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ilie Universidade de Br Instituto de Ciéncias Humanas Departamento de Antropologia 70.910 - Brasilia-DF Fones: 2733264 (direto) 2740022 - Ramel 2368 verie Antropologia n® 73 1987 EM FAVOR DA TRADIGAOD OU FALAR € FACIL, FAZER € QUE SAO ELAS Custadia Selma Seno "14. se 0 riso é 0 deleite da pie be, que a licenca da plebe seja re freada e humilhada, e amedontrada com severidade. ... Mas se um dia alguém, agitando as palavras do ti 1isofo, e tatando como filésozo, 12 vasse 4 arte do riso a condicgio de arma sutil, se 3 retérica do conve cimento se substituisse a retérica da irriséo ... entao do terianos armas para detor a blasfémia*. (Q NOME DA ROSA: Eco. 1983:534-5) ADVERTENCIA AD LEITOR ESPERTINHO (1) Se vocé pensa que seria muito mais sutil da parte do eutor comecar a escrever satiricamente o texto sem avisar a nin guém pare néo correr o risco de: a) tendo avisado, ninguém achar aracga (o que comproveria o fracasso da empreitada) e/ou b) aloun leitor chegar ao final da texto e dizer "se eu nao tivesse sido avisado nao teria percebido trater-se de uma sétira" (o que com provaria a falte de humor do leitor). Bom, se vocé pensou isso, vocé pode até ser um leitor mas nio t3o esper*inho quanto se julgava até agora. Dentro do melhor estilo pés-antropolégico, o autor ga ra no tem spenas que construir um texto para ser feliz mas deve ainda estar consciente do prozesso de construgao, de seu préprio lugar no texto, dos ertificios retéricos usados e dos efeitos conseguidos stravés de. ADVERTENCIA AO EX-PERTINHO DU LEITOR (II) Caso vocé nao saiba, as notes de rodapé, a despeito do nome e de esterem sempre fora de mao, fezem parte integral do texto.£las nfo so, como pensam alguns, aquele excedente de irre levancias nao obrigatérias @ ser lido, se der tempo, depois das irrelevincias obrigatérias. Pelo contrério. As notes de rodapé podem ser informatives, instrutivas, repetitives e até diverti. das. Além disso, elas atestam em favor do autor a posse de uma atitude filoséfica flexivel e econdmice, aberta a divides criticas. Sobre s auséncia de notas de rodapé num texto e seu significado negativa ne aveliagdo do caréter de um homem de ci. ncia, veja note de rodapé NOTA DE RODAPE - Geertz, 1983:70-71. I. Comentério inicial destinado, através do artificio retérico da satire a demonstrar ao leitor em geral, e a alguns om par ticular, que o autor possui um amplo caonhecimento do assunto. Esse 6 un texto para iniciedas. Como o sugere o prio titulo, n3o é meu propésito contextualizar, dentro da téria da antropologia e tendéncia auto-reflexiva, dialégica ou experimental. sobre a pertingncia e o alcance das questées leven tadas pelos pés-antropélagos em relegdo & atividade etnogréfi a, em seus aspectos de prética de pesquise 2 construgio de tex to, 0 leitor pode consultar,além do material de propaganda do grupo’), Fischer (1963) © Peireno (1986) en portugués. 0 objetivo desss texto é muito mais madeato. Ele deve eiro, con ser entondide apense como um gesto de vingange: p tra os antropélogos emericanos, por terem decretado o inicio da idade pée-moderns na entropologie quendo os terceiro-mundistas ainda nem conseguinos ingressar propriamente na modernidede(®), segundo, pelo prazer de desafinar o coro dos pés-nativos lscois. £ 9 cuforie local nia pode ser creditada apenas 3 mudance de status do outro no contexto do confronto etnogréfica: pelo beng pl4cito do gesto Stico e politico dos antropélogos de vanguarda americenos, nés, os nativos, os antropélogos do terceiro munda, 28 mulheres © os grupos dominados de modo geral, temas sgors um espaco de fale gerantide nos textos etnogréficos experinentais, ainda que a questao prética da co-autoria nao tenha sido resol vida‘), No. 0 espirito de euforia emana dos préprios textos e esté vinculado & forma como os pés-antropélogos se representam em relagao & tradigao da disciplina e também 8 sua situag3o 3 pecifica no contexto mais imediato de universidde americens. (1) Veja referéncia na Bibliogrefie. (2) A modernidade na antropalogis comesou nos ElA, nos ance 6 com a vertante interpretative. Todo o periodo anterior e se date sera futuramente conhecido como e pré-histéri antropologia ou a ere da otnografie tradicional. (3) Marcus ¢ Cushman, 1982:43, Muito embora os préprios experimentelistes identifi quem, internamente, @ existéncia de duas ales segundo a profun didade do questionamento 8 discipline - "Most experimental ethnographies attempt to change genre conventions, in line with a shift in theoretical orien- tations toward problems of meaning, but without changing the fundamental ethnographic goals of a. eription and interpretation. As yet, fewer but more extreme ethnographic experiments change genre conven- tions with a basic openendedness about what the purposes and concerns of ethnographic writting, still basead on fieldwork, shoud be". (Marcus e Cushman 1982:28). - eles compartilhem 2 certeza de estarem operando uma profunda : ou uma mudanga ne natureze ruptura ne histéria da antropologi da disciplina ao integrar as reflexdes recentes sobre 0 — encon. tro etnogréfico ou uma explosao de suas fronteiras e © abertura de um novo espago pare uma forma alternativa de reflexao cul tural. Dedicedas atualmente & mesma tarefa, definida em in glés como the clearing out the grounds e que poderia ser goiena mente traduzida, com 0 preciso profissional dos tradutores di filmes estrangeiroa, como "linpeza do terreno pare plentio de un novo objeto de estudo"’®), » ala experimental modereds © 8 ale experimental xiite poderiam ser descrites, respectivamente como "os profetas de um novo paradigma" e "depois de nds, 0 di ldvio". Seja como for, a idéia & que se trata de um trabalho criativo, original, inovedor, elinhado com o nosso tempo e defi, nido contre o pano de fundo de uma out-dated etnogrefia tradicio (6) nal. Discordancias & parte'®), por parte dos discipulos de Salo (4) Sem destaque no original. (5) Ou como diz Rabinou: "Phe first move in legitimating a new approach is Consegiéncis dessa visite "presentista" 8 histéria, uma consciéncia contemporanea é imputede sos autores classicos de modo que a tenséo que sempre caracterizou a discipline - tra duzir objetivamente a experigncia subjetiva do encontro etnografi, co - e que é vivenciada enquanto angistia pelo antropoldco, se transforma, na leitura pés-antropolégica, em ume questao de "clear choice", como se 18 em "A Timely Rereading of Naven": "This unproblematic and simplistic construction of data according to empiricist conventions was thus a clear choice or move on Bateson's part G7). Ou Rosaldo,com referéncia a Os Nuer "If Le Roy Ladurie converts interrogation into overhearing and cataloguing, Evans-Pritchard transforms lively dialogue into listening and envisioning. The tale of the fieldworker as lone heroic victim establishes his innocence from colonial domination and validates his credentials as a desinterested scientist (:93). Frente a isto talvez seja bom lembrar que avaliar 0 Naven através do conpromisso positiviste de Bateson ou Evans, -Pritchard pelo compromisso com o regime colonial é 0 mesmo qua tomar os Arqonautes do Pecifico Ocidentel como a realizagéo das regras cientificas 2 objetivas conscientemente estabelecidae por Malinowski na introdugao do livro. Som sacralizar a tredigio mes também sen olvidd-lo, resta constatar que, a despeito do positivismo mas também por isso, o que o Ne van exprime 0 ombate - e a desvio - entre a arientagao antropolégica dos anos 30 ¢ a percepgio intuitive Bateson de que a representagao etnografica & um artefato. Se 0 Naven carrege as marcas da prétics antropolégice (17) Geertz, 1983:74, (18) Marcus, 1985:79, os de seu tempo, que buscava a apreensio de totalidades culturais em- parada no suposto da racionalidade e objetividade do conhecimento cientifico, seu desvio pode ser muito melhor entendido por refe (ig) réncia a caracteristicas biogrsficas especificas de Bateson Prisioneiro, por um lado, do modelo de ciéncia antro polégice dominante & sua época © rebelando-se contre ele a inter valos, por caracteristicas de personalidade e uma incomplete socia lizag8o no métier, o Naven de Bateson, enquanto uma tentativa de experimento etnogréfico - 0 cerimoniel redescrite de vérios pon tos de vista - nao poderia ter sido escrito, digemos, por Nar geret Mead, essa sim uma antropéloga afinada com as — convengdas acadamicas de secu tempo. 0 fracasso da Naven pode ser com muito mais razdo tribuido a esse tom de divids © ao desvelamento do papel da sub jetividade na elaborag3e do teoria, num contexto am que a antropo logia buscava consolidar-se enquanto ciéncia do que, como foz Mar, cus, imputendo-o a0 préprio Bateson "Bateson's general retreat from attempts at monogra- phic analytic writing to the consistent use of a con- ventional and didatic essay form after writing Naven was a pessimistic reaction to the possibilities of achieving ethnographic goals of representantion"(:76). Novamente aqui, como alhures, hé a imputacao de uma consciéncia totel e n3o histérica ao eutor e um obscurecinento, oportuno ou involuntéris, do contexts social meis emplo e das re. gras internas do campo de produgéo de bens simbélicos, & époce em que Naven foi escrito. E essa descontextuelizacao, se néo oportuna é, pelo menos, contraditéris porque o movimento primeiro da critice é situar Naven na tredigio da disciplina como classic amid the pioneering works in functionalist anthropology, which has always had a mystique and special respect among British and American Anthropolo- gists, despite its peculiar organization and hyper- self-consciousness" (:67) (13) Para referéncias 3 biografia de Bateson, veja Mead, M: 1975. als) contra todas as evidéncias, j4 que Bateson dormia em salene es quecimento até ter sido redescoberto, gracss ao tal feliz aciden te de trabalho, pele antropologia interpretative. Alias, a min me parece que essa é realmente e questao néo & Bateson que asta centrel do "A Timely Rereading of Naven": sendo criticado mas através dele e de viés,um dos fantasmas pre- feridos dos pés-antropélogos - 2 antropologia interpretative. 0 outro, mais que fantasma, um grande monstro - ° positivismo - responde pele ironia finel dos textos experimentalis te abismados pele descoberte da conteminagio subjetive da tea rie, os entropélogos de vanguarda emericance decidiren eliminar a subjetividede eliminendo » teorie’2°) e nesse movimento - pele mecanice do principio do bumerengue - 0 positiviemo, expules com grande elerde pels porte da frente, regressa silenciosanente through the back door. € regressa silenciosenente, num duplo sentido: primei ro, etravée da r strigdo do texto etnogréfico a uma trenscrigao no interpretada do diéloga con o "outro", @ segundo etravés de disparidade entre o volume e 8 devastagao da produgéo critice e 2 escassez e 0 desalento dos trabalhos etnogréficos experinonta Listes. Donde ® propriedade do dito popular: "feler é féeil, fa zor 6 que sao elas". (20) Agradeco a Mireya Sudrez discussao sobre essa questao. 1b. DERRADEIRA ADVERTENCIA AD LEITOR Caso vocé ndo tenhe percebido, esse texto é um instru mento de uma pesquisa de opinido cientifica. Seu objetico § veri ficar qual dos dois estilos, o pdés-moderno, da primeira parte, ou 0 realista etnogréfico, da segunda, possui um maior poder de con vicgao. Preenchendo correta e conscienciosamente o teste abai xo, vocé ficaré sabendo, ne hore e@ sem complicacdes, qual o esti lo que melhor Lhe convém: 2 Teste (a,) Se vocé se identificou plena e imediatamente com a parte I desee artigo, vocé é uma pessoa afinada como seu tempo, um pés-moderno na acepcao plena da palavre. (b)) Se vocé gostou da parte I, mas de uma forma hesitant, nao se desespere. Ainda hé alguma esperanga para voce. (c,) Se vocé detestou a parte I, passe para o teste seguinte. 2° Teste: (o,) Se voeé preferiu parte II do artigo, sem reservas, vocd é um tradicional cioso de seus principios. (b,) Se vocé gostou da parte II, mas com ressalvas, seu diagnésti co € 0 mesmo que (b,). (c_) Se vocé detestou s perte II, © seu ceso 0 mesmo que (0,): vocé 6 um auténtico pés-moderno, resistente a qualquer tes te. Mas como nao h4 autor que resiste terminar um texto sem um conselho, cugiro que, seja qual for o seu caso, sdote, pg lo menos temporéria © moderadamente, o estilo pés-antropoldgico na préxime estaca7, pois o realismo etnogréfico vai ester defini tivamente out no outono/inverno 1988. Se vocé & um tradicionsl cio so de seus principios e odeia virar a cesace « cede estecéo con forme mande o figurino, experimente uma discrete combinagéo inter mediéria que preserve do classico sua elegante sobriedade e que inclua do moderno aquele toque de rebeldia juvenil. Vocé nao iré se arrepender com o resultado: afinal vocé teré o seu look ren vado em pelo menos dez anos. 1s. BIBLIOUGRAFIA BATESON, Gregory. Neven. Stanford: Stanford University Press, igse (2"4ea), CRAPANZANO, Vincent. "Text, Transference and Indexicality". Ethos g9:1981. « Waiting, the Whites of South Africa. New Vork: Rendom House, 1985. DUMONT, Louis. Preface of Ihe Nuer. In Studies in Sociel £)'hropo- logy. Oxford Clarendon Press, 1975. ECO, Umberto. 0 Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1983. EVANS-PRITCHARD,E.E£, Os Nuer. Sao Paulo: Ed. Perspectiva,1978. FISCHER, Michael. De entropologia interpretative 4 antropologia critica. Anugrio Antropoléaqico/83. Rio de Janeiro: Tempo Sra sileiro, 1965. GEERTZ, Clifford. "Slide Show: E-P's Africen Transparencies". fa tan, 1983. MALINOUSKT, Bronislau. Argonautes do Pacifico Ocidentel. Sio Pau lo: Abril Cultural, 1978. MEAD, Margaret. Blackbi Winter. Nove York: Weshington Square Press, 1975. NARCUS, G.E. e CUSHMAN. 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