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aula-nunca-mais
Organização da sala
Foto: Reprodução/Facebook
É possível ter uma escola inteira fora do modelo tradicional de organização? Sem
carteiras enfileiradas, sem ter a lousa e o professor sendo os principais focos da aula? A
ideia de abandonar completamente o modelo das salas de aula organizadas por fileiras
pode ser chocante para a maioria dos educadores. Mas algumas escolas já vivem (bem)
em novos formatos. “É uma mudança de cultura”, afirma Célia Senna, formadora de
professores da consultoria INovAÇÃO.
Na Escola Municipal Waldir Garcia, em Manaus (AM), a inspiração veio das experiências
de outras instituições escolares, como a Escola da Ponte, em Portugal. “Quando
passamos a estudar outras escolas, vimos que éramos muito tradicionais”, conta a
diretora Lúcia Cortez de Barros Santos. Havia filas em todo lugar: para organizar a
entrada, para atravessar a escola até a quadra e para organizar os alunos na sala de
aula. Não mais.
“Mas será que ele está prestando atenção?”, questiona Célia. O modelo pode criar duas
falsas sensações ao professor: 1) a de controle sobre a turma; 2) a de que o estudante
nessa posição mantém o foco o tempo inteiro e está enxergando tudo. “Para que o
único foco seja uma só pessoa, é preciso que ela esteja trazendo informações muito
importantes, contextualizadas e interessantes para que a criança ou adolescente deixe
de se distrair com outras coisas”, pondera a formadora. O “controle” também não
desenvolve a autonomia dos estudantes, enquanto o trabalho individual costuma ser,
em muitas instâncias, mais fácil do que ter que lidar com as diferenças e dificuldades
de outros três ou cinco colegas.
Para substituir as carteiras universitárias, a escola manauara conseguiu mesas
redondas com a Secretaria Municipal de Educação. Mas só as mesas. Diante da
impossibilidade de usar as cadeiras daquele tipo, eles precisaram se adaptar. Um
membro da comunidade se propôs a ajudar na mudança e cortou os tampos das
mesas, para que as cadeiras continuassem sendo utilizadas pelas crianças.
Havia uma inquietação com o questionamento dos pais de estudantes na Amorim Lima
sobre o desdobramento do projeto político-pedagógico (PPP) na prática. A comunidade
era ativa, mas a escola tinha problemas de indisciplina, falta de professores e nem
sempre as crianças tinham todas as aulas. “Além disso, os pais nos questionavam
coisas como: a autonomia está no PPP. Mas como as crianças vão adquirindo essa
autonomia?”, relembra Ana. No início, as questões iam aparecendo e a resposta era
uma solução temporária. “Mas elas não resolviam os problemas de fato. Foi um
momento importante, em que todos nós olhamos para nossa coerência”.
A transição de modelos
Para quem sempre foi tradicional, mas decidiu mudar, é preciso um pouco de
paciência. A colaboração e compreensão da comunidade é essencial para que a
transição não seja abalada pelo pessimismo sobre o modelo. Eliane da Motta Pinheiro
já integrava o corpo docente quando a EM Waldir Garcia decidiu “deixar de ser tão
tradicional”. A apreensão reinou durante algum tempo. “No primeiro ano da mudança,
eu sofri. As crianças de seis anos já são inquietas por natureza e a conversa ficou mais
evidente”, relata a professora do 1º ano do Fundamental. As reclamações foram
generalizadas: as crianças não paravam mais sentadas, era muita falação, indisciplina e
os professores estavam com dificuldade de dar aula.
Não eram apenas eles que queriam a volta do modelo tradicional. “Os pais me
procuravam para falar que antes a escola era organizada, mas que agora estava uma
bagunça. Teve até denúncia na secretaria de Educação”, relembra Lúcia. A diretora
decidiu então embarcar juntamente com outros membros da equipe para São Paulo
em uma imersão de escolas que já haviam adotado a prática com sucesso, como a
Amorim Lima e o Projeto Âncora, em Cotia, no interior do estado.
No Projeto Âncora, uma associação filantrópica, não existem aulas e nem séries. A
organização é por núcleos de aprendizagem: iniciação, desenvolvimento e
aprofundamento – cada um com seu propósito. “Independentemente da idade, as
crianças são organizadas pelo grau de autonomia. Isso não significa que uma criança
de três anos vai ficar junto com uma de 12, porque os graus de autonomia são
diferentes”, explica Edilene Morikawa, coordenadora pedagógica do projeto. Nesses
núcleos, as crianças ganham autonomia para tomar decisões, desenvolver seus
percursos de aprendizagem e construir senso de responsabilidade individual e coletivo.
O impacto da mudança
“Com a mudança das carteiras, a gente começa a mudar outras coisas”, admite Lúcia. É
preciso construir novas relações entre professores e alunos, mudar atitudes diárias, o
modo de ensinar e de orquestrar a dinâmica da sala. Sem o foco na lousa e no
professor, as três escolas optaram por trabalhar com roteiros de estudo e pesquisa.
Qual a vantagem? O respeito ao ritmo de aprendizagem de cada aluno.
“A gente até usa a lousa ainda, mas não é o principal”, afirma a diretora da Waldir
Garcia, em Manaus. Na avaliação da formadora Célia Senna, o objetivo da mudança da
organização do espaço é justamente para que o modo tradicional de ensinar seja
revisto. “Nada impede que, em um primeiro momento, as instruções estejam na lousa
e se vá adaptando aos poucos. A possibilidade de um material impresso, como os
roteiros, é uma opção interessante”.
Na Amorim Lima, foi uma doutoranda de Linguística da USP que trouxe a proposta de
desenvolver roteiros. “A partir da vivência da nossa escola, ela inventou um jeito de
trabalhar os livros didáticos. A partir de temas como memória ou cidades, trabalhamos
interdisciplinarmente Ciência, História, Geografia, Língua Portuguesa”, conta Ana. Deu
certo. A metodologia é usada até hoje por eles. O modo como o roteiro é trabalhado
depende do nível de autonomia do estudante. “O processo de autonomia é uma
construção. Uma criança de cinco anos precisa de um acompanhamento mais próximo
do educador”, destaca Edilene, coordenadora do Âncora. No entanto, conforme
avançam, elas podem contar mais com o auxílio do grupo e menor apoio do educador.
A primeira vantagem é a quebra do estigma que separa os bons alunos dos ruins:
quem ocupa as primeiras carteiras são os alunos dedicados, os “CDFs”, enquanto o
fundão fica por conta dos bagunceiros. “Nessa disposição, fica mais fácil perceber o
que estão fazendo. Dificilmente alguém vai se debruçar na carteira para dormir em
grupo”, diz Célia. Mas a lista de ganhos é longa, de acordo com as escolas: amplia a
inclusão de crianças com deficiência e de alunos estrangeiros, melhora a convivência e
colaboração tanto entre estudantes quanto professores, maior respeito ao tempo dos
colegas e, consequentemente, a aprendizagem ganha muito.