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Narrando a história: uma análise de Esaú e Jacó, de Machado de Assis, e

de Leite Derramado, de Chico Buarque.


Gabriella Nascimento Cordeiro Pereira
Resumo
A literatura é vista como um elemento de construção social e também como
fonte de informações históricas. A construção de romances com valor histórico
tem elementos que determinam a forma como a história será contada e o
narrador pode ser fundamental neste contexto. O presente trabalho pretende
discorrer sobre a função do narrador em duas obras históricas datadas séculos
diferentes, mas que entregam uma herança nacional ao seu leitor.
1. QUEM SE CONTA FAZ HISTÓRIA
Literatura e história são companheiras. A produção de uma obra literária
abrange não só um povo em um determinado tempo, mas também toca
aqueles que, no tempo presente, necessitam informação para historiar seu
passado. Descobre-se através do escritor um mundo real criado a partir de um
ponto de vista singular, devendo ser tarefa do leitor discernir o que é fantasia e
o que é verossímil.
A literatura é um compilado feito na visão dos escritores, que tentam
antecipar o comportamento da sociedade ou então, como é o caso, ajudam-nos
a compreender melhor o comportamento social historicamente, realizando uma
ponte entre o passado e o presente.
Há de se considerar que uma obra literária é, sobretudo, um instrumento
de comunicação. A maneira e o objetivo com que se lê um romance, por
exemplo, vai definir o ponto de recepção do conteúdo entregue ao leitor. Sobre
o ato de comunicar, Paul Zumthor diz:
“Comunicar (não importa o quê: com mais forte razão de um texto literário)
não consiste somente em fazer passar uma informação; é tentar mudar
aquele a quem se dirige; receber uma comunicação é necessariamente
sofrer uma transformação”. (Paul Zumthor, 1990)

Os processos de produção de um texto literário envolvem muitos fatores.


Podemos mencionar alguns como a escolha do tempo da narrativa, o nome
dos personagens, o gênero textual e etc. No caso específico deste estudo,
chamamos a atenção para um fator fundamental: o reconhecimento social a
partir das relações estabelecidas entre os personagens.
A leitura de obras literárias caminha em direção à recepção de seu
conteúdo. Presume-se que o autor possa deduzir algumas interpretações para
sua obra, mas não seria possível prever todas as formas de interpretação
daquela. Diante dessas afirmações, uma preocupação ao desenvolver uma
produção literária é a de assumir a existência heterogênea de leitores.
2. ESAÚ E JACÓ
Neste romance de Machado de Assis, narra-se a vida de Pedro e Paulo,
irmãos gêmeos que começaram a brigar desde o ventre de sua mãe,
Natividade e que disputam o amor da mesma mulher, Flora, que ao final, morre
sem decidir-se com qual ficaria.
O romance que começa precedido de uma nota onde é apresentado o
narrador, Aires. Adverte-se que o narrador estava morto e que a obra foi
encontrada entre os memoriais do antigo conselheiro.
Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete
cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos
primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II,
III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.
(MACHADO DE ASSIS, 1997)

Este narrador, por já estar morto, já não estabelece. Aires foi um diplomata
aposentado, profissão esta que o distanciará em partes das pessoas com
quem interagia visto seu grau social, financeiro e intelectual. Aires é o autor do
manuscrito, ou seja, o autor fictício dentro da ficção onde ele também é
narrador e personagem.
Todas as representações apresentadas na narrativa sintetizam uma
discussão sobre o ser nacionalista do Brasil pós República. Vê-se,
principalmente pelas brigas de Paulo e Pedro, a representação de uma
população que se dividia ideologicamente, porém que necessitava conciliar-se
para que pudesse prosperar, assim como pede Natividade a seus filhos em seu
leito de morte.
O romance se desenvolve em um período de 20 anos que narra a vida
dos irmãos, entretanto também coincidem com anos decisivos para a história
do Brasil. O ano de nascimento dos gêmeos coincide com a Lei do Ventre
Livre, acompanha a Campanha Republicana e repela a Revolta da Armada.
Todos estes fatos aparecendo ao fundo de uma relação amorosa de não chega
a lugar algum, visto que a personagem Flora simboliza uma indecisão, ela não
se decide a nada durante todo o romance.
Pedro e Paulo, o Liberal e o Conservador, interagem com os demais
personagens que também personificam a situação política do Brasil, mas há de
se considerar que eles são aconselhados por esta figura de Narrador que se
mantém neutro, discreto e que apenas conduz suas atitudes sem chamar muita
atenção. Aires destoa dos demais personagens e atua quase como espectador
de seu próprio país.
O olhar para a história do Brasil se desenvolve unicamente como uma
leitura de fatos e não com um julgamento do que está correto ou incorreto. É
mostrado que o narrador, inclusive, tem experiência de vida fora do país, o que
o distancia ainda mais da vida dos demais personagens que crescem e vivem
através dos processos sociais de sua pátria.
A presença do viés histórico nos dois últimos romances machadianos
chama a atenção do leitor que frequenta os textos do autor. Afinal, sabendo
que nada se faz de maneira gratuita em sua ficção, tais índices nos convidam a
olhar mais de perto para a maneira com que são tramados. O olhar que
dispensamos à questão se faz inspirado pelo pensamento de Antônio Candido.
O crítico brasileiro chama a atenção em Literatura e Sociedade (1985) para a
importância de se fundir:
(...) texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que
tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o
outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente
independente, se combinam como momentos necessários do processo
interpretativo (CANDIDO, 1985, p. 4).

A partir disto pode-se perceber que não se trata de adotar um ponto de vista
segundo a qual o externo explica e atribui valor à obra nem de tomar o texto
como objeto cuja estrutura é completamente independente do universo exterior,
mas sim de conceber texto e contexto como elementos necessários ao trabalho
interpretativo.
Aires assume papel fundamental de conselheiro em meio à polarizada
situação política e social. Considerando que ele também é o escritor fictício do
romance, vê-se que ele apresenta um olhar externo que cabe ao escritor real,
visto que este apenas pode apresentar fatos para que seu receptor tenha
recursos suficientes para chegar às próprias conclusões.
3. LEITE DERRAMADO
Esta narrativa de Chico Buarque é conduzida por Eulálio, sujeito este que
está à beira da morte em um hospital e memora sua vida e de sua família,
sobretudo de uma forma prolixa em uma tentativa de recuperar o passado
perdido por meio da palavra, como se poder ver desde o título do romance.
Eulálio, nome este que significa ‘de boa dicção’, e esta qualidade do
narrador também se estende a seus antepassados, pois estes também
possuíam o mesmo nome e desempenhavam cargos políticos. Esta
característica do narrador fica evidente ao se analisar a articulação discursiva
deste sujeito que se propõe a narrar eventos que vão desde o Brasil Colônia
até o Brasil contemporânea, perfazendo um período que começa de seu
tetravô até ele próprio.
Diferentemente de Esaú e Jacó (1904), o narrador do romance de Chico
Buarque não descreve a vida de outros personagens, mas a sua própria é o
centro do enrede que tem como plano de fundo a sociedade brasileira.
Entretanto, ambos os enredos são fontes de conteúdo histórico visto que o
desenvolvimento de seus personagens é resultado de costumes e escolhas
sociais.
A família Assumpção retrata o preconceito, a arrogância da elite e
sobretudo a corrupção política. Há na narrativa um movimento em que se
perdem, ou se encontram, a noção de eu e ele, e também a de presente e
passado. Desta forma, o leitor/receptor consegue também se colocar dentro
das cenas que descreve o personagem e, em alguns casos, assimilar o
passado dos Assumpção com o Brasil de hoje.
O nascimento de Maria Eulália, filha do protagonista, simboliza a quebra da
estrutura familiar Assumpção, visto que se esperava que houvesse um novo
herdeiro e não uma herdeira. O nascimento de uma filha reforça a ideia de que
a futuro da família já não se manteria a mesma.
O conservadorismo é parte importante da formação desta família e em
determinado momento este se dá apenas através de aparência. Eulálio tem
uma necessidade de preservar uma postura que se adeque à família
importante que ele pensa fazer parte. Vê-se essa aparência em seus diálogos
com a enfermeira, uma vez que ele já quase centenário, doente e falido, faz
juras à sua cuidadora de que casaria com ela e lhe daria uma vida de luxo.
A função do leitor na construção dos sentidos do texto requer uma
intensificação em sua atividade imaginativa, pois fica a cargo dele a
interpretação diante da multiplicidade de sentidos da obra. Relacionando o
papel do leitor em comparação ao do autor, Brandão (2001) diz que o escritor
“não é a origem, a fonte absoluta do sentido, porque na sua fala ouras falas se
dizem”. Neste sentido, as memórias turvas de Eulálio também podem se
confundir com as memórias de quem lê sua história, agregando-se ou
distorcendo-se os sentidos. A invenção está no centro da vida de qualquer ser-
humano, seja ele um Assumpção ou não.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em ambos os romances se vê a construção de uma crítica indireta a partir
das “escorregadas” verbais de seus narradores. Nas duas obras temos um
narrador que representa figuras benquistos pela sociedade; ora um diplomata
conselheiro, ora um filho de político.
Em ambos os casos temos narrativas que evidenciam uma sociedade
patriarcal gerida por questões relacionadas pelo poder econômico, pela cor da
pele e pela classe. Em Esaú e Jacó o elitismo pode justificar-se pela vida
confortável da família dos irmãos assim como o poder econômico do narrador,
ao passo que em Leite Derramado este poder econômico já não existe mais.
Desta forma, os narradores, ainda que compartilhem a mesma função no
enredo, não partem do mesmo local social.
O ponto em comum entre estes dois romances é o panorama de um Brasil,
construído a partir da decadência de famílias supostamente tradicionais. Os
autores, ao criarem personagens que evocam lembranças familiares,
pretendem levar os leitores a revisitarem a história nacional, induzindo-os a
refletirem tanto sobre o passado, quanto aos valores do momento presente.
Nesses romances buscam-se polemizar questões que envolvem a identidade
nacional brasileira, ao mesmo tempo em que procuram dar aos leitores
subsídios para repensarem a nossa época e nossas raízes.
Além da relação estabelecida com o leitor, as duas obras têm outras
semelhanças, como foi analisado. Assim como Machado, Chico aborda a
questão nacionalista, embora de um ponto de partida diferente. Ambos os
narradores serão o caminho pelo qual o leitor encontrará a chave de sua
análise, porém a relação com que estes narradores estabelecem com os
demais personagens é que os diferencia entre si.
Considera-se então que a identidade do Brasil foi a preocupação chave
para o enredo dos dois romances, mesmo que abordados em planos
diferentes. A função do narrador em cada um dos romances é a mesma,
entretanto seu papel social permite ao leitor ter acesso a um ponto de vista
diferente e desta forma conhecer e concluir de forma mais singular aspectos de
sua própria realidade enquanto leitor-cidadão.
5. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó: obra completa. Organizador: Afrânio
Coutinho. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar Editora, 1971. vol. I.
BRANDÃO, H. H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 7ª ed.
Campinas: Unicamp, 2001.
BUARQUE, C. Leite Derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CÂNDIDO, Antônio 1965. Literatura e sociedade; estudos de teoria e
história literária. São Paulo, Editora Nacional.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires
Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.

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