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EIXO TEMÁTICO 2: ENSINO, FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DA GEOGRAFIA

VIAJANDO COM PHILEAS FOGG – A LITERATURA DE JÚLIO VERNE, COMO RECURSO


PEDAGÓGICO NO ENSINO DA GEOGRAFIA

Viviane Moreira Maciel


Colégio Cavalieri – MG (Brasil)
vmmoreiravivianegmail.com

Rosália C. Sanábio de Oliveira


CEFET-MG (Brasil)
rsanabio@cefetmg.br

Érico Anderson de Oliveira


CEFET – MG (Brasil)
ericoliv@uol.com.br

Resumo:

Tendo a leitura do livro Volta ao Mundo em 80 dias, de Júlio Verne, como motivação inicial,
pensou-se num projeto para o ensino de Geografia no 7º ano do ensino fundamental II,
possibilitando aos alunos “viajarem” com o personagem principal - Phileas Fogg - em sua
estória de aventura, superação e conhecimento científico do planeta Terra. E assim, por meio
dos acontecimentos vividos no dia-a-dia dos personagens, os leitores/viajantes ao conectarem-
se com a grande viagem, seu planejamento, suas indagações diante dos problemas
enfrentados, puderam fazer conexões e analogias com o conteúdo de Geografia proposto para
a série, tornando o ensino significativo e prazeroso. Os pressupostos teórico-metodológicos
que serviram como base ao trabalho estão presentes em David Ausubel, Lev Vygotsky, Piaget
e Henri Wallon.

Abstract: Having read the book Around the World in 80 days, by Jules Verne, as the initial
motivation, a project for the teaching of Geography in the 7th year of primary education II,
allowing students to "travel" with the main character - Phileas Fogg - in its history of adventure,
overcoming and scientific knowledge of the planet Earth. And so, by means of the events lived
in the day-to-day of the personages, readers / travelers connecting to the great journey, their
planning, their inquiries into the problems they faced, could make connections and analogies
with the content of Geography proposed for the serie, making teaching meaningful and
enjoyable. The theoretical-methodological assumptions that served as the basis for to work are
present in David Ausubel, Lev Vygotsky, Piaget and Henri Wallon.

Palavras-chaves: Ensino de Geografia - Júlio Verne – Volta ao Mundo em 80 dias - Geografia


e Literatura.

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“É porque se espalha o grão que a semente acaba por encontrar um terreno fértil.”
Júlio Verne.

Introdução

A estória criada pelo escritor Júlio Verne – A Volta ao Mundo em 80 dias – começa
quando num encontro em um clube de cavalheiros (Reform Club), na cidade de Londres, um
típico membro da aristocracia inglesa chamado Phileas Fogg, aposta com seus pares que é
qualificado para dar a volta ao mundo em apenas 80 dias; o ano é 1872. Estamos falando de
uma sociedade industrial do século XIX, sem os meios tecnológicos que dispomos hoje como
trens modernos e supersônicos, aviões, satélites, G.P.S, telefonia... A missão parece
inconcebível, contudo, Phileas Fogg, acompanhado de seu leal ajudante –Jean Passepartout,
dará início a essa aventura e aproveitará todos os recursos possíveis e impossíveis para
triunfar. Ele alcançará o êxito apesar da caça do detetive Fix, da polícia londrina, que
equivocadamente o confundirá com um ladrão em fuga, e o perseguirá por todo o globo.
No projeto elaborado para o ensino da Geografia no 7º ano do Ensino Fundamental II,
intitulado de “Projeto Viagem pela Geografia – Viajando com Phileas Fogg”, os alunos
tornaram-se participantes desse itinerário global e acompanharam o personagem Phileas Fogg
em sua peregrinação extraordinária. Foi realizado com uma (1) turma do 7º ano do Ensino
Fundamental II, do Colégio Cavalieri no 2º bimestre do ano letivo, na cidade de Belo Horizonte
– Minas Gerais.
A base do projeto está alicerçada na teoria da Assimilação da Aprendizagem e da
Retenção Significativas de David Ausubel (1980, pág. 1) que considera que:

“A aprendizagem por recepção significativa envolve, principalmente, a aquisição de


novos significados a partir de material de aprendizagem apresentado. Exige para um
mecanismo de aprendizagem significativa, que haja a apresentação de material potencialmente
significativo para o aprendiz. Por sua vez, a última condição pressupõe (1) que o próprio
material de aprendizagem possa estar relacionado de forma não arbitrária (plausível, sensível e
não aleatória) e não literal com qualquer estrutura cognitiva apropriada e relevante (que possui
significado ‘lógico’) e (2) que a estrutura cognitiva particular do aprendiz contenha ideias
ancoradas relevantes, com as quais se possa relacionar o novo material.“

Por conseguinte, o diálogo entre esses novos conceitos iminentes ou possíveis, e


conhecimentos e/ou experiências determinantes, já existentes dentro da organização
intelectual do aluno, juntos, farão surgir o embrião de uma aprendizagem com significado,
verdadeira. E como cada pessoa possui uma estrutura cognitiva particular, essa aquisição
também será única.
A aprendizagem não se dá por causa do material utilizado, ainda segundo Ausubel, o
material de aprendizagem tem o papel de ser “potencialmente significativo”. Nós dizemos,
acrescentando a esse raciocínio, que ele é um “subterfúgio”, no melhor dos sentidos, criado
para aguçar a curiosidade, promover a criatividade e permitir que os alunos façam analogias
entre os vários componentes existentes no processo de ensino-aprendizagem.
Para nós, o fio condutor da aprendizagem cognitiva é a afetividade atrelada à ludicidade,
especialmente nessa faixa etária (11 a 12 anos), sendo que a afetividade desenvolve-se como
sabemos, conjuntamente com a inteligência. O reconhecimento da afetividade no
desenvolvimento educacional leva ao surgimento, nas relações interpessoais do grupo, da

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cooperação e reciprocidade; viver em grupo e especialmente, trabalhar em grupo, é um
aprendizado básico.
O material didático deve ser traçado dentro de um processo pedagógico, usando uma
metodologia apropriada e em função de objetivos claros. O material pré-produzido e aquele
idealizado no processo educacional, em partes e/ou no todo, podem ser significativos ou não,
dependerá de sua interação e assimilação pelos alunos. Inclusive, até mesmo um material
coerentemente significante (em nossa opinião) pode ser compreendido de forma mecânica pelo
aluno. Se não for interessante para ele, não terá nexo. Se for pertinente, os elementos
aglutinam-se, cognitivamente falando, de forma oportuna, permitindo generalizações, ainda
conforme Ausubel.
E quando essas conceptualizações decorrem por meio de vivências, ainda segundo
Ausubel, temos etapas sucessivas de elaboração de hipóteses, novas tentativas de acertos,
busca por respostas e resolução de problemas, com a geração de novos conceitos. Esse
caminhar favorece a aquisição de uma nova forma de pensar, contribuindo para uma
aprendizagem efetiva. Para que a aprendizagem aconteça de maneira mais profunda é
necessário, então, o conhecimento anterior, a ponte entre os materiais produzidos e saberes
cotidianamente construídos pelos alunos, bem como o interesse; uma combinação de fatores.
A aprendizagem ocorre, entre outras razões, porque o aluno não é passivo na evolução de sua
aprendizagem.
Ausubel (1980, pág. 6) esclarece esse ponto a seguir:

“A aprendizagem por recepção significativa é, por inerência, um processo ativo,


pois exige, no mínimo: (1) o tipo de análise cognitiva necessária para se
averiguarem quais são os aspectos da estrutura cognitiva existente mais
relevantes para o novo material potencialmente significativo; (2) algum grau de
reconciliação com as idéias existentes na estrutura cognitiva – ou seja,
apreensão de semelhanças e de diferenças e resolução de contradições reais ou
aparentes entre conceitos e proposições novos e já enraizados; e (3)
reformulação do material de aprendizagem em termos dos antecedentes
intelectuais idiossincráticos e do vocabulário do aprendiz em particular.”

Acreditando nesses princípios estabelecemos os objetivos do projeto e demos início à


sua execução.

Objetivos

Escolhemos o livro Volta ao Mundo em 80 dias depois de uma pesquisa feita pelos
professores e uma enquete com os alunos sobre livros de expedições e aventuras que eles
conheciam ou que gostariam de conhecer. O livro escolhido está na forma de história em
quadrinhos, particularmente, em razão da idade dos alunos e do atrativo dos mesmos nessa
área.
O uso da literatura como recurso pedagógico na Geografia incentiva à leitura e à
utilização de novas linguagens no ensino, no caso, as histórias em quadrinhos. E leva o aluno
a perceber que a Geografia está presente em tudo que fazemos e vivenciamos, depende da
nossa percepção. Junto com a leitura do livro novos assuntos foram sendo acrescentados
naturalmente à discussão coletiva, exigindo pesquisas e buscas em diferentes mídias, além da
preparação de materiais ligados ao projeto (mapas, fichas sobre os países visitados, cartas e
postais de viagens enviados aos pais, entre outros).

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Para estimular o interesse dos alunos a escolha do livro de Júlio Verne foi crucial, pois
ele soube tomar para si o conhecimento geográfico, permitindo outras concepções de mundo
que estava progredindo de forma acelerada. A Geografia tornou-se o pano de fundo de suas
criações literárias empolgantes, com personagens instigantes – cientistas, exploradores de
toda ordem, homens em busca do conhecimento científico, de novas fronteiras e espaços, de
desafios. Evidenciando como se dava a apropriação tecnológica naquele momento histórico,
rico em invenções, descobertas de novos territórios e a dominação da maior parte do mundo
por uma única potência européia – a Inglaterra.
O fato de ser um homem culto e esclarecido, além do seu tempo, o impelia, também, a
fazer as suas advertências em seus livros, para que os avanços não se tornassem estéreis e
que a tradição não se tornasse um campo cada vez maior de desigualdades entre os homens.
Em muitos aspectos, Júlio Verne foi visionário e fez uso da Geografia para que, no
transcorrer de suas estórias, personagens e leitores fossem tomados pela visão/imaginação de
paisagens, de novos pontos de vista diante da vida e do mundo, além da busca pela
singularidade, pelo discernimento, pela ilustração e pelo engrandecimento do conhecimento
humano. Ele perverteu o senso comum dos heróis, tornando-os humanos e isso nos aproximou
ainda mais de sua obra, gerando um encantamento.
Os tópicos abordados foram variados, embora o projeto tenha sido pensado para o 7º
ano do ensino fundamental II, ele pode ser adaptado para outras séries, com maior
aprofundamento, à escolha do professor responsável. O aprendizado se dará de forma direta e
indireta, levando-se em consideração o entusiasmo despertado nos alunos e no professor,
associando-os o máximo possível. A seguir, alguns exemplos do que foi trabalhado e outras
sugestões factíveis, sem se especificar a série e o grau de complexidade exigido, sem o perigo
de esgotarem-se as alternativas, que são imensas:

a) Tópicos abordados:
- visão global do planisfério terrestre, continentes e oceanos, conceitos de circunavegação,
paisagem, lugar, espaço, países, fronteiras, limites, entre outros;
- hemisférios, orientação, fusos horários e a história da criação desse sistema de horas
mundial;
- coordenadas geográficas (Meridiano de Greenwich, latitude e longitude, Linha Internacional
de Data);
- evolução científica no período em comparação com os avanços na atualidade, meios de
transportes, a Revolução Industrial na Inglaterra e sua expansão posterior;
- a visão de mundo predominante na época em que foi escrito o livro, a existência do Império
Britânico e seu poderio retratado em suas colônias pelo mundo, tipos de colonização e as
consequências da colonização para os países hoje independentes;
- as percepções das paisagens e dos habitantes de lugares tão longínquos em relação à
Inglaterra, a idealização e o elogio excessivo aos costumes ingleses – considerados modelos
de civilização;
- as desigualdades culturais, sociais e econômicas entre os povos;
- a violência contra a mulher (quando Phileas Fogg e Passepartout salvam a jovem indiana -
Sra. Aouda - da morte durante a passagem pela Índia);
- conhecimentos gerais sobre os países/colônias visitados: localização, idioma, bandeira,
clima(s), costumes curiosos, sistemas de governo, culinária, pontos turísticos...

b) outras possibilidades
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- a relação dos relatos de viagens ficcionais e não ficcionais com a Geografia (literatura e
Geografia);
- a história da evolução do pensamento geográfico e como ela aparece no livro;
- a aplicação dos princípios da Geografia no dia-a-dia, em sala e fora dela – analogia,
extensão, conexidade ou interação, causalidade e atividade;
- tipos de preconceitos, a dificuldade de lidarmos com as diferenças, alteridade, racismo,
xenofobia, etnocentrismo;
- quem eram os exploradores do passado, quem custeava suas viagens, a quem serviam;
- a desmistificação da imagem do herói nos livros de Júlio Verne;
- a relação da Geografia com a arte, a língua portuguesa e a história;
- a importância da cartografia como suporte para o ensino da Geografia, as diferenças entre o
conhecimento cartográfico no século XIX e o conhecimento cartográfico de hoje...

Interagindo com a teoria de David Ausubel, empregamos os parâmetros presentes


também na Teoria Histórico-Cultural de Lev Vygotsky e nas Teorias de Desenvolvimento de
Henri Wallon e Jean Piaget; que são complementares. Vygotsky sustenta-se na idéia de um
sujeito que aprende a compartilhar, formando sua consciência por meio do contato sobre os
objetos num processo permeado pelo outro, por meio das relações sociais. Sendo gerado pela
materialidade, pela emoção, pela corporalidade e sinalizado por conjunturas históricas,
políticas, sociais e culturais.
Em Vygostky, o processo de descoberta e de aprendizagem é uma parte capital para a
expansão do saber. E tudo que faz parte desta progressão do ensino-aprendizagem é
aprendizagem: uma descoberta para quem aprende, para quem indica o caminho e para
ambos, em razão do vínculo criado entre eles; elucidando ainda que a concatenação entre
aprendizagem e desenvolvimento se dá transversalmente pela zona de desenvolvimento
proximal, que nada mais é que a distância entre os níveis de desenvolvimento
possível/desejado com o nível de desenvolvimento concreto/alcançado.
Essa “liga” entre aprendizagem e desenvolvimento é um espaço proativo de saberes,
desde aquele momento em que uma criança consegue resolver determinado problema
sozinha, aquele mais simples, a outro em que ela conta com a ajuda de um
colega/pai/professor até numa escala mais elaborada em que ela reconhece, discerne mais
profundamente sobre e avança, dominando a situação por si mesma.
Fugindo das noções da psicologia tradicional, em que ocorriam os desmembramentos
entre os sentidos afetivos, intelectuais e os de nossa vontade (volitivos), Vygotsky afirmou que
o raciocínio surge no âmbito da motivação, que por sua vez, implica na presença da emoção,
da afetividade, dos interesses, de estímulos, empatias e necessidades. Conseguiremos
abarcar o pensamento humano, pela visão de Vygotsky, quando incorporarmos ao seu lastro a
sua expressão afetiva volitiva. E para ele, a ligação entre afetividade e cognição é um
amálgama indivisível.
Para Würfel (apud Vigotsky - 2015 p.61), “a criança pode fazer sempre mais e resolver
tarefas mais difíceis em colaboração sob a orientação de alguém e com a sua ajuda, fazer por
si mesmo”. Segundo a autora, assim, “a criança está em constante crescimento, no momento
em que consegue realizar tarefas que antes eram difíceis e que agora já não são, surgindo
novas dificuldades e assim, por diante, processo explicado através da zona de
desenvolvimento proximal.” As dificuldades e problemas não são paralizantes neste contexto,
elas são estimulantes, intensificando a aprendizagem e despertando a curiosidade de todos.
O professor, por conseguinte, na visão de Vygotsky, é um mediador no processo de
ensino-aprendizagem, ele deve canalizar a energia e o contentamento do aluno e o dele para o
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bem de todos os envolvidos, uma vez que tenha a compreensão de que a ligação entre o
indivíduo e o mundo só acontece numa vinculação perpassada por interações cotidianas e pela
linguagem.
Henri Paul Hyacinthe Wallon propõe uma aprendizagem “dialética”, nela não existem
verdades absolutas, mas o reavivamento de alternativas a favor da aprendizagem. Propõe em
resposta às visões simplistas da época, o estudo da pessoa na sua integralidade: em suas
naturezas cognitiva, afetiva e motora, sendo que a capacidade de entendimento da realidade é
tão importante quanto a afetividade ou a motricidade do indivíduo.
Wallon não acredita que a criança cresça dentro de uma imutabilidade biológica e social.
O desenvolvimento acontece seguindo altos e baixos, em meio a conflitos internos, em
diferentes estágios, tanto com a criança quanto com o adulto. E cada estágio evidencia uma
conformação singular entre um indivíduo e o outro, num desenvolvimento que leva à
conflagração. Nos estágios iniciais há a preponderância do fator biológico, com o tempo, o
aspecto social assume uma força predominante.
Do mesmo modo que Vygotsky, Wallon entende que a análise do enfoque sócio-cultural
é indispensável. Os comportamentos sócio-culturais e a linguagem dão suporte para que o
raciocínio evolua, torne-se mais requintado. Em meio à sociedade, cada uma mais diversa que
a outra, não encontraremos a linearidade no desenvolvimento do indivíduo, essa instabilidade
em meio a rupturas, retrocessos e hostilidades naturais do processo de sobrevivência força o
indivíduo a intensificar seus esforços, a progredir. Isto posto, teremos momentos basicamente
afetivos, ligados à construção da própria identidade até momentos acentuadamente cognitivos,
voltados para a percepção da realidade.
Para Wallon a cognição possui categorias específicas que ele chama de campos
funcionais (afetividade, movimento, a inteligência e o indivíduo). A afetividade é o cerne da
estruturação do “eu” e da consciência do indivíduo; ela é uma etapa natural do aprimoramento
humano.
Nos primórdios da vida, quando crianças, a afetividade e a inteligência estão
entrelaçadas e a partir do momento que as relações acontecem, elas se distinguem. Para
estimularmos a inteligência precisamos ativar positivamente a afetividade. E a conjunção das
duas (afetividade e inteligência) em meio ao tecido social em que vivemos concebe o caráter
dos indivíduos. O psicólogo francês busca, logo, depreender como se dá a constituição da
pessoa, tanto que a sua teoria é chamada de Desenvolvimento da Personalidade.
Em Piaget, diferente de Wallon, não há um embate entre a afetividade e a
intelectualidade, mas uma harmonização entre ambas, uma concorre para o progresso da
outra. As experiências do passado ligam-se com as projeções futuras, todavia, as primeiras
propiciam condições para que o indivíduo possa adaptar-se às situações e reelaborar as
novas habilidades e conceitos que surgirão no seu dia-a-dia. O indivíduo está em contínua
transmutação, pois acolhe acontecimentos internos e externos à sua existência, o que subsidia
o seu aperfeiçoamento. O conhecimento para Piaget é construído nessa interação.
Assim, alicerçados nos ensinamentos dos pedagogos e psicólogos mencionados
combinamos o ensino da Geografia com a afetividade, interesses comuns (dos alunos e
professor), a estruturação de um metodologia própria e a produção de material pedagógico de
custo baixo, tornando a prática prazerosa e a aprendizagem eficaz.
Todas as cidades citadas na viagem foram identificadas no mapa da viagem exposto na
parede da sala de aula. Os alunos tiveram participação ativa em todo o projeto, a cada aula
ocorria uma discussão coletiva sobre o andamento da experiência, quais haviam sido as
descobertas feitas e o que havia sido assimilado até ali.

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O sequenciamento não foi rígido, acompanhou a evolução espontânea do processo de
ensino-aprendizagem, sendo apenas direcionado pelos professores para que se cumprissem
determinados pontos considerados essenciais. Para facilitar a compreensão das etapas, as
expomos a seguir.
 planejamento da prática (metodologia, materiais pedagógicos que serão utilizados, nº
de aulas disponíveis, assuntos que devem ser abordados no trabalho, viabilidade de
ser realizado com outra(s) disciplina(s),);
 elaboração do mapa da viagem literária/geográfica a ser colocado na parede da sala;
 disponibilização dos livros para a leitura;
 início da leitura coletiva do livro “Volta ao Mundo em 80 dias” de Júlio Verne;
 construção da maleta de viagem e sua costumização, fabricação dos carimbos para o
passaporte;
 impressão dos passaportes e fichas dos países a serem visitados - individuais;
 produção pelos alunos dos postais de viagens e cartas com seus relatos para a
família;
 discussão coletiva sobre o trabalho de acordo com o andamento do projeto;
 avaliação.

A teoria Piagetiana explicita que a criança com base em um conhecimento


particularizado vai absorver novos entendimentos sobre a sua realidade. A assimilação
humana é a perspicácia do todo ou parte desse todo, e a aprendizagem para acontecer, vai
demandar a existência de relações entre as partes para que consigamos olhar o mundo por um
viés mais profundo.
À medida que a inteligência se apodera do instrumento da razão, categorizando-o, a
vontade se assenhora do objeto em si, configurando-o e dando-lhe um significado próprio. Por
meio da experimentação com o concreto é que o indivíduo aprende algo novo, ele consegue
isso através de suas próprias competências, pois logrou criar pressupostos decisivos que o
fizeram relacionar-se satisfatoriamente com o meio.
Ao inferir os ensinamentos de Piaget, o professor é capaz de operar de forma correta
com os processos cognitivos e inter-relacionar-se com o aluno, dando ouvidos à sua história,
suas habilidades e conhecimentos. Nós devemos estar sempre abertos a novos caminhos,
esse “norte” pedagógico é possível se “olharmos” nossos alunos verdadeiramente e os
reconhecermos.
Já a Teoria da Aprendizagem Significativa de David Paul Ausubel, também apoiada no
construtivismo, exibe conceitos diferenciados e complexos, investigando como transformar a
aprendizagem em um processo mais expressivo, analisando, basicamente, os meios que
propiciam o conhecimento no indivíduo e em que configurações dá-se esse diálogo.
De acordo com David Ausubel (1980), se desejássemos sintetizar a processo de ensino-
aprendizagem na educação em sua gênese diríamos como ele:

“- O fator isolado mais importante que influencia a aprendizagem é aquilo que o aprendiz
já conhece. Descubra o que sabe e baseie nisso seus ensinamentos.” (Ausubel, 1980, p.137).

Nós afirmamos que conjuntamente com o que foi exposto, o que cada aluno já sabe faz
parte de sua história e da apropriação de sua aprendizagem, se conseguirmos unir esse
conhecimento buscando áreas de contato afins com a Geografia e seus campos de interesse e
competências, levaremos esse encanto e essa simpatia para o ensino-aprendizagem e,
consequentemente, para a prática no ensino da Geografia.
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Esse projeto foi uma dessas tentativas que deram excelentes resultados, as fotos
adiante mostram partes do projeto desenvolvido (Figuras 1, 2 , 3 ,4).

Figura 1 – Passaporte – Viajando com Phileas Fogg

Fonte: Foto dos autores

Figura 2 – Fichário dos Países

Fonte: Foto dos autores

Figura 3 – Exemplo de Fichário dos países com pasta individual do aluno


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Fonte: Foto dos autores

Figura 4 – Maleta coletiva com materiais do projeto

Fonte: Foto dos autores

Metodologia

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1. Proposta de uma viagem com um personagem literário, cuja história estivesse
ancorada à Inglaterra no início do período da Revolução Industrial. Foi sugerida a
obra “A volta ao mundo em 80 dias”, pelo fato de abarcar esse contexto histórico, ser
uma aventura, passar por vários locais que eram de domínio inglês e enfocar
questões geográficas, entre elas, os fusos horários, a influência dos meios de
transporte, entre outros assuntos;
2. Construção de uma linha do tempo dos principais acontecimentos ocorridos na
Inglaterra para os alunos terem uma idéia da cronologia dos fatos, desde o séc XV
até o séc XXI , com a localização da história “A volta ao mundo em 80 dias” no tempo
e no espaço;
3. Leitura da obra em uma versão em quadrinhos;
4. Discussão dos vários aspectos da obra (o autor e sua vida, quando foi escrita, seus
cenários histórico-geográficos e sociais);
5. Proposta de uma viagem seguindo os passos do personagem (Phileas Fogg),
partindo do Brasil em direção à Inglaterra para início da aventura;
6. Elaboração de um passaporte, de um fichário básico e de uma mala de viagem para
nela depositar-se as informações geográficas que forem sendo colhidas ao longo da
jornada imaginária, (Figura 5).

Figura 5 – Visão da Maleta coletiva

Fonte: Foto dos autores

7. Localização da rota em um mapa mundi atual, com os pontos de passagem, para dar
idéia da extensão da jornada (distâncias percorridas, países e lugares, diversidade
cultural);
8. Início da viagem, com o carimbo nos passaportes e cpmeço do preenchimento dos
fichários com as informações de cada país por onde o viajante passou;

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9. Discussão coletiva das informações levantadas em cada país para que todos
tivessem as mesmas informações (principalmente do item “curiosidades”)
10. Análise dos tipos de transporte disponíveis segundo os países por onde o
personagem passou, para dar a idéia de desenvolvimento tecnológico disponível na
época e no espaço (1872);
11. Discussão das formas de contagem do tempo durante a aventura;
12. Elaboração de modelos dos meios de transporte da época, conforme os meios
utilizados pelo personagem Phileas Fogg;
13. Resolução do enigma da contagem de tempo presente no livro, o que permitiu que o
personagem ao final da história ganhasse a aposta, e comparação com o sistema de
fusos horários na atualidade;
14. Exposição realizada na escola mostrando o progresso de todo o projeto;
15. Possibilidade de trabalhar-se o projeto com várias disciplinas: Ciências, Português,
Artes...

Para uma contextualização maior da Inglaterra, ao final dos trabalhos, foram


construídos:
- um painel das principais personalidades inglesas em ordem cronológica, desde o séc XV até
o séc XXI, com foco maior no séc XIX;
- uma árvore genealógica da família real inglesa a partir da rainha Vitória até os dias atuais;
Os materiais produzidos e utilizados ao longo desse trabalho foram organizados em uma
exposição, como citado anteriormente, com a finalidade de dar um panorama geral da aventura
vivida pelos alunos-viajantes.

Considerações Finais

De natureza equivalente, Vygotsky, Piaget, Wallon e Ausubel, cada um à sua maneira,


suplantaram as teorias behavioristas, comportamentalistas, reducionistas por meio da
fenomenologia, entre outras, ao submeterem ao ensino-aprendizado os princípios teóricos do
interacionismo. Nele, todos os elementos da aprendizagem (sujeito, objeto, objetivo, subjetivo)
interatuam, modificam-se continuamente, se reelaborando novamente, muito além da ação do
meio e da abstração.
As bases pedagógicas e psicológicas desses autores serviram de orientação para o
projeto, a elas acrescentamos as percepções sobre o trabalho em si, dos alunos e a prática
cotidiana dos professores envolvidos. Constatamos que a literatura interage perfeitamente com
o contexto de ensino da Geografia e com a capacidade de criação dos alunos e com a
construção didática-metodológica dos professores.
Enquanto ferramenta, a literatura age como elo entre ambos. O livro em questão, além
de todos os tópicos trabalhados já expostos, revela muito sobre a sociedade da época em que
foi escrito e sobre a sociedade atual, por meio das visões que conseguimos ter de seu enredo,
podendo a mesma ser entendida como uma possibilidade de investigação historiográfica.
O conjunto de atividades do “Passaporte - Viajando com Phileas Fogg” carrega consigo
as condições para uma aprendizagem significativa como explicitado por Ausubel; leva em
consideração a afetividade no processo de ensino-aprendizagem (Wallon) e reconhece que as

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potencialidades psicológicas do aluno são influenciadas pelo contexto sócio-cultural em que a
criança está inserida (Vygotsky, Wallon).
Junto com a afetividade ocorreu a união com a ludicidade, e ao reconhecermos que todo
ser humano interage e interdepende do outro, e que deve “dialogar” em todos os espaços,
acrescentamos mais um aspecto determinante no ensino-aprendizagem, a alteridade.
Sem dúvida, a experiência diferenciada em sala de aula, demonstrou que o valor do
trabalho não está somente na metodologia e na possibilidade de, literalmente, viajar com o
personagem Phileas Fogg, e sim, na concepção de como se elabora o conhecimento e quais
são seus ganhos didáticos, que ultrapassam a literatura. O processo criou momentos
agradáveis e possibilitou questionamentos, abordando variados tópicos com um maior
aprofundamento dos conceitos geográficos.
Por fim, baseado no estudo da literatura e tendo como companheiro de viagem o
personagem principal, Phileas Fogg ao longo do livro, o projeto nos fez compreender que a
produção cultural e nesse caso, a literatura, não está separada do contexto da vida diária e da
formação de conceitos e princípios metodológicos da Geografia. As práticas, junto com o lúdico
e a afetividade, são veículos para a aprendizagem, que se deu com a elaboração individual e
coletiva do conhecimento, agregando os saberes com a curiosidade e o despertar de
descobertas. Todos esses fatores podem e devem estar presentes na sala de aula e estão
relacionados com nossas visões de mundo e como vemos o processo educacional. Permitem
que façamos uma reflexão a todo instante entre o professor que somos e aquele que
desejamos ser, numa retroalimentação constante.
O projeto convoca-nos, a procurarmos sempre novas estratégias e metodologias,
contribuindo assim, na busca pela melhoria do ensino, da prática educativa e do desejo de uma
maior humanização dentro do processo educacional. E estimula o aluno, quando o mesmo
compreende que a aprendizagem começa na vontade interna de cada um e que o
conhecimento está em todos os lugares, em toda a parte. Desnuda a idéia de que o lúdico, a
alegria, não podem ser utilizados como ferramentas pedagógicas. Onde está escrito que o
aprendizado tem que ser triste ou enfadonho? A revolução no ensino começa em nossas ações
e em nossas práticas.

Referências

AUSUBEL, David P. Aquisição e Retenção de Conhecimentos: uma Perspectiva Cognitiva. Lisboa,


Plátano Edições, 2000.
AUSUBEL, David P., NOVAK, Joseph D., HANESIAN, Helen. Psicologia educacional. Tradução Eva
Nick. Rio de Janeiro: Interamericana , 1980.
CASTORINA, José Antônio. O Debate Piaget-Vygotsky: a busca de um critério para a sua
avaliação. In: Piaget-Vygotsky: novas contribuições para o debate. São Paulo, Ática, 1988.
p. 7-50.
CORTELLA, Mário Sérgio. Educação, Escola e Docência: Novos tempos, Novas Atitudes.
Editora Cortez, 2014, São Paulo – SP.
FARIA, Anália Rodrigues de. Desenvolvimento da criança e do adolescente segundo
Piaget. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1998.

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ISBN electrónico: 978-9978-77-407-6
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