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Introdução...........................................................................................................2
Introdução
O estudo de uma rádio pode atender a muitos objetivos e desenvolver-se sob múltiplas
perspectivas. Neste trabalho, a análise que empreendemos sobre a Rádio Favela – rádio
educativa, localizada no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte – inscreve-se no
âmbito das questões de formação de identidade, laços comunitários, constituição de
sujeitos sociais e convivência urbana.
Ao nos debruçarmos sobre a complexa questão da identidade brasileira, daquilo que nos
torna membros de uma comunidade nacional, deparamo-nos inicialmente com duas
concepções de identidade (conforme discutido). A primeira delas é pensar a identidade
como essência, padrão de semelhança que unifica os membros de uma comunidade – o
substrato comum que permanece e nos torna iguais (e que pode ser um passado comum,
a língua, o partilhamento de símbolos, mitos e imagens).
A segunda concepção refere-se a um processo mais móvel, que conjuga semelhanças e
diferenças e estabelece – sempre de forma provisória – o posicionamento e a
intervenção de sujeitos, uns em relação aos outros e em relação ao contexto (ou lugar)
que, de alguma forma, compartilham e dividem. A identidade aqui se refere tanto à
igualdade, ao que é comum, quanto às diferenças, ao movimento entre elas e é vista
como “em processo”; uma produção que nunca se completa, formada e transformada no
interior das representações construídas pelo grupo.
Marcada então por igualdade e diferença, como a costura entre pontos de igualdade e
diferença, a questão identitária se aloja no terreno das representações, das produções
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discursivas através das quais um grupo social, falando-se e falando de suas coisas, se
posiciona. A questão da identidade aparece na tentativa de rearticular a relação entre
sujeitos e práticas discursivas: as identidades se constróem na interseção entre os
discursos que nos posicionam (que nos colocam, nos dão visibilidade frente ao outro) e
nosso efetivo posicionamento como sujeitos. Está alojada na interseção e na dinâmica
reflexiva que se estabelece entre discursos e posicionamentos.
É essa segunda concepção que vem orientando nossos estudos e estimulando um
trabalho de identificação e análise das muitas narrativas que povoam a vida social
brasileira – e através das quais grupos sociais distintos, falando de si próprios,
constituem-se como sujeitos e posicionam-se uns frente aos outros.
Interessou-nos particularmente as intervenções e a produção discursiva das chamadas
“classes populares” ou de baixa renda – grupos que vivem formas precárias de inclusão
sócio-econômica; que sofrem permanente exclusão de direitos e, principalmente, uma
situação de expropriação simbólica. Eles se constituem enquanto “outros” frente a um
“nós” que se exibe como a norma: o modelo e os valores de uma sociedade brasileira a
qual todos quereriam / deveriam pertencer. Falamos em expropriação simbólica porque
a esses grupos quase nunca é dada a palavra: eles existem falados e representados pelos
discursos institucionais, autorizados, da cultura oficial, da mídia, do Estado.
Mas são esses mesmos grupos que, mais e mais, na transição desse novo milênio, vêm
irrompendo na cena pública, assumindo um lugar e uma fala própria, com freqüência
provocando ruídos na fala mais ou menos harmoniosa que a sociedade estabelecida
procura veicular de si própria. A esfera midiática, antes ocupada apenas por meios e
discursos hegemônicos e autorizados, passa a abrigar "vozes dissonantes"; novas
práticas sociais começam a viabilizar o acesso aos meios de comunicação a grupos
antes excluídos do campo midiático.
Partindo desse novo cenário, em que o “outro” – marginalizado, excluído – aparece em
cena, este trabalho tomou como objeto de análise uma prática específica, a Rádio
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Favela, com o objetivo de captar como esse veículo, através da eleição de diferentes
temáticas e da construção de seu discurso, se insere no processo de construção de
identidade e fortalecimento dos laços comunitários entre populações excluídas.
Tomando-a como um “lugar de fala”1 para os grupos de baixa renda, nossa intenção foi
apreender a lógica específica desse espaço de atuação, que se constrói através da
articulação entre sua produção discursiva, as diferentes vozes que ela disponibiliza e
com os quais se relaciona, sua inserção numa situação sócio-cultural específica (a
relação cidade-favela; a questão racial; a experiência da exclusão).
Dessa forma, nossa análise situa a Rádio Favela no âmbito dos processos identitários,
procurando perceber sua inserção no campo midiático e também no terreno da cidade e
da convivência urbana, lembrando a cidade como lugar de diferença e segregação, em
que ecoam muitas e diferentes vozes.
1- A natureza do rádio
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O conceito de lugar de fala é entendido aqui, a partir de J.L. Braga, como lugar de significação que “se constrói na trama
entre a situação concreta com que a fala se relaciona, a intertextualidade disponível, e a própria fala como dinâmica
selecionadora e atualizadora de ângulos disponíveis e construtora da situação interpretada.” (Braga: 1997, 107).
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Além dessas rádios com um formato comercial, surgiram outros tipos de emissoras,
com objetivos diferentes, e cuja caracterização particularmente nos interessa: as
comunitárias e as educativas. O serviço de radiodifusão comunitária é realizado em
freqüência modulada (FM), limitada a uma potência baixa (de 25 Watts), com cobertura
restrita (cerca de 1 Km de raio) e destinada ao atendimento de uma comunidade, de um
bairro ou vila. Esse serviço pode ser executado por fundações e associações
comunitárias, sem fins lucrativos, sediadas na área da comunidade para a qual
pretendem prestar o serviço.2 O serviço visa a dar oportunidade à difusão de idéias,
elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade, estimular o lazer, a
cultura e o convívio social.3
E a Radiodifusão Educativa é definida “como o uso da transmissão radiofônica em
qualquer processo sistemático de educação, com a finalidade de possibilitar aos
ouvintes uma aquisição de conhecimentos e/ou uma mudança de atitudes”.4 As
emissoras também devem prestar serviços à comunidade, e sua programação deve
cumprir a específica finalidade de educar.
É com esta frase que o ouvinte é saudado, ao sintonizar a Rádio Educativa Favela FM
(104,5), concebida por moradores da Vila Nossa Senhora de Fátima, situada no
Aglomerado da Serra, um dos mais amplos conjuntos de favelas de Belo Horizonte. A
origem da Rádio Favela, segundo seus integrantes, remonta aos eventos de cunho
musical e cultural que surgiram como alternativa de lazer em locais próximos ao
Aglomerado, no final dos anos 70. Esses eventos passaram a se constituir em ponto de
encontro e espaço de expressão e discussão de seus freqüentadores. A fim de dar
2
Extraído do site http://membro.intermega.com.br, em 18 de janeiro de 2001.
3
FERRO, F. et al. Projeto de Lei Nº 4.808/98. Brasília, Câmara dos Deputados, outubro de 1998.
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4
Brasil. Instituto de Planejamento Econômico e Social. Instituto de Planejamento / Centro Nacional de Recursos Humanos
- CNRH. Rádio Educativo no Brasil: um estudo. Brasília, 1976. p. 11.
5
Segundo pesquisas do IBOPE, a rádio ocupa o 4º lugar geral de audiência em Belo Horizonte.
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6
Em entrevista ao jornal Fórum 2000: III Encontro de Rádios e TVs Comunitárias, dezembro de 1998: 6.
7
Campanha de Material Escolar; campanha para ajudar instituições de tratamento de crianças com o vírus da AIDS;
Campanha anti-violência e Campanha anti-drogas.
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8
Coleta de dados (gravação da programação) realizada em dezembro de 1999.
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9
Mangabeiras é um bairro de classe média alta, situado próximo ao Aglomerado da Serra.
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que pregam o fim da violência, os locutores convocam para a revolução, que ora é
definida como a luta pelos direitos sociais e ora como uma revolta da comunidade
contra aqueles que os mantêm em situação de exclusão. Essa revolta poderia “terminar
com um fuzil na mão”, ou seja, gerar violência.
É certo que as músicas são um outro lugar de fala. Mas, na medida em que são
escolhidas para compor o repertório de um programa, elas passam a fazer parte da
mensagem que a rádio deseja passar a seus “escutantes” – como a rádio prefere
cognominar seus ouvintes. Assim, pode-se dizer que a fala sobre a violência tem uma
inserção polêmica no discurso da rádio.
As discussões políticas também ocupam um espaço grande na Rádio Favela. Em grande
parte dos programas, entre uma música e outra, os locutores discorrem sobre a situação
política e econômica do país, endereçando críticas ao governo. Essas críticas, muitas
vezes, se parecem mais com palavras de ordem, sem uma preocupação maior de trazer
uma argumentação ou esclarecimentos sobre determinados assuntos. Eles se limitam a
criticar governantes e ocupantes de cargos públicos, relacionando sua atuação a
diversos problemas da realidade brasileira.
O cotidiano nas favelas é outro assunto marcante na rádio. Os locutores discutem
saneamento básico, falam sobre o almoço de domingo e a vivência em barracos. Com
isso, a rádio transporta um pouco das experiências vividas por aquela comunidade para
os outros da cidade que não conhecem essa realidade. O “asfalto” entra em contato com
uma realidade diferente, ao mesmo tempo próxima e distante do “nós”.
A rádio também é um espaço para falar de outras experiências dos ouvintes, formando
uma rede de relações pessoais. As pessoas ligam para falar de namoro, da morte de
alguém na família, para pedir conselhos. É interessante notar como os locutores
transitam entre diferentes assuntos, passando de questões políticas e sociais às questões
pessoais – do público ao privado – com absoluta naturalidade.
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O programa Aero Brega - Fala corno que eu te escuto é um espaço para que os ouvintes
contem suas experiências com a traição nas relações afetivas. Esse programa causa
estranhamento na medida em que seu conteúdo é a exposição da vida privada dos
ouvintes. Estes ligam para partilhar suas experiências, pedir conselhos, mas –
diferentemente de outros programas que tratam de problemas pessoais – o locutor não
está ali como conselheiro. Ao contrário, Misael se dirige aos “cornos”, é brincalhão, ri
das histórias contadas e é muito informal com os que ligam para lá.
Independente dos motivos que impulsionam as pessoas a expor sua vida no ar –
desabafar, pedir ajuda, conselhos ou, de alguma forma, ocupar um espaço na mídia –, o
fato é que o programa conduz a um novo tipo de experiência produzido a partir da
inserção na rede midiática. As pessoas partilham o vivido através das relações
comunicativas, da interação social, constituindo novas modalidades de vivência. Ao
mesmo tempo em que partilham, têm acesso a experiências – vividas por outras pessoas
e mediadas pelos meios de comunicação – que irão somar com suas experiências
imediatas na construção de seu repertório de referências para viver e apropriar-se
simbolicamente do mundo.
Esse espaço de expressão – de tematização de sua vivência e visão do mundo – é uma
experiência nova para grupos sociais que tradicionalmente apenas vinham sendo
“falados” pelas vozes institucionais. Na rádio, os excluídos “falam”, e o acesso à
palavra concede a eles uma outra forma de aparição, de visibilidade pública..
7- O lugar do ouvinte
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Um trabalho de campo (observação, entrevistas e grupo de discussão) foi desenvolvido pela pesquisa, buscando atender
várias outras questões levantadas pelo projeto, e não apenas sobre a Radio Favela (atuação da mídia, relação
cidade/asfalto, vivência cotidiana, entre outros pontos).
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8- Um lugar de contradições
importante que tem”: a rádio aparece para o conjunto da cidade enquanto imagem e
identidade de um “outro”, alcançando reconhecimento nacional e internacional e
conquistando grande audiência.
Portanto, se uma das dimensões centrais do processo de construção de identidade é essa
dimensão externa – de posicionar-se frente ao outro da relação – vemos que, por aí,
claramente ela cumpre seu papel. Enquanto um lugar de fala, a rádio significa, sem
dúvida, a inserção de uma voz dissonante no cenário midiático; lugar de expressão de
um determinado grupo social, lugar em que este aparece e se coloca como sujeito.
A dimensão interna – a rádio como elo agregador – é mais problemática e contraditória.
A rádio se propõe a ser uma representação dos excluídos – mas esbarra no desejo de
inclusão das pessoas. Ou seja, em certa medida, a rádio é a representação do que elas
não querem ser. Por esse caminho, a negação da rádio é uma forma de distanciar-se da
situação de exclusão que a rádio insiste em afirmar.
Nas entrevistas realizadas com alguns moradores do Aglomerado (tratando sobre mídia,
telenovela), algumas entrevistadas, comentando a novela das oito da Rede Globo –
Laços de Família – falaram apenas do núcleo rico da novela e não sobre personagens
que estariam representando a classe a que elas pertencem. Percebe-se haver nessa
referência um sentimento de projeção: o desejo das entrevistadas de fazer parte daquele
núcleo – rico, bonito e famoso –, descolando-se e distanciando-se da realidade a que
pertencem. De certa maneira, essas entrevistas repetem resultados encontrados por O.
Leal, em estudo pioneiro sobre a recepção de telenovelas, em que a autora não encontra
qualquer identificação entre mulheres receptoras da classe operária e o núcleo de
empregados domésticos da novela: “Nega-se a identificação explícita porque é penosa,
e é negando que se reforça o efetivo e inconsciente mecanismo de identificação.” (Leal:
1986, 74).
Em grande medida, a insistência da rádio em ser favela – é a Rádio Favela, situada na
favela, que fala pela favela através do “favelês – vai ferir a representação que as
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Mas são justamente essas inserções polêmicas da fala que marcam a distinção dos
sentidos que ela produz. Esse lugar de fala construído pela Rádio Favela é diferente de
outros que, da mesma forma, objetivam dar voz aos grupos de baixa renda, mas
eliminam as contradições, encaixam o “outro” em um modelo preestabelecido – como
exótico, como violência, como vítimas. É exatamente na contradição que aparece o
lugar de fala diferente; mais que isso, é na sua “impureza” que um grupo se mostra na
sua natureza de sujeito (e não assujeitado em um papel). No lugar do “nós”, da fala
oficial, a contradição é eliminada.
Também o processo de construção das identidades é permeado por contradições, na
medida em que ocorre dentro de uma dinâmica relacional, em um contexto de ocupação
(e disputa) de lugares e de conflito. Assim, a forma de expressão da Rádio Favela e a
construção desse lugar de fala nos dizem de um processo identitário, construído na
tensão entre similaridade e diferença, continuidade e ruptura, reconhecimento e
estranhamento. É exatamente esse jogo contraditório e conflituoso que marca a
formação das identidades – que “não subordinam todas as outras formas de diferença e
não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de
diferenças sobrepostas”. (Hall, 1999: 65)
Após esse percurso, em que analisamos a rádio como um lugar de fala e situamos essa
questão no âmbito dos processos identitários, é pertinente finalizar a discussão
conduzindo-a para o terreno da cidade e da convivência urbana – lembrando o
panorama da cidade como lugar de diferença e segregação, palco de múltiplas
experiências, zona de contigüidades, de mundos paralelos que se tocam.
Onde estão, como ficam e como ecoam na cidade essas muitas e diferentes vozes? Qual
seu alcance?
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As horizontalidades, por seu turno, são da ordem dos processos locais, das motivações
do lugar. Compreendem o espaço banal, em oposição ao espaço econômico; são zonas
de contigüidade, produções localizadas e afeitas a uma integração solidária, orgânica,
desenvolvida no quadro de um território e uma situação comuns. Essas dinâmicas se
entrecruzam:
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Em palestra proferida na abertura do Núcleo de Pesquisa Comunicação e Cultura das Minorias, no XXIV Congresso da
Intercom, em Campo Grande, set./2001.
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Referências Bibliográficas