Você está na página 1de 14
DO AUTOR (Cultura popular na Idade Moderna, Sio Paulo, Cia das Letras, 1989. As fortunas do Cortesdo, Sto Paulo, Unesp, 1997. Vico, $20 Paulo, Unesp, 1997. Peter Burke Variedades de historia cultural TRADUGAO DE Alda Porto So \ZAGKO BIA Rio de Janeiro 2000 COPYRIGHT DESTA COLETANEA © Peter Burke, 1997 Publicado originalmente por Polity Press em associagZo com Blackwell Publishers Led, 1997 TITULO ORIGINAL INGLES Varieties of Cultural History CAPA Evelyn Grumach PROJETO GRAFICO Evelyn Grumach e Joao de Souza Leite PREPARACAO DE ORIGINAIS Leny Cordeiro EDITORAGAO ELETRONICA Art Line GIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL BOS EDITORES DE LIVROS, RJ Be73y culurl/ Pee Burke; uadsto de Jano: Civzaio Brass, 2000, Tradujio deVarietes of cultura istry 1. Gina — Hisriografia 2. Cilzago — His, +3. Cultura — Historiografia. I. Titulo. me cop so.7s6 our? ‘Todos o direitos reservados. Probida a reprodusio, rmazenamento ou transmissio de partes deste liv, através de quaisque meio, sem peer utorzagdo por esr, Direits desta ego aduirdos pela HCD Unido de Edtoras SA. Av, Rio Branco, 99/20? andar, 20040-004, Rio de Janeiro, RJ, Brasil ‘elefone (21) 263-2082, Fax/ Venda (21) 263-4606 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL (Caixa Postal 23.052, Rio de Jair, RJ 2092-970 Impresso no Brasil 2000 sumario preraco 7 AGRADECIMENTOS 9 Origens da hist6ria cultural 11 A hist6ria cultural dos sonhos 39 Histéria como meméria social 67 A linguagem do gesto no inicio da Itdlia moderna 91 Fronteiras do cémico no inicio da Itélia moderna 113 discreto charme de MilAo: viajantes ingleses no século XVII 137 Esferas piiblica e privada na Génova de fins do Renascimento 159 . Cultura erudita e cultura popular na Italia renascentista 177 9. A cavalaria no Novo Mundo 195 0. A tradugao da cultura: 0 Carnaval em dois, ou trés mundos 213 11. Unidade e variedade na histéria cultural 231 ayeers > 1 BiauocRaRA 269 noice 307 YnsiSuq come mems us Socal [A visio tradicional da relagio entre a hist6ria e a meméria é relati- ‘yamente simples. A funcio do historiador é ser 0 guardio da memé- tia dos acontecimentos puiblicos quando escritos para proveito dos stores, Para proporcionar-lhes fama, e também em proveito da pos- teridade, pata aprender com o exemplo deles. A hist6ria, como es- cereveu Cicero em um trecho que se tem citado desde entdo (De ora- 36), ‘memoriae). Historiadores tio diversos quanto Herédoto, Froissart ¢ Lorde Clarendon afirma~ ram que escreviam para manter viva a meméria de grandes feitos € grandes fatos. Dois historiadores bizantinos, em particular, se estenderam por ‘completo sobre a questéo em seus prologos,utilizando as tradicionais etéforas da época, como 0 rio, € as agdes como textos que podem ser obliterados. A princesa Anna Comnena descreveu a histéria como um “baluarte” contra a “corrente do tempo”, que tudo transporta pa- +a as “profundezas do esquecimento”, e Procépio declarou que escre- ‘yeu sua hist6ria das guerras goticas, persas e outras “com a finalida- de de que o longo curso do tempo nao sobrepuje os feitos de impor- ‘ncia singular por falta de registro, assim os abandone ao esqueci- mento e se esquieca inteiramente deles”. Também se pode ver a idéia de ages como textos no “livro de meméria”, empregado por Dante € Shakespeare, que escreveu: “manchar seu nome de livros de memé- ria (Henrique VI, Parte 2, Ato 1, Cena 1). 1a explicagio tradicional da relagio entre a meméria e a hist6- nna qual a meméria reflete o que aconteceu na verdade e a a “vida da meméri 69 VARIEDADES DE HISTORIA CULTURAL historia reflete a meméria, parece hoje demasiado simples. Tanto a histéria quanto a meméria passaram a revelar-se cada vez mais pro- blematicas. Lembrar o passado e escrever sobre ele no mais parecem as atividades inocentes que outrora se julgava que fossem. Nem as ‘memérias nem as hist6rias parecem mais ser objetivas. Nos dois ca- 808, 0s historiadores aprendem a levar em conta a selego consciente ‘ou inconsciente, a interpretacao € a distorgao. Nos dois casos, passam a ver 0 proceso de selecao, interpretacio ¢ distorgao como condicio- nado, ou pelo menos influenciado, por grupos sociais. Nao € obra de individuos isolados. (O primero pesquisador sério da “estrutura social da meméria”, como a chamou, foi, € claro, 0 socidlogo ou antropélogo francés Maurice Halbwachs, na década de 1920.1 Halbwachs afirmou que as rniemérias so construidas por grupos sociais. Sao os individuos que lembram, no sentido literal terminam 0 que é “memoravel”, e também como seré lembrado. Os individuos se identificam com os acontecimentos piblicos de impor- tncia para seu grupo. “Lembram” muito 0 que nao viveram direta- mente. Um artigo de n » por exemplo, as vezes se torna parte da vida de uma pessoa. Dai, pode-se descrever a meméria como uma reconstrucio do passado. a Como fiel dise‘pulo de Emile Durkheim, Halbwachs assentou seus argumentos sobre a sociologia da meméria de uma forma sé cembora ndo extrema, Ele nao afirma (como certa vez 0 acusou 0 psi- célogo Frederick Bartlett) que os grupos sociais recordam da mesma ‘maneira literal que os individuos.? Uma semelhante compreensio errOnea da posigio de Durkheim foi mostrada pelos historiadores bri- tanicos que dizem que as “mentalidades coletivas” estudadas por seus colegas franceses esto mais fora dos individuos do que so partilha- das por eles. * Halbwachs (1925); ef. Halbwacks (1941, 1950); Lowenthal (1985), 1924 3-90, , 2694; Douglas (1980), 268. HISTORIA COMO MEMORIA SOCIAL Contudo, Halbwachs foi mais vulneravel as criticas mais precisas do grande historiador francés Marc Bloch. Foi Bloch que salientou 0 perigo de tomar emprestado termos da psicologia individual e apenas acrescentar 0 adjetivo “coletivo” (como nos casos de représentations collectives, mentalités collectives, conscience collective, além de mémoire collective).3 Apesar dessa critica, Bloch se prontificou a ado- tar a expressio mémoire colecive ea analisar costumes camponeses nesses termos interdisciplinares, notando, por exemplo, a dos avés.na transmissio de tradigdes (um historiador poste cola dos Annales criticou essa “lei dos avés”, no século XVII, porque 0s avés raras vezes sobreviviam tempo suficiente para ensinar os netos, mas ele nao langa diivida sobre a importancia da transmissio social da tradigao).* Halbwachs fez uma incisiva distingZo entre a meméria coletiva, que era uma construgio social, e a histéria escrita, por da — A maneira tradicional — objetiva. Contudo, muitos estudos re- centes da literatura hist6rica a tratam de modo semelhante ao que Halbwachs tratou a meméria, como produto de grupos sociais, como ‘0s senadores romanos, os mandarins chineses, os monges benediti comum salientar que, em diferentes lugares e épocas, os historiadores consideraram os diferentes aspectos do passado como memordveis (batalhas, politica, religido, economia e outros) ¢ que apresentaram 0 ppassado de maneiras muito diferentes, concentrando-se em fatos ou estruturas, em grandes homens ou pessoas comuns, segundo 0 ponto de vista de seu grupo. Foi por partilhar essa visio de historia da tulo de “Histéria como meméria soci t6ria que i Eescolhi o termo ia social”, estabelecido na diltima década, como uma forma \da que resume 0 complexo processo de selegio e inter- Connerton (1989), 38 VARIEDADES OE HISTORIA CULTURAL historia reflete a memoria, parece hoje demasiado simples. Tanto a hist6ria quanto a meméria passaram a revelar-se cada vez mais pro- blematicas. Lembrar o passado e escrever sobre ele nao mais parecem 1s atividades inocentes que outrora se julgava que fossem. Nem. as memérias nem as hist6rias parecem mais ser objetivas. Nos dois ca- 508, 0s historiadores aprendem a levar em conta a selego consciente ‘ou inconsciente, a interpretacio e a distorgdo. Nos dois casos, passam 1a ver 0 processo de selesio, interpretagio e distorséo como condicio~ ou pelo menos influenciado, por grupos sociais. Nao é obra de individuos isolados. primeiro pesquisador sério da “estrutura social da meméria”, como a chamou, foi, € claro, 0 socidlogo ou antropélogo francés ‘Maurice Halbwachs, na década de 1920.1 Halbwachs memérias so construidas por grupos sociais. S40 0s i Jembram, no sen ‘mas so 0s grupos sociais que de~ terminam o que é “memorvel”, e também como sera lembrado. Os xcontecimentos piiblicos dl tincia para seu grupo. “Lembram” m mente. Um artigo de notic da vida de uma pessoa. Dai, pode-se descrever a meméria como uma reconstrugio do passado. ‘Como fiel diseipulo de Emile Durkhei seus argumentos sobre a sociolo; ‘embora ndo extrema. Ele nao afirma (como certa vez 0 acusou 0 psi célogo Frederick Bartlett) que os grupos sociais recordam da mesma ‘maneira literal que os individuos? Uma semelhante compreensio cerrénea da posigao de Durkheim foi mostrada pelos historiadores bri- tanicos que dizem que as “mentalidades coletivas” estudadas por seus colegas franceses esto mais fora dos individuos do que sao partilha- das por eles. Halbwachs assentou " Halbwachs| Halbwachs (1941, 1950}; Lowen WISTORIA COMO MEMORIA SOCIAL Contudo, Halbwachs foi mais vulneravel as criticas mais precisas do grande historiador francés Mare Bloch, Foi Bloch que salientou perigo de tomar emprestado termos da psicologia individual e apenas ferescentar 0 adjetivo “coletivo” (como nos casos de représentations és collectives, conscience collective, além de loch se prontificou a ado- tar a expresso mémoire collective ¢ a analisar costumes camponeses nesses termos interdisciplinares, notando, por exemplo, a importancia dos avés na transmissio de tradigdes (um historiador posterior da es- ‘cola dos Annales criticou essa “lei dos avés”, no século XVII, porque fs avés raras vezes sobreviviam tempo suficiente para ensinar os netos, mas ele no langa divida sobre a importancia da transmissio social da tradigio).4 Halbwachs fez uma incisiva distingo entre a meméria col que era uma construgio social, e a histéria escrita, por ele considera- da — mancira tradicional — objetiva. Contudo, muitos estudos re- ura historica a tratam de modo semelhante ao que Halbwachs tratou a meméria, como produto de grupos sociais, como os senadores romanos, os mandarins chineses, os monges beneditinos, 6s professores universitarios, e assim por diante. Tornou-se lugar- comum salientar que, em diferentes lugares e épocas, os historiadores consideraram os diferentes aspectos do passado como memoraveis (batalhas, politica, religifo, economia e outros) e que apresentaram 0 passado de maneiras muito diferentes, concentrando-se em fatos ou éstruturas, em grandes homens ou pessoas comuns, segundo © ponto de vista de seu grupo. Foi por partilhar essa visio de hist6ria da hist6ria que intitulei este capitulo de “Histéria como meméria social”. E escolhi o termo “meméria social”, estabelecido na dtima década, como uma forma itil e simplificada que resume o complexo proceso de selec e inter- centes da VARIEDADES DE HISTORIA CULTURAL pretagdo em uma férmula simples, ¢ enfatiza a homologia entre os ‘meios pelos quais se registra e se recorda 0 passado.5 A expressio suscita problemas que precisam ser tratados de inicio. As analogias centre 0 pensamento individual e o de grupo sio tao ilusérias quanto fascinantes. Se usarmos *, mos arrisca- remos a tratar os conceitos, uma abstracio, como tendo uma existén cia concreta, material. Por outro lado, se nos recusarmos a usar esses termos, ha o perigo de nao percebermos as diferentes maneiras pelas ‘quais as idéias dos individuos sio influenciadas pelos grupos a que eles pertencem, Outro problema sério é levantado pelo relativismo hist6rico implicito nesse empreendimento, Nao se trata de uma versio do pas- sado ser melhor (confiavel, plausivel, perspicaz e assim por diante) do ‘que qualquer outra. Alguns pesquisadores podem as vezes se revelar mais bem informados e imparciais do que outros. A questo é que todos nés s6 temos acesso a0 passado (como ao presente) via catego- rias e esquemas — ou, como diria Durkheim, as “representagdes cole- tivas” — de nossa prépria cultura. (Os historiadores se interessam, ou de qualquer modo precisam se interessar, pela meméria a partir de dois pontos de vista. Em primei- ro lugar, tém de estudar a meméria como uma fonte histérica, elabo- lade da reminiscéncia no teor da mos como “meméria soci de fato em movimento desde a década de 1960, quando hist do século XX passaram a compreender a importancia da oral”.§ Mesmo os que trabalham com perfodos anteriores tém alguma coisa a aprender com o movimento da histéria oral, pois precisam estar conscientes dos testemunhos ¢ tradigdes orais embutidos em muitos registros historicos.7 ' Conneston (1989); Fentress ¢ Wickham (1992). HISTORIA COMO MEMORIA SOCIAL Em segundo lugar, os como um fenémeno his social do lembrar. Co como a individual, é sel adores se interessam pela meméria pelo que se poderia chamar de historia iderando-se 0 fato de que a meméria social, va, precisamos identificar os prin sclegdo e observar como eles variam de lugar para lugar, ou de um ‘grupo para outro, € como mudam com o passar do tempo. As memé- fias sio maledveis, e € necessério compreender como sio coneretiza~ das, € por quem, assim como os limites dessa maleabilidade: Trata-se de t6picos que por algum motivo s6 atrairam a atengio de historiadores em fins da década de 1970, Desde entdo, mi same os ive, artigos econfertnclas sobre eles, incuindoo lvane tamento, cm miltiplos volumes, dos “dominios da meméria” edita- dos por Pierre Nora, desenvolvendo as percepgdes de Halbwachs na relagio entre a meméria e sua estrutura espa pesquisa da historia francesa desse ponto de vista.8 ‘A hist6ria social do lembrar é uma tentativa de responder a trés perguntas principais. Quais os modos de transmissio de memérias pablicas, e como esses modos mudaram ao longo do tempo? De modo inverso, quais os usos do esquecimento? Estas amplas questées serio examinadas aqui apenas do ponto de vista relativamente estreito de uum historiador do inicio da Europa moderna, oferecendo uma ‘TRANSMISSAO DA MEMORIA SOCIAL |As memérias sio influenciadas pela organizagio social de transmis- so € 0s diferentes meios de comunicagio empregados) Examinemos por um momento a simples variedade desses meios, particularmente cinco. ' Nora (1984.92) of Le Goff (1988); Hutton (1993), em particular 1-26, Samuel a VARIEDADES DE HISTORIA CULTURAL 1) As tradiges orais, discutidas do ponto de vista do historiador, ‘em um famoso estudo de Jan Vansina. As transformagées des- se estudo, entre sua publicagio original em francés em 1961 1 versio inglesa de 1985, muito revisada, empregam siteis indi- cadores das mudancas ocorridas na disciplina da hist6ria, na ‘ltima geragio, em particular o declinio da esperanca de esta- s € 0 surgimento do interesse por 2) A tradicional esfera de ago do historiador, as memérias € ‘outros “relatos” escritos (outro termo relacionado a lembrar, ricordare em italiano). Precisamos, € claro, no: esses relatos no so atos inocentes da meméria, mas antes tentativas de convencer, formar a meméria de outrem. Tam- bém precisamos ter em mente, como nem sempre fizeram os historiadores, o aviso de uma critica literdria perspicaz: “Quando lemos narrativas de memérias, é facil esquecer que ‘nao lemos a propria memoria, mas suas transformacées atra- vvés da escrita.”1 Contudo, pode-se fazer semelhante observa- ‘cdo sobre a tradigio oral, que tem suas préprias formas de estilizacdo. Dai a dificuldade de justficar um contraste agudo, como 0 de Pierre Nora, entre a “meméria” espontdnea de so- ciedades tradicionais e a “representacao” constrangida das modernas.!! 3) As imagens, sejam pict6ricas ou fotogréficas, paradas ou em movimento. Os praticantes da chamada “arte da meméria”, dda Antiguidade cléssica ao Renascimento, enfatizavam 0 valor de associar 0 que se quisesse a imagens imponentes.!2 Trata-se de imagens imateriais, na verdade “imaginérias”. Contudo, as 1 Youn 960 ef Bare (1932). 1 NISTORIA COMO MEMORIA SOCIAL rmatriishé muito ém sido construidas para ajudat a retengSo fe transmissio de memérias ides, es- tétuas, medalhas e “suvenires” de varios tipos. Historiadores dos séculos XIX e XX, em particular, és resse cada vez maior aos monumentos pt anos, precisamente porque esses monumentos ao mesmo tem- po expressavam ¢ fofinavam a meméria nacional.!3 4) As ages transmitem memérias ao transmitir aptides, do mes- tre ao aprendiz, por exemplo. Muitas delas nao deixam tragos para os historiadores posteriores estudarem, mas muitas vezes se registram pelo menos as ages rituais de “comemoragio”: Dia do Armisticio na Gri-Bretanha, Memorial Day (dia em meméria dos soldados mortos na guetra) nos EUA, 14 de Julho na Franga, 12 de Julho na Irlanda do Norte, 7 de Setembro no Brasil, e assim por diante.14 Esses rituais sao reen- cenagées do passado, atos de meméria, mas também tentativas de impor interpretagées do passado, formar a meméria, € assim construir a identidade social, Sao, em todos os sentidos, representagies coletivas. 5) Uma das mais interessantes observagdes no estudo de Halbwachs sobre a estrutura social da meméria se referia & importancia de um quinto sio de miemérias: 0 espaco. implicito na arte da meméria de “por” imagens que desejamos lembrar em locais im: ios impressionantes, como palAcios ou teatros memoraveis, explorando assim a associagio de idéias. Um grupo de missio- narios cat6licos no Brasil, os padres salesianos, parecia conhe- igagdes entre espagos € memérias. Uma de suas estraté- ce nos tltimos VARIEDADES DE HISTORIA CULTURAL ‘gias para a conversio dos indios bororos, como nos lembrou Strauss, foi transferi-los de suas aldeias tradicio- nais, onde as ocas eram dispostas em citculo, para outras, em que as casas eram dispostas em fileiras, impando dessa manei- ta a lousa dos indios e preparando-os para receber a mensagem crista."6 Poderfamos nos perguntar se 0 movimento de cerca- ‘mento dos campos europeu nao teve efeitos semelhantes (em- bora nio intencionais), abrindo terreno para a industrializa- io, sobretudo na Suécia, onde o decreto de cercamento de 11803 foi seguido da destruicio das aldeias tradicionais ¢ a dis- persio de seus habitantes.17 ‘Mas, em determinadas circunstancias, um grupo social e parte de suas memérias as vezes resistem a destruigio de sua casal Um exem- plo extremo de desarraigamento e transplantagio € © caso dos escra~ ‘vos negros transportados para o Novo Mundo. Apesar desse desarrai- gamento, eles conseguiram agarrar-se a parte de sua cultura, a parte de suas memérias, e reconstruf-las no solo americano. Segundo o socidlogo francés Roger Bastide, os rituais afro-americanos do can- domblé, cuja pritica ainda é muito generalizada no Brasil, envolvem psicolégica pela perda da patria, Bastide usa deste modo a prova das praticas de Halbwachs. A perda de raizes locais era compensada, de certa ‘maneira pelo menos, por uma consciéncia africana mais ge Do ponto de vista da transmissio de memérias, cada veie suas prOprias forgas¢ fraquezas. Gostaria de enfatizar mais um elemen- to comum a varios meios de comunicacio, que tem sido analisado por pesquisadores tdo diferentes como 0 psicélogo social Aby Warburg, 0 igiosas afro-americanas para criticar e aprimorar as idéias 16 Lévi-Strauss (1955), 220-1. e HISTORIA COMO MEMORIA SOCIAL historiador da arte Ernst Gombrich eo eslavo Albert Lord, que estudou poesia oral na Bésnia.!? Este aspecto comum é 0 “esquema”. O esque- sma se associa & tendéncia a representar — e as vezes a lembrar — um determinado fato ou pessoa em termos de outro. (Os esquemas desse tipo nao se limitam As tradigdes orais, como talvez sugira a cadeia de exemplos escritos a seguir. Em seu excelente estudo da Grande guerra e memdria moderna, o critico americana Paul Fussell observou o que ele chama de “dominacio’ da’ Segunda Guerra pela Primeira”, nao apenas no nivel dos generais, que sempre se supée tenham combatido na guerra anterior, mas também no nivel dos participantes comuns.2® Por sua vez, a Primeira Guetta Mundial ji examinada em termos de esquemas, ¢ Fussell nota a recorréncia da © Lamagal da vida nas ‘em memérias e didrios.2t Remontando a um pouco antes, iteratura de Bunyan — incluindo sua autobiografia, Grace Abounding — também utiliza esquemas (cf. p. 202). Por exemplo, a histéria de sua conversio € claramente inspirada, de modo consciente ‘ou inconsciente — é dificil de dizer qual dos dois —, na converséo de sio Paulo segundo a descrigio nos Atos dos Apéstolos.22 No inicio da Europa moderna, muitas pessoas liam com tanta fre- ‘iiéncia a Biblia que o livro se tornara parte delas e as historias que liam “organizavam suas percepgdes, memérias e mesmo seus sonhos (Capitu- Jo 2). Nao seria dificil citar muitos exemplos desse processo. Por exem- plo, a comunidade protestante francesa via as guerras religiosas do século XVI pelos éculos biblicos, entre elas o Massacre dos Inocentes. Nos séculos XIX ¢ XX, eles “lembravam” as casas dos protestantes como marcadas pela chacina dos eatélicos na época do Massacre de gistica de Pilgrim’s Progress, de Bunyan, em es 204, Warburg (1932); Gombrich (1960); Lord (1960). n VARIEDADES DE HISTORIA CULTURAL Sdo Bartolomeu, em 1572.23 Remontando ainda mais no pasado, Johan Kessler foi um pastor protestante suigo da primeira geracao. Em ist6ria de como, segundo suas palavras, “Martinho Lutero me encontrou na estrada para Wittenberg”. Quando cestudante, ee passou a noite junto com um companheiro na estalagem Urso Negro, em Jena, onde dividiram uma mesa com um homem que, ‘embora vestido como cavaleiro, lia um livro, ¢ que acabou revelando ser um saltério hebreu — ¢ estava ansioso por conversar sobre teologia. “Perguntamos: ‘Senhor, pode nos dizer se o Dr. Martinho Lutero esta ‘em Wittenberg neste momento, ou em que outro lugar ele pode estar?” ‘com toda a certeza, que ele nao esté em Wittenberg, "Meus rapazes’, ele perguntou, ‘que pensam as pes- s0as na Suiga sobre esse Lutero?”” Os estudantes continuaram nao entendendo a questio até 0 dono da estalagem fazer uma insinuaca024 Minha propria sugestio, contudo, & que, consciente ou inconsciente- mente, Kessler estruturou sua hist6ria em um protétipo biblico, neste Pode-se estender a cadeia de exemplos a um passado ainda mais remoto, pois a propria Biblia esta repleta de esquemas, ¢ alguns dos acontecimentos nela narrados sio apresentados como reencenagdes de acontecimentos anteriores.25 Mas os exemplos j dados talvez sejam suficientes para indicar alguns aspectos do processo pelo qual 0 pasado lembrado se transforma em mito. Devemos enfatizar que aqui se emprega o escorregadio termo “mito” ndo no sentido positi- vista de “hist6ria imprecisa”, mas no sentido mais rico, positivo, de uma hist6ria com um significado simbdlico que envolve personagens ‘em tamanho maior que 0 natural, sejam elas heréis ou vildes.26 Essas historias so em geral criadas a partir de uma seqiiéncia de incidentes estereotipados, as vezes conhecidos como “temas”.2? HISTORIA COMO MEMORIA SOCIAL Hi uma pergunta ébvia para um historiador fazer neste ponto. Por que 05 mitos se vinculam a alguns individuos (vivos ou mortos) e no a outros? Apenas poucos governantes europeus se tornaram he- r6is na meméria popular, ou pelo menos continuaram sendo herdis, por um longo perfodo: Henrique IV, na Franca, por exemplo, Frede- rico, 0 Grande, na Prissia, Sebastido em Portugal, Guilherme II na Gri-Bretanha (sobretudo na Irlanda do Norte) ias Corvino na ‘Hungria, de quem se dizia: “Matias morreu, a justica pereceu.” Mais uma vez, no é todo homem ou mulher que se torna santo, oficial ou no. O que determina seu sucesso? A existéncia de esquemas no explica por que estes passaram a vincular-se a determinados individuos, por que algumas pessoas so ‘mais, digamos assim, “mitogénicas” que outras. Sequer é adequada a resposta de historiadores literais quando descrevem as verdadeiras realizages dos governantes bem-sucedidos ou santos, por mais consi- deraveis que sejam, pois 0 mito muitas vezes thes atribui qualidades isquer provas de que sequer as possuiram.28 1 a transformagio do frio e sem graca lo protestante “rei sm termos ape- Guilherme II no popu nas de sua personalidade. Em minha opinido, o elemento central na explicagio dessa mito- ‘énese é a percepgao (consciente ou inconsciente) de “enquadramen- 10”, em algum aspecto ou aspectos, de determinado individuo em um esterestipo vigente de her6i ou_vildo — governante, santo, bandido, cito, ou seja la o que for. Esse “enquadramento” impressiona a 1aginacao das pessoas, e come ular hist6rias sobre o deter- ‘minado individuo, oralmente, a principio. Ao longo dessa circulagao oral, entram em atividade os mecanismos comuns de distorgo estu- dados por psicélogos sociais, como “nivelamento” e “agugamen- to”.2? De modo mais especulativo, poder-se-ia sugerir que também se 82, 1984). 29 Allport e Postman (1945). 73 VARIEDADES DE HISTORIA CULTURAL ddevem encontrar processos como condensagio ¢ deslocamento, des- tritos por Freud em seu Interpretacdo de sonbos, nos sonhos ou ds se vonkox coletivos. Esse processos ajudam a assimilagdo da vida do jadividvo em particular por um determinado estere6tipo, segundo © fepert6rio presente na meméria social em determinada cultura. corre um processo do que se poderia chamar de “cristalizaglo”, em aque as histrias de livzeflutuagéo so vinculadas ao novo herbi ‘Assim, bandidos (Jesse James, por exemplo) se transformam em Robin Hoods, roubando os ricos para dar aos pobres. Véemse gover- antes (Harun al-Rachid, Henrique TV da Franga, Henrique V da In- tlaterra e outros) percorrendo disfargados seus reinos para conhecer + condigdo dos siditos. Pode-se lembrar a vida de um santo moderno Gomo uma reencenagdo da vida de um anterior: si0 Carlo Borromeo ra visto como um segundo Ambrésio e santa Rosa de Lima como ‘uma segunda Catarina de Siena, De mancira semelhante, considera¥a- sco imperador Carlos V um segundo Carlos Magno (0 nome ajudava to processo}, Guilherme TI da Gra-Bretanha como um segundo Gur Therme, o Conquistador, ¢ Frederico, o Grande, como um novo “im- perador Frederico”. ‘As explicagBes do processo da feitura de her6i em rermos da ida sio, é claro, insuficientes em si mesmos. E igualmente necessé- Ho levar em conta as fungdes ou usos da meméria social, UsOs DA MEMORIA SOCIAL Quais as fungBes da meméria social? £ dificil chegar a arrematar uma Gquestio tio ampla como essa, Um advogado bem poderia discus @ iimportincia do costume e precedente, a jusificagdo sobre a lepitima- 59 Freud (1899) cf Allport e Postman (1943) 20 HISTORIA COMO MEMORIA SOCIAL fo de ages no presente com referéncia a0 passado, o lugar das me- nérias de testemunhos em julgamentos, 0 conceito de “tempo ime- morial”, em outras palavras, tempo “de que a meméria do homem Wo corra para o sentido inverso”, e a mudanga de atitude para 0 indicio da meméria resultante na disseminag3o dos registros iterérios te escritos. Na verdade, o costume foi discutido no artigo de Bloch so- bre meméria coletiva, citado acima, ¢ alguns medievalistas se dedica- rama levar adiante essas questées. de governantes como heréis populares discutidos cima também ilustram os usos das memérias coletivas. Nas hist6ri (os desastres acompanham a morte ou desaparecimento do herdi. Contudo, hé uma circunstancia para inverter isso e afirmar que um ‘governante cujo reino é seguido de desastres — da invasio estrangei- ra ao exorbitante aumento de impostos — € um candidato com boas chances de transformar-se em heréi, pois as pessoas lembrario 0 pas- sado com nostalgia dos bons tempos sob seu governo. Por exemplo, a invasio otomana da Hungria, em 1526, uma ge- ragdo apés a morte de Matias, e a conquista espanhola de Portugal, Jogo depois da morte de Sebastido, foram boas para a reputacio pos- tuma destes dois eis. De maneira semelhante, Henrique IV talvez te- nha parecido um herdi para 0 povo francés, no apenas porque suce- dew A desordem das guerras religiosas, mas também porque o reino de «seu filho ¢ sucessor Luis XIII foi assinalado por um acentuado aumen- to de impostos. O apelo a memérias desse tipo € um dos principais recursos ideolégicos dos rebeldes, de qualquer modo, nas sociedades tradicionais. Assim, os rebeldes espanhéis da década de 1920, os comuneros, apelaram para a meméria do antigo rei Ferdinando, e os normandos que se rebelaram contra Luis 1639 manifestaram (0 desejo de retornar a “idade de ouro” de Luis XII, de quem se dizia que chorava todas as vezes que tinha de tributar 0 povo.2 (1976-7); Clanchy (1979); Wickham (1985). 3 Guenée 52 Fos (1970), 188-945 ef, Fentress e Wickham (1992), 109. a VARIEDADES DE HISTORIA CULTURAL utea maneira de abordar os usos da meméria social € perguntae ras parecem mais preocupadas que outras em umm lugar-comum contrastar 0 tradicional sado com a tradicional ferenga por que algumas cultus Jembrar seu passado. ses por Seu Pass ine oe etl dees Na Europ, costes dese po também so Winiveis, Apesar da reveréncia pela tradiglo ¢ preocupagso com" heranga nacional”, a meméria social dos ingless érelativamenté OO ta, A mesma afirmasio foi feta sobre os americanos, em particu por um perspicaz observador francs, Alexis de Tocquevi Por outro lado, os irlandeses e poloneses tém mem a relativamente longas. Na Irlanda do Nore, €possivel ver retraros Guilherme Il cavalo, desenhados com giz em muros, com a inser “Lembrem 1690”,24 No sul da Irlanda, pessoas ainda ee fem do que os ingleses Ihes fizeram na época de Gromvel core ouvesse acontecide ontem.3$ Como afirmou certa vex 0 bispo AM cano Fulton Sheen: “Os inglses jamais se lembram disso: of ARE & sex jamais seesquecem.”36 Na Polini, o filme Cinass ¢ diansnles (1965), de Andrzej Wajda, traduzindo em termos cinéscos ui Fo ance clissico de 1904 sobre a Legido Polonesa no exército de NaPo nacional em relacio ao que Wajda apre- ‘como heroismo fati.s” Por outro lado, na Inglaterra, quase na ee caged brigada lige (1968 de Tony Richardson, fra visto como pouco mas que um filme de época. Os inleses PICT rem esquecer.Sofrem, ou se regozijam, do que se chamou ds "AUT sia extrurural”.98 Commo amnésia estruturalé 0 oposto complenstat wo conceito de “meméria social”, daqui em diante vou me referit ‘este termo como “amnesia social”. sociais sto: edo, provocou controvérs 1 29 f Buckley (1989). »» Michalek (1973), cap. 1. 38 Bares (1947), $25 Watt e Goody (1962-3) a2 HISTORIA COMO MEMORIA SOCIAL Por que esse agudo contraste de atitudes para com o passado em diferentes culturas? Diz-se muitas vezes que a histéria é escrita pelos vencedores. Eles podem dar-se 0 luxo de esquecer, enquanto os perde- dores no conseguem aceitar 0 que aconteceu € so condenados a re- mot-lo, revivé-lo,refletir sobre como poderia ter sido diferente, Outra ‘explicagdo para isso poderia ser em termos de raizes culturais. Quan- tém essas raizes, pode-se consid: no as tem sente necessidade de procuré-las. Os irlandeses é os polo- neses foram desarraigados, seus paises divididos. Nao surpreende que paregam obcecados pelo pasado. Voltamos ao tema favorito de Halbwachs, a relagio entre lugar e meméria. Os irlandeses ¢ os poloneses oferecem, em particular, exemplos

Você também pode gostar