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bated ipa aa atl terete ta Susana-de Matos Viegas : Piet eee crem eee aire: CRS eel eee citi Hore ce Mere cues ap Once Rema cunneceeee Terra Calada eee) ieee eC eet Os Tupinambd na Mata AdAntica _ do Sul da Bahia : 4 Ko Dae a para oestude das elacGesaletvas es Potctree rrr uc ant Rae roe cra Poet ee Retreat pee eee hers (eter ee tmocca.e eee ee elem Cie eeu en re cer pos cansados nes corregos, das jovens Geert een Ge ait ert ia ieee este sree ee ee (eames ere eee ae ceotrcs Ce ee Beco ir runt Gsivamente coma complesidades do piers Streator ee ee etre coberta 8 tilgs de ane ‘roplogia, Pactinde do pane de fun Cottees nora oe Susana de Matos Viegas Terra Calada Os Tupinambd na Mata Atlantica do Sul da Bahia ALMEDINA eernas] (© 2007 Surana de Maoe Viegas Produ atrial Debora Flec Isadora Tassos Jorge Viveios de Casco ‘Marla Garcia “Tui Village Valea de Aguire Revise Mira Rinaldi de Mattos ¢ Tone Maso Ta ita fom adidas do original ple autora IP-BRASIL, CATALOGAGAO.NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI vrs: Viegas, Susana de Matos ‘Terra clad: Os Tupinarbd na Mata Acintca do Sul da Baba / Susana de Mas Viegas. - Rio de Jaci + 7Letas, 2007. Apeadice Encl bibliogafia ISBN 978495-7577.424-8, 1. Eenologia- Brasil 2. {adios do Basil -Oliveng (BA) - Condes sociais, 3 fie Tupinamb- Condes soci. 4. fndios Tupinamb entidade Gnica. 5 Indios Tupinambs - Relagdes com 0 govesno. 6 Indios Tpinambs~ Usose costumes. I. Til, 07-3692. Db: 980.41 CU: 94068781) 1s Universidade de Lisboa aighes Almedina, SA ‘Viveios de Caro Eizora Leda. ‘AvenideFermto de Magalies, n° 584, 5° andat Rardin Botnico 600 sl. 307 3000-174 Coimbra Rip de ancieo BJ cx 22461-000 Tel: +351 239 851 908 (21 2540.0076 Fax: +351 239 851 901, cdizors@7letras.com bt swalmedina.nee vw Teas. br cdirors@almedina net SUMAxIO, Agpadecimentes au. Cavtru.o 1 UMA ANTROPOLOGIA DO COTIDIANO COM 0 TUPINAMBA DE OLIVENCA... Percurso da pesquisa de campo 1. Como nascet 0 nome Tpinam para os Tapinamba de Olivenga O etnénimo Tupi — fontes documentais ‘Um tetritétio interfluvial na Mata Atlantica: aspectos fisicos ¢ demogrificos vv ‘Uma antropologia da vida cotidiana Captroto I SOCIALIDADE E EXPERIENCIA VIVIDA EM CONTEXTOS AMERINDIOS Génese do conceito de sociedade ¢ suas criticas Socialidade e critics eeogeéficas 20 conceit de sociedade Experiéncia vivida “Ser-no-mundo”: intersubjetividade e micro-histor Historicidade e experincia vivida... Uma alternativa americanista para uma antropologia do Nordeste indigena Eatéias mils de compara Notas Cartruio IIL COMER & HABITAR: A LIGAGAO ENTRE AS PESSOAS E AS CASAS .. Aabertura de um lugar. Mover ¢ habitar uma casa de sopape.. “Fogo” © squineal ligagdo personaizada ene cultivar e habitar ‘A.casa como abrigo e nutrigo Os lugares ¢ a produgao de farinha Disposigées alimentares: fazer beiju . Disposigdes afetivas: concluséo "101 Cartru.o IV COMER COM A MINHA MAB PREFERIDA: PARENTES, AFETO E © TEMPO D& SOCIALIDADE 107 107 12 swore HZ 119 122 126 ‘Nascer: a miscura de partes do corpo de mie e filo © mundo em um lager. Dar sustento e “agradar” “Fithos de criaga0”e “filhos legitimos ‘Um fogo, uma mie: comer com a minha mie preferida .. Socialidade revogivel: criar e esquecer lagos sociais Fares nvogiel — 128 Meméria afeti 130 “Tempo e socaidades parentesco amerindio em um debate comparativo 132 Nota 139 Cariroto V A DINAMICA DOS AFETOS: GENERO, PARENTESCO MICRO-HISTORIA wre 143 Criangas “unissex0” 146 © femminino pela mae e o masculino pelo pai 150 Accscola ¢ géneto... eis Intimidagio e sarcasmo: @ maturasao feminina. 153 nico ¢ euforia: os bois que “enrabam” soon 155, Entre a roga ea rua . 159 Esposas transitivas 164 Citimes, lideres indigenas e mies coordenadoras 170 Lideres em Sapucaeira: atrar os filhos para viver junto. 173 Disposigdes estruturantes da socialidade: conclusa 175 Notas. 180 Caofruto VI (© una DA ALEGRIA: ESTETICAS DE ACKO E A AMBIVALENCIA DA CACHACA sve. 183 “Fala de indio” e auro-ironia 186 Sociabilidade diurna .. 188 Cachaga e violéncia masculina na ro¢a.. 190 CCachaga e divsio sexual em siruagSes de socabilidade 191 O limiar da alegria : 193 ‘Um trajeto ao passado: a cachaga no processo colonial 199 Conclusto: ser indio-caboclo — contribuigio de uma etnografia Tupi... 201 Notas sn anne 204 Carmruto VIL (CASAS BM PES DE JACA: MEMORIA E EXPERIENCIA PESSOAL DIRETA nmsenenee 207 Unir é dificil anise : Reverter 3 mata: 0 movimento das casas ¢ da meméria afet Meméria em pés de jaca.. ‘Meméria dos eventos passados Experineia pessoal direta e “indi no debate americanista: conclusio . Nea 229 235 Cavtruto VII ‘TERRA CALADA! SENTIDOS DO ESPAGO EM COMPATIBILIDADES EQUIVOCAS ... 237 238 245 247 ‘Avterra por uma garrafa de cachaga ern O inicio ¢ a viabilidade do interesse fundiz A tevolta de Marcelino, “A entrada dos brancos” na vile a década de 1930 a década de 1930 . uma retrospectiva até o século XVIT sn = 255) © ieresse das brancos peas rerras ds fndios na mata (1940-1960): ‘uma breve incursio retrospectiva nos séculos anteriores nemo 260 ‘Compatibilidades equivocas: a terra entregue pelos tupinambé (1940-1960) .. ‘A terra © a imposicao de limites (décadas de 1960-1970) Terra calada: conchiSH0 sno Notas 265 268 270 272 Caprruto IX CONCLUSAO COMPARATIVA: TERRA E SOCIILIDADE ... 275 Performatividade no ato de dar sustento.. 27 Experiéncia pessoal direta e historicidade.... 285 ‘Um mapa de vivéncias: terra e socialidade 288 Notas 296 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 297 ANEXOS ‘ANExO I: Imagens de Cartas e Documentos Relacionados a0 Reconhecimento Oficial dos Tupinembé de Olivenca = 321 Anxo Il: Carta de Curt Nimuendaju a Carlos Estévio de Oliveira ¢ Fax de Luis Donisete Benzi Grupioni An II: Dados Demogréficos Rela cs Tpina, por Habitasgo .. Diagrama representando a distribuigo de pessoas e de casas por ae ‘Compésitas de Residencia em Sapucacira (2004) nnnnenrnninrerne 329 Axxo IV: Cultivos do Quintal, dos Rogados e da Horta... 333 335 325 ‘Axzxo V: Dados demogrificos por sexo € idade wn... AnEXO VI: Servigo de Protesio aos Indios (SPI) - 1933, Relatério de Alberto Jacobina ... : wvee 387 AxExo VII: Locais de Residéncia dos Tupinambé de Olivenga (Arquivo de dbitos do cartério de Olivenga, entre 1890 € 1910)... 338 As minbas fitbas Maria e Leonor, AGRADECIMENTOS Este livro constitui uma versio revista da minha tese de Doutorado em ‘Antropologia Social e Cultural, defendida em outubro de 2003 na Universi- dade de Coimbra. Ao meu orientador, Joo de Pina Cabral, agradego o debate invelectual, 0 estimulo ¢ 0 seu contagiante fascinio pela antropologia. O did- logo entre nés tem sido o pilar de todo o meu trabalho. Aos principais exami- nadores da banca, Alcida Rita Ramos e Peter Gow, agradeco os comentérios €0 incentivo que tanto me ajudaram na reelaborac&o final deste texto Estou imensamente grata ao Niicleo de TransformagSes Indigenas (Nuti) ca Eduardo Viveiros de Castro, pela oportunidade tinica desta publicacio. Ao Instituto de Ciéncias Sociais da Universidade de Lisboa ¢ & Fundagao para 4 Cigncia e Tecnologia (Portugal) devo diversas formas de apoio para a edicéo deste livro. A pesquisa de campo foi financiada, entre 1997 € 2000, e entre 2004-2005, respectivamente, pelos projets Ref. PCSH/C/ANT/42/96 e Ref. POCTI/ANT/61198/2004, da Fundacio para a Ciéncia e Tecnologia (Por- tugal) e, no perfodo entre 2003 ¢ 2005, pela Fundagao Nacional do Indi (Funai), no ambito do Programa de Protecio ¢ Divulgacéo do Patriméni Cultural das Comunidades Indigenas, da Organizagio das Nagdes Unidas para a Educagio (Unesco), Edital 2003/02, referéncia 914/BRA/301, para a Identifi- cagéo da Terra Indigena Tupinambé de Olivenga (Portaria Funai n® 102/PRES/ 04, DOU, Seco 2, n? 18, 13/01/2004). O texto nao reproduz essa pesquisa, ‘mas usufrui dela em viriosniveis. Para ext trabalho, obtive ainda dois subsidios do Instituto de Apoio ao Desenvolvimen:o do Ministerio dos Negscios Estran- geiros (Portugal) para as viagens internacionais. ‘Aminha preparagéo académica prévia a0 trabalho de campo incluiu uma cstada no Departamento de Antropologia da Universidade de Edimburgo onde recebi orientagies teéricas que me influenciaram mui ao longo desses anos. ‘Agradeco & Fundagio Calouste Gulbenkian, que subsidiou essa estada, 20s colegas que me apoiaram nessa altura como aluna visitante e pesquisadora associada do International Social Sciences Institute, sobretudo a Anthony ‘Cohen, Janet Carsten ¢ Jon Mitchell. ‘A decisdo de fazer trabalho de campo no Brasil, e depois enveredar pelo debate americanista, foi sendo influenciada por varios antropélogos com quem u tive o privilégio dei cruzando ao longo desses anos: agradeso & Christina Toren a sugestio do Brasil ea enorme inspiracao, a José Anténio Fernandes Dias 0 rer-me franqueado sua biblioteca americanista,a Peter Gow, Mircio Goldman, Charles Stafford, John Monteiro, Cecilia McCallum, Omar Ribeito Thomaz, Carlos Fausto ¢ Miguel Vale de Almeida, os preciosos comentétios a textos que apresentei em semindrias e que vieram a constituir capftulos deste livro. Por terem contribuido para aprofundar o didlogo entre a antropologia. no Brasil e em Portugal, agradeco & Bela Feldma-Bianco e & Cristiana Bastos. A Nuno Porto, Ant6nia Pedroso de Lima, Jodo Vasconcelos, Lufs Vasconce- los, Ramon Satré Pedro Oliveira devo os debates que, em vitias fases de desenvolvimento do trabalho, ajudaram-me a organizar meus pensamentos. Aos meus alunos do curso de Estudos Sul-amerindios ¢ Etnografia Compara- da, disciplinas que lecionei na graduagao em Antropologia da Faculdade de Citncias e Tecnologia da Universidade de Coimbra (2001-2006), agradego pelo debate revigorante sobre as tematicas amerindias. ‘Aos colegas que me apoiaram na Bahia ~ Pedro Agostinho, Maria do Rositio Gongalves e José Augusto Laranjeira —sou grata pelo seu incondicio- nal apoio tanto nos contatos instirucionais como durante todo o periodo da pesquisa, ‘Agradeco aos Tupinambé de Olivenga 0 afeto no meu ano de estada em Olivenca, ea inspiradora coragem pela conducio exemplar da sua luta pela terra indigena. Com muito carinho ¢ reconhecimento afirmo minha grati- dio a todos aqueles com quem convivi e que me hospedaram em Sapuczeira, muito especialmente & Domingas, Pedrisia, Leila, Pedro, Magdo, Miguelina, Agnobaldo e Cristina, Delice ¢ Balbino, Maria e muitas ctiancas que ainda vi exescet nos tiltimos anos. Os que, entretanto faleceram, Lui e Zilda, reeordo com saudade, Meus agradecimentos ainda a todos os que, em Olivenga, pri- meiro me levaram a conhecer ¢ me estimularam a pesquisar em Sapucaeira, ‘especialmente a Nivalda e Cléudio. Em Ilhéus, a0 Dr. José Carlos, pelo entu- siasmo dedicado & causa dos indios de Olivenga; 2 Universidade Estadual de Santa Cruz, pelo apoio logisticos 20 Dilazenze pela amizade, e & Mae Maezi- nha pela receptividade. Ao Jorge Luiz de Paula ¢ & Isabella Fagundes, com ‘quem partilhei o trabalho de campo no estudo para a Funai, pela sta energia € conhecimento nos momentos dificeis. Sou muito grata ainda 3s minhas ‘amigas Jane e J6, com quem passei momentos inesquectveis e conheci quali- dades hospitaleiras raras, nas praias de Itacaré, ¢ & Ana Cruz. da Silva, que durante um periodo foi colega, cximplice e amiga em Ilhéus. 2 ‘Ainda 4 Ant6nia Pedroso de Lima sou grata por nunca se ter cansado da nossa longa amizade, mantendo-nos ligadas, mesmo na minha auséncia. A Zé Miguel Remédio, Isabel Tamen, Francisco Figueira, Maria Braz Teixeira, Luis Vasconcelos, Pedro Oliveira, Joao Vasconcelos, Catarina Alves Costa, ‘Anténio Porto ¢ Sara Reis Marques sou agradecida pela amizade no longo percutso até este livro, A Bé ¢ Rita Wemens, que desapareceram cedo de- ‘mais, deixando tantas saudades, 0 meu carinho. ‘Aos meus pais agradeco 0 apoio sempre incondicional, mesmo depois de terem percebido que meu enveredar pela pesquisa no Brasil ¢ pela vida antropoldgica os impedia de ver-me por perfodos demasiado longos. A mi- ‘nha mée.e a tia Era, por terem atravessado 0 Atlantico para me visitar. Ao meu pai, por me ouvir. A Odete e 20 Fernando, pelo seu apoio ao longo da escrita da tese de Dourorado. ‘As minhas filhas, Maria e Leonor, agradego 0 exemplar altruismo, que as levou a se envolverem de diversas formas neste trabalho, compreendendo a importancia que tinha para mim. Sem o seu estimulo constante, 0 conforto cemocional que me foram propiciando, e 0 seu entusiasmo inesgotdvel, nunca teria sido poss{vel concluir este trabalho, Por isso Ihes dedico o livro. Nele se inscrevem wérias cumplicidades entre nés. ‘Ao Nuno, agradeso a tenacidade com que nos fez irvivendo € me apoiow sempre, mesmo durante os sucessivos perfodos em que 0 trabalho de campo ea redagio do texto me moviam do nosso mundo. Nele encontrei sempre a verdadeira inspirago, energia e alento para a escrita deste texto, Carfruto T UMA ANTROPOLOGIA DO COTIDIANO COM Os TuPINAMBA DE OLIVENCA Nossa idéia corrente de cultura projeta uma paisagem antropol6gica povoada de estétuas de mérmore, nfo de murta: museu clissico antes que jardim barre. Entendemos que toda sociedade tend+ a peseverar no seu proprio sere que 2 caltura €2 forma reflexiva deste ser; pensamos que é necesséria uma pressio violenta, macia, para que ela se deferme e transforme. Mas, sobretudo, cre- ‘mos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a meméria e traiczo sio 0 idrmore identiirio de que € feta a cultura. Estimamos, por fim, que, uma ‘vex convertidas em outras que si mesmnas, as sociedades que perderam sua tra- digo néo ttm volta. Néo ha retroceder, a forma anterior foi ferda de morte; 0 ‘méximo que se pode esperar & a eme-géncia de um simulacro inauténtico de ‘meméria, onde a “etnicidade” ea mé zonsciéncia partitham o espago da cultura extinta. ‘Talver, porém, para sociedades cujo(in)fundamento ¢a relagéo aos outros, io a coincidéncia consigo mesmas, nada disso faga © menor sentido. Vivernos De Casta, 2002¢, p. 195 ‘© conhecimento dos povos amerindios na América do Sul esteve, desde sempre, associado a uma das grandes problematicas da modernidade: @ pos- sibilidade da alteridade absolura, na busca de wm ovo radicalmente diferente. Na sua origem histérica, a questo surgin de reflexes sobre a condigo hu- ‘mana, sobre as préticas antropofigicas esobre a auséncia de “sociedade” entre 0s nativos americanos, particularmente entre os povos da grande familia Tupi, que mais cedo foram descritos por exploradores, missionétios, colonos e filé- sofos. Aquilo que se entendia pela auséacia de “Sociedade” era o fato dos in- dios nao se organizarem segundo uma ordem estruturada e centralizada por meio da autoridade de um chefe. ‘Apesar da reformulacio teérica e metodolégica na antropologia das til- timas décadas, fazendo face 20 que se passa a chamar @ problema da alteridade 5 (Overing e Rapport 2000a, p. 13), 0 fato de o contexto ametindio ter servido essa ldgica da diferenga durante um periodo demasiado longo da histéria do pensamento europeu tem feito com que sucessivas geracbes de intelectuais, compelidos por convicgées sobre as virtualidades da diferenciagao étnica € cultural, continuem a procurar os tragos mais radicais da alteridade entre os Indios da América do Sul. Assim se foram deixando sucessivos e traigoeiros rastros néo apenas nas representagbes que circulam desses povos, em ciberespacos ou contextos afins do mundo tecnolégico atual, mas também na histéria do seu eseudo antropolégico (Ramos, 1994, 1998, p. 267-292), ‘Um dos pressupostos que preside esse entendimento das sociedades ¢ cculturas amerindias a partir da alteridade sustenta-se na idéia, crticada por Viveiros de Castro na citagao em epigrafe, de que o diferencial de uma socie- dade se estabelece ou a partir do que ela é por relagéo a si prépria (a organiza- ‘¢20 social, os habitos, a lingua) ou, alternativamente, por invensdo categorial a 4m outro (por no ter um rerritério politico, nfo ter ceximénias de casarmento, 1nGo possuir uma religiao ou, simplesmente, se distinguir por relagio- outros). Neste texto irei mostrar como na antropologia o reflexo desses modelos no cestudo de identidades étnicas tem vindo 2 substantivar-sea partir da influén- cia de grandes correntes fundadoras das teorias da etnicidade, com Max Weber ppara.a identificacio por relagao a si préprio, ¢ Fredrik Barth para as visbes da identidade énica como um diferencial em relagao a um outro (Weber, [1922] 1982; Barth, 1969a, p. 3, 1969b, p. 131-132; Rex, 1988, p. 23-24; Poutignas, Sureiff-Fenart, 1997, p. 37; Wade, 1997, p.17).. problema aqui em pauta nao se confina apenas a0 estreitamento da visio da identidade érnica como um processo de identificagao com um passa- do originério, concepgio contra a qual e em alternativa 2 qual jé se escreveu longamente. © que aqui irei discutir se prende & correlagdo especifica entre sociedade, cultura e identidade, viciada por pressupostos como os que Vivei- ros de Castro (2002c, p. 195) explicita nas palavras citadas em epigrafe, quando critica a visio estrita da continuidade temporal a partir da idéia de que “toda sociedade tende a se perseverar no seu préprio ser”. E em decorréncia desse pressuposto falacioso que a relaco dos povos amerindios com modelos de vida alheios a0 seu “sex” societério (como a civilizacdo e o capitalismo) ¢ concebi- da como um caminho inevitével e ireversivel de deformiagio da cultura, 0 qual, no limite, poderia ser reabilitado apenas em uma forma menor de “si- mulacro inauténtico de meméria”, constitutivo de uma nova identidade. Essa identidade € vista, nesse prisma, como um adjetivo: uma qualidade que a vida social poderia ou nao possui. 16 ‘A questdo aqui em pauta guarda uma configuragéo especifica no caso do indio sul-americano, mas reconhecemos facilmente qué o interesse que este tema da identidade desperta no mundo contemporineo ultrapassa em muico a realidade sul-americana, no s6 porque a problematizagio da identidade a partir de questdes étnicas ¢ indigenas se coloca de forma muito similar em ‘outras regides do mundo, nomeadamente entre os aborigenes australianos € ‘entre diversos povos da Oceania, como por se ter constituldo como um tema tedrico e politico central nas cincias sociais. O que est em discussio éa ve~ ha questio da inscricio da diferenca cultural no modo como concebemos a vida social e culeural, No caso do indio sul-americano, se nos séculos XVI ¢ XVI a reflexéo sobre a alteridade absoluta se substantivava nas préticas canibais, atualmente podemos dizer replicar-se na idéia de uma virgindade original entre o modo de vida dos indios e “a narureza” — uma idéia que, entre outros problemas, circunscreve 0s indios ao espago geogréfco ¢ ambiental da floresta Amazdnica. © que importa no esquecer € que, tal como acontecia naqueles séculos re- motos, também agora esses modos de definira cultura e a sociedade tém con- seqiiéncias imediatas na rlacéo dos indias com os mundos em que vivem. As questdes da identidade e da cultura chegam 2 ser um ponto de partida central para que os {ndios possam requerer direitos em face das instdncias juridicas nacionais ou internacionais. Basta lemabrar que, no caso do Brasil, entre 1988 e 2003, a aferigio do diferencial de identidade indigena era um quesito juridico para a configura- io de um “povo indigena”. O Estado brasileiro desenvolveu mecanismos proptios (considerados por muitos jurstas ¢ antropélogos como anticonsti- ‘ucionais) para aferr a identificacéo érnica de quem reivindica direitos indige- nas, ctiando um dos maiores pesadelos da antropologia brasileira 20 requeret 20 antropélogo que elaborasse laudlos de identificacao étnica (Oliveira, 2002; Ramos, 2003, p. 414). A situagio resolveu-se em 2003 com a adogio da Convencéo 169 da Organizagio Internacional do Trabalho (OTT), na qual se considera como critério suficiente para a identificagao de “grupos indigenas” ‘ou “tribais” “a auto-identificacio”." Porém, para que os indios possam efeti- vamente set assistidos no Ambito dos “direitos indigenas’ ~ uma categoria consagrada atualmente no diteito internacional e nacional brasileiro ~, no- ‘meadamente para a identificacéo de terra indigena, € exigido que se demons- tre que aqueles que reivindicam o tertitétio sio indios e isso se faz por meio de critérios fundamentados em teorias da identidade indigena. Os povos amerindios, entretanto, lutam em diversas partes da América "7 do Sul para expulsar garimpeiros, reivindicar diteitos a0 Estado Federal, ex- propriar fzzendeiros, evitar a construgio de barragens ou de estradas perto de dseas tertitoriis indfgenas, e até mesmo suspender leis globais de preservagéo cecolégica que os impegam de viver em nichos ecolégicos determinados. Mas tem alguns casos, como regularmente acontece com 0s fndios que vivem na faixa costeira atlantica do Nordeste brasileiro, essas reivindicagées nao che- gam sequer a ser consideradas antes que haja um efetivo teconhecimento da identidade indigena? O texto que aqui apresento € uma contribuigéo para o debate acima enunciado, por meio de um estudo emnogrifico de processos de identidade ¢ socialidade entre os Tupinambé de Olivenca que habitam a regio de Mara ‘Arlantica no sul da Bahia, perto de uma localidade chamada Olivenga, muni- cipio de Hhéus, entte o paralelo 14° 26’ Sul e a linha da costa, ¢ entre os ‘meridianos 39° 02' ¢ 39° 30° (Figura 1). Ao longo do tempo eles rém lidado com sucessivos projetos civilizatérios ideologicamente consistentes, sejam coloniais, nacionalistas ou missionérios, mantendo contato hé pelos menos quatto séculos com populagées nao ametindias evivendo ha sere décadas nos intersticios das reas residenciais destas populagdes. Histoticamente, enquanto Indios, eles pertencem a grande familia Tupi que jé vivia na costa da Bahia nos primeiros séculos da colonizacio portuguesa. Entre 0s séculos XVIII eXX, os indios aldeados na faixa nordeste da costa atlantica brasileira, entre eles os que moravam em Olivenga, foram descritos negativamente pela perda da sua capacidade de perseverar 0 “mérmore iden- titdrio de que se fara a sua cultura: a ingua, © modo de habitar eas ativida- des econdmicas de sobrevivencia. No final do século XIX, a entio Vila de Olivenca de Indios ¢ decretada administrativamente “extinta’, por no restar centre os seus habirantes qualquer sinal de vida propriamente “indigena’. "Apesar de decotrido um século desse decreto, quando fulam de si pré- pprios, por relacéo com os seus vizinhos, os indios que habiram nessa regido de Olivenca usam indiferenciadamente os termos “indio” ou “caboclo” para se autodefinirem. Mesmo depois da reivindicagzo enquanto Tupinambé de Olivenga, 0 termo “caboclo” é de imporsincia viral para eles, pois incorpora a histéria da sua relagSo com a civilizago ou com os tempos modernos. A alterndincia entre os termos indio ¢ caboclo é igualmente importante por se referit a formas de identificagéo que, em ver de se fundamentarem em nogdes substancialstas¢ classficavérias estanques de “tipos de pessoa’, dizem respei- toa modos de criar aeto, de viver e habitar e a modos de conceber como a vida social se faz no tempo. 8 \ Ny Y Figura 1 — Mapa delocalizagio da drea onde babitam os Tapinambd de Olivenga no Brasil Percurso da pesquisa de campo Dizia Meyer Fortes que fizer uma boaandliseantropoligica €como deitar um ealha, a uma piscina: nunca se pode dizer onde igo para as ondas por ele provocads. Hoxton 1959 apud Forres, 1983, p. 82. O presente estudo exnogrifico resulta, principalmente, de doze meses con- tinuos de pesquisa de campo com observacio participante, que realizei entre agosto de 1997 ¢ agosto de 1998, em Olivenca. Esse perfodo de trabalho de campo foi complementado por dois retornos subseqiientes de cerca de um més ao local de pesquisa, em setembro de 1999 e abril de 2000 e por dois meses em agosto de 2003 e feverciro de 2004 no trabalho pata a idemtificagio da Terra Indigena Tupinambé de Olivenga para a Funai.? Tomei a decisio de estudar 0s indios-caboclos de Olivenca na viagem de campo exploratéria que cfetuei com meu colega e amigo Miguel Vale de Almeida, em margo de 1997, a0 sul da Bahia. Tratou-se, igualmente, da minha primeira viagem ao conti- nente ameticano. (O motivo inicial que me moveu para essa regido do mundo, «para 0 con- texto nordestino brasileiro em particular, foi o interesse em compreender di- lemas de identidade que envolvessem 2 complexa teia de relagbes histéricas ¢ politicas que estavam na origem do crescente mimero de reivindicagées da autodeterminacio de povos amerindios. As leituras que fiz na fase preparaté- ria do estudo de campo me foram conduzindo para uma abordagem da etnicidade e da politiaacio da identidade, a partir da qual formulei o primei- 10 esboco da pesquisa, ainda antes do trabalho de campo, ¢ que arrisquei publicar logo nessa altura (Viegas, 1998). A experiéncia de campo, entretan- to, criou uma crescente e incomodativa insatisfaei0 com essa primeira linha interprecativa, a tal ponto que a orientago tedrica e etnogréfica que aqui desenvolvo pode ser vista como uma refutagio da que segui naquele artigo. 1Nas leituras preparatérias que antecederam a viagem exploratéria, ha- via tomado conhecimento da situacio de Olivenga por meio da publicagéo de Povos indigenas no Brasil: 1990-1995 (Ricardo, 1996). A referéncia a Olivenca fazia-se ali em um pardgrafo que transcrevo por contet uma série de elementos justifcativos do men primeiro entusiasmo com este estudo: Aldeamento jesultico ainda do séeulo XVI, originalmente ocupado por tupis costtros,servindo de baluarte na defesa de TIhéus contra os Aimarés. Ao longo dos séculos seguintes foram sendo af aldeados bandos destes botocudes, geral- 0 ‘mente identificados como Gren ou Goren. Jaina década de 30 deste século, a maior parte da populagio da antiga aldeia,jé sem terra, foi transferida por ‘Nimuendaju para a reeém criada Al Taraguassu/Caramuru, Outra parte per ‘maneceu na regio ¢ vive hoje em pequenos micleos, cerca de 13kin 2 oeste da Vila de Olivenga, nas localidades denominadas Sapucacirae Acuipe, em IIhéus! BA (Sampaio apud Ricardo, 1996, p. 89, Este fato de se tatar ao mesmo tempo de um antigo aldeamento ligado com a histéria colonial e de um contesto que nunca tinha sido estudado, despertou em mim um misto de fascinio e curiosidade que normalmente est na otigem das motivagées que nos levam a pesquisas de campo deste tipo. \Naviagem exploratéria de marco de 1997 tive a sorte de conhecer 0 autor do texto, oantropélogo José Augusto Laranjcira Sampaio. Aquilo que me disse a respeito de Olivenga, em conjunto com os colegas da Universidade Federal a Bahia, acabou por me motivar mais ainda a levar a bom tetmo esta pesqui- sa de campo. Nessa altura, o que se sabia era que os indios de Olivenga se mostravam renitentes em relacionat-se tanto com a Funai como com qual- quer instincia politica ligada & idemtficaso de uma terra indigena na regio. Isso contrastava com o clima entao vivido no Brasil em geral, e em particular no sul da Bahia, onde a situagio da reivindicagao de direitos indigenas pare- cia ainda mais premente,jé que estévamos a cerca de trés anos da comemora- «fo dos 500 anos de existéncia (para alguns “descoberta”) do Brasil, que se realizaria em abril de 2000. Durante os primeiros meses de trabalho de campo, tentei compreender ‘Zo s6 como atuavam localmente os mevimentos politicos na defesa dos di- reitos dos indios, mas também os movimentos afroculturais em Hhéus, acom- panhando, neste tiltimo caso, 0 trabalho do meu colega Miguel Vale de Al- meida (2000). O tempo correu velozmente nesse periodo, contrariamente a0 que aconteceu mais tarde, quando me fixei em um local. ‘A partir de janeiro de 1998 passei aresidir em Sapucaeira — uma das lo- calidades do interior ~ a 18 km da vila de Olivenga. A etmografia que aqui apresento resulta, portanto, da observacéo participante que realizei principal- mente em Sapucacira, ainda que a partir dela tena feito muitas visiras a ou- tras 4reas, Na vila de Olivenca mantive um apartamento e acompanhei du- rante todo 0 ano o decorrer da vida e da relagio orbital desta localidade para a vida dos fndios que vivem no interior da mara Na época em que escolhi Sapucacita como foco principal da observacio participante, o que me movia era uma enorme curiosidade em entender me- Ihor a vida cotidiana dos {ndios que fui conhecendo ao longo de meses, 8 a medida que visitava mais ¢ mais éreas da regio de Olivenga, onde vivem em habitagao dispersa. A essa altura, ja tinha suficientes indicios de que os aspec- tos informais e prosaicos da vida cotidiana conteriam miiltiplas chaves para aleangat 0 entendimento do que para eles significava viver, eda diferenga do seu modo de vida em relagéo a0 da populacio com a qual coabitavam ou iam proximamente. Para atingir esse objetivo, teria que recorrer & raiz mais elementar do trabalho antropoldgico, fazendo do deles o meu cotidiano. ‘A decisio de morar em uma casa familiar transformou de modo radical aque- la que veio a sera pesquisa de campo. Se a mesma problemética da identidade haveria de continuar a orientar a pesquisa, aquilo que passei a conhecer reo- rientou o estudo de um modo que julgo ter tido, neste caso, consequéncias particularmente profundas. Quando voltei do trabalho de campo, as notas que registravam a vida cotidiana em Sapucaeira me levaram 2 Icicura de etografias sobre a Amaz6- nia ¢ essas me conduziram 2 um aprofundamento dos debates etnogréficos americanistas, nomeadamente Tupi, de um modo que, no processo de prepa- ragio pata o campo nunca imaginara que pudesse vir a acontecet. Essas leita ras se tornavam tanto mais entusidsticas quanto mais me via envolvida em uma espécie de “redescoberta” do que havia conhecido na vivencia com os indios-caboclos em Sapucacira. Apesar de singular, vim a compreender que esse processo corresponde a uma reorientacio de abordagens entre 0 que & conhecido no Brasil como “estudos interétnicos” ¢ a etnologia (ou estudos americanistas), a qual tem sido experimentada, ainda que de modos diversos, por outros antropélogos que estudam contextos amerindios, entre os quais Peter Gow no estudo dos Piro e Terence Turner nos Kayapé (Gow, 1991, p. 12-15; Turner, 1993; Viveiros de Castro, 1999, p. 141-142). ‘A etnografia que desenvolvo neste livzo se sustenta, portanto, em uma compreensio dos processos hist6ricos vividos pelos indios & medida que fo- rai lidando com o colonialismo, as politicas do Estado e do mercado. No centanto, em vez de partir da Histéria como um corpo de conhecimento fun dado nas altetagées as politicas globais acima enunciadas, este estudo parte dos sentidos da vida social dos Tupinambs de Olivenca pata compreender ‘como essas mudangas sociais ¢ politicas se constituem historicamente. Pro- ponho, entio, descrever o modo de viver dos Tupinambs de Olivenca explo- rando diversas dimensées dessa vivencia. ‘A primeia diz respeito 20 entendimento da vida social como um pro- cess0 que nao sé tem que ser constirufdo, mas também constantemente vi- giado emantido, Isso significa que a vida €encarada como um campo de pos- 2 sibilidades que oscila entre aquilo que existe por ineréncia pragmética e aqui- Jo que é vivencia continuada no tempo. Esse entendimento da socialidade se torna particularmente claro no Ambio dos fendmenos de parentesco, na cexpressio de afetos, e no ato de dar de comer ou de “dar sustento”. Corresponde ‘a.um modo temporal de ligar as pessoas pela necessidade de reiterar cotidia- namente esse cuidado. ‘Veremos ainda que a vivéncia estard sempre relacionada, entretanto, com ‘© espaco de habitacfo, ¢ por isso as questées do parentesco e da terra se tor- nam interdependentes: porque 0 espago que se habia e 0 que se memoriza ¢ vive séo planos incersectados da experincia histérica dos Tupinambé na terra cde Mata Atlantica da regio de Olivenga. Observaremos, por fim, que na vida dos Tupinambé de Olivenga o conhecimento interpessoal continuado no tem- po é base de sustentagio das socialidades. E desse modo que se explica a resistincia em se referir pessoas ou fatos que tenham ocortido em outro local ‘ou em outro tempo, se 0 conhecimento desses fatos néo resultar da experién- cia pessoal direra. Ao mesmo tempo, & também assim que entenderemos a re- sisténcia de alguns indios a procurar entusiasticamente parentes seus que ha- bitem em outzas localidades, como aconteceria com quem tivesse idéias cla- ras sobre pertencas familiares gencaldgicas, inclusivas e consticutivas de um todo céletivo. Uma tims vivencia dos Tupinambé de Olivenga que seré descrita neste livro diz respeito, ainda, modos de relacionar pessoas ¢ espagos: viver prOxi- ‘mo (a uma distincia que viabilize a visita) e viver junto, isto é intensificar lagos entze pessoas, é uum ideal a alcanga:. Contudo, veremos que essa tenta- tiva de viver préximo e junto, por néo se sustentar em um imaginério coleti- vo, ndo se reflete também em uma organizagao territorial demograficamente concentrada, como acontece, por exemplo, no caso das unidades administra- tivas brasileras das “aldeias de indios”. © que esta aqui em questio no é um grau de percenga geograficamente definido, mas uma associacio 20 espago como uma dimenséo do vivido, que vai se imiscuindo historicamente com nogées de tertitério e de “terra", constituidas pelos missionérias, colonos e diversos incervenientes do processo de privatizagio da terra, com os quais os ‘Tupinambé de Olivenga foram lidando 20 longo de séculos, Como nasceu © nome Tupinambé para os Tupinambé de Olivenca No ano 2000, quando chegou & Funai o primeiro documento formal dos Tupinambé de Olivenca requerendo sua identificacao, eles jf haviam vi- 23 vido varias fases na procura de um etnénimo, as quais foram tornando essa pprocura uma necessidade. Logo no primeito més de trabalho de campo, em agosto de 1997, acompanhei duas mulheres a uma reuinigo ligada a quest6es de sade indigena, em Eundpolis, onde se localizava, na época, a sede regio~ nal da Funai no sul da Bahia. Em 14 de setembro de 1997 deu-se outra reunido, jf em Olivenga (Sa- pucacita), presidida pelo entéo chef do Servigo de Assisténcia a0 Indio da ‘Administragéo Regional da Funai de Eundpolis (ADR/Eundpolis), 0 qual, no seu relatério, registrou a minha presenga ~ “01 antropéloga da cidade de Coimbra, Portugal, que trabalha na regio", mas nao péde servir-se de co- nhecimento especificamente antropolagico para a desctigio que fez da situa fo. Aquilo que viu e ouviu foi transposto para a carta que ditigix oficialmen- teao administrador da ADR/Eundpolis, mas os termos so mais impressivos do que descttivos, como se nora no seguinte excerto de abertura da carta: Por oportuno transcrevo para o Vosso conhecimento dados sobre uma comu- nidade indigena em vias de integragao, situados no Municipio de IIhéus-BA, Olivenca. Fomos a0 Distrito de Sapucaera[..]. Apés contato ¢ revelagbes do tupo meio arredio pelo pouco que sio vistados, pude constatar que vives En seximefechadoe nda conserva seus ragosGnics, gado dos prime tos povos a habitarem a regio costera da Bahia. Sua principal caracteristica «esti na observacio. Poutco dizem, eno dizem antes de ouvir. Sa situacdo Sécio- Fonémica nao difere dos demais os quais estamos habituados a lidar. Por consequéncia, eambém descendem dos Pataxb. A diferenca entre estes € esta- do deisolamento que 0s torna menos ndmades. (Carta de Antonio Silva, servi dor da Funai, 24 de setembro de 1997, ADR/Eunépolis) ‘A carta vern seguida da assinatura dos indios que estavam presentes & reunifo (Cf. Anexo I) ¢ foi arquivada no dossier da Funai sobre 0s Tupinambé de Olivenga, Anexa carta encontra-se um outro documento, de abril de 1998, assinado pelo chefe do Departamento de Identificagfo ¢ Delimitagio (DEID) dda Funai e ditigido & Diretoria de Assuntos Funditios (DAP), “solicitando analisarainformacao encaminhada pela Administraglo Regional de Eundpolis, dando conta de comunidade possivelmente Pataxé na regio de Olivenga (BA)”. S6 dois anos depois, cm 18 de abril de 2000, quando a reivindicacio, pelos préptios indios, da identificacio étnica como Tupinambé de Olivenga jé havia chegado & Funai sob a forma de Carta da Comunidade Indigena “Tupinambé de Olivenca & Sociedade Brasileira” (datada de 25 de fevereiro de 2000), € que a DAF envia resposta & solicitagao do chefe do DEID. Nesse m4 i ' parecer, além da Carta de 1997, sfo citados os trabathos da historiadora Maria Hilda Parafso, bem como uma carta que den entrada na Funai em Brasilia em 1996, na qual uma assistente social solicita que este érplo faca um estudo e dé assiténcia a oitocentos indios, que ela diz conhecer de perto e que relata viverem na regido de Olivenca. Descreve nessa carta que, 20 tentar tratar dos documentos de aposentadoria dos indios, fora informada pelos rgios com- petentes (ita a Prefeitura ea Receita Federal) de que “cles & caso de Funai”, ¢ que ela “nfo sabia o que era esse drgfo”. rendo ent&o procurado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovaveis (Ibama), 0 qual também nfo the dera solucSo para 9 assunto. ‘Ao analisat 0 processo, por equivoco, este parecerista tomou a reuniéo ‘ocortida em 14 de setembro de 1997 em Sapucacira, por mim assitida, como uum Grupo de Trabalho (GT), no qual eu estariajé inscrita como antropéloga profissional — comentando: ‘a despeito do grande ntimero de pessoas no GT, as informag6es disponibilizadas na carta nfo so suficientes para esclarecer como chegaram & conclusio de que se trata de um grupo Pataxé” . Em face desse histérieo, o parecer indica que: (..] €necessitio formar uma comissio que estude e rate dos problemas afetos 405 indios da Regio Nordeste, de maneira a envolver técnicos de diferentes Departamentos, principalmente antropélogos, uma vez que as demandas rela- tivas’tidentficagio de novas terrasindigenas naquela regio sio cada vez maio- res, Deve haver o deslocamento de um antropélogo até Olivenga/BA, para que pproceda aos estudos nevessirios sobre esses possveis indios, de mancira a se ‘confitmar sua condigéo émica. (Pareces n* 090/DEID, de 18 de abril de 2000, Socidloga, DAF). ‘Voltemos agora 1997 2 vivencia éo assunto pelos indios em Olivenca. Na semana anterior & reunio de 14 de setembro, ocorreu uma reuniéo 50- ‘mente entre os indios de Sapucaeira, anunciada como “reunifo de indio” ou “reunio dos caboclos”. Nesta se falou, principalmente, dos assuntos de satide (que vinham da reunio de Eunpolis) e da necessidade de elegerem uma li- deranca. O assunto do etnénimo nfo foi abordado. Na reuniao de 14 de se- tembro com a Funai, estavam presentes os Pataxé Ha Ha Hie da area de Caramuru Paraguassu que convidaram os indios de Olivenga a comparece- rem a.um encontro de trés dias organizade pelo Conselho Indigenista Missio- nério (CIMD, o qual ocorreria em outubro, em Caramuru. [Nessa reunio, na qual se juntaram indios de toda a regio Leste (Bahia, Espitito Santo e Minas Gerais), em uma conversa que presenciei entre uma 2 iissionéria do CIMI ¢ uma jovem professora de Sapucaeita, a pergunta so- bre o ctnénimo surgi de forma direta: “a que emnia pertencem?” A tesposta da jovem foi igualmentre répida e surpreendentemente firme: “Tupi”, Nesse ‘mesmo dia, um outro missionério insistiu com ela, na ocasiio em que estéva- ‘mos reunidos para debater assuntos formalmente agendados: “E vocts ld [de Olivencal se identificam como Pataxé?” Ao que ela respondeu: “Nao sei. Tem lum nome, mas eu nao sei. Meu avé era de Olivenga ¢ é Tupinamba”. Durante os outros dias do encontro, os cartazes afixados no fim de cada trabalho jé identficavam os “indios de Olivenga” como “Tapinamba”. Maso assunto estava longe de se resolver. Ao voltarem para Sapucacira e conversi- tem com os outros indios, os dilemas em torno do etnénimo adensaram-sc. Os debates nfo eram, contudo, arbitrérios, pois as dividas se colocavam sempre em relagao atrés etnénimas bem precisos: Tupiniquim, Guarani ou Tupinam- ba. Passados trés meses, em janeiro de 1998, aquela mesma jovem patticipou de um curso de formas de professores indigenas, ¢ quando lhe perguntei se nesse encontro, realizado na aldeia Pataxé de Barra Velha, a tinhiam designa- do por Tupinambé, ela explicou-me, para minha enorme surpresa, que a ti nham inclufdo nos Pataxé Ha Ha He por razdes administrativas, jd que os indios de Olivenga nao tinham ainda identificagao étnica oficial, imprescin- divel para que se participe no curso de formacéo para professores indigenas. ‘Apesar dessas controvérsias administrativas, pode dizer-se, contudo, que desde 1997, quando a questio do etndnimo se colocava para os indios que conheci em Olivenga, 0 nome Tupinambd, ainda que por vezes causasse pet- plexidade (suscitando interrogagSes sobre os nomes que ouviram dos ante- passados mais remotos), foi ganhando forma e consenso, Mesmo assim, nos ‘meses que antecederam a elaboracdo da Carta (aberta) da Comunidade Indt- gena Tapinambé de Olivenca & Sociedade Brasileira (Cf. Anexo 1), no ano 2000, na qual a reivindicaséo como Tupinambé de Olivenca se oficializa pela primeita veo, algumas liderangas mais letradas consultaram e peditam escla- recimentos a especialistas de histéria indgena e de antropologia, indicando jgualmente como dilema bésico a diferenca entre Tupi-Guarani e Tupinam- bat Publicamente, 0 nome “Tupinambs de Olivenga’ surgiu primeiramente ‘em uma convocatéria para a reuniso da “comunidad inidigena Tupinambd de Olivenga’, a reaizar-se no Acuipe, em fevereiro de 2000, da qual teré sai- doa refeida Carta aberta. Mesmo assim, 0 reconhecimento oficial de identifica- lo dos Tapinambé de Olivenca ainda nao ficou resolvido neste momento. Em maio de 2001, os Tupinambé de Olivenga viveram em tensio com 0 % | | b ‘ I | | | Sérgio de asisténcia & sate dos fndios (Funasa) (CARTA das comunidades ¢ liderangas indigenas, 2001), que queria suspender 0 seu atendimento, porque “os indios Tupinambé da regio de Olivenga nfo so reconhecidos por nenhum Ager de cures, as voles so campo em 1999 ¢ 2000 aabaram por ganhar a mesma ul dade que Malinowl (1987.13) hes avi econhecdo,peemiindo confrmarecon- ‘rear informases depois de una primera svematiraso eles profes abe o max teil de campo illexlenglish! ‘Bm nosso entendimento sobre esse processo de atibuicio do ctnGnimo, nfo podemos es- {quecer, eambém, que em sus maioria os ernénimas dos povos da América do Sul “no sio aurodesignaces, mes nomes conferidos por outros povos", como acontece, por exemplo, com 0 cato do nome Answer, inventado por um sertanista da Funal; 0 Yanomamn “ciado pelos brancos"; ou, ands, 0 Paraband da auroria de outros indios que nlo os préprios (Vi- veiros de Castro 1986, p. 127, 2000, p. 123; Ramos 1990, p. 26; Fausto 2001, p. 39). » Apesar de haver diversas interpretagdes pata sotigem do prdprio nome “caboclo”, do cupt «ad-hoc, importa refers que alguns autores a atribuem 3 descrigio dos indies eatequizados, pelos suits: “Cabodlaseram primitivamente chamados os indios catequizados em aldeias pelos Jesutas seus vas decatequese”(Diciondrio Etimolbgico da Lingua Porcuguesa, 197). 4“ « Basa loalzagéo pode ser visulzada no Mapa Deseripe de soda cesta da Provincia de Senta Gnacaquevulgarmite cham Brasil~ 164, do cones catégeafo excita Albaraz, tal como visto em Moreno, 1968, p. 32cm Lete,1998a,p. 144. original encontrse na Biblioteca da Ajuda (referencia, 52/KIV6). Luis Fete de Vera (ouvidor da Bahia que ele- ‘ou aalcia 3 condicio de vila depois da explo ds estas, explicia que uma data pro- ‘vel para a fundagdo do povoament seria 1682, refrind ser esa. a daa do primeto lio

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