dias. Não sei como nem quando ela chegou. Parece
que já morava na casa. Os antigos donos haviam-na abandonado ao se
mudarem. Tomamos posse dela e ela de nós. Já não era nova; uns pelinhos
brancos salpicavam-lhe o focinho negro, que contrastava harmoniosamente

Sussuros do Sapucaí Página 9


Marco Antônio L. A. Corrêa

com o pelo marrom e liso do resto do corpo. Vivia na varanda, e quando à


noite fazia frio dormia numa cadeira de descanso de encosto alto que
adornava a varanda de piso vermelho impecavelmente encerado.

Já nessa época trabalhavam em nossa casa as irmãs Tiana e Glorinha, que se


revezavam no auxílio das tarefas domésticas, mas que sempre arranjavam
tempo para as brincadeiras e carinhosa atenção com a gente.

- "Lá vai capitão Fonseca!... Com uma perna gorda e outra seca!...
zombávamos escondidos atrás da janela do esbelto militar que passava de
bicicleta em frente a nossa casa , para seus afazeres na Fábrica. Eram além
de tudo nossas pajens como costumavam dizer...

À noite, quando o frio não afugentava as pessoas para o calor de suas casas
junto ao fogão de lenha, reunia-se no "Pacatito" um pessoal bom de violão e
cavaquinho sem faltar, é claro, a cadencia do pandeiro e do tamborim que
emprestavam ritmo aos samba-canções, boleros e chorinhos da época. Eram
Ditinho Cavaquinho repicando seu instrumento com maestria, acompanhado
quase sempre por Izaltino ou, quando o permitia a morena Luzia, por Caetano
no violão.

Sussuros do Sapucaí Página 10


Marco Antônio L. A. Corrêa

Tião Capituva e Joãozinho alternavam-se no pandeiro e no tamborim.


Reproduziam as canções que tocavam nas emissoras do Rio de Janeiro,
sobretudo pela potente Rádio Nacional, cuja penetração, em ondas curtas, no
interior de Minas, como de resto em todo o interior do país se dava de maneira
global.

Todos estavam a par dos grandes sucessos que estouravam nos programas
de auditório da rádio; ouviam com enlevo Francisco Alves, Orlando Silva,
Ângela Maria, Dalva de Oliveira e tantos outros que pontificaram na época.
De São Paulo vinha o som do acordeom de Mario Genari Filho ou da viola de
Tonico e Tinoco e também Cascatinha e Inhana.

O rádio fizera escola. Profissionais de talento atuavam em todos os gêneros


de programas, desde o radio-jornalismo e radio-novelas até os programas
humorísticos, passando, é claro pelos programas de auditório. Quem não se
recorda de Cesar de Alencar e de Ari Barroso? De fato, o rádio refletiu e
influenciou os valores da época até o advento da televisão.

Nuvens escuras acumulavam-se nos cumes da Mantiqueira, nas vertentes do


Sul de Minas. Adivinhava-se chuva grossa. Os pássaros emudeceram
subitamente e procuravam abrigo nas copas das árvores. Um céu de chumbo
prenunciava a noite que se precipitava rapidamente como se o tempo pudesse

Sussuros do Sapucaí Página 11


Marco Antônio L. A. Corrêa

ser adiantado. O relógio marcava cinco horas. O apito da Fábrica ecoou


pontualmente.

A locomotiva manobrou sobre os trilhos produzindo um barulho agudo...

Os operários deixaram a Fábrica; uns a pé, outros em suas bicicletas e, como


sempre, de maneira álacre dirigiam-se para suas casas. O trem apitou pela
segunda vez e partiu levando os operários para a cidade. Após o burburinho,
a calma voltava às ruas. Aqui e ali viam-se um ou outro operário retardatário
buscando um dedo de prosa. As luzes se acenderam no interior das casas. Um
rádio em volume mais alto quebrava o silencio das ruas. Trovões e relâmpagos
acendiam as nuvens no céu escuro e a noite finalmente chegou ameaçadora.
A chuva desabou pela madrugada trazendo rajadas de vento que açoitava as
árvores de maneira impiedosa. A Fábrica mergulhou em sono profundo...

Quando o dia amanheceu, a chuva ainda caía em pancadas intermitentes e


assim continuou nos dias seguintes. A lide na Fábrica não se interrompeu. Ora
era uma charrete que passava, ora alguém passando em sua bicicleta, ou,
então, o seu Antonio, o leiteiro, que sob uma pelerine de couro que lhe cobria
os ombros e um chapéu surrado da lide com o gado, ainda manhãzinha

Sussuros do Sapucaí Página 12


Marco Antônio L. A. Corrêa

entregava o leite nas casas. As poças de água se haviam formado na calçada


eram um convite para brincar:

- Marco, já para dentro! - esbravejou minha mãe.

Não fazia muito tempo, eu tivera crupe. A terapêutica com antibióticos ainda
era muito recente "lá naqueles cafundó” - como costumava dizer a velha
"Chica" com o cigarro de palha na boca murcha - os recursos médicos ainda
eram escassos.

- Espera, já vou! - respondi meio indiferente às ordens de dona Mariazinha.

Estava empenhado em apanhar um filhote de passarinho que se debatia na


poça d'água. Estava todo molhado e não conseguia voar.

- Olha, mamãe! Um filhotinho! Caiu da árvore. Tá todo molhado, coitado!

Mamãe pegou o passarinho, envolveu-o em um paninho branco e o colocou


no canto do fogão. Fiquei contente! À tarde, fui ver o bicho. Livrei-o do
paninho. Já estava seco. Mal o toquei alçou voo para a janela e dali para
árvore de onde havia caído. Fiquei decepcionado, mas feliz...

Meu pai chegou ao anoitecer. Ouvi-o falar que o rio estava enchendo muito
depressa. Depois perguntou se minha mãe tinha ido ao médico. Não lhe
prestei muita atenção e fui bulir com Gilda que estava toda molhada, encolhida
na cadeira da varanda. Anoitecera e a chuva ora fina e fraca, ora forte, não
dava sinais de parar.

A barbearia do seu Miguel ficava no outro lado da rua. Ainda havia gente lá
fosse para cortar cabelo ou mesmo para uma prosa. Atravessei a rua e fui
para lá.

Eram todos adultos, operários que me conheciam e que me davam atenção,


não que eu merecesse, uma vez que eu era um menino travesso, bulhento, e
malcriado. Na verdade era um menino não muito querido pelas demais

Sussuros do Sapucaí Página 13


Marco Antônio L. A. Corrêa

crianças. Brincávamos por alguns momentos até que... Pronto! A porrada


comia solto!

- Marco Antonio!... O que é que você fez!

- Já pra dentro! - gritava minha mãe. Ou então meu pai:

- Seu merda! Só sabe me arrumar confusão!... E lá vinha a mão pesada


espalmada na orelha, ou o cinto cortando as costas ou as pernas:

- Uma semana sem sair de casa! - sentenciava furioso.

No dia seguinte, eu já estava na rua... Todos haviam esquecido a reprimenda,


inclusive eu! Só mesmo Dona Noemia, nossa vizinha , achava graça das
confusões em que eu me metia, sorrindo das minhas peraltices, enquanto eu
lambia-lhe as formas de bolos e o merengue com que ela os confeitava.

Tiana e Glorinha me deferiam alguma cumplicidade, mas advertiam: " Você


não brinca com seu pai! Qualquer hora ele te pega de jeito... Você vai ver o
que é bom!"

Sussuros do Sapucaí Página 14


Marco Antônio L. A. Corrêa

Sob um chapéu bege um tanto molhado da chuva, pendurada em um canto


da parede, havia uma capa de chuva da mesma cor, forrada de cetim, com
botões enormes. Davam um belo par de "backs" no meu jogo de botões.
Encostei-me na capa com as mãos para trás e torci uma, duas, três vezes;
senti a linha arrebentar e puxei... O botão veio fácil. Logo os "backs" estavam
em minhas mãos.

Saí da barbearia como que entediado da conversa dos adultos. Ninguém se


incomodou. Meia-hora depois o negro Gonçalves, de chapéu na cabeça e a
capa dobrada no braço estava na varanda de casa:

- Doutor Alves, me desculpa de incomodar, mas o Marquinho... Fui dormir


aquela noite com a bunda quente e sem os "backs".

O dia amanheceu sob forte chuva. O rio estava cheio. As águas corriam rápido
arrancando barrancos das margens, inundando as várzeas e causando
problemas na cidade quatro quilômetros à jusante. As pessoas procuravam se
acomodar em casas de parentes e amigos ou mesmo na Matriz de Nossa
Senhora da Soledade. Buscavam um abrigo qualquer, acomodando-se como
podiam e a situação permitia. Na Fábrica a situação não era diferente. As
casas mais próximas ao rio ficaram inundadas.

Sussuros do Sapucaí Página 15


Marco Antônio L. A. Corrêa

Em meio a perplexidade geral, o pânico começava a tomar conta das pessoas,


que não sabiam o que fazer... O socorro às vítimas deveu-se ao expediente
de Luiz Caveira, que com habilidade e determinação manobrava sua canoa
em meio a corredeira das águas em direção às casas inundadas, resgatando
seus moradores.

Gilda, a cachorrinha, não conseguia evitar os respingos da chuva que molhava


o chão encerado da varanda; permanecia encolhida na cadeira. Em poucas
horas a enchente tomara proporções alarmantes. O céu escuro da Mantiqueira
desabara sobre o vale do Sapucaí, transformando-o num imenso lago, assim
permanecendo por alguns dias até que, aos poucos, a água foi retornando ao
talvegue, deixando um rastro de lama e destruição sem precedentes na
história de Itajubá.

A chuva continuou caindo devagarzinho. Os barquinhos de papel navegavam


bravamente pelas águas que desciam aos borbotões dos morros e corriam
pela sarjeta até serem tragados pelos bueiros que não davam vazão a tanta
água. Desde que começara a chover não saíamos de casa. As aulas tinham
sido interrompidas.

A estória dos botões correu de boca em boca. Dona Noemia, não se contendo,
ria gostosamente, balançando a pança gorda, tossindo com falta de ar. Sentia-
me um idiota! Tiana ao ver as marcas do cinto em minha bunda, não deixou
por menos: "Não te avisei!" - exclamou com carinhosa cumplicidade.

- Dona Mariazinha, esse menino é mesmo impossível! - disse à minha mãe,


esboçando um sorriso de simpatia.

- É. Mas teve que mereceu. Que vergonha! Coitado do Gonçalves! Tão


bonzinho!... E ao lembrar-se da cara do negro, também não se conteve e riu,
botando a mão na boca.

Sussuros do Sapucaí Página 16


Marco Antônio L. A. Corrêa

Ao final do quinto dia, uma nesga azul apareceu por entre as nuvens alvas
nos cumes da serra dos Toledos. As primeiras estrelas iam surgindo tímidas
distantes na noite escura

No dia seguinte, aos poucos a vida na Fábrica e na cidade ia voltando a sua


normalidade.

Desde que chegamos a Itajubá, a família tinha aumentado com o nascimento


da minha irmã e mamãe estava agora esperando o quinto filho que viria a se
chamar Júlio César. A casa estava ficando pequena. Um pequeno jardim a
circundava e ,ao fundos, um quintalzinho limitado pelo muro nos separava do
"Clube 16 de Julho". Enquanto passava a roupa em um pequeno cômodo no
quintal, Tiana cantarolava os sucessos do rádio. Gostava de cantar as canções
de Izaurinha Garcia, de Elizete Cardoso, incluindo em seu repertório algumas
versões da música latino-americana que dominava o panorama musical da
época. Sua canção preferida, entretanto, era "Nervos de Aço" de Lupcínio
Rodrigues.

Era muito afinadinha, tinha uma voz harmoniosa. Era de uma família de
músicos onde todos dedilhavam o violão, o cavaquinho e também o acordeom
quando aparecia algum emprestado. Izaltino complementava o magro salário
que recebia como operário na Fábrica com aulas de violão para uma ou outra
mocinha mais abastada, quando não acompanhava Chiquinho Sales, o mago
do trombone, ou algum virtuose do acordeom, nos bailes e "arrasta-pés"
desde a Varginha até aos mais longínquos arrabaldes da cidade, sendo
frequente os bailes no "Nova Aurora" a convite de Mario Garcia, o seu
presidente e fundador. Com uma aptidão inata para a música e enorme
religiosidade, tornou-se íntimo do órgão da igreja, passando a tocar nas
missas aos domingos e também em outras cerimônias religiosas. Nunca
bebera nem fumara. Seu único vício era a música. Gostava de criar
passarinhos, dedicando parte do seu tempo a limpar gaiolas, provendo-lhes
de alpiste e água fresca.

Sussuros do Sapucaí Página 17


Marco Antônio L. A. Corrêa

O clube "16 de Julho", onde se praticavam diversas modalidades de esportes,


era o "point" onde se reunia a juventude da Fábrica. Não raro havia jogos
oficiais em comemoração de efemérides significativas, como o próprio 16 de
julho, data de aniversário da Fábrica. Participavam das solenidades várias
delegações de entidades civis e militares do Sul de Minas tais como as de
Bicas, do 4o. Batalhão de Engenharia, sediado em Itajubá; representantes da
fábrica de Piquete, autoridades e convidados ilustres das cidades mais
próximas como Taubaté, Três Corações; assim como as cidades do circuito
das águas: São Lourenço, Caxambú e Cambuquira.

O jogo de futebol era de longe o evento que mais empolgava, sobretudo se a


peleja ocorria contra representações do Rio ou de São Paulo. Destacaram-se
em ocasiões diversas, no time da Fábrica, cognominado o "Esquadrão de Aço",
entre outros , Zé Sarmento, " o maior goleiro do mundo" - como costumava
dizer Dito Mizael - "... um atleta completo!" , arrematava com os olhos cheios
de emoção perdidos em um passado distante.

Mizael era assim mesmo. Um negro simpático, generoso em elogios para com
as pessoas;gente que, em sua maioria, sequer lhe prestava atenção. Era
sempre ele quem lhes dirigia a palavra. Um cumprimento aqui, uma conversa
ligeira mais adiante, um comentário sobre futebol... Nunca fora profundo. Se
a conversa não lhe agradava, limitava-se a ouvir. Nunca falara mal de
ninguém. Quando não gostava de uma pessoa, o que era raro, limitava-se a
um comentário breve, tal como fizera certa vez ao referir-se ao Tenente
Damásio, comandante do Contigente, onde servira, "... um carne de pescoço!"
- afirmara em meio a um sorriso maroto. Gostava mesmo era do seu Luiz da
farmácia com quem trabalhava e de que se fizera amigo para sempre.

Na esteira de Zé Sarmento, o time da Fábrica contou também com Pompeia,


goleiro do América, cognominado "Asa Voadora", em grande evidencia no
futebol carioca nos idos de 1955. Benedito Ernesto, atacante do Fábrica
também mostrou seu talento no Botafogo do Rio de Janeiro.

Sussuros do Sapucaí Página 18


Marco Antônio L. A. Corrêa

1946 - Nascia o Julio César

N
as tardes de domingo, a Fábrica entregava-se a uma preguiça
letárgica. Sob o sol luminoso das montanhas, o tempo parava. A
algaravia dos pássaros nas arvores dava lugar ao canto triste do
sabiá. Só o rio fluía. Em algum lugar distante, um rádio tocava
invariavelmente a dupla Tonico e Tinoco, ou então, Cascatinha e Inhana:

" Meu primeiro amor...

foi como uma flor

que desabrochou

e logo morreu!... "

Quando o calor se abrandava e o frescor da tarde voltava a


prenunciar a noite fria que predomina no Sul de Minas, voltávamos
para a rua, onde brincávamos até o anoitecer: não raro com a presença do
mestre Mario Maia, que, com lúdica pedagogia, estimulava
nossa imaginação e nossa convivência nem sempre pacífica. "Não
foi o homem que desceu da árvore, mas o macaco que nela subiu"
- esclareceu ele certa vez, quando alguém dissera que o homem
descendia do macaco. "Onde está o elemento intermediário?", complementou
- aguçando ainda mais nossa ignorância. Participava, assim, do conviver de
seus filhos com outras crianças sem outra autoridade senão a da inteligência
e meiga paciência.

Às vezes era João Toledo quem nos admoestava por qualquer coisa; depois,
com a voz mansa, gutural, contava uns "causos" em que com sua cartucheira
atirara em onças pintadas que esturravam nas matas lá para as bandas de
Maria da Fé; chegando mesmo, certa vez, uma delas, enorme, a forçar a
porta da cozinha do rancho de seu compadre Belmiro, só não a derrubando
por se dar conta de uma cabrita que estava confinada no curral,
carregando-a pelo pescoço para dentro do mato.

Sussuros do Sapucaí Página 19


Marco Antônio L. A. Corrêa

Quando ela se foi, os dois cachorros magros que viviam com a família
apareceram tremendo, abanando o rabo, felizes por estarem livres da fera.

- Seu João, o Capeta, o cachorrinho menor se mijou todo! Olha


que nem levantava a perninha! - disse Belmiro.

- É, seu João - atalhou Cassimira, mulher de Belmiro - o seu com-


padre também quase se borrou na cozinha, quando viu o tamanho do bicho!...

- Pois é, compadre - interveio Belmiro - quem tem cu tem medo,


não é mesmo!...

Sussuros do Sapucaí Página 20


Marco Antônio L. A. Corrêa

Em meio a algazarra na rua também não faltava a atenção de Juju


Venturelli, que de uma forma ou outra opinava judiciosamente sobre
qualquer divergência objeto de disputa entre as crianças.
Ermínia, sua filha puxava as cantigas de roda em que predominavam
as cirandas de Villa Lobos... Era coisa de meninas. mas para dar as mãos a
elas não era assim tão enfadonho entoarmos "Terezinha de Jesus"...

Sem que percebêssemos, a luz do dia ia se findando. Dormíamos cedo, logo


após o jantar. Nossos sonhos refletiam as impressões recolhidas durante o
dia: os folguedos na rua em frente as casas. Caminhõezinhos de madeira
puxados na calçada. Um peixinho que conseguíssemos capturar num córrego
que passava nos fundos da casa, não raro infestado de sangue sugas. Gilda
latindo, reclamando nossa atenção. Barquinhos de papel navegando nas
sarjetas. Os pés mergulhados até os joelhos numa poça d'agua que ia nos
envolvendo num calor morno, uterino, para depois, inexplicavelmente, ir
esfriando até nos acordar mijados até o pescoço para desespero de mamãe
que tinha que nos trocar o pijama e a roupa de cama.

Júlio nasceu em outubro. Era gordo. Bonito. Dona Dináh, mulher do


Doutor Bueno, médico da Fábrica, muito amiga de minha mãe, chamava-o de
" Portuga "; era muito claro, tinha o rosto rosado e os olhos esverdeados. Era
uma criança calma. Não incomodava. Às vezes, brincávamos no quarto. Eu
gostava de abraçá-lo, de fazer-lhe cócegas, de vê-lo rir...

Ainda muito pequeno gostava de andar na carroça de seu João, pai de Izaltino.
Vivia entretido com seus brinquedos que ganhavam forma e vida na sua
imaginação. Ainda bem cedo, mamãe arrumava a mamadeira que eu levava
até sua cama. Mamava ainda dormindo. Às vezes era difícil fazer com que
aceitasse o bico que dobrava ora para um lado, ora para o outro, pois
mantinha a boca fechada. Então eu me valia de um expediente simples: com
cuidado, colocava o meu dedo em sua boca e imediatamente ele começava a
sugar.

Sussuros do Sapucaí Página 21


Marco Antônio L. A. Corrêa

Não me aguentava de tanto rir! Quando minha mãe percebia, a bronca era
inevitável:

- Marco, seu maluco! Já não falei para não fazer isso?... Então ela mesma
pegava a mamadeira e, com carinho, ajeitava-lhe o bico na boca que
avidamente passava a sugar o leite morno.

- Viu, mamãe, era só pra ele saber que tinha que mamar!... - explicava eu
sem muita convicção...

- Sai daqui! Vai tomar seu leite! - ordenava ela com autoridade.

À mesa, meu pai me olhou enquanto engolia o seu café.

- Bom dia! - disse ele calmamente.

- Bom dia! - respondi, enfiando um pedaço de pão na boca.

Ele continuou me olhando, esperando que eu engolisse o pão, o que fiz com
um gole de leite.

- Bom dia! - insistiu ele.

- Bença, pai!

Ele se levantou e, sem responder, saiu para trabalhar.

A sirene da Fábrica soou às sete horas, pontualmente. Era a primeira


chamada. Dali a quinze minutos, iria soar novamente e os portões para as
oficinas se fechariam. O trem já havia chegado e a locomotiva manobrava
para retornar à cidade. Na rua a agitação logo pela manhã era intensa. Fui
ver Gilda na varanda. Acenei para o Tenente Santinho que passava em sua
bicicleta. Ele me chamava de "Marquito". Era carinhoso com as crianças.

Se nas quadras de tênis, de basquete e de vôlei e no campo de futebol se


podia encontrar entretenimento no esporte; à noite, era no velho cinema que

Sussuros do Sapucaí Página 22


Marco Antônio L. A. Corrêa

se tomava contato com o mundo mágico da representação cinematográfica.


Os canones da moda e do comportamento eram ditados por astros e estrelas
de Hollywood. Havia sessões às terças e quinta-feiras. Aos domingos, além da
sessão noturna havia também matines, quando então para delírio das crianças
se exibiam filmes do Zorro, de Roy-Rogers, do Tarzan ou algum desenho da
Disney.

Não faltavam, é claro, as chanchadas da Atlântida estreladas por Oscarito e


Grande Otelo. Mazaropi e Ankito também faziam a festa da garotada. Às
vezes, éramos contemplados pela generosidade da tesoura do seu Rangel, um
velho baixinho, gordo, careca e mal-humorado, encarregado da projeção
cinematográfica - com pedaços de celuloide de filmes que se rompiam,
interrompendo a projeção em meio a manifestações de desagrado, de um
protesto mudo e geral por parte da plateia. Eram pequenos tesouros que ele
jogava no lixo e que valiam como moeda de troca por algumas bolinhas de
gude, um pião ou lá o que fosse.

Após a sessão de cinema, as pessoas buscavam o calor de suas casas, que


totalmente fechadas pareciam espiar a brisa da noite a brincar nas ruas,
levantando pequenos redemoinhos de areia e terra. Os sacis estavam à
solta...

Sussuros do Sapucaí Página 23


Marco Antônio L. A. Corrêa

1949 - Nasceu o Carlinhos

O
s galos cantavam as horas. Eram quase dez. Todos dormiam
encolhidos sob cobertores pesados; certamente sonhando as
próprias vivências do dia que se findara. Ney Francisco em sua cama,
ao lado da minha, no quarto que dava para a rua, devia estar jogando futebol
no clube, ou pescando mandis e lambaris na palha de arroz que jogavam em
uma pequena vereda do rio. No quarto contíguo, Nando era o Castilho, o
goleiro do Fluminense do Rio de Janeiro, ou então o capitão Marvel que, com
sua capa tremulando ao vento, voava sobre o casario da Fábrica,
decididamente com poderes sobrenaturais indiscutíveis, capazes de reduzir à
insignificância uma bronquite crônica que lhe estiolava o peito franzino. Ía,
era assim que chamávamos Maria Lúcia, sonhava com suas bonecas de pano,
ou com suas panelinhas de flandres em que fazia um arroz supimpa. Júlio
puxava seus caminhõezinhos na calçada, onde também dirigia seu velocípede
vermelho de pneu balão.

Acordei com vontade de urinar. Ainda um tanto sonolento fui ao banheiro.


"Pelo menos dessa vez não mijei na cama" - pensei satisfeito... Papai e mamãe
dormiam no quarto próximo ao banheiro. A porta entreaberta permitia ouvir
um barulho que se repetia num ritimo estranho. Uma luz tênue descia de uma
imagem do Cristo pendurado na parede da sala de jantar, iluminando
parcamente o interior da casa. Fui até aporta do quarto de onde vinha o
barulho. Notei que o barulho "inhec"... "inhec"... "inhec" vinha da cama.

- Pai!...chamei-o meio hesitante, com receio de acordá-lo

- Vai dormir, menino! - esbravejou ele.

Antonio Carlos nasceu em junho. No dia do parto, Glorinha nos levou para sua
casa, próximo ao Pacatito. A parteira tinha chegado por volta das dez horas.

- Vocês hoje vão ficar aqui - disse ela. A cegonha vai trazer um bebê para sua
mãe. Quando vocês voltarem ele já vai estar lá...

Sussuros do Sapucaí Página 24


Marco Antônio L. A. Corrêa

Cinco horas da tarde. O apito da Fábrica soou anunciando o fim da jornada de


trabalho. O trem já havia chegado e agora aguardava o embarque dos
operários. Em breve partiria em direção à cidade. Voltamos para casa. No
meio do caminho encontramos alguns operários conhecidos que também se
dirigiam para seus lares. Nilo Martins esboçou um sorriso, reduzindo a marcha
de sua bicicleta ao passar por nós. Armelim Guimarães, passou sisudo envolto
em seus pensamentos, quiçá voltados para os aspectos cronológicos da
história de Itajubá. Neto de Bernardo Guimarães, herdara o pendor para as
letras, tendo desenvolvido um estilo culto e um rigor metodológico que lhe
projetaram no meio intelectual do Sul de Minas. Trajando um uniforme caqui
de cor azul, próprio da atividade industrial do Exército à época, o rosto
encoberto por espessa barba, sandálias de couro nos pés, major Arlindo,
provocava uma espécie de temor nas crianças, embora nunca lhes dirigisse a
palavra - sequer olhou para nós. Anos mais tarde, aproximando-me de seus
filhos percebi tratar-se de um homem calmo, voltado para as lides intelectuais
de seu tempo.

Sussuros do Sapucaí Página 25


Marco Antônio L. A. Corrêa

Já em casa, cheios de curiosidade, fomos ver o bebê que minha mãe


recostada na cabeceira da cama segurava entre os braços. Lúcia ficou
paralisada ao ver que o bebê choramingava. Mesmo envolto no coeiro mexia
as mãozinhas. Não era como os seus bonecos de pano. Era real... Passados
os primeiros momentos, passado o espanto, mostrou-se inquieta, loquaz.
Nunca a tinha visto assim!... Até que minha mãe, fazendo-a sentar-se ao seu
lado na cama, deixou que ela segurasse o bebê. Acalmou-se...

Tiana ocupava-se na cozinha preparando o jantar, enquanto Glorinha cuidava


do banho do Tuca, apelido que herdara por corruptela de "Portuga".

Fui ver Gilda que estava latindo no portão da casa para meu pai e meu irmão
que chegaram naquele momento. A casa estava um alvoroço. No portão falei
com seu Juju que em sua bicicleta me cumprimentou sorridente. Seu Pacciulo,
marido de dona Noêmia, chegou e abrindo o portão do jardim de sua casa,
entrou sem falar comigo. Gilda aquietou-se na varanda. O trem havia partido
para cidade. As casas iluminaram-se. Aqui e ali ouvia-se o som de um rádio.
Na barbearia do seu Miguel ainda se percebiam algumas pessoas. Os
retardatários de sempre. Após o jantar, ainda fiquei algum tempo na varanda,
olhando a rua agora quase deserta.

Glorinha estava às voltas com Lucia e Fernando que não queriam ir para a
cama. Estavam agitados com a chegada do bebe que de vez em quando
choramingava. Meu pai permaneceu na sala onde lia o jornal e folheava
algumas revistas que comprara. Normalmente fazia isto deitado em sua cama,
ouvindo o rádio que mantinha no criado-mudo. Naquela noite, no entanto, sua
permanência no quarto era impraticável. Ney foi até a alfaiataria onde
certamente se comentavam as últimas notícias sobre futebol.
Tiroleza invariavelmente prorrogava seu expediente até as sete horas da
noite, quando as portas se fechavam. A noite chegou trazendo um vento
brando que brincava nas copas das árvores. Gilda acomodara-se na cadeira
da varanda. Lavei os pés no chuveiro quase frio e fui para a cama.

Sussuros do Sapucaí Página 26


Marco Antônio L. A. Corrêa

O dia amanheceu luminoso. Meu pai certamente não tinha dormido bem à
noite. Quase sem falar, tomou uma xicara de café, foi até a porta do quarto,
falou qualquer coisa com minha mãe e saiu. À medida que acordávamos,
íamos ver o bebe que ora choramingava, ora dormia. Lúcia não deixava o
quarto de minha mãe. Tiana não tinha o sorriso habitual; estava séria, mas
como sempre atenciosa. Glorinha chegaria mais tarde. Dava um jeito na casa
que estava uma bagunça sem os cuidados de mamãe. Fui para o quintal onde
Gilda estava tomando sol. No pequeno jardim ao redor da casa podia-se sentir
o cheiro das violetas e do jasmim que à noite perfumava a casa envolvendo-
nos em um sono profundo.

Dona Noemia foi ver minha mãe. Notara o movimento no dia anterior e o
choro do nenem. Éramos vizinhos. Não era propriamente uma visita, de modo
que sem qualquer cerimônia foi entrando até o quarto de mamãe e indagou:

- Então, Mariazinha, como vai? E este bebezão? Mais um macho, não é


mesmo?

- É, dona Noemia. Mais um...

- E como vai se chamar, Mariazinha?

- Estou pensando em Antonio Carlos, dona Noemia.

Sussuros do Sapucaí Página 27


Marco Antônio L. A. Corrêa

- É um nome bonito!...

- Mas não consegue pegar o peito. Até o momento não consegui alimentá-lo.
Me parece que é meio preguiçoso, embora chore por estar com fome. Estou
ficando preocupada...

Conversaram por mais alguns momentos e, alegando necessidade de avivar


o fogo no fogão a fim de que o almoço estivesse pronto para quando o Pacciulo
chegasse, levantou-se dos pés da cama onde havia sentado e despediu-se:

- Mariazinha, se precisar de alguma coisa mande me chamar. Sei que Tiana é


a pessoa certa para os afazeres da casa, mas não faça cerimonia....

O apito da Fábrica anunciou o horário de almoço. Assim que meu pai chegou,
mamãe comunicou-lhe o fato: Constatara tristemente que não tinha leite nos
peitos...

Por volta das três horas meu pai voltou com o médico da Fábrica. Doutor
Bueno recomendou ante a emergência que fosse dado leite de vaca diluído
em água, fervendo-se a mistura por alguns minutos para que a criança não
ficasse à míngua de alimentação. Ele iria entrar em contato com o pediatra da
Santa Casa e se fosse o caso haveria de remove-la para lá, juntamente com
a criança que agora já quase não chorava, somente dormia. Às vezes
choramingava quando mamãe oferecia a mamadeira, que invariavelmente era
recusada. Se uma ou outra vez conseguia engolir uma pequena porção logo
vomitava. Assim foi durante toda a noite até o amanhecer.

Mamãe estava visivelmente abatida. Meu pai tinha os olhos vermelhos e


parecia cansado. Certamente também não dormira à noite. No quarto onde
conversava com minha mãe ouvi-o dizer que iria trazer o doutor Bueno para
uma nova avaliação e, se fosse o caso, remover o bebe e minha mãe para
Santa Casa, onde certamente haveria os recursos que o caso exigia.

Sussuros do Sapucaí Página 28


Marco Antônio L. A. Corrêa

Esfregou as mãos no rosto com água fria como era de seu costume, penteou-
se, tomou uma xícara de café que Tiana lhe preparara e saiu.

Meio hesitante e visivelmente preocupada, Tiana foi até o quarto de minha


mãe e disse-lhe que sabia de uma mulher que morava na Varginha dera à luz
uma criança havia poucos dias. Era uma negra forte, estava com muito leite
nos peitos. Seu marido trabalhava na Fábrica.

- Se a senhora quiser, conheço a mulher. É uma pessoa boa. Não vai se


negar...

- Sim, Tiana, temos que tentar de tudo. Quem sabe ele aceita o leite de peito,
não é mesmo?

Não demorou muito, meu pai estava de volta com o doutor Bueno. A criança
já quase não se mexia. Já havia se passado quase três dias do parto e minha
mãe ainda não conseguira alimentar o bebe. "

Devíamos ter levado a criança ontem mesmo para a Santa Casa " - disse o
médico. Mamãe ficou lívida. Pensamentos sombrios perpassavam-lhe alma.
Falou com o médico sobre a conversa que tivera com Tiana. Doutor Bueno foi
simpático, mas direto:

- Dona Mariazinha, a senhora faça o que tiver vontade. De qualquer forma


vou entrar em contato com a Santa Casa; vou recomendá-la o doutor Lisboa...

Mamãe pediu para levantar-se. Desejava lavar o rosto, recompor-se.


Lentamente levantou-se e andando devagar deteve-se diante do Cristo
iluminado; erguendo os olhos balbuciou algo ininteligível... Passados alguns
momentos, dirigiu-se a Tiana e indagou: " Como vamos fazer para conseguir
o leite? " Ao que Tiana respondeu que não se preocupasse. Ela mesma iria
buscar.

- Não é longe. Volto logo... não devo me demorar. Volto a tempo de servir o
almoço.

Sussuros do Sapucaí Página 29


Marco Antônio L. A. Corrêa

Era uma manhã clara. O frio da noite aos poucos ia cedendo lugar ao calor
suave do sol de outono. Fui para a rua. Na calçada, em frente as suas casas,
já outras crianças ocupavam-se com qualquer brincadeira. Um jogo com
bolinhas de gude. Um pião na roda. Uma menina magrela pulando corda...
Júlio com seu velocípede vermelho de pneu balão deslizava na calçada. Lucia
ocupava-se com suas bonecas na varanda da casa. Na rua os transeuntes de
sempre. Euclides, filho de dona Dinah, surgiu na calçada. Morava na última
casa. Fui até lá... Era meu amigo. Logo juntou-se a nós João Batista. A rua
ganhava vida. Seu Almeida montando o "Black", um cavalo soberbo, todo
preto, fogoso, sentia-se importante mostrando ao animal quem estava no
comando.

Ao voltar para casa, notei que Tiana já havia chegado. Lucia estava no quarto
de mamãe. Observava o bebe que agora sugava avidamente a mamadeira. A
face de minha mãe iluminara-se de novo e de seus olhos brotava um brilho
de contentamento.

Tiana sorria satisfeita...

Nunca a vi mal humorada. Era de uma alegria discreta. Um jeito de falar


manso, quase confidencial. Coisa de família. Morava em uma vila, próximo à
linha do trem. Era uma família numerosa em que predominavam as mulheres.
Izaltino, o irmão mais velho, assumira a responsabilidade da família após a
morte do pai. Gente simples; revelavam uma dignidade sem arrogância.

Na casa rústica e sempre asseada, mesmo à noite não era raro encontrar-se
um tição ainda em brasa na boca do fogão, onde avivando-se rapidamente o
fogo, podia-se preparar um café para uma visita inesperada. Eram vizinhos
que moravam na mesma rua ou nas proximidades da casa, seus companheiros
de chorinhos e samba-canções, que por ali passavam ao anoitecer de volta
para casa, para uma prosa rápida.

No portão de casa, meu pai conversava com José Sarmento e com Rubens,
seu irmão, que ali haviam parado o velho caminhão Chevrolet para nos

Sussuros do Sapucaí Página 30


Marco Antônio L. A. Corrêa

desejar um feliz Natal. Logo se acercaram Sergio e Luis Carlos Coutinho,


Cleber Malta, bem como o bizarro Pitoca que por ali passavam tornando a
conversa mais animada.

Ney participava do grupo, fazendo uma ou outra observação ainda


que infantil. Tinha por hábito estar com pessoas mais velhas. Já tinha onze
anos. Gostava de futebol e de ouvir rádio. Divertia-se com programas
humorísticos. Colecionava revistas sobre esportes. Era um menino calmo.
Conservava suas roupas organizadas e os sapatos sempre limpos e
engraxados.

Gilda estava inquieta, latindo na calçada em frente a casa. Aos poucos a rua
foi ficando deserta. As pessoas agora recolhiam-se em suas casas para junto
de suas famílias entregarem-se a um momento de paz que só o espírito do
natal era capaz de proporcionar a cada um individualmente. Era hora de
esquecer as tribulações do dia-a-dia, fazer um balanço de suas vidas no ano
que estava prestes a se findar. Um momento de reflexão; de reencontrar-se
a si mesmo. Esquecer mágoas. Perdoar os outros e a si próprio pelos erros
cometidos, mas também recordar momentos felizes, quiçá amores que o

Sussuros do Sapucaí Página 31


Marco Antônio L. A. Corrêa

tempo levara e que então surgiam das brumas de um passado distante. Era a
magia do Natal...

Por volta das cinco horas, Tiana foi para sua casa, não sem antes se despedir
de cada um de nós. Depois de um dia ensolarado e quente para os padrões
do sul de Minas, uma brisa fresca agora fazia tremer as folhas nas copas das
árvores, prenunciando o frescor da noite. Após o jantar, mamãe arrumara as
mamadeiras de Tuca e Lica que já dormiam fazia algum tempo. Lá pelas nove
horas, Lucia também foi se deitar.

Sussuros do Sapucaí Página 32


Marco Antônio L. A. Corrêa

1950 – Tragédias e mudanças

A
inda pela manhã, no clube, ouvi a notícia da morte de "Testa", filho
do seu Mizael. Mergulhara no poço da pedra e não mais voltara. Fui
até lá. Acenderam uma vela em um prato de flandres, colocando-o
cuidadosamente na água para que não afundasse. Diziam que onde o prato
parasse com a vela acesa, ali estaria o corpo. O prato flutuou por alguns
momentos para depois, arrastado pela correnteza, afundar sem salvação,
pondo fim a esperança de quantos o estimavam. Inutilmente, houve quem
mergulhasse na água escura do rio na tentativa do resgate heroico, mas
improvável. Aos poucos as pessoas foram deixando o local, lamentando a
sorte do amigo.
Itajubá era uma cidade pacata. A morte natural de alguém não ensejava,
como ainda hoje, outras considerações senão as manifestações de pesar e
resignação. Tal não se dava, entretanto, se ocorresse de forma violenta.
Assim, durante todos os anos da minha infância vividos às margens do
Sapucaí, o único crime de que tive notícia ocorreu na cidade, nas proximidades
da Praça Teodomiro Santiago, ao lado do Clube Itajubense, na rua Alvaro
Alvim, onde, à noite, se reunia a elite da sociedade local notadamente
representantes da municipalidade, comerciantes bem sucedidos, advogados,
médicos, políticos de prestígio, etc... – todos acompanhados de suas
mulheres, fosse para uma conversa informal, fosse para aplaudir um
espetáculo cultural, não raro apresentado por uma pianista de renome, ou
uma palestra proferida por um conferencista importante.
Ali, Quinzinho desferiu vários tiros de revolver em Mario Sales que faleceu no
local. O fato teve repercussão local, sendo motivo de versões emocionadas
entre as pessoas.
Na Fábrica, a explosão ocorrida na pedreira onde o depósito de dinamites foi
pelos ares, vitimando Tião, um rapaz que morava nas proximidades do
Pacatito enlutou as conversas de quantos comentavam o fato, mostrando-se
consternados com a tragédia.

Sussuros do Sapucaí Página 33


Marco Antônio L. A. Corrêa

Ainda o vi caminhando amparado por dois outros operários em direção ao


posto médico da Fábrica. De seu braço direito pendiam pedaços de carne,
enquanto com o esquerdo segurava as visceras que se lhe desprenderam do
ventre dilacerado. Não houve tempo sequer para encaminhá-lo à Santa Casa.
Morreu ali mesmo no posto médico. Comentou-se o ocorrido por algum tempo,
para depois cair no mais absoluto esquecimento.
Assim também se deu com o suicídio de Ritinha "queijinho". Ingerira
formicida. Os motivos que a levaram ao ato extremo nunca foram
esclarecidos. Suspeitou-se certamente de um amor impossível sufocado no
coração de moça, algo que não se confessa , que não se revela, um segredo
sepultado com a infeliz...
Estávamos agora em 1950. As aulas com dona Mimi eram coisa do passado.
Agora eu já estava no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, na classe de dona
Maria Cândida. Era ali mesmo na Fábrica de modo que eu ia e voltava a pé.
Neyzinho passou a estudar no ginásio, na cidade.
Foi ao voltar para casa, após a aula, que fiquei sabendo que íamos nos mudar
mais uma vez. A família havia crescido. Éramos já seis filhos. A casa em que
morávamos tornara-se pequena.
Meu pai falou com o coronel Josetti, comandante da Fábrica, e conseguira uma
casa maior. Ficava na vila "E", lá no finalzinho da Fábrica. Mais além ficava o
engenho e a fazenda dos Fuad. A casa grande se destacava em meio a
pastagem rasteira que se estendia até a beira do rio. Margeando a estrada de
terra que se prolongava além dos limites da Fábrica, e que, segundo diziam,
se alongava até a confluência do rio Santo Antonio com o Sapucaí, havia a
estrada de ferro da Rede Mineira de Viação, ligando Itajubá a Delfim Moreira.
Mudamos dois dias depois. Estávamos excitados com a novidade.
De fato, a casa era acolhedora. Não era nova, mas era sólida e bem cuidada.
Ficava nos fundos da rua, junto à porteira que dava acesso ao matadouro.
Destacava-se das demais casas da rua, destinadas às famílias de operários
modestos. Gente simples e generosa que nos acolheu com simpatia. No
jardim, por entre roseiras e girassóis vicejavam violetas de suave perfume.
Duas mangueiras (...) . Uma cerca de ripas separava o jardim da área onde

Sussuros do Sapucaí Página 34


Marco Antônio L. A. Corrêa

era confinada a criação. Ali, o capim cucuia vicejava entre jaboticabeiras


carregadas de frutos. Logo no primeiro dia fiz contato com uma garota que
morava na casa em frente. Ela tinha ido pegar um passarinho que se debatia
em uma arapuca no quintal de sua casa.
- Ô menina! - chamei-a. Ela olhou-me séria, sem saber o que eu desejava.
- Me dá esse passarinho? - pedi sem rodeios.
Ela pediu-me que fosse até o portão da casa. Dali a momentos, ela chegou
com o passarinho colocando-o em minhas mãos com um sorriso nos lábios, e
perguntou-me: " O que você vai fazer com ele?". Disse-lhe, então, que iria
soltá-lo.
- Não gosto de passarinho preso. - disse a ela. Isso é coisa de gente que não
tem coração. Onde já se viu prender uma belezura dessas!...
Ali mesmo, no portão, abri as mãos e soltei o passarinho; sem imaginar que,
naquele momento, prendia para sempre o coração daquela menina.
Aos poucos fui conhecendo melhor as pessoas que moravam na rua, fazendo
novas amizades. Eram pessoas simples. Percebi que seus valores tinham por
finalidade outros interesses, quase sempre voltados para as necessidades de
satisfação pessoal. Por ali não havia trânsito de automóvel, nem o "glamour"
do clube 16 de julho ou a quimera dos filmes de Hollywood exibidos no
cinema; seu Almeida não desfilava o "Black", o cavalo preto elegante da
Fábrica, nem seu Antonio passava para entregar o leite.
Em algumas casas, pela manhã, tomava-se café com alguma guloseima,
quase sempre um bolo caseiro ou pedaço de angu frito. Não fosse pelo som
de um rádio em uma ou outra casa na hora do "Angelus", o tempo parecia ter
parado.
Gilda estava inquieta, sem as suas referências habituais. Já não tinha a
varanda de onde observava a rua e o portão onde nos recebia latindo e
abanando o rabo. A cadeira onde à noite se aconchegava estava agora na
varanda que dava para o jardim. Entretanto, parecia feliz...
Agora, divertia-se com o gado que passava pela porteira, tangido para o
matadouro ao comando do aboio vigoroso de Waldemar, auxiliado pelos seus
cães de trabalho e por Labanca com sua voz esganiçada:

Sussuros do Sapucaí Página 35


Marco Antônio L. A. Corrêa

- Aiô, boi!... Êh, boi!... Era um monólogo e um acalanto que todos gostavam
de ouvir.
Às vezes, era preciso campear algum gado alongado que se tresmalhara,
ocultando-se em algum mato mais denso nos morros ou nas margens do rio.
Era quase sempre uma res brava presa pelo laço de couro cru no braço forte
de Waldemar.
A vaca branca movia-se de um lado para o outro na porteira. Zezinha estava
linda. Agora vestia uma camisola branca, diáfana, que deixava ver os seios
empinados e a calcinha; penteava os cabelos em frente ao espelho sobre o
móvel onde guardava suas roupas.
Súbito alguém me tocou carinhosamente falando qualquer coisa que não
entendi de imediato. Esforcei-me para entender o que estava acontecendo.
Zezinha desapareceu de minha visão. Era a voz de minha mãe:
- Meu filho, acorda! Está na hora...
Não atendi ao chamado de mamãe. Estava frio. Queria ficar na cama. Sonhar
com Zezinha. Mamãe chamou-me outra vez:
- Vamos, menino! Levanta! Seu irmão já saiu... Você vai perder o ônibus!
Vamos, acorda! Venha tomar o seu leite...
Sentei-me na cama, colocando os pés para fora sem coragem para me
levantar. O dia estava amanhecendo. Levantei-me. Ainda sonolento fui até a
copa, onde mamãe terminava de passar meu uniforme no ferro de passar
roupas. Mandou que eu me vestisse. O brim ainda quente me fez sentir mais
confortável, mas não diminuiu minha rebeldia para ir para o colégio.
Nunca fora um aluno aplicado. Penso que os professores me ignoravam. O
que efetivamente era melhor para mim. Não que eu não tivesse curiosidade
de aprender... Gostava de ler os tópicos de "O Tesouro da Juventude";
consultava os artigos da enciclopédia que meu pai comprara...
Ana estava na cozinha. Serviu-me o leite com um pedaço de pão dormido,
olhando-me demoradamente. Tomei meu leite e saí.
Na rua o movimento habitual de operários saindo para trabalhar; as janelas
das casas se abrindo e o indefectível som de um rádio com seus programas
matinais davam o tom da mesmice com que o dia se iniciava. Um halo de luz

Sussuros do Sapucaí Página 36


Marco Antônio L. A. Corrêa

do sol refletia nas gotas de orvalho suspensas na sombra da serra da Pedra


Aguda. Da superfície das águas do rio elevavam-se vapores de água que
rapidamente se dissipava na atmosfera.
De longe observei que o ônibus da Fábrica estava parado no local de onde
habitualmente partia para conduzir os alunos ao colégio na cidade. Eu
caminhava vagarosamente, sem pressa.
Notei que o trem que trouxera os operários para a jornada de trabalho havia
chegado. Os vagões vazios aguardavam na plataforma enquanto a "Maria
Fumaça" realizava a manobra para retornar a cidade. De repente, vi o ônibus
se movimentar. Ensaiei correr para alcança-lo. Era inútil. De nada adiantaria
correr.
Rapidamente ganhou velocidade e em segundos já ia longe.
Pensei em voltar para casa e enfrentar a repreensão severa de meu pai que
certamente já se levantara e, agora, estaria tomando o seu café para ir
trabalhar. Ocorreu-me também afastar-me de seu trajeto habitual para não
ter que me encontrar com ele. Iria para a casa de Izaltino.
Queria mesmo estar com Tiana e Glorinha que me cumulavam atenção e
carinho. Mais tarde voltaria para casa... Mamãe certamente me admoestaria,
mas não perderia tempo com repreensões mais enérgicas.
Todavia deparei-me repentinamente com outra possibilidade. Estava ali diante
dos meus olhos. Os vagões do trem aguardando a locomotiva concluir a
manobra. Não havia ninguém em seu interior. Pulei para dentro de um dos
vagões e aguardei sentado em um dos bancos próximo a janela. O transporte
de operários era gratuito.
Era um acordo entre o Exército e a Rede Mineira de Viação (RMV). Após os
solavancos que resultavam do procedimento de engate da locomotiva, a
composição partiu. Como eu estivesse só detive-me a observar o casario que
havia muito eu conhecia no seu conjunto, mas que só agora podia observar
em detalhes. Eram casas modestas, sobretudo na Varginha onde os telhados
escurecidos e as paredes encardidas denunciavam a passagem do tempo.
Sentia-me feliz!

Sussuros do Sapucaí Página 37


Marco Antônio L. A. Corrêa

Recordei-me dos versos de Villas Lobos que Hermínia um dia lera em voz alta
na varanda de sua casa onde reunia seus amigos de cirandas:

"Lá vai o trem com o menino


Lá vai a vida a rodar
Lá via ciranda e destino...
.............................................."

Desci do trem na cidade, no Morro Chic. Era agora caminhar até o colégio.
Ainda encontrei os portões abertos.

Por volta de dez horas, o diretor do colégio, o Professor Antonio Rodrigues de


Oliveira, desculpando-se por interromper a aula, e visivelmente consternado,
comunicou que as aulas não teriam prosseguimento naquele dia em virtude
da morte do Presidente da República - Getúlio Vargas - anunciada momentos
antes em edição extraordinária pelo "Reporter Esso".
As emissoras de rádio do Rio de Janeiro e de São Paulo reproduziam
incessantemente a notícia informando que o Presidente havia se suicidado no
palácio do Catete no Rio de Janeiro, deixando uma carta endereçada ao povo
brasileiro escrita horas antes de sua morte, onde afirmara:

"Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo


coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam,
insultam, e não me dão o direito de defesa..."

Conforme diziam, o governo abalado com as notícias dos próprios escândalos,


que alegava ignorar, vinha sendo alvo de críticas por parte de seus adversários
políticos que se insurgiam contra atos de corrupção que atentavam contra a
moralidade na gestão da coisa pública, alicerçada em medidas populistas, e
que, não obstante se mostrassem a altura de novos tempos, contrariavam
interesses econômicos vigentes à época.

Sussuros do Sapucaí Página 38


Marco Antônio L. A. Corrêa

Finalizava sua carta-testamento com as seguintes palavras:

"... eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio.
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio
da vida para entrar na História".

Nas ruas a comoção era geral.


As emissoras de rádio anunciavam a tragédia que se abatera sobre o Palácio
do Catete, no Rio de Janeiro.
Indiferente à perplexidade que se estampava no rosto das pessoas, decidi,
juntamente com João Batista, voltar para casa a pé. Ainda era cedo e o ônibus
da Fábrica só chegaria mais tarde. Na Varginha, vi o cavalo de Waldemar
parado em frente ao bar da Kelly. O cachorro que o auxiliava na lide estava
deitado do lado de fora. Fui até lá. Waldemar estava bebendo uma
aguardente. Olhou-me com simpatia, esboçando um sorriso e perguntou:
- Tá fazendo o que por aqui, menino?
Expliquei que as aulas haviam sido suspensas, e estava voltando a pé para
casa. Comentou que, também na Fábrica o expediente havia sido
interrompido, com a notícia da morte do presidente. Em seguida pegou a
garrafa que estava sobre o balcão ao lado do chapéu surrado e serviu-se de
mais uma dose que engoliu de uma só vez.
Conversamos por alguns momentos. Pagou a conta; enfiou o chapéu na
cabeça; montou o seu cavalo e partiu. Capeto, o cachorro, levantou-se e o
seguiu... Também eu e João Batista continuamos a caminhada à sombra dos
eucaliptos que margeavam a estrada até a Fábrica. Despedi-me do amigo em
frente à Igreja de Santa Teresinha e continuei caminhando... Ao passar pela
casa de cortina estampada na janela, agora lá estava a menina que sorriu
para mim. Não a conhecia. Sabia que ali morava seu Feliciano. Um senhor já
de idade, operário da Fábrica, que morava só desde que ficara viúvo havia
algum tempo. Era uma jovem bonita. Os olhos castanhos, cabelos lisos caindo
sobre os ombros, a boca sensual esboçava um leve sorriso deixando a mostra
os dentes alvos que contrastavam com a tez cor de trigo sazonado, próprio

Sussuros do Sapucaí Página 39


Marco Antônio L. A. Corrêa

das moças acostumadas ao sol da Mantiqueira. Retribui o sorriso e continuei


andando... olhei para traz e vi que ela me acompanhava com o olhar e mais
uma vez sorriu para mim.
Enquanto caminhava me dei conta de que vinha despertando algum interesse
nas meninas, até mesmo nas mais velhas do que eu. Até então não havia
percebido. As meninas eram dissimuladas.
Aquele dia de luto nacional era também o dia do aniversário de minha irmã.
Alheia aos acontecimentos que suscitavam os mais diversos comentários entre
os adultos, Lucia estava no jardim de casa com suas amigas. Júlio puxava seu
caminhãozinho por estradas imaginárias. Dedé ensaiava os primeiros passos
no jardim sob os cuidados de Lucia e de suas amigas. Tendo me aproximado
delas fui ignorado. Somente Nilda, muito tímida, olhou discretamente para
mim, abaixou a cabeça e permaneceu em silencio.
Mazinho estava me chamando no portão de casa. Fui atendê-lo. Fora me
informar que Tatão queria "me pegar"... No momento não entendi o motivo
da ameaça. Não me recordava de ter feito algo que pudesse provocar nele
motivo para uma desavença comigo. Nada tinha contra ele. Conhecia-o da
rua, mas não fazia parte do grupo de meninos com quem me relacionava.
Mazinho esclareceu-me em seguida:
- Ele não gostou de saber que você anda de prosa com a Manu.
- Não fiz nada demais! Esclareci. Conheci Manu no Barão do Rio Branco. Ao
passar em frente a sua casa, encontrei-a na janela. Conversamos um pouco
e segui o meu caminho.
- É...Mas Tatão não gostou! - insistiu Mazinho.
- Eu não sabia que ele tinha alguma coisa com ela. Mas como ele ficou
sabendo?
À noite, já em minha cama, voltei a pensar na conversa com Mazinho. Eu
estava preocupado. Tatão botara corpo, estava forte! Certamente gostaria de
me enfrentar para afirmar sua superioridade física com o que ganharia maior
respeito ante os demais meninos da rua, embora não fosse capaz de
granjear-lhes a simpatia e a amizade. Eu não iria me acovardar!...

Sussuros do Sapucaí Página 40


Marco Antônio L. A. Corrêa

O frio da noite nos empurrou a todos para debaixo das cobertas. Neyzinho na
cama ao lado já estava dormindo. Uma coruja piando próximo era como uma
cantiga de ninar.
Puxei a coberta pesada e adormeci.
O mês de agosto estava terminando. A estiagem prolongada de inverno
deixara a terra seca e o mato sem vida. A vazante do rio diminuíra deixando
a descoberto pedras em seu leito e areia em suas margens a montante onde
o rio nasce brincando alegremente até encontrar águas serenas e profundas.
A caminho de casa, deparei com um menino comendo terra. Teria uns quatro
ou cinco anos. Fiquei surpreso com o que via, e perguntei intrigado:
- O que é isso, menino? Você está com fome? - Respondeu-me que não.
Então insisti:
- Porque você faz isto?
- Não sei!... Respondeu em meio a um sorriso desconcertado.
Ao chegar em casa, fui surpreendido com a notícia de que Gilda morrera. Fui
vê-la. Estava ali. Imóvel. Os membros já enrijecidos. Mamãe via o fato com
pesar, mas com naturalidade. Entretanto não sabia o que fazer com o animal
morto na varanda do jardim onde costumava ficar. Nando mostrava-se triste
e desalentado. Tuca mantinha-se em silencio. Observava. Parecia não
entender o que estava acontecendo. "Porque Gilda não acordava? Os bois
estavam passando pela porteira, era quando ela latia para eles...
Diziam que ela tinha morrido.
Mas ... o que era a morte? Não sabia..." Mamãe explicou que ela tinha ido
para o céu. Que ela estava correndo e latindo feliz, brincando com os bois nos
campos sem fim do céu infinito. Cobriu-a com um pano branco e levou as
crianças consigo. Meu pai pediu-me que desse um jeito naquilo, mas não me
disse o que fazer. Nunca tocara em Gilda.
Ignorava-a. Nezinho também nunca brincara com ela, nunca a acariciara.
Agora eu que resolvesse o problema. Eu era mesmo um bruto. Um parvo. No
colégio, nunca fora um aluno aplicado. Gostava mesmo era de estar na rua;
caminhar pelos morros e ouvir o barulho do vento no silencio das alturas.

Sussuros do Sapucaí Página 41


Marco Antônio L. A. Corrêa

Meu pai, às vezes, perdia a paciência comigo pois eram frequentes as queixas
contra mim pelos malfeitos e confusões em que me envolvia, colocando-o em
situações desagradáveis. Não me atemorizavam as consequências e as
reprimendas. Era a minha natureza...
Ainda assim tinha a meu favor o fato de, ainda criança e mais tarde na
puberdade, ter sido dentre os filhos o companheiro inseparável de meu pai
que me deferia especial proteção.
Tomei Gilda nos braços envolvida no pano que a cobria e saí em direção ao
rio. Fui só. Era uma página de minha infância que ela tanto alegrara e que,
agora, estava definitivamente virada. Entrei no rio com a água até os joelhos
e deixei-a flutuar até desaparecer completamente. Ao voltar para casa
ninguém perguntou o que tinha feito com Gilda. Eu nada disse...
Cercado pelas montanhas que projetavam suas sombras sobre o vale do
Sapucaí, a noite precipitava-se rapidamente sobre o casario, que se iluminava
ao som da Ave Maria. Logo as primeiras estrelas surgiriam pálidas em um céu
profundo.
Como de hábito, ao final do dia, algumas pessoas reuniam-se num espaço
próximo à entrada da vila em que morávamos, já na estrada de terra que ia
para o Engenho onde disputavam um assento sobre um artefato de cimento
da rede elétrica que ali se encontrava abandonado. Tinha vez uma conversa
tola, vazia, em meio a brincadeiras inocentes e estórias diversas.
Fui para lá. Acomodei-me em um canto onde conversava com Juarez, meu
amigo, quando Tatão surgiu a minha frente, olhando-me de forma
ameaçadora. Era um mulato arrogante. Morava nas proximidades.
Pertencia a uma família simples e educada que, como todos ali, se submetiam
aos costumes ordeiros da Fábrica. Fingi não lhe dar importância, mas fiquei
atento às suas intenções. Percebendo-se ignorado desferiu um chute em meus
pés.
Levantei-me instintivamente.
Ele deu um salto para trás já executando uma coreografia com os braços e
pernas ao estilo de capoeira, sequioso da atenção de todos que ali estavam e
que passaram a observar tentando compreender o que se passava. As pessoas

Sussuros do Sapucaí Página 42


Marco Antônio L. A. Corrêa

não estavam inteiradas dos antecedentes que remetiam a minha conversa


com Manu. Procurando desnortear-me, agitava-se a minha frente em uma
dança frenética. Eu não perdi o foco.
Passou a mão em minha face perguntando-me se eu estava com medo de
enfrentá-lo. Atingiu-me com outro chute em minha perna.
Dei alguns passos em sua direção. Ele sorriu e tentou atingir-me novamente.
Sem medir as consequências, e com a mente vazia, reagi esmurrando-lhe a
face. Ele rodopiou e caiu. No chão, tentava impedir que eu continuasse a
agredi-lo jogando terra e areia em minha direção. Logo os mais velhos que
presenciavam a cena percebendo que Tatão estava em desvantagem me
seguraram e, levantando-o do chão levaram-no para sua casa. Deixei o local
e também fui para casa.
Ao chegar em casa mamãe perguntou porque eu estava todo sujo de terra.
Respondi que fora culpa do Saci que do interior do seu remoinho jogava terra
e areia em quem tentava dele se aproximar. Ana ouvira a explicação e benzeu-
se, pronunciando horrorizada: "Cruz credo!".

Nota do Editor: Marco Antônio não completou esta narrativa.


Em 29 de maio de 2017, data em que estava completando 76
anos, não resistiu a um câncer de pulmão e faleceu.

Sussuros do Sapucaí Página 43

Você também pode gostar