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Marco Antônio Lapagesse Alves Corrêa, filho de Antônio Alves Corrêa Netto e Maria
Lapagesse Alves Corrêa, nasceu a 29 de maio de 1941 no Rio de Janeiro e faleceu em 29
de maio de 2017, aos 76 anos.
Marco Antonio uniu-se em segundas núpcias com Maria Dalva Pereira da Silva nascida a
30 de maio de 1972.
Iniciou sua vida profissional trabalhando na Prefeitura do Distrito Federal e fez carreira
na administração pública, na Polícia Civil do DF onde ocupou os cargos de perito e
escrivão e posteriormente como Oficial de Justiça na Justiça Federal.
Sempre foi extremamente ligado à família e aos filhos, seus maiores “tesouros” e sua
principal motivação para viver.
Depois de aposentado dedicou-se, entre outras coisas a escrever algumas memórias dos
tempos de infância e aqui estão partes destes escritos.
Marco Antônio sempre foi uma pessoa extremamente simples, não gostava de luxo e
ostentação, ainda que fosse para ter mais conforto. Isso se percebe até pela forma
simples e pueril com que escreveu este relato que pode ser classificado como um romance
ou uma autobiografia.
Ao mesmo tempo era muito estudioso e tinha gosto refinado para arte e literatura.
SUSSUROS DO SAPUCAÍ
Tempos Inocentes
1943 - Grajaú.
D
esde as quatro horas da tarde, aguardávamos na casa de meu avô,
no Grajaú, o automóvel de aluguel que nos levaria à Central do
Brasil. Estávamos inquietos, menos pela perspectiva da viagem do
que pelo bulício que se instalara na casa. Mamãe mantinha a calma e o humor,
arrumando nas malas coisas de última hora: uma roupinha engomada,
mamadeiras, bolachas e outras minúcias que poderiam ter serventia no trem.
Da cozinha, vinha um cheiro agradável de café que minha avó preparava. Meu
avô cuidava para que nada nos faltasse durante a viagem. Preocupava-se com
pequenos detalhes. Fazia observações aqui e ali, advertia sobre os riscos da
viagem, afirmando que a guerra deflagrada na Europa se fazia sentir no país
e em todo o mundo com escassez de gêneros alimentícios.
Após longa e sinuosa subida, na divisa com Bicas, hoje Wenceslau Braz, o vale
do Sapucaí apresentava vegetação exuberante permeada de plantações de
Café e Marmelo. Ali o rio nasce correndo rápido, espumando nas pedras até o
fundo do vale, onde se avoluma e se alarga em remansos profundos em meio
às plantações de milho e pastos verdejantes já no município de Itajubá.
Fomos para um hotel na cidade. Ficava na Praça Wenceslau Braz, esquina com
a Rua Nova, onde um comércio florescente já dava mostras de maior vigor,
prenunciando prosperidade. Eram arrojados comerciantes que se colocavam
altura dos novos tempos. A cidade crescia para as bandas do "Morro Chique",
onde belas casas estavam sendo construídas.
A casa mantinha as janelas sempre fechadas de modo que ali não se via
ninguém. Não obstante já existirem nas casas mais abastadas as geladeiras
"Frigidaire" ou "General Eletric", importadas, diziam que o velho presidente
não gostava de água gelada, pois tinha a mania de beber em folha de taioba.
Nunca lhe vi a cara, mesmo anos mais tarde, quando gazeteando as aulas no
ginásio, passava pela pracinha. O único testemunho que ouvi e de que era um
homem honesto.
Ficamos no hotel por alguns dias até a casa em que iríamos morar ficar pronta.
Ficava próxima ao bar "Sete de Ouros". Meu pai tinha alugado e mandara
pintá-la. Havia também o problema da mudança que só chegaria mais tarde
do Rio de Janeiro. Poucas são as lembranças dessa casa.
Achei estranho e chamei minha mãe. Não sei por quanto tempo moramos ali,
mas foi nessa casa que nasceu minha irmã...
1944 - Itajubá
N
o ano seguinte mudamos de vez para a Fábrica de Armas. A casa na
rua Coronel Aventino Ribeiro era simpática. Eram dez casas no
mesmo estilo alinhadas em um lado da rua. Haviam outras ruas e
vilas por onde se construíram casas destinadas a moradia de operários e suas
famílias. Do outro lado da rua havia um pequeno comercio que atendia as
necessidades básicas dos moradores da própria Fábrica.
Foi nessa casa que conhecemos "Gilda". Era uma cachorrinha que fez a nossa
alegria já nos primeiros dias. Não sei como nem quando ela chegou. Parece
que já morava na casa. Os antigos donos haviam-na abandonado ao se
mudarem. Tomamos posse dela e ela de nós. Já não era nova; uns pelinhos
brancos salpicavam-lhe o focinho negro, que contrastava harmoniosamente
- "Lá vai capitão Fonseca!... Com uma perna gorda e outra seca!...
zombávamos escondidos atrás da janela do esbelto militar que passava de
bicicleta em frente a nossa casa , para seus afazeres na Fábrica. Eram além
de tudo nossas pajens como costumavam dizer...
À noite, quando o frio não afugentava as pessoas para o calor de suas casas
junto ao fogão de lenha, reunia-se no "Pacatito" um pessoal bom de violão e
cavaquinho sem faltar, é claro, a cadencia do pandeiro e do tamborim que
emprestavam ritmo aos samba-canções, boleros e chorinhos da época. Eram
Ditinho Cavaquinho repicando seu instrumento com maestria, acompanhado
quase sempre por Izaltino ou, quando o permitia a morena Luzia, por Caetano
no violão.
Todos estavam a par dos grandes sucessos que estouravam nos programas
de auditório da rádio; ouviam com enlevo Francisco Alves, Orlando Silva,
Ângela Maria, Dalva de Oliveira e tantos outros que pontificaram na época.
De São Paulo vinha o som do acordeom de Mario Genari Filho ou da viola de
Tonico e Tinoco e também Cascatinha e Inhana.
Não fazia muito tempo, eu tivera crupe. A terapêutica com antibióticos ainda
era muito recente "lá naqueles cafundó” - como costumava dizer a velha
"Chica" com o cigarro de palha na boca murcha - os recursos médicos ainda
eram escassos.
Meu pai chegou ao anoitecer. Ouvi-o falar que o rio estava enchendo muito
depressa. Depois perguntou se minha mãe tinha ido ao médico. Não lhe
prestei muita atenção e fui bulir com Gilda que estava toda molhada, encolhida
na cadeira da varanda. Anoitecera e a chuva ora fina e fraca, ora forte, não
dava sinais de parar.
A barbearia do seu Miguel ficava no outro lado da rua. Ainda havia gente lá
fosse para cortar cabelo ou mesmo para uma prosa. Atravessei a rua e fui
para lá.
O dia amanheceu sob forte chuva. O rio estava cheio. As águas corriam rápido
arrancando barrancos das margens, inundando as várzeas e causando
problemas na cidade quatro quilômetros à jusante. As pessoas procuravam se
acomodar em casas de parentes e amigos ou mesmo na Matriz de Nossa
Senhora da Soledade. Buscavam um abrigo qualquer, acomodando-se como
podiam e a situação permitia. Na Fábrica a situação não era diferente. As
casas mais próximas ao rio ficaram inundadas.
A estória dos botões correu de boca em boca. Dona Noemia, não se contendo,
ria gostosamente, balançando a pança gorda, tossindo com falta de ar. Sentia-
me um idiota! Tiana ao ver as marcas do cinto em minha bunda, não deixou
por menos: "Não te avisei!" - exclamou com carinhosa cumplicidade.
Ao final do quinto dia, uma nesga azul apareceu por entre as nuvens alvas
nos cumes da serra dos Toledos. As primeiras estrelas iam surgindo tímidas
distantes na noite escura
Era muito afinadinha, tinha uma voz harmoniosa. Era de uma família de
músicos onde todos dedilhavam o violão, o cavaquinho e também o acordeom
quando aparecia algum emprestado. Izaltino complementava o magro salário
que recebia como operário na Fábrica com aulas de violão para uma ou outra
mocinha mais abastada, quando não acompanhava Chiquinho Sales, o mago
do trombone, ou algum virtuose do acordeom, nos bailes e "arrasta-pés"
desde a Varginha até aos mais longínquos arrabaldes da cidade, sendo
frequente os bailes no "Nova Aurora" a convite de Mario Garcia, o seu
presidente e fundador. Com uma aptidão inata para a música e enorme
religiosidade, tornou-se íntimo do órgão da igreja, passando a tocar nas
missas aos domingos e também em outras cerimônias religiosas. Nunca
bebera nem fumara. Seu único vício era a música. Gostava de criar
passarinhos, dedicando parte do seu tempo a limpar gaiolas, provendo-lhes
de alpiste e água fresca.
Mizael era assim mesmo. Um negro simpático, generoso em elogios para com
as pessoas;gente que, em sua maioria, sequer lhe prestava atenção. Era
sempre ele quem lhes dirigia a palavra. Um cumprimento aqui, uma conversa
ligeira mais adiante, um comentário sobre futebol... Nunca fora profundo. Se
a conversa não lhe agradava, limitava-se a ouvir. Nunca falara mal de
ninguém. Quando não gostava de uma pessoa, o que era raro, limitava-se a
um comentário breve, tal como fizera certa vez ao referir-se ao Tenente
Damásio, comandante do Contigente, onde servira, "... um carne de pescoço!"
- afirmara em meio a um sorriso maroto. Gostava mesmo era do seu Luiz da
farmácia com quem trabalhava e de que se fizera amigo para sempre.
N
as tardes de domingo, a Fábrica entregava-se a uma preguiça
letárgica. Sob o sol luminoso das montanhas, o tempo parava. A
algaravia dos pássaros nas arvores dava lugar ao canto triste do
sabiá. Só o rio fluía. Em algum lugar distante, um rádio tocava
invariavelmente a dupla Tonico e Tinoco, ou então, Cascatinha e Inhana:
que desabrochou
Às vezes era João Toledo quem nos admoestava por qualquer coisa; depois,
com a voz mansa, gutural, contava uns "causos" em que com sua cartucheira
atirara em onças pintadas que esturravam nas matas lá para as bandas de
Maria da Fé; chegando mesmo, certa vez, uma delas, enorme, a forçar a
porta da cozinha do rancho de seu compadre Belmiro, só não a derrubando
por se dar conta de uma cabrita que estava confinada no curral,
carregando-a pelo pescoço para dentro do mato.
Quando ela se foi, os dois cachorros magros que viviam com a família
apareceram tremendo, abanando o rabo, felizes por estarem livres da fera.
Ainda muito pequeno gostava de andar na carroça de seu João, pai de Izaltino.
Vivia entretido com seus brinquedos que ganhavam forma e vida na sua
imaginação. Ainda bem cedo, mamãe arrumava a mamadeira que eu levava
até sua cama. Mamava ainda dormindo. Às vezes era difícil fazer com que
aceitasse o bico que dobrava ora para um lado, ora para o outro, pois
mantinha a boca fechada. Então eu me valia de um expediente simples: com
cuidado, colocava o meu dedo em sua boca e imediatamente ele começava a
sugar.
Não me aguentava de tanto rir! Quando minha mãe percebia, a bronca era
inevitável:
- Marco, seu maluco! Já não falei para não fazer isso?... Então ela mesma
pegava a mamadeira e, com carinho, ajeitava-lhe o bico na boca que
avidamente passava a sugar o leite morno.
- Viu, mamãe, era só pra ele saber que tinha que mamar!... - explicava eu
sem muita convicção...
- Sai daqui! Vai tomar seu leite! - ordenava ela com autoridade.
Ele continuou me olhando, esperando que eu engolisse o pão, o que fiz com
um gole de leite.
- Bença, pai!
O
s galos cantavam as horas. Eram quase dez. Todos dormiam
encolhidos sob cobertores pesados; certamente sonhando as
próprias vivências do dia que se findara. Ney Francisco em sua cama,
ao lado da minha, no quarto que dava para a rua, devia estar jogando futebol
no clube, ou pescando mandis e lambaris na palha de arroz que jogavam em
uma pequena vereda do rio. No quarto contíguo, Nando era o Castilho, o
goleiro do Fluminense do Rio de Janeiro, ou então o capitão Marvel que, com
sua capa tremulando ao vento, voava sobre o casario da Fábrica,
decididamente com poderes sobrenaturais indiscutíveis, capazes de reduzir à
insignificância uma bronquite crônica que lhe estiolava o peito franzino. Ía,
era assim que chamávamos Maria Lúcia, sonhava com suas bonecas de pano,
ou com suas panelinhas de flandres em que fazia um arroz supimpa. Júlio
puxava seus caminhõezinhos na calçada, onde também dirigia seu velocípede
vermelho de pneu balão.
Antonio Carlos nasceu em junho. No dia do parto, Glorinha nos levou para sua
casa, próximo ao Pacatito. A parteira tinha chegado por volta das dez horas.
- Vocês hoje vão ficar aqui - disse ela. A cegonha vai trazer um bebê para sua
mãe. Quando vocês voltarem ele já vai estar lá...
Fui ver Gilda que estava latindo no portão da casa para meu pai e meu irmão
que chegaram naquele momento. A casa estava um alvoroço. No portão falei
com seu Juju que em sua bicicleta me cumprimentou sorridente. Seu Pacciulo,
marido de dona Noêmia, chegou e abrindo o portão do jardim de sua casa,
entrou sem falar comigo. Gilda aquietou-se na varanda. O trem havia partido
para cidade. As casas iluminaram-se. Aqui e ali ouvia-se o som de um rádio.
Na barbearia do seu Miguel ainda se percebiam algumas pessoas. Os
retardatários de sempre. Após o jantar, ainda fiquei algum tempo na varanda,
olhando a rua agora quase deserta.
Glorinha estava às voltas com Lucia e Fernando que não queriam ir para a
cama. Estavam agitados com a chegada do bebe que de vez em quando
choramingava. Meu pai permaneceu na sala onde lia o jornal e folheava
algumas revistas que comprara. Normalmente fazia isto deitado em sua cama,
ouvindo o rádio que mantinha no criado-mudo. Naquela noite, no entanto, sua
permanência no quarto era impraticável. Ney foi até a alfaiataria onde
certamente se comentavam as últimas notícias sobre futebol.
Tiroleza invariavelmente prorrogava seu expediente até as sete horas da
noite, quando as portas se fechavam. A noite chegou trazendo um vento
brando que brincava nas copas das árvores. Gilda acomodara-se na cadeira
da varanda. Lavei os pés no chuveiro quase frio e fui para a cama.
O dia amanheceu luminoso. Meu pai certamente não tinha dormido bem à
noite. Quase sem falar, tomou uma xicara de café, foi até a porta do quarto,
falou qualquer coisa com minha mãe e saiu. À medida que acordávamos,
íamos ver o bebe que ora choramingava, ora dormia. Lúcia não deixava o
quarto de minha mãe. Tiana não tinha o sorriso habitual; estava séria, mas
como sempre atenciosa. Glorinha chegaria mais tarde. Dava um jeito na casa
que estava uma bagunça sem os cuidados de mamãe. Fui para o quintal onde
Gilda estava tomando sol. No pequeno jardim ao redor da casa podia-se sentir
o cheiro das violetas e do jasmim que à noite perfumava a casa envolvendo-
nos em um sono profundo.
Dona Noemia foi ver minha mãe. Notara o movimento no dia anterior e o
choro do nenem. Éramos vizinhos. Não era propriamente uma visita, de modo
que sem qualquer cerimônia foi entrando até o quarto de mamãe e indagou:
- É um nome bonito!...
- Mas não consegue pegar o peito. Até o momento não consegui alimentá-lo.
Me parece que é meio preguiçoso, embora chore por estar com fome. Estou
ficando preocupada...
O apito da Fábrica anunciou o horário de almoço. Assim que meu pai chegou,
mamãe comunicou-lhe o fato: Constatara tristemente que não tinha leite nos
peitos...
Por volta das três horas meu pai voltou com o médico da Fábrica. Doutor
Bueno recomendou ante a emergência que fosse dado leite de vaca diluído
em água, fervendo-se a mistura por alguns minutos para que a criança não
ficasse à míngua de alimentação. Ele iria entrar em contato com o pediatra da
Santa Casa e se fosse o caso haveria de remove-la para lá, juntamente com
a criança que agora já quase não chorava, somente dormia. Às vezes
choramingava quando mamãe oferecia a mamadeira, que invariavelmente era
recusada. Se uma ou outra vez conseguia engolir uma pequena porção logo
vomitava. Assim foi durante toda a noite até o amanhecer.
Esfregou as mãos no rosto com água fria como era de seu costume, penteou-
se, tomou uma xícara de café que Tiana lhe preparara e saiu.
- Sim, Tiana, temos que tentar de tudo. Quem sabe ele aceita o leite de peito,
não é mesmo?
Não demorou muito, meu pai estava de volta com o doutor Bueno. A criança
já quase não se mexia. Já havia se passado quase três dias do parto e minha
mãe ainda não conseguira alimentar o bebe. "
Devíamos ter levado a criança ontem mesmo para a Santa Casa " - disse o
médico. Mamãe ficou lívida. Pensamentos sombrios perpassavam-lhe alma.
Falou com o médico sobre a conversa que tivera com Tiana. Doutor Bueno foi
simpático, mas direto:
- Não é longe. Volto logo... não devo me demorar. Volto a tempo de servir o
almoço.
Era uma manhã clara. O frio da noite aos poucos ia cedendo lugar ao calor
suave do sol de outono. Fui para a rua. Na calçada, em frente as suas casas,
já outras crianças ocupavam-se com qualquer brincadeira. Um jogo com
bolinhas de gude. Um pião na roda. Uma menina magrela pulando corda...
Júlio com seu velocípede vermelho de pneu balão deslizava na calçada. Lucia
ocupava-se com suas bonecas na varanda da casa. Na rua os transeuntes de
sempre. Euclides, filho de dona Dinah, surgiu na calçada. Morava na última
casa. Fui até lá... Era meu amigo. Logo juntou-se a nós João Batista. A rua
ganhava vida. Seu Almeida montando o "Black", um cavalo soberbo, todo
preto, fogoso, sentia-se importante mostrando ao animal quem estava no
comando.
Ao voltar para casa, notei que Tiana já havia chegado. Lucia estava no quarto
de mamãe. Observava o bebe que agora sugava avidamente a mamadeira. A
face de minha mãe iluminara-se de novo e de seus olhos brotava um brilho
de contentamento.
Na casa rústica e sempre asseada, mesmo à noite não era raro encontrar-se
um tição ainda em brasa na boca do fogão, onde avivando-se rapidamente o
fogo, podia-se preparar um café para uma visita inesperada. Eram vizinhos
que moravam na mesma rua ou nas proximidades da casa, seus companheiros
de chorinhos e samba-canções, que por ali passavam ao anoitecer de volta
para casa, para uma prosa rápida.
No portão de casa, meu pai conversava com José Sarmento e com Rubens,
seu irmão, que ali haviam parado o velho caminhão Chevrolet para nos
Gilda estava inquieta, latindo na calçada em frente a casa. Aos poucos a rua
foi ficando deserta. As pessoas agora recolhiam-se em suas casas para junto
de suas famílias entregarem-se a um momento de paz que só o espírito do
natal era capaz de proporcionar a cada um individualmente. Era hora de
esquecer as tribulações do dia-a-dia, fazer um balanço de suas vidas no ano
que estava prestes a se findar. Um momento de reflexão; de reencontrar-se
a si mesmo. Esquecer mágoas. Perdoar os outros e a si próprio pelos erros
cometidos, mas também recordar momentos felizes, quiçá amores que o
tempo levara e que então surgiam das brumas de um passado distante. Era a
magia do Natal...
Por volta das cinco horas, Tiana foi para sua casa, não sem antes se despedir
de cada um de nós. Depois de um dia ensolarado e quente para os padrões
do sul de Minas, uma brisa fresca agora fazia tremer as folhas nas copas das
árvores, prenunciando o frescor da noite. Após o jantar, mamãe arrumara as
mamadeiras de Tuca e Lica que já dormiam fazia algum tempo. Lá pelas nove
horas, Lucia também foi se deitar.
A
inda pela manhã, no clube, ouvi a notícia da morte de "Testa", filho
do seu Mizael. Mergulhara no poço da pedra e não mais voltara. Fui
até lá. Acenderam uma vela em um prato de flandres, colocando-o
cuidadosamente na água para que não afundasse. Diziam que onde o prato
parasse com a vela acesa, ali estaria o corpo. O prato flutuou por alguns
momentos para depois, arrastado pela correnteza, afundar sem salvação,
pondo fim a esperança de quantos o estimavam. Inutilmente, houve quem
mergulhasse na água escura do rio na tentativa do resgate heroico, mas
improvável. Aos poucos as pessoas foram deixando o local, lamentando a
sorte do amigo.
Itajubá era uma cidade pacata. A morte natural de alguém não ensejava,
como ainda hoje, outras considerações senão as manifestações de pesar e
resignação. Tal não se dava, entretanto, se ocorresse de forma violenta.
Assim, durante todos os anos da minha infância vividos às margens do
Sapucaí, o único crime de que tive notícia ocorreu na cidade, nas proximidades
da Praça Teodomiro Santiago, ao lado do Clube Itajubense, na rua Alvaro
Alvim, onde, à noite, se reunia a elite da sociedade local notadamente
representantes da municipalidade, comerciantes bem sucedidos, advogados,
médicos, políticos de prestígio, etc... – todos acompanhados de suas
mulheres, fosse para uma conversa informal, fosse para aplaudir um
espetáculo cultural, não raro apresentado por uma pianista de renome, ou
uma palestra proferida por um conferencista importante.
Ali, Quinzinho desferiu vários tiros de revolver em Mario Sales que faleceu no
local. O fato teve repercussão local, sendo motivo de versões emocionadas
entre as pessoas.
Na Fábrica, a explosão ocorrida na pedreira onde o depósito de dinamites foi
pelos ares, vitimando Tião, um rapaz que morava nas proximidades do
Pacatito enlutou as conversas de quantos comentavam o fato, mostrando-se
consternados com a tragédia.
- Aiô, boi!... Êh, boi!... Era um monólogo e um acalanto que todos gostavam
de ouvir.
Às vezes, era preciso campear algum gado alongado que se tresmalhara,
ocultando-se em algum mato mais denso nos morros ou nas margens do rio.
Era quase sempre uma res brava presa pelo laço de couro cru no braço forte
de Waldemar.
A vaca branca movia-se de um lado para o outro na porteira. Zezinha estava
linda. Agora vestia uma camisola branca, diáfana, que deixava ver os seios
empinados e a calcinha; penteava os cabelos em frente ao espelho sobre o
móvel onde guardava suas roupas.
Súbito alguém me tocou carinhosamente falando qualquer coisa que não
entendi de imediato. Esforcei-me para entender o que estava acontecendo.
Zezinha desapareceu de minha visão. Era a voz de minha mãe:
- Meu filho, acorda! Está na hora...
Não atendi ao chamado de mamãe. Estava frio. Queria ficar na cama. Sonhar
com Zezinha. Mamãe chamou-me outra vez:
- Vamos, menino! Levanta! Seu irmão já saiu... Você vai perder o ônibus!
Vamos, acorda! Venha tomar o seu leite...
Sentei-me na cama, colocando os pés para fora sem coragem para me
levantar. O dia estava amanhecendo. Levantei-me. Ainda sonolento fui até a
copa, onde mamãe terminava de passar meu uniforme no ferro de passar
roupas. Mandou que eu me vestisse. O brim ainda quente me fez sentir mais
confortável, mas não diminuiu minha rebeldia para ir para o colégio.
Nunca fora um aluno aplicado. Penso que os professores me ignoravam. O
que efetivamente era melhor para mim. Não que eu não tivesse curiosidade
de aprender... Gostava de ler os tópicos de "O Tesouro da Juventude";
consultava os artigos da enciclopédia que meu pai comprara...
Ana estava na cozinha. Serviu-me o leite com um pedaço de pão dormido,
olhando-me demoradamente. Tomei meu leite e saí.
Na rua o movimento habitual de operários saindo para trabalhar; as janelas
das casas se abrindo e o indefectível som de um rádio com seus programas
matinais davam o tom da mesmice com que o dia se iniciava. Um halo de luz
Recordei-me dos versos de Villas Lobos que Hermínia um dia lera em voz alta
na varanda de sua casa onde reunia seus amigos de cirandas:
Desci do trem na cidade, no Morro Chic. Era agora caminhar até o colégio.
Ainda encontrei os portões abertos.
"... eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio.
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio
da vida para entrar na História".
O frio da noite nos empurrou a todos para debaixo das cobertas. Neyzinho na
cama ao lado já estava dormindo. Uma coruja piando próximo era como uma
cantiga de ninar.
Puxei a coberta pesada e adormeci.
O mês de agosto estava terminando. A estiagem prolongada de inverno
deixara a terra seca e o mato sem vida. A vazante do rio diminuíra deixando
a descoberto pedras em seu leito e areia em suas margens a montante onde
o rio nasce brincando alegremente até encontrar águas serenas e profundas.
A caminho de casa, deparei com um menino comendo terra. Teria uns quatro
ou cinco anos. Fiquei surpreso com o que via, e perguntei intrigado:
- O que é isso, menino? Você está com fome? - Respondeu-me que não.
Então insisti:
- Porque você faz isto?
- Não sei!... Respondeu em meio a um sorriso desconcertado.
Ao chegar em casa, fui surpreendido com a notícia de que Gilda morrera. Fui
vê-la. Estava ali. Imóvel. Os membros já enrijecidos. Mamãe via o fato com
pesar, mas com naturalidade. Entretanto não sabia o que fazer com o animal
morto na varanda do jardim onde costumava ficar. Nando mostrava-se triste
e desalentado. Tuca mantinha-se em silencio. Observava. Parecia não
entender o que estava acontecendo. "Porque Gilda não acordava? Os bois
estavam passando pela porteira, era quando ela latia para eles...
Diziam que ela tinha morrido.
Mas ... o que era a morte? Não sabia..." Mamãe explicou que ela tinha ido
para o céu. Que ela estava correndo e latindo feliz, brincando com os bois nos
campos sem fim do céu infinito. Cobriu-a com um pano branco e levou as
crianças consigo. Meu pai pediu-me que desse um jeito naquilo, mas não me
disse o que fazer. Nunca tocara em Gilda.
Ignorava-a. Nezinho também nunca brincara com ela, nunca a acariciara.
Agora eu que resolvesse o problema. Eu era mesmo um bruto. Um parvo. No
colégio, nunca fora um aluno aplicado. Gostava mesmo era de estar na rua;
caminhar pelos morros e ouvir o barulho do vento no silencio das alturas.
Meu pai, às vezes, perdia a paciência comigo pois eram frequentes as queixas
contra mim pelos malfeitos e confusões em que me envolvia, colocando-o em
situações desagradáveis. Não me atemorizavam as consequências e as
reprimendas. Era a minha natureza...
Ainda assim tinha a meu favor o fato de, ainda criança e mais tarde na
puberdade, ter sido dentre os filhos o companheiro inseparável de meu pai
que me deferia especial proteção.
Tomei Gilda nos braços envolvida no pano que a cobria e saí em direção ao
rio. Fui só. Era uma página de minha infância que ela tanto alegrara e que,
agora, estava definitivamente virada. Entrei no rio com a água até os joelhos
e deixei-a flutuar até desaparecer completamente. Ao voltar para casa
ninguém perguntou o que tinha feito com Gilda. Eu nada disse...
Cercado pelas montanhas que projetavam suas sombras sobre o vale do
Sapucaí, a noite precipitava-se rapidamente sobre o casario, que se iluminava
ao som da Ave Maria. Logo as primeiras estrelas surgiriam pálidas em um céu
profundo.
Como de hábito, ao final do dia, algumas pessoas reuniam-se num espaço
próximo à entrada da vila em que morávamos, já na estrada de terra que ia
para o Engenho onde disputavam um assento sobre um artefato de cimento
da rede elétrica que ali se encontrava abandonado. Tinha vez uma conversa
tola, vazia, em meio a brincadeiras inocentes e estórias diversas.
Fui para lá. Acomodei-me em um canto onde conversava com Juarez, meu
amigo, quando Tatão surgiu a minha frente, olhando-me de forma
ameaçadora. Era um mulato arrogante. Morava nas proximidades.
Pertencia a uma família simples e educada que, como todos ali, se submetiam
aos costumes ordeiros da Fábrica. Fingi não lhe dar importância, mas fiquei
atento às suas intenções. Percebendo-se ignorado desferiu um chute em meus
pés.
Levantei-me instintivamente.
Ele deu um salto para trás já executando uma coreografia com os braços e
pernas ao estilo de capoeira, sequioso da atenção de todos que ali estavam e
que passaram a observar tentando compreender o que se passava. As pessoas