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Redes ou paredes Aescola em tempos de dispersao — O que vocés esperavam ao me denunciar para o diretor? — Que 0 senhor fosse castigado, como nés. — Ah, querem me castigar? — O senhor nos insultou e merece castigo... 0 senhor disse “ordinarias” e nds dissemos “filho da puta”, é a mesma coisa! — Mas vocés tém que entender que eu sou 0 professor, e pronto! Laurent Cantet, Entre os muros da escola (2008) Antes de mais nada, é necessdria'a obediéncia no carater da crianga, particularmente no do aluno. [...] A obediéncia pode nascer da coa¢ao, e entdo € absoluta, ou da confianga, e entao é raciocinada. Esta obediéncia voluntdria €é muito importante, mas aquela é extremamente neces- sdria, porque prepara a crianga para 0 cumpri- mento das leis que depois ela tera de cumprir como cidada, ainda que nao lhe agradem. Immanuel Kant, Sobre a pedagogia (1803) Introdugao: Para que serve a escola? O colégio como tecnologia de época O molde escolar ea maquinaria industrial Educar 0 soberano disciplinando os selvagens Os incompativeis: outros ti pos de corpos e subjetividades O desmoronamento do sonho letrado: inquietacao, evasao e zapping As subjetividades midiaticas querem se divertir Do aluno ao cliente, da lei a negociagao Da crianga ao consumidor: cai o mito da transmissao Do empregado ao empresario, da formagio a capacitagao Mercado em vez de Estado: das adverténcias ao bullying Violéncia e inseguranga: do reformismo moral a blindagem policial Do quadro-negro as telas: a conexao contra o confinamento Salas de aula informatizadas e conectadas: muros para qué? Resistir a0 confinamento ou sobreviver 4 rede? Conclusao: Inventar novas armas Notas 13 27 35 45 63 81 93 105 123 141 181 199 207 213 INTRODUCAO Para que serve a escola? Este ensaio comega com uma pergunta ¢ corre o saudavel risco de desembocar, ao final de todo seu percurso, num mar de ecos emitidos pela mesma indaga 10. Enquanto deslizamos velozmente a bordo deste século XXI que tantas surpresas nos tem trazido, ostentando seus feiticos tecnoldgicos e seu estilo de vida globalizado, sera que a escola se tornou obsoleta? E munto dificil responder a esta interrogacao de modo ca- tegorico; talvez as possiveis respostas ainda sejam impronun- ciaveis. A finalidade destas paginas é aprofundar esse ques- tionamento, explorando algumas de suas arestas, nao com 0 proposito de oferecer solugdes tranquilizadoras, mas para re- finar sua formulagao e tornd-lo mais fecundo. As ferramentas de que dispomos para realizar essa tarefa nao sao as do espe- cialista em educagao, com as vantagens e desvantagens que isso implica. Em vez de surgir da vasta tradigao pedagdgica, e ainda que sem duvida aspire a dialogar com algumas de suas vertentes, nossa anilise parte de um terreno que ainda costu- ma ser considerado muito distante dos rituais escolares, quase seu antagonista: 0 dos meios de comunicagao. Sobretudo em sua rutilante conjugacao informatica, digital ¢ interativa, que vem se colocando em sintonia, no nivel mundial, com os avan- Gos j4 mais assentados da cultura audiovisual. Tentaremos também, e com énfase especial, langar um olhar antropoldgico e genealdgico sobre o problema, no intui- to de detectar algumas tendéncias proprias de nossa era: aque- la que nos impregna, a0 mesmo tempo que a tecemos € cruza- mos a toda a velocidade, motivando a incerteza da indagagao inicial. Se ainda emudecemos ou titubeamos na hora de res- TO TSASIBIGAS REDES Ou parenes, Pondé-la, a0 menos 5 © Menos este clima de epoca properciona algo in- solito, que deveriamos aproveitar como uma rara dadiva: ele Permite por o presente em questa. Por nos encontrarmos de Fepente em uma encruzilhada, vemos como explodem as cer- cas erguidas a Partir de velhas convicgdes e certezas que ja nao funcionam. Sermos contemporaneos nao é uma tarefa isenta de riscos: se estivermos atentos aos sinais do mundo, talvez tenhamos a sorte de eles nos perturbarem a ponto de suscita- Tem © pensamento; mas isso s6 ocorrerd se ConseguirMos es- capar dos perigos que aparecem quando pisamos terrenos tio Pantanosos sem evitar a complexidade dos fendmenos nem desprezar suas contradigdes. O desmoronamento em curso € doloroso e desconcertante, mas, a partir dessa abertura, a visao se expande para outras diregdes. Em consequéncia disso, os caminhos podem se multiplicar. Por tais motivos, o foco deste ensaio nao aponta somente para a escola nem para o peculiar entorno sociocultural, eco- nomico e politico que a viu nascer e se desenvolver com sua orgulhosa missao ci ilizadora. Além de contemplar esse marco com suma curiosidade, o estudo tende a se concentrar no con- texto atual, que sem duvida mudou bastante e em varios sen- tidos em relagao aqueles tempos cada vez mais remotos. Com esta premissa como pano de fundo, nossa analise tem em vista um componente vital dessa maquinaria, cuja modelagem constituiu seu principal objetivo: os corpos e as subjetividades Para Os quais essa institui¢do foi criada, no momento de sua invengao e durante sua gradativa consolidagao. A natureza humana ndo € imutavel, constituida como uma entidade inal- teravel através das historias e das geografias; pelo contrario, as subjetividades se constroem nas praticas cotidianas de cada cultura, € os corpos também se esculpem nesses intercambios. Este texto busca acompanhar Os itinerarios que compuseram €ssa trama até ela chegar a sua configuragao mais atual, deten- 10 do-se prioritariamente nos modos de ser e estar no mundo que surgem hoje em dia, e que costumam se relacionar com a escola de modos contlitivos. Um primeiro desdobramento da questio que nos ¢ pode ser o seguinte: que tipos de corpos e de subjetividades a escola tradicional produziu em seu apogeu? Essa localizaygo historica remete principalmente a segunda metade do secu- lo XIX e boa parte do XX, ou seja, a um denso bloco temporal durante o qual essa instituicao irradiava ares de plena sol- uia vencia, longe de ser acusada de obsolescéncia ou de estar po- tencialmente ultrapassada. Ha outra pergunta latente nessa averiguagao: por que e para que nossa sociedade — ocidental, moderna, capitalista, industrial — se propds, naquela epoca, gerar esse tipo peculiar de seres humanos? Este trajeto indaga- torio é fundamental, mas sobretudo porque em sua meta cin- tilam os nds problematicos que privilegiaremos aqui: que Upo de modos de ser e estar no mundo sao criados agora, no des- pontar da segunda década do século XXI? Como, por que € para qué? Avancando um pouco mais nesta aventura, surgird 2 pet gunta mais interessante € também mais espinhosa, cuja res- posta talvez ainda deva permanecer aberta e pulsante: que ti- pos de corpos e subjetividades gostariamos de forjar hoje em dia, pensando tanto no presente quanto no futuro de nossa sociedade? Uma vez definida essa sondagem tao complexa, até no intuito de contribuir para depura-la ou aprofunda-la, também seria preciso justificar as possiveis respostas, tornan- do a indagar sobre seus pontos-chave: por que e para qué? Por Ultimo, nesta tentativa de desentranhar a medula do assunto, caberia introduzir a duvida crucial que inspirou a redacao deste livro, como um disparo para novos rumos: de que tipo de escola — ou de que substituto dela — necessitamos para alcangar esse objetivo? i Ocolégio como tecnologia de época Vritre tantas perguntas em aberto e cada vez mais dificeis de Fespondlet, em tung ao de sua crescente especitividade e da di heuldade de imaginar alternativas para o nosso futuro, uma certeza € quase obvia ¢ paderia servir aqui como ponto de partid: a escola esta cm crise, Por qué? Os tatores que levaram dessa situaydo sdo mnumeros ¢ sumamente complexos, mas um caminhe para compreender os motives desse mal estar consiste em recorrer a sta genealogia. Ao observa-la sob o Prisma historiogratico, essa instituigae ganha os contornos de uma fecnologia: podemos pensa-la como um dispositive, uma terramenta ou um intrincado artetato destinado a produzir algo. E nao € muito dificil verificar que, aos Poucos, essa apa- relhagem vai se tornando incompativel com os cOrpos e as subjetividades das criangas de hoje. A escola seria, entao, uma Maquina antiquada. Tanto seus componentes quanto seus modos de funcionamento ji nao entram facilmente em sinto- nia com os jovens do século XXL. sim e€ apesar de tudo, insiste Nessa jungdo — que, ainda a em acontecer todos os dias durante longas horas, em quase todos os cantos do planeta —, as pegas nao se encaixam bem: descobrem-se ressaltos imprevistos em suas engrenagens ¢ os equéncia, ocasionando toda sorte circuits se obstruem com fi de atritos, ruidos, transbordamentos ¢ até cnormes desastre Trata-se,em suma, de organismos que nao se ajustam (a0 har- Moniosamente quanto costumava suceder algum tempo atras, € que, por conseguinte, ao serem postos em contato, tendema desencadear conthitos de toda espécie ¢ da mais variada grave dade. Para além das particularidades individuais de cada estu- 13 PEDES ou eapeoes dante ¢ q nte ¢ das diversas institui escola’, tambem deixando relativas aos contextos socic cada caso, se icOes acolhidas na ampla cate oria de lado as significativas diterencas vECONOMICOS € até ZEOPOliticos de a tia dificil negar essa incompatibilidade. Ha uma Wergencia de época: um desajuste coletivo entre 05 colégios ¢ seus alunos na contemporaneidade, que se confirma e prova velmente se reforca dia a dia na experiéncia de milhoes de Criangas e jovens de todo o mundo. E algo que ja parece cons. tituir a marca de uma geracao e€ que, alids, tem sido teorizado Por Varios autores recorrendo a nomes relacionados com cer- tas letras do alfabeto — geragao Y ou Z, por exemplo, assim como N de net e D de digital — ou, entao, ao melancélico r6- tulo “pos-alfa’, bem como a exitosa expressdo “nativos digitais” € outras no mesmo estilo. Seja como for, e embora ninguém ignore que esse desen- caixe jd vem se engendrando ha bastante tempo, talvez até ao longo de todo o extenso e conturbado século XX, a brecha tornou-se incontestavel nos ultimos anos. A primeira década do novo milénio foi decisiva nesse sentido, e é provavel que © sejam ainda mais as que virao. Esta constatagao ocorre jus- tamente quando se esta soldando um encaixe quase perfeito entre, de um lado, esses mesmos corpos e subjetividades e, de outro, um novo tipo de maquinaria, bem diferente da pa- rafernalia escolar e talvez oposta a ela. Referimo-nos, € claro, aos aparelhos moveis de comunicagao e informagao, tais como 05 telefones celulares ¢ os computadores portateis com acess a internet, que alargaram num abismo a fissura aberta ha mats de meio século pela televisao e sua concomitante “cultura au- diovisual”, A partir da evidéncia desse choque, originaram-se as diversas tentativas de fundir de algum modo os dois un versos: 0 escolar e 0 midiatico. Essas iniciativas se deflagram atualmente em varias partes do mundo, respondendo a urges- cia do conflito e procurando resolvé-lo de modos inovadores, 14 © COMO TFECNOLOGIA DE EPOCA se bem que ainda com metodos experimentais € resultados. incertos. E claro que nao se trata de um fendmeno fortuito nem muito enigmatico: ha explicagdes historicas ¢ até antropolo- gicas para essa discrepancia crescente entre os colegios € os jovens de hoie, assim como para a hostilidade e os dilemas que costumam acompanha-la. Essas justificativas abarcam um amplo leque de fatores econdmicos ¢ politicos, alem de impor- tantes mudangas sociais, culturais ¢ morais que se foram de- sencadeando nas ultimas decadas, com uma brusea aceleragao em anos recentes. De que transtormagoes se trata? Embora estejam em jogo certos movimentos contraditorios ou de alta complexidade, que nada mais fazem do que acrescentar in- certezas ao quadro atual, seus contornos basicos revelam-se quase obvios para os que transitaram por algumas decadas do século passado e se tornaram adultos no inicio do sécu- lo XXI. E estao longe de poder sintetizar-se mediante a alusao exclusiva aos avangos técnicos. Provavelmente iniciada no periodo do apos-guerra, Ou, mais seguramente, a partir da década de 1960, a germinagao desses processos demorou bastante, mas agora seus frutos se consolidam com um triunfalismo que nao da margem a duvi- das. E, embora seja evidente que a causa de tao complexo movimento hist6rico nao se limita aos dispositivos tecnoldgi- cos recentemente popularizados, sua confluéncia com essa crise que ja se vinha propalando levou, precisamente, a que 4 fissura se tornasse cada vez mais iniludivel. Por um lado, en- tao, temos a escola, com todo o classicismo que ela carrega nas costas; por outro, a presenga cada vez mais incontestavel des- ses “modos de ser” tipicamente contemporaneos. Tornou-se ficil evitar tamanha desarticulagao com um olhar muito dif para outro lado, ou um fingir que nao ha nada acontecendo, ou um buscar em vao remendar esse artefato abstruso que, a0 45 ate ¢ das diversas mstirunaes acolhid Ay Ha ampla ¢ als signaticatiy 208 CONTE aS sOCIOECONOMICOS & cada caso, seria dial neg, Megoria, as dilerencas ate Beopoliticos de st esst incompattbilidade, clivergenaa de epoca unr desaruste essoid, tambeny denando de lado relativas Ha uma voletive entre os Colegios ¢ seus GUNS Na Contemporancidade, que se confirma ¢ velmente se retorya dia a dia na experiencia de enlangas ¢ jovens de todo o mundo, E Prova. milhoes de algo que ja parece cons. alias, tem sido teorizado a nomes relacionados com cer- htuir a marca de uma gerayao e que, Por varios autores recorrendo tas letras do altabeto — erayao Y ou Z, por exemplo, assim como N de nete D de digital — ou, entao, ao melancolico r6- tulo “pos-aita’, bem como a exitosa expressio “nativos digitais” € Outras nO Mesmo estilo. Seja come tor, € embora ninguém ignore que esse desen- caixe ja vem se engendrando ha bastante tempo, talvez até ao longo de todo o extenso e conturbado século XX, a brecha tornou-se incontestavel nos ultimos anos. A primeira década do novo milénio toi decisiva nesse sentido, e € Provavel que © seam ainda mais as que virao. Esta constatagao ocorre jus- tamente quando se esta soldando um encaixe quase perfeito entre, de um lado, esses mesmos corpos e subjetividades e, de outro, um novo tipo de maquinaria, bem diferente da pa- raternalia escolar € talvez oposta a ela. Ret ferimo-nos, é claro, aos aparelhos méveis de comunicas ao ¢ informagao, tais Como 9s teletones celulares € 05 computadores portateis com aces sO a internet, que alargaram num abismo a fissura aberta ha mais de meio século pela televisae © sua concomtante “cultura au- diovisual”, A partir da evi Vota desse Che que, Originaram-se fund de alyumn versos: 0 escolar eo midiitico, b ay diversas tentativas de cos dors unt As intichativas se deflagram atualmente em varias partes vido mundo, tespondende a urgen cia do contite & procurande resolve lode modoy inovadores. 4 ue ainda com metodos experimentais € resultados se bem 4 incertos. £ claro que 9 9 enigmatico: ha explicagdes historicas € até antropolé- ara essa discrepancia crescente entre os colégios e os de hoje, assim como para a hostilidade e os dilemas m acompanha-la. Essas justificativas abarcam um jo se trata de um fendmeno fortuito nem muit ge as Pp jovens que costuma amplo leque de fatores econdmicos e politicos, além de impor- tantes mudangas sociais, culturais e morais que se foram de- sencadeando nas ultimas decadas, com uma brusca aceleragao em anos recentes. De que transformagées se trata? Embora estejam em jogo certos Movimentos contraditorios ou de alta complexidade, que nada mais fazem do que acrescentar in- certezas a0 quadro atual, seus contornos basicos revelam-se quase Obvios para os que transitaram por algumas décadas do seculo passado e se tornaram adultos no inicio do sécu- lo XX1. E esto longe de poder sintetizar-se mediante a alusdo exclusiva aos avangos técnicos. Provavelmente iniciada no periodo do apds-guerra, ou, mais seguramente, a partir da década de 1960, a germinacao desses processos demorou bastante, mas agora seus frutos se consolidam com um triunfalismo que nao da margem a duvi- das. E, embora seja evidente que a causa de tao complexo movimento histérico nao se limita aos dispositivos tecnoldgi- cos recentemente popularizados, sua confluéncia com essa crise que ja se vinha propalando levou, precisamente, a que a Assura se tornasse cada vez mais iniludivel. Por um lado, en- Bo, temos a escola, com todo 0 classicismo que ela carrega nas mde a Presenga cada vez mais incontestavel des- muito dif ita ev contemporaneos. Tornou-se para outro lado, - tamanha desarticulacao com um olhar Ou um buscar em wae rin ae me ha nada acontecendo, artefato abstruso que, a0 15 que tudo indica, parece ter perdido boa Parte : de sua e seu sentido ao se deparar com a nova P. ficac : “a MSA8EM Que cre = aseu redor. ne Em virtude da generalizagao desse Panorama, este beste @y 5 Ns, pretende examinar em que consistem essas Mudangas Salo 0 pro. as subjetividades No: ultimos tempos, e que agora permitiriam vislumbrar a con, f " a consy. magao de uma metamortose. De fato, ainda que ela tenh, = a prosperado no curto prazo de uma mesma geracdo, tr: fundas que vem afetando os corpos e , ‘ata-se de uma transformagao tao intensa que costuma despertar toda sorte de perplexidades, especialmente naqueles que nao nasce. ram imersos no novo ambiente, Mas atravessaram essa muta- GO € agora sentem seus efeitos na propria pele. Afinal, esta- mos aludindo a uma transigao entre certos modos de sere estar no mundo, os quais, sem duvida, eram mais compativeis com o colegio tradicional e com as diversas tecnologias adscri- tas a linhagem escol. Essas novas subjetividades que flores- cem atualmente manifestam sua flagrante desconformidade com tais ferramentas, ao passo que se encaixam alegremente com outros artefatos A partir desta perspectiva, portanto, fica claro que a es- cola € uma tecnologia de época. Ainda que hoje pareca tio “natural”, algo cuja inexisténcia seria inimaginavel, o certo é que essa institui¢ado nem sempre ey tiu na ordem de uma eternidade improvavel, como a Agua e 0 ar, tampouco como as ideias de crianga, infancia, filho ou aluno, igualmente natu- ralizadas mas tambem passiveis de historicidade. Ao contrario: © Tegime escolar foi inventado algum tempo atras em uma cultura bem definida, isto é, numa confluéncia espagotempo- ral conereta ¢ identificay Para ter se fato, el, diriamos até que recente demais arraigado a ponto de se tornar inquestionavel. De “ssa Instituigao foi concebida com 0 objetivo de atender a um conjunto de demandas especificas do projeto historico 16 a planejou e procurou po-la em pratica: a modernidade ue antes houvera escolas ou colégios, mas eles nac es termos, No que F claro q equivaliam ao que hoje denominamos por Idade Média, por exemplo, “eram reservados a um pequenc misturavam as diferentes idades den numero de clérigos ¢ a tro de um espirito de liberdade de costumes’, relata Philippe Aries, esclarecendo que somente “no inicio dos tempos mo- dernos [tornaram-se] um meio de isolar cada vez mais as criangas durante um periodo de formagao tanto moral como intelectual, de adestra-las, gragas a uma disciplina mais auto- ritaria, e, desse modo, separa-las da sociedade dos adultos”. Mas, como sublinha o mesmo historiador francés, “essa evolu- gao do século XV ao XVIII nao se deu sem resisténcias”! Sem duvida, foi uma estratégia sumamente ousada, que em contrapartida também requeria certas condigdes basicas para poder funcionar: além de estipular metas e objetivos, foi pre- ciso estabelecer determinados requisitos de indole variada Para que essa maquinaria pudesse funcionar com eficacia. Entre as exigéncias histéricas a que a criagdo dessa curiosa entidade procurou responder figuraram os compromissos desmedidos da sociedade moderna, que se pensou a si mesma — pelo menos idealmente — como igualitaria, fraterna e de- a. Por conseguinte, assumiu a responsabilidade de educar todos os cidadaos para que ficassem & altura de tio Magno projeto, servindo-se para esse fim dos potentes recur sos de cada Estado nacional. Era preciso alfabetizar cada habi- tante da nagao no uso correto do idioma patrio, por exemplo, ensinando-o a se comunicar com seus. contemporaneos e com as proprias tradigdes por intermédio da leitura e da escrita Além disso, era necess ‘rio instruir todos para que soubessem fazer calculos ¢ lidar com os imprescindiveis numeros. Em Suma, umn conjunto de aprendizagens uteis e praticas, que fo tam substituindo uma multidao de dogmas e mitos sem res v7 paldo cientifico ou cuja inutilidade se tornava flagrante, ou seja, tudo aquilo que ja nao servia para nada, apés ter Perdido o substrato cultural que antes Ihe dera sentido. Por ultimo, embora nao menos essencial, era preciso treinar os homens do futuro nos usos e costumes ditados pela virtuosa “moral laica” desfraldada pela burguesia triunfante: um cardapio inédito de valores e normas que se impos com esse imenso projeto poli- tico, econdmico e sociocultural. Submersa nessa atmosfera em ascensao, a plataforma sobre a qual se ergueu tal programa ostentava um lema muito claro: disciplina. Em suas conferéncias ministradas no fim do século XVIII e publicadas alguns anos mais tarde, em 1803, sob o titulo Sobre a pedagogia, ninguém menos que Immanuel Kant deixou claro que seria esse 0 objetivo prioritario da edu- cagao. “A disciplina converte a animalidade em humanidade”, afirmava o filésofo alemao ha mais de duzentos anos, asseve- rando que s6 com esse instrumento nas maos seria possivel “dominar a barbarie”.* Assim se explicitou a fungao basica da instituicéo escolar, entéo em seus primordios: humanizar o animal da nossa espécie, disciplinando-o para modernizé-lo e, desse modo, iniciar a evolugdo capaz de converté-lo num bom cidadao. Uma vez atingida essa primeira meta, em segundo lugar caberia tornar os homens capazes de desenvolver deter- minadas habilidades, como ler ¢ escrever ou aprender outras destrezas mais especificas. Essa tarefa tequereria “a instrugao e © ensino”, mas s6 poderia consumar-se a partir do trabalho civilizador previamente realizado sobre a natureza crua dos alunos. Nesse sentido, para Kant, a disciplina seria um traba- Iho negative, destinado a anular uma etapa prévia: “a agao pela qual se apaga no homem a animalidade”. Assim se expurgaria a condi¢ao primitiva oua barbarie origindria que se verificava m algo gravissimo para o Projeto moderno: 0 desconheci- mento da lei. 18 Em contrapartida, a instrucao ja constituiria a parte positi vada ed' al do ado anterior, uma vez que s6 “a disciplina submete o ho ucagao, necessariamente inscrita na supressao vit. est as leis da humanidade e comega a fazé-lo sentir a coagao mem desta’.’ Portanto, essa fase basica nao consistiria apenas em ensinar as criangas quais sao as regras concretas que coman dam a sociedade, porém em algo muito mais elementar e im- prescindivel: saber que a lei existe e, como tal, deve ser respei- tada. Seguindo a escala de prioridades da pedagogia kantiana, além da disciplina e da instrugao, em terceiro lugar seria ne- cessdrio propagar a “civilidade”, logrando que cada homem adquirisse “boas maneiras, amabilidade e certa prudéncia” para poder adaptar-se com éxito aos costumes e usos sociais. Por ultimo, o fildsofo destacava que “é preciso cuidar da mo- ralizacao’, a fim de que, havendo aprendido a executar um conjunto de tarefas com finalidades distintas, cada um tivesse também “um critério conforme o qual [escolhesse] somente os bons objetivos”. Em sintese, a pedagogia teria como meta propiciar “o desenvolvimento da humanidade’, de maneira cumulativa e cada vez mais aperfeigoada, procurando fazer com que ela fosse nao apenas “habil, mas também moral”, pois “nao basta o adestramento; 0 que importa, acima de tudo, é que a crianca aprenda a pensar”; e, fundamentalmente, que saiba se comportar como convém.* Esse exercicio da raciona- im pautada, era lidade, transmitido pela educagao formal ass também — e, talvez, principalmente — normalizador: ensina- va-se a pensar e a agir do modo considerado correto para os Parametros da época. O texto de Kant, sem duvida, merece a atengao que the dedicamos aqui, ja que sua obra constituiu um dos pilares da modernidade; por isso nao convém desdenhar do vinculo que essa pena selou entre a educagao formal e a disciplina come um projeto basilar do Iuminismo. Esta ultima deveria se: 19 aplicada ¢ infundida de imediato em cada recém-nascidg “pois, de outro modo, depois € muito dificil modificar g h 0. mem’, explicava 0 filosofo, Do contrario, aconteceria algg muito perigoso: » homem ficaria a mercé de seus caprichgy, por isso a capacidade de se curvar A razdo e a disciplina de. veria ser Muito precocemente inculeada na trajetéria Vital de todos os cidadaos. “Se, em sua juventude, ele é deixado en. tregue 2 sua vontade, conservard alguma barbdrie durante entando que “de nada The serve, tampouco, ser mimado na infancia pela excessiva terny. toda a vida’, advertia 0 autor, act ra materna, pois, mais tarde, nao fara sendo chocar-se com obstaculos por toda parte ¢ sofrer continuos fra logo interfira nos assuntos do mundo”. Por tais motivos, com. a e 0 controle familiar, foi ‘ASSO, tig plementando a severidade paterr necess.rio instituir a escola moderna para reforgar essa mis- sao, cuja utilidade seria tanto individual quanto coletiva. Nao foi por razOes banais, entao, que se adotou o novo habito: desde muito pequenos, os meninos da era burguesa tiveram que ser enviados todos os dias as escolas, “nao ainda com a inteng3o de aprenderem algo’, como repisou o proprio Kant, “mas com a de habitua-los a permanecerem tranquilos e a cumprirem pontualmente o que lhes [fosse] ordenado’.* Por isso, para o cidadéo moderno, nao ter sido instruido a fim de dominar certas habilidades implicaria um problema, sem du- vida; porém, muito pior que qualquer impericia — mais grave ate que certa ignorancia ou necedade — seria o fato de nao ter disciplina. Isso o levaria a se equiparar a um selvagem ou um barbaro e, uma vez consumada essa falha na crianga, ela ja n40 Poderia ser remediada, mais tarde, com ensinamentos pon- tuais: convertido num adulto indisciplinada, esse homem €s- taria arruinado, sem possibilidade de emenda para os fins bus- sados pela civilizagao. De fato, além de denunciar com firmez essas falhas de cardter nos pequenos mal-educados, que fatal- 20 > converteriam em adultos sem disciplina — por isso iment “los” _, esse autor identificava algo semelhante “entre on que, ainda que prestem servigos durante muito te 08 europeus, Nunca se acostumam com oO modo de tempo : 5 an ver destes”. Ao explicar os motivos de tal resisténcia ao rigor viver d . s provenientes de outras culturas, 0 fildsofo disciplinar nos seres se neles “uma emao desmentiria categoricamente que houve: al nobre inclinagdo pata a liberdade, como creem Rousseau e& outros tantos” Em vez disso, Kant denunciou uma espécie de “O animal prutalidade que seria inerente a essas criaturas ainda nao desenvolveu em sia humanidade.” Ainda que essas palavras provoquem certo desconforto nos eitores do seculo XX1, convém esclarecer que foram redigidas sem hesitagao, ha dois longos séculos, por um dos pensadores de maior relevancia em nossa tradigio; e, certamente, suas reflexdes contribuiram para consolidar a instituigao escolar tal como a conhecemos. E que a educagao formal constituiu um importante brago armado do Huminismo: além de desenvol- ver seus impetos modernizantes e secularizadores, libertando 0 soberano das trevas da ignorancia, também acabou sendo cao cultural, capaz de des- qualificar ¢ asfixiar sob sua hegemonia racionalista todas as um forte movimento de uniformiza (muitas) manifestagdes consideradas inferiores. Um exemplo tipico foi o dos idiomas que se impuseram como linguas na- cionais, com a forca da coagao estatal, esmagando os milhares de dialetos falados nos tempos pré-modernos, tanto nos terri- torios europeus quanto em suas colénias ultramarinas. O en- Sino irradiado nos colégios foi fundamental para consolidar essa homogeneizagao em torno da norma e sob a firme tutela de cada Estado, contribuindo para cimentar os valores com- Partilhados no territério delimitado pela simbologia nacional. oe representativa exige que os cidadaos dele- ler aqueles que manejarao diretamente os recur- 21 sos do Estado e tomarao decisdes politicas capazes de - | . - Aleta, toda a populagao do pais. Por isso se fez necessarig « : educar y i ; i “Algo que 56 se poderia conseguir por meio de relatos referentes soberano” forjando sua “consciéncia nacional” brim 2 UM Passady comum a todos os cidadios de uma mesma nacao, capares d ye : as azes de constituir certa identidade ligada a ideia de pove. Com efeit 0, no século XIX, o “sujeito da consciéncia’, filosoficamente ins. tituido duzentos anos antes, tornou-se “sujeito da consciéneia nacional”, como uma exigencia da sofisticagao do aparato is ridico moderno.® Assim, sobre essa “ficgao ideologica” de um passado comum que seria causador do presente comparti- lhado — um relato gerado pelo discurso historico — recaiu a fungao de dar consisténcia coletiva a cada povo. Sua solene materialidade compds-se do classico repertorio escolar: hinos cantados orgulhosamente de pé; comemoragoes patrias enga- lanadas com feriados ¢ atos presididos por porta-bandeiras sob declamagdes circunspectas; manuais ou livros de leitura carregados de relatos edificantes sobre préceres, heroismos e gestas nacionais; e até museus €e MONUMeNtos a serem visita- dos nas esporddicas excursdes extramuros. Para que tudo isso pudesse frutificar, com os sentidos con- tundentes que tal mitologia soube conquistar naquele periodo historico, era preciso plantar uma semente muito especial na terra fértil constituida por cada crianga escolarizada. Median- te o ensino da historia e a ritualizacao das comemoragoes & colares, dever-se-ia conseguir que brotasse em cada future cidadao a consciéncia da identidade nacional. Cabe lembrat que na palavra discipulo ressoa sua entranha disciplinas cura origem etimoldgica remeteria a discere e pueris, dizer as crian- Sas: explicar-lhes o que é certo e o que € errado, inculand -lhes 6 que se supunha que deveriam saber e fazer ae mesma linha, 0 curioso vocabulo aluno também escom a : iment0: lagos significantes que o ligam a estirpe do esclarec™ 22 -_ | ) COLEGIO COMO TECNOLOG IS EE UT TT” alta de luz e 2 conseguinte necessidade enguanto outros & studiosos da ual o aluno escer. Mas, alguns 0 associa J de ser iuminado (ate ia de nutrigao, segundo aq eset alimentado para poder er n filologica que revela a plas- ser cultivado, cabe pelo Estado nesses \final, essa entidade a de constituindo-se camo um solo firme, jas sublinham a ide seria aquele que dev ssaltar essa linhag e sua capacidade de do alunate » papel crucial desempenhado aleangou a envergadur: processos. uma megainstituiys rantir o bom funcionamento de tod. tidoeg ad SO- capaz de dar sen is instituigdes em torno das quais se OF ais como a familia, a escola, a fabrica, © nizou as den ciedade moderna, t Exército ¢ a prisdo. Nesse contento historico, cujas bases hoje parecem se dis- solver em contato fluido com as légicas do consumo e dos meios de comunicacaio, o Estado encarnava a solidez do insti- tituidor. De sua tuido, que ao mesmo tempo era fortemente ins sobria investidura surgia a lei universal, sob cujo amparo se gerou um tipo de subjetividade que alguns autores denomi- nam, precisamente, “estatal” ou “pedagogica”. Segundo o his- toriador e filosofo argentino Ignacio Lewkowicz, por exemplo, seus dispositivos institucionais a “o Estado-nagao delegava a produgdo e a reprodugio de seu suporte subjetivo: 0 cida- dao” Esse tipo de sujeito era tanto a fonte quanto o efeito do principio democratico que postulava a igualdade perante a lei, ou seja, um individuo constituido em torno desse codigo, o qual, por sua vez, apoiava-se em duas instituigdes fundamen- tails a familia e a escola, ambas encarregadas de gerar os cida- dios do amanha. Trata-se, portanto, de um modo peculiar de sere estar no mundo, que se ia formando minuciosamente desde o nascimento de cada individuo; assim, em seu desen- _ Volyimento progressive rumo a idade adulta, ele seria capaz de fansitar entre todas essas instituigdes irmanadas por um fim eae ee 23 idéntico, que usavam a mesma linguagem e se alinha Vv, Por isso, a0 atravess, ams uma causa comum arem pela Prime, vez o circunspecto portico escolar, vestindo Uniformes im culados e esgrimindo suas maletinhas cheias de materian m estudo, as criangas ja chegavam preparadas gragas a uma ta delagem prévia que ocorria entre as paredes do lar. Algo sen lhante acontecia na transicao do colégio para a universida.), ow a fabrica: todos esses recintos eram compativeis entre g com seu respectivo material humano, j4 que funcionavam ,, gundo a mesma logica Em virtude desse encadeamento, “cada uma das instit., goes operava sobre as Marcas Prev iamente forjadas”, exphca Lewkowicz, assegurando e reforgando assim a eficacia do fun cionamento disciplinar: “A escola trabalhava sobre as mare. oes familiares; a fabrica, sobre as modulagées escolares: prisio, sobre as molduras hospitalares.”'” Nesse sentido, cada uma dessas instituiges poderia pensar-se como um disposit: vo que exigia dos sujeitos a manutengao de certos tragos e 3 execucao de determinadas operagdes para nelas permanecer Além de produzir as subjetividades de seus habitantes, na pra- tica cotidiana desse conjunto de atos e gestos, o proprio dispe- sitivo se consolidava em sua agao: ambos eram fabricados em unissono. Desse modo, jd convenientemente disciplinados instruidos, civilizados e moralizados — para retomar os qu:- tro pilares pedagogicos destacados por Kant —, os sujeites Podiam ingressar em cada uma dessas instituigées munides das premissas que as guiavam, Compreendiam entao seus c0- digos e cram capazes de colocd-los em pratica, para além das rom is can ca a resistencia que oer dle individuais e da cepecl . Ihagem, Ao ce ra revelaria essencial para mobi liza ai S€ dirigirem a cada nova instancia, ess ‘viam ser reforcados no cidadao, depurando dess¢ tal aparel tracos d 24 modo a configuragdo de subjetividades cada ve7 mais compa tiveis com esses estilos de vida. A perda de eficacia no funcionamento bem azeitado das engrenagens disciplinares ¢. justamente, um dos indicios do crise atual, Um ingrediente primordial de Estado no papel de megainstituigde ¢ ssa deteriotagde ¢ 0 enfraquccimento do paz de avalizar ¢ dotar de sentido todas as demais. Em conse: iincia com esse declinio, perdem peso € gravidade as invest: duras que revestiany figuras chave da autoridade moderns, como o pai ¢ © professor, por exemplo, cujas definiyoes, att: butos ¢ poderes se transformaram amplamente nos ultimos tempos. Assim, a incompatibilidade aqui sugerida —- entre escola como tecnologia de (outra) época ¢ a garotada de hoi — seria um sintoma sumamente eloquente desse desajuste historico que hoje vivemos. 25 O molde escolar e a maquinaria industrial iragrafos anteriores resumimos os principais motivos Nos pa simo sistema que le escolar, semeando suas ramificagdes por toda parte, tanto nas aram ao desenvolvimento do complexis metrdpoles mais pujantes do momento como nos confins da civilizagao. Por outro lado, para que esse novo e tio ambicioso artefato sociotecnico pudesse entrar em operagao, uma condi- gao basica era contar com sua matéria-prima indispensavel: certos tipos de corpos infantis. Em seu livro Vigiar e punir, isdo e Michel Foucault explica que, ao tomar por modelo a pr 0 Exército, a escola concebida pelas sociedades industriais teve de ser uma instituigao em que “cada corpo se constitui como pega de uma maquina”! Um projeto bastante temerdrio e nada modesto, até descomunal, mas em perfeita concordancia com a configuragao disciplinar dos estilos de vida e com a inabalavel ambigao do progresso cientifico-industrial. No en- tanto, como sabe qualquer um que tenha mantido contato ias dezenas delas, reuni- formi-las em com criangas — mais ainda com v das num mesmo recinto —, nao é facil trans pecas de um aparelho bem calibrado, nem agora nem nunca, provavelmente. Mais arduo ainda é conseguir a proeza de manter essa ordem todos os dias e sem falta, durante varias horas ao longo de tantos anos, pelo menos até que os peque- nos componentes desse mecanismo se convertam em adultos e passem a integrar outros aparatos. Por causa dessa dificuldade recorreu-se ao confinamento iplinar de importancia vital, nao s6 nos como um recurso di colégios, mas também nas diversas instituigdes que subsidia- ram a industrializagao do mundo. Sua chave consiste em en- 27 cerrar os individuos num espago delimitado por Paredes, gy, des e fechaduras, com o interior idealmente diagramado bs os fins especificos de cada instituigdo, em itervalos Tegular, de tempo, cujos limites ¢ pautas devem ser igualmente €Strites ais, Condigo.., com frequeéncia didria e¢ durante longos periodos da Vida cada sujeito. Nao se deve subestimar a importancia desse tre; namento corporal, tio metédico e a portas fechadas, visto que — como afirmara Kant em suas ligdes pedagogicas — a fun ¢a0 primordial da escola nao consistia Prioritariame Rotinas idénticas e progressivas se repetem em t. nte em instruir os alunos em determinados saberes ou conhecimentyy, praticos, mas em “habitua-los a permanecer tranquilos ¢ a observar pontualmente o que thes é ordenado”" 4 Primeira ¢ mais capital etapa do adestramento infantil deveria ser dedi- cada, portanto, a acostumar as criangas a ficar sentadas em seus lugares durante periodos regulares e previamente estabe lecidos, obedecendo as ordens dos superiores. Ou, como tra- duz o especialista brasileiro Alfredo Veiga Neto, “ensinar as criancas a ocupar melhor seu tempo e seu espago’, ou seja, “de forma ordeira, disciplinada” e “de uma forma comum ou pa- dronizada”. O primordial, portanto, era forcar essa adaptacio dos corpos infantis as definigoes radicalmente novas do tempo e do espaco que se enunciaram na modernidade, ja que “qual- quer um pode aprender as coisas relativas a cultura mais tarde. até mesmo fora da escola” !5 Mas conseguir que todas as criaturas humanas de curta idade aprendam a usar adequadamente o tempo e 0 espace nunca foi tarefa menor. £ Provavel que a faléncia desse projet: na atualidade, seja outro indicio da crise que afeta a escola Por um lado, Porque tal meta se tornou subitamente inviavel: Por outro lado, porque se alteraram tanto as definicoes &* Pavotemporais quanto os usos dessas entidades que se ons!” deram corretos ou €quivocados. E também porque os colégis 28 cerrar os individuos num espaco delimitado Por pared aredes, > Bra. fs i ) os fins especificos de cada instituigao, em intervalos x a egulares des e fechaduras, com o interior idealmente diagramad, gramadc de tempo, cujos limites ¢ pautas devem ser igualmente estrit, Rotinas idénticas € progressivas se repetem em tais condi te com frequéncia diaria ¢ durante longos periodos da vida cada sujeito, Nao se deve subestimar a importancia desse ir namento corporal, tio metédico e a portas fechadas, visto que — como afirmara Kant em suas ligdes pedagégicas — a fun- ¢40 primordial da escola nao consistia prioritariamente em instruir os alunos em determinados saberes ou conhecimentos praticos, mas em “habitua-los a permanecer tranquilos ¢ a observar pontualmente 0 que thes é ordenado’."' A primeira e mais capital etapa do adestramento infantil deveria ser dedi- cada, portanto, a acostumar as criangas a ficar sentadas em seus lugares durante periodos regulares ¢ previamente estabe- lecidos, obedecendo as ordens dos superiores. Ou, como tra- duz o especialista brasileiro Alfredo Veiga Neto, “ensinar as criangas a ocupar melhor seu tempo e seu espaco’, ou seja, “de forma ordeira, disciplinada” e “de uma forma comum ou pa- dronizada”. O primordial, portanto, era forgar essa adapta¢ao dos corpos infantis as definigdes radicalmente novas do tempo e do espago que se enunciaram na modernidade, ja que “qual- quer um pode aprender as coisas relativas a cultura mais tarde, até mesmo fora da escola”.'* Mas conseguir que todas as criaturas humanas d idade aprendam a usar adequadamente o tempo ¢ 0 espace nunca foi tarefa menor. £ provavel que a faléncia desse projeto. na atualidade, seja outro indicio da crise que afeta 4 escola. Por um lado, porque tal meta se tornou subitamente inviavel por outro lado, porque se alteraram tanto as definigoes sal Pacotemporais quanto 0s usos dessas entidades que se con” deram corretos ou equivocados. E também porque 0S colégio® je curta 28 er as instituigdes mais aptas a ensinar tais novi- m ser as ais ainda se encontram em plena mutacao e nao scitar toda sorte de confusées. No entanto, foi nao parece dades: as qui deixam de st assim que Fou nalmente Se dese! aprendizagem - Em set ' se laa partir dos arquivos e outros vestigios deixados pela hist6- ria, numa investigagao realizada na década de 1970, 0 filésofo francés relatou que em tais espacos fechados se exercia uma “combinagao cuidadosamente medida de forgas”, que exigia “um sistema preciso de comando” e na qual “todo o tempo de todos os alunos estava ocupado, ensinando ou aprendendo”.'® Sem diivida, tampouco naquela época foi simples implemen- tare manter em funcionamento tal aparato tecno-humano: toda uma plataforma teve de ser construida para sustenta-lo e justifica-lo, articulando uma multiplicidade de praticas e dis- cursos capazes de se infiltrar de modo capilar nos ambitos mais reconditos. Essa estrutura colossal foi montada com o objetivo de conseguir algo sumamente improvavel: transfor- mar a carne tenra das criancas num ingrediente adequado para alimentar as engrenagens vorazes da era industrial. Algo muito trabalhoso, unico na hist6ria da humanidade e sur- preendentemente recente para a nossa compreensao. Tal faganha nao 6 foi consumada com sucesso, como tam- bém se manteve de pé e bem alinhada durante um bom tem- Po, a ponto de ser imensamente dificil a mera tentativa de imaginar como seria um mundo sem escolas — mesmo sa- bendo-se que houve, sim, uma época nao téo remota em que tais instituices teriam sido impensaveis. Por isso vale a pena empreender aqui tal esforco de desnaturalizagdo de algo tio enraizado em nossa cultura, no intuito de compreender os Mee ae invengdo extremamente eficaz, que, no entanto, ameagada. Se, antes da clivagem modernizadora — cault descreveu os cubiculos em que tradicio- nvolvia o ensino primario: “uma maquina de u afa de reconstruir a trajetoria da esco- 29 tanto na cultura ocidental como em todas as demais escolas nao existiam. deveria haver bons motivos ee a Para essa incrivel omissao. Uma exphicacao ¢ muito simples. colégios porque eles nao eram necessdrios. Sua S40 erg cindivel uele » de sociedades ¢. Zon: prescindi ] naquele npo de soc edades €, Por conseguinte, nao faria sentido investir tanto empenho em cor custea-los. Em suma: nao havia necessidade de adest corpos pré-modernos para que fossem capazes de trabalhar em fabricas, por exemplo, sintonizande seus gestos ¢ ritmos com a frequéncia mecanica de linhas de montagem, cron metros € seus diversos automatismos. Tampouco era preciso instrui-los para que fossem cidadaos de bem, sensatos pas ou maes de familia e, quando fosse 0 caso, corajoses soldados capazes de sacrificar tudo pela patria. defendendo 2 sobera- nia nacional. Os brotes mais precoces dessas demandas mal comecaram a se disseminar, anunciando seu pronto Hloresci- mento, na segunda metade do seculo XVII. Nao e a toa que. precisamente nessa epoca, surgiram as primeiras * scolas de aprendizagem” nos paises europeus. Essa implementa¢ao foi lenta e titubeante em seus primor- dios, mas tambem nao admira que tenha se irradiado a partir dos povos protestantes do norte da Europa, como assinala 0 inglés Colin Hevwood em seu livro dedicado a historia da in- fancia. Todavia, o mesmo autor esclarece que a substituisse de trabalho pela educagdo escolar, como ocupayao principal das criancas, so viria a se consumar bem mais tarde, numa data que soa espantosamente recente para o olhar contemporine no final do século XIX ¢ inicio do XX." Mas entio, antes disse como se aprendiam as coisas? Em primeiro lugar, vale assina- lar que, entre as imensas transformagdes implicadas pela mo” dernizagao do mundo, mudou muito o que s€ considerava que convinha aprender: quem tinha de saber 0 qué, 3trave* © quais procedimentos ¢ com que objetivos. Por isso © que 30 9 MOLDE ESCOLAR EA MAUR 5 “educagao” funcionava de modos diferentes antes Se ao original dos modernos estabelecimentos de “ eae Na Idade Média € até nos preltidios da moder- reine 0s oficios eram diretamente r exemplo, oS divers 1 m oficinas, nas quais © aprendiz burilava sua peri- profissional ja versado na habilidade especifi- la. Nesses casos, sao do saber era da quando o discipulo recebia a anuéncia dade pertencentes 2 corporagao que con- se dessa maneira ensino co! nidade, po! cultivados ¢1 cia auxiliando o ca a ser adquitid: considerada conclui dos habitantes da ci m questao. Por outro lado, se reproduziam os saberes praticos no meio popular da vida medieval, era nos ambientes impolutos dos mosteiros que se transcrevia a sabedoria emanada dos livros sagrados e da pa- lavra divina, mediante a exegese biblica ¢ as narrativas prota- gonizadas por santos ou pecadores. De qualquer modo, tanto os “contetidos” de tais ensinamentos quanto os sujeitos en- s estavam muito longe do que viria a a transmi gregava 0 servigo el volvidos nesses rituai: ocorrer nos ambientes escolares que seriam instituidos varios séculos depois, e que hoje se encontram ao mesmo tempo naturalizados ¢ em crise. Nao houve s6 0 avango do método cientifico, como um instrumental cada vez mais hegemonico. Além disso, ¢ em es- treita relacio com esse movimento, a Reforma Protestante marcou uma ruptura importantissima nesse tecido, fertilizan- do o solo para que pudesse brotar 0 “espirito do capitalismo’, que ja lutava por germinar, ¢ junto com o qual surgiria algo até entao inédito e mesmo impensiavel: os sistemas nacionais de educagao. O projeto escolar foi um fruto singular da confluén- Mi protec" dante de pores de madeniae ne outro, as ideias esclarecidas oc si : a 7 Com a ressalva de certas copecifcidades, que, huunad meros detalhes, seria possivel dizer : ‘ de fe vas his. que essas duas forgas his- 31 toricas ansiavam por metas comparaveis: lavrar a alma d, wed’ seus fidis ou temperar o carater de seus cidadaas. Fm todo ca 80, ¢ para além das lutas muitas vezes sangrentas que acompant nha ram tais empenhos, a educagao formal se for lapidando con no uma ferramenta preciosa para consumar tais objectives Na “ ad 5 situam o “nascimento d. por acaso, 0s historiador a infancig justamente nesse interregno: folem algum momento Imprec) so entre os séculos XVI ¢ XVII, reforgando-se ao final deste ultimo, que comegou a se cristalizar a figura do filho capaz de se tornar aluno, a partir de um contexto previo em que crian gas e adultos se mesclavam de forma muito mais indiferencia da. Como relata Philippe Aries em suas pesquisas pioneiras cidade crescente do infantil cons- sobre 0 assunto, essa espec tituiu “uma das faces do grande movimento de moralizacio dos homens promovido pelos reformadores catdlicos ou pro- testantes ligados a Igreja, as leis ou ao E: stado”; tal dindmica, é claro, nao teria se concretizado “sem a cumplicidade senti- mental das familias”. Em suma: para que houvesse escola, tinha que haver crian- ¢as; por isso, diante da necessidade histérica de realizar o proje- , indus- to modernizador anunciado pelas revolugdes cient! triais e democraticas, foi preciso “inventar” as duas. A familia, é claro, foi um aliado iniludivel nessa aventura, e o proprio en- sino formal terminou de consumar tal operagao. Com efeito, mais de um século antes do pronunciamento kantiano, 0 tedlo- go e pedagogo moravio Jodo Amés Comenius, que viveu NO éculo XVII e costuma ser reconhecido como 0 “pai” da educa i escola a 7 iea ¢ra que a crianga aprendesse a distinguir entre seU pai 32 0 MOLDE ESCOLAR E A MAQUINARIA INDUSTRIAL lei: esse cédigo universal constituiu um eixo vital da moderni dade, dedicado a proibir as mesmas coisas a todos os cidadaos, de modo impessoal ~ algo que se devia assimilar na escola, uma vez delineada a fungao paterna no seio do lar. Sem duvida, trata-se de uma visdo pouco idealizada da institui¢gao familiar, ainda que os afetos em que ela foi macerada, gragas aos influxos romanticos que insuflaram o éthos burgués, também tenham contribuido para aumentar a eficacia desse aparato, Cabe acrescentar aqui um breve paréntese a respeito da universidade, um templo do saber que nunca necessitou da infancia para funcionar ¢ cuja estirpe, talvez por isso, precedeu amplamente a genealogia escolar, nado 56 no mundo ocidental mas também em virias culturas orientais, como a chinesa ea drabe. Na vertente curopeia, seus vinculos com os conventos e as catedrais sao evidentes até na arquitetura dos claustros mais tradicionais, por exemplo. Mesmo apos sua dispersao global e sua atualizagdo inevitivel, ecos cclesidsticos continuam a im- Pregnar 0 vocabuliria carregado de catedras, decanos, togas, pulpitos ¢ aulas magnas, assim como 0 clitismo sectario e os Pomposos rituais de formatura que ainda persistem em varios estabelecimentos espalhados pelo planeta, ainda que secu nome JA sugira a mutagao renascentista que converteu esses fausto- sos edificios em santuarios do saber universal. E claro que eles também se modernizaram quando foi preciso. Nesse processo, as universidades converteram-se em instituigdes disciplinares comparaveis as escolas. Atualmente, no capitulo mais recente dessa longa historia e com suas proprias especificidades, elas softem as turbuléncias desencadeadas pela mesma incerteza que afeta todas as demais organizagoes desse tipo. 3 Educar o soberano disciplinando os selvagens : caeeitiar te ora as escolas concebidas para ser diariamen' Voltemos ag " ; pupilos impuberes uniformiza frequentadas por centenas de dos: apesar da marca protestante que chancelou esse projet em suas origens, as sacudidelay provocadas pelo cisma crista” Ya Espanha, ambém se fizeram sentir nos paises catélicos. por exemplo, esse impulso foi seguido de modo exemplar pe los jestitas, cuja vocagao pedagdgica disseminou-se pelo con tinente europeu em pleno auge da Contra-Reforma; muito. especialmente, semeou suas sementes missiondrias nas co lonias latino-americanas, africanas ¢ asidticas. Nesse sentido — e isso talvez seja especialmente notério em nossos cost mes ibéricos —, a elite luminista secularizou as ferramentas educativas fundadas pelos reformadores religiosos, como ex- plicam os socidlogos espanhdis Julia Varela e Fernando Alva rez-Uria em seu livro intitulado Arqucologia da escola.” Na América colonial, as congregagoes eclesidsticas desem- penharam um papel de primeira ordem nos assuntos edu cacionais, papel que nao desapareceu de todo depois das in surreigdes nacionalistas. Nos territérios norte-americanos, conquistados a for¢a de massacres para “ampliar as fronteiras da civilizagdo”, por exemplo, os colonos anglo-saxdes funda mentaram suas tradigGes muito respeitiveis reproduzindo ce nas edificantes, dignas do seriado Os pioneiros, nas quais a Igreja ¢ a escola cram pouco mais que sindnimos. Baseado na saga autobiografica da verdadeira Laura Ingalls, escritora ¢ professora nascida no estado de Wisconsin em 1867, esse pro- grama televisivo dos anos 1970-1980 mostrou de que modo — com base na inquebrantavel e exemplar solidez do compro- 35 misso familiar —- essas duas influéncias se entrelagaram pat a ra assentar as bases do novo mundo. O século XIX j4 avangava velozmente nas agrestes ¢ longinquas paragens do Oeste dos Estados Unidos, mas ali a modernidade era austera: os Tigidos preceitos puritanos brotavam tanto da boca do pastor quanto dos labios da mestra, cujos sermoes eram pronunciados no mesmo templo rusticamente construido com o suor e as lagri- mas dos paroquianos. Enquanto isso, no sul do continente, a luta nao se valey apenas da eliminagao sumaria dos antigos povoadores; além disso, exigiu um recurso muito caro a tradic¢ao catolica: a ten- tativa de conversio mediante a evangelizacgao. E claro que esta nao contemplava apenas a salvagao espiritual dos indigenas, mas também os ensinamentos priticos que pudessem servir aos objetivos buscados pelas autoridades estrangeiras e, acima de tudo, 4 crenga numa lei abstrata, que s6 poderia ser minis- trada com fortes doses de disciplina. Retomando as ilustracdes provenientes da cultura audiovisual, caberia mencionar, neste so, o filme A missao, dirigido pelo britanico Roland Joffé em 1986, que mostra tanto as dificuldades como as ambiguidades e até mesmo as crueldades implicitas nesses processos, capazes de misturar as mais ferozes lutas pelo poder com justificativas piedosas e boas intengoes. A trama dessa obra se passa nas florestas do Cone Sul em meados do século XVIII, mas as ce- nas protagonizadas por sacerdotes jesuitas e guerreiros ligados a Coroa espanhola, em tenso contato com os indios guaranis, ¢ sao semelhantes as que ocorreram mais ao norte a partir do século XVI, entre missionarios de origem portuguesa e grupos tupinambas. A comparacao vem 4 tona a partir de um relato muito ilus- trativo dos mal-entendidos gerados nesse choque, extraido do Sermao do Espirito Santo, escrito em 1657 pelo padre Antonio Vieira e resgatado pelo antropélogo brasileiro Eduardo Vive 36 ros de Castro em seu ensaio intitulado O midrmore ¢ a murt: sobre a inconstincia da alma selvagem. O texto do sacerdor jesuita refere-se a dois tipos de esculturas: as feitay de ma more ¢ as confeccionadas com arbustos, como metitoras di duas classes bem distintas de naturezas humanas que, por isso respondem de modo diferente ay tentativas de domesticag as “A estatua de marmore custa muito a fazer, pela dureza ¢ rest téncia da materia; mas, depois de feita uma vez, nao & NEcessi: rio que Ihe ponham mais a mao: sempre conserva ¢ sustenta mesma figura’, explicava o religioso portugues cm pleno s¢ culo XVI. Em contrapartida, a escultura lavrada em vegetil pode ser modelada com menos esforgo, “pela facilidade cons que se dobram os ramos, mas é necessdrio andar sempre refor mando ¢ trabalhando nela, para que se conserve". Por isso, “s« deixa o jardineiro de [a] assistir, em quatro dias sai um rame que lhe atravessa os olhos, sai outro que Ihe descompoe a orelhas, saem dois que de cinco dedos the fazem sete, ¢ 0 que pouco antes era homem ja € uma confusao verde de murtas”, A alegoria comega a se deixar intuir: “Eis aqui a difereng.: que ha entre umas nagées ¢ outras na doutrina da fé”, conclut o clérigo. Em primeiro lugar esto aquelas “naturalmente du ras, tenazes ¢ constantes, as quais dificultosamente recebem 1 fé € deixam os erros de scus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a von tade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dao grand trabalho até se render; mas, uma vez rendidas, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes ¢ constantes, como estdtua de marmore: nao é necessario trabalhar mais com elas” Sabe mos a que tipo de povos se refere 0 missiondrio com ess. comparagao: aos que integravam o velho continente, dos quais provinham os impulsos modernizadores. “4 outras nagoes pelo contrario — e estas sao as do Brasil —, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade ¢ facilidade, sem 37 argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem Tesistir”, cong > Confirn, as de Murta, que ardinciro, logo perdem nova figura, ¢ tornam a bruteza antiga e natur. em seguida © padre Vieira. “Mas sao estate em levantando a mao € a tesoura 0 j am ab al, €a ser may, como dantes eram.” Em face dessa inconsisténcia constituti da alma selvagem, “¢ necessdrio que assista sempre a estas ¢ que vicejam ; olhos, para que ereiam o que ndo veem; outra vez, que Th tatuas o mestre delas: uma vez, que Thes corte o cerceie 0 que vicejam as orelhas, para que nado deem ouvids, as fabulas dos antepassados; outra vez, que thes decepe 0 qu: vicejam as Mos ¢ os pes, para que se abstenham das agé e costumes barbaros da gentilidade”. Somente desse modo “trabalhando sempre contra a natureza do tronco eo humor das raizes, se pode conservar nessas plantas rudes a forma nav natural, a compostura dos ramos”."' Para além do lirismo | tano e de toda a riqueza retorica desse sermao jesuita, nao dificil associar suas conclus6es as do tratado pedagégico mui to mais reto ¢ aspero emitido por Immanuel Kant, que, quase um século e meio depois, denunciou nessas criaturas nao Oci- dentais uma “certa barbarie” dificil de extirpar por meio da catequese disciplinar.*? Sob o olhar do século XXI, entretanto, esses “selvagens” que habitaram os territorios americanos antes da chegada dos eu ropeus talvez nao fossem nem ingenuamente bons, por nic terem sido corrompidos pela civilizagao, na linha de Jean-Jac ques Rousseau, nem naturalmente brutos, ainda que talver cultivaveis, segundo 0 raciocinio kantiano ou o jesuita. Talve’ fossem, simplesmente, diferentes. E, conforme se decida julga los, tao saudavelmente indisciplindveis quanto politicament¢ Tesistentes. Em todo caso, pelo que consta ¢ segundo o teste- munho dos que tentaram fazé-lo, ha um consenso que s¢ T° vela muito interessante para alimentar a perspectiva antrop?” logica deste ensaio: eles eram “exasperadamente dificeis de 38 converter”, come resume Viverros de Castro, A evangclisaao € taculos no abort a educagao em geral encontravam ot sul-americano, nao porque ele fosse “refratario € wntratayel’, mas porque, “ao contrario, avido de novas formas, mostrava -se entretanto incapaz de se deixar impresstonar indelevel eplivos, Mas impassivels de moldar ou mente por elas” Re “inconsistentes”, os indios constituiam uma maténia-prima incompativel com a maquinana escolar. “bram como sua ter ra, enganosamente fértl, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada brotava que nao fosse sufocado incontinents pelas ervas daninhas”, acrescenita 0 antropdluge com base fos testemunhos jesuiticos, Por tais motivos, “esse gentio sem fé, sem let € sem rei nao oferecia um solo psicoldgico € Institucio nal onde o Evangelho pudesse deitar raizes” Dir-se-ia que se 05 ensinamentos dirigidos a esses alunos, tante € com sua indoléncia tao daramente alheia a ica prote ao seu credo disciplinador, entravam-lhes alegremente por um ouvido, saiam de imediato, sem receio — € talvez sem deixar demasiadas marcas —, por qualquer outro lado. “A gente des- tas terras € a mais bruta, a Mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas ha no mundo”, queixava-se 0 esforcado clérigo portugues, execrando essa “deficiéncia da vontade” com uma perseveranga que hoje desperta certo sarcasmo.“ Segundo 0» missionarios, o proble- ma dos indios “nao residia no entendimento, alias gil © agu- do, mas nas outras duas poténcias da alma: a meménia € a vontade, fracas, remissas’, conclui Viveiros de Castro, confir- mando assim o fatidico desencaixe entre esses modos de ser € os métodos escolares que em vao tentavam cultivar neles.” Porém, muito longe desse tipo de interpreta,oes mais relats- vistas —~ ou até perspectivistas ~~ que caracterizam nosso presente multiculturalizado € pés-colonial, a oposicao bindria entre civilizagao ¢ barbarie marcou a cruzada modernizadora, 19 que nao por acaso se revelou particularmente violenta nas terras sul-americanas em que persistia essa Tesisténcia “selva. gem” a disciplina ocidental. Algo que, como ficou claro, nag poderia ser tolerado pelos impulsos que disseminaram o pro. gresso industrialista. Assim, avangando para o final do século XIX e inicio do XX, figuras como a de Domingo Faustino Sarmiento, na Ar- gentina no Chile, por exemplo, sao emblematicas dessa gesta, Uma luta na qual nao apenas se brandiram espadas e canhoes contra os “barbaros” — que, nesse caso, viviam muito perto de casa —, mas tambem se enalteceu a escola como um impor- tante bastido para alcangar a tao esquiva condigao civilizada, abretudo, nos resplandecentes Esta se inspirava na Europa e, Estados Unidos, gragas a sua “superioridade moral” de raiz protestante, com seu habito exigente das avaliacdes periddicas e seu culto da autossuperagao. Levando em conta essa densa linhagem que, a forga de sangue e letra, mesclava puritanismo e esclarecimento, nao admira que a escola primaria obrigatd- ria — que se instituiria no cerne do Ocidente no final do sécu- lo XIX, com suas correspondentes repercussdes de ultramar — tivesse como firme e nobre propésito o de educar e norma- lizar todos os cidadaos, ensinando-os a serem produtivos € obedientes. Aqui ressoam novamente as maximas da pedago- gia kantiana enunciada no final do século XVIII: disciplinar, adestrar, civilizar e moralizar. No fim das contas, esse aparato laico seria uma sofisticada derivacao de seu ancestral mais rstico, religioso e reformista, de raizes nada menos que puri- tanas. De modo que a historia da educacao formal esta unida a do projeto cientifico moderno, mas também “a grande refor- ma moral, inicialmente cristae a seguir leiga, que disciplinou a sociedade aburguesada do século XVII e sobretudo do XIX" segundo Philippe Ariés.* Em outras palavras, 0 processo tam- bem poderia ser descrito como uma tentativa humanista de 40 domar as tendéncias bestiats & embrutecedoras iat palptae nas profundezas da natureza humana, por entender q a trata de “animais influenciaveis” e que “é imperative; portan . proporcionar-lhes 0 tipo correto de influéncias como reams Peter Sloterdijk. Assim se consuma a transformacao oO mem num animal doméstico.” Eis ai uma rapida sintese da complexa genealogia escolar. Um exemplo dessa novidade surgida na aurora da era mo- derna — nesse caso, em territério francés — é a Escola Profis- sional de Desenho e Tapegaria dos Gobelinos, resgatada por Foucault em sua analise dedicada a esquadrinhar como e Por que se constituiram as redes desse tipo de poder que ele nomeou “disciplinar”. Organizada em Paris no inicio do sécu- lo XVII, embora ainda segundo os moldes da aprendizagem medieval, tratava-se de um estabelecimento dedicado a fabri- car luxuosos tapetes bordados e, nesse mesmo processo, qua- lificava artesaos especializados nessa técnica. Em 1737, porém, a institui¢ao sofreu uma reforma que seria sintomatica de sua €poca: implantou um regulamento que, sob o olhar contem- Poraneo, parece um ancestral das normas escolares oitocentis- tas. Esse documento estabelecia varias novidades: “todos os alunos sao inicialmente divididos Por faixa etaria’, por exem- plo, e a cada um desses grupos “é imposto certo tipo de tarefa”, segundo relata o fildsofo a partir do material de arquivo. “Esse trabalho deve ser realizado em Presenga ou de professores, ou de pessoas que o vigiam; e deve ser anotado, Sao anotados o comportamento, no.” Ademais, como também a assiduidade, 0 zelo do alu- todos esses registros eram conservados em ar- quivos, que se processavam em diversas tam como relatérios, se; ultrapassava o diretor d Planilhas e se transmi- ‘guindo uma ordem hierarquica que ‘4 institui¢do de ensino e chegava as la €poca. Assim, em torno das tarefas 7 — convertido, agora, em aluno —, a constituiu-se “essa rede de escrita que vai, por um lado, co, dificar todo 0 seu comportamento, em fungao de certo ny mero de anotagoes determinadas de antemao, depois esque matiza-lo e, por fim, transmiti-lo a um ponto de centralizagao que vai definir sua aptidao ou sua inaptidao”” Foi entao que a prova ou o exame, tais Como Os conhece- mos, fizeram sua aparigao, unindo-se a vigilancia hierarquica € 4 sangao normalizadora como os baluartes dessa forma pe- culiar de se exercer 0 poder sobre os corpos € as populagées humanas. A partir dai, a disciplina se fincaria tao visceralmen- te no Amago dos procedimentos educativos, que até hoje se confunde com seu substrato naturalizado. “E preciso vigiar as criangas com cuidado ¢ jamais deixa-las sozinhas em nenhum lugar, estejam elas sas ou doentes”, dizia o regulamento das escolas de Port-Royal, promulgado em 1721. Essa “vigilancia continua” devia ser exercida “com dogura e certa confianga, que faga a crianga pensar que ¢ amada, ¢ que os adultos s6 estao ao seu lado pelo prazer de sua companhia’, acrescen- tava; “isso faz com que elas amem essa vigilancia, em lugar de temé-la"” Inculcar esse gosto pela disciplina e a ordem nao foi tarefa simples, mas revelou-se fundamental para que todo o projeto pudesse se colocar em andamento. Essa grande trans- formacao, que afetou os processos de aprendizagem e come- cou a alterar suas bases naquele periodo histérico, est longe de ser um fato isolado: algo semelhante aconteceu com todos os demais ramos da atividade humana. Como é bem sabido, a irrupgdo dos tempos modernos significou um cataclismo de enorme envergadura na histéria ocidental e acabou fundando um estilo de vida sincronizado em escala planetaria. Milhoes de corpos se mobilizaram ao compasso dos ritmos urbanos € industriais, tutelados pelos vigorosos credos da ciéncia, 42 democracia e do capitalismo, rumo a uma meta entéo consi- derada indiscutivel: o progresso universal. 42 Esse tipo de formagdo historica, que comegou a se implan tara partir do Renascimento mas teve seu auge ao longo do século XIX e boa parte do XX, dedicou grandes doses de ener- gia 4 configuragdo de certas subjetividades, enquanto evitava cuidadosamente o surgimento de formas alternativas. A escola © empreendimento, em- foi um componente primordial de bora tenha sido apenas mais um entre os diversos moldes aos quais recorreu a sociedade industrial para formatar seus cida- iplinante, que constituiu um daos. Nessa imensa cruzada dis vetor central de nosso processo civilizador, a atividade que se desenvolvia nos colégios foi retorgada por um conjunto de “instituigdes de confinamento’, como as denominou Foucault: do lar familiar aos reformatorios, da fabrica aos quartéis, dos hospitais ou asilos a prisdo ¢ a universidade. Gragas a esse mi- nucioso ¢ persistente labor mancomunado de confinamentos sucessivos, foram-se gerando subjetividades afinadas com os Ppropositos da época: certos modos de ser e estar no mundo que se tornaram hegeménicos na era moderna por serem do- tados de determinadas habilidades e aptiddes, embora tam- bem estivessem lamentavelmente marcados Por certas incapa- cidades e caréncias, Segundo as palavras do p prio Foucault, nessa época e dessa maneira se construiram corpos “déceis e Uteis’, organismos humanos treinados para trabalhar na ca- deia produtiva e para se mover eficazmente nos reluzentes tragados urbanos da modernidade. Em outras palavras, sujei- tos equipados para funcionar com eficiéncia dentro do projeto histrico do capitalismo industrial. 43 Os incompativeis: outros tipos de corpos e subjetividades O quadro que acabamos de descrever, herdado de nosso» an tepassados imediatos, viu-se notavelmente transtornado nos Gltimos tempos, € a veneravel instituigdo escolar nao for a Unica vituma dessas turbuléncias. Varios autores tentaram car- tograhar 0 territorio que emergiu dessa crise, Cujas raizes Te- montam ao fim da Segunda Guerra Mundial € cujos coro- larios ainda se encontram em pleno processo de reordenagao, embora ele ja esteja adquirindo a consisténcia de um novo drama historico. Um desses pensadores é Gilles Deleuze, que recorreu a expressao “sociedades de controle” para designar 0 “novo monstro”, como ele mesmo o ironizou num breve e contundente ensaio publicado em 1990. Ja faz mais de duas décadas, portanto, que esse fildsofo detectou a implantagao gradativa de um regime de vida inovador, apoiado nas tecno- logias eletronicas e digitais: uma organizagao social baseada no capitalismo mais dinamico do fim do século XX e inicio do XX1, regido pelo excesso de produgao € pelo consumo exa- cerbado, pelo marketing e pela publicidade, pelos fluxos finan- ceiros em tempo real € pela interconexdo em redes globais de comunicagao. Outra caracteristica basilar desse novo Mapa é a entroniza- ao da empresa como uma instituigao-modelo, que impregna todas as demais ao contagia-las com seu “ ‘spirito empresarial”. Inclusive a escola, é claro, assim como os Corpos € as subjetiv dades que por ela circulam. Essa nova mutologia propaga um culto da performance ou do desempenho individual, que deve ser cada vez mais destacado e eficaz. O grau de éxito obtido Nessa Missdo j4 nao é avaliado mediante o antiquado instru- 45 mental que catalogava a normalidade e o desvio, Upico da |6. gica disciplinar; em vez disso, tal comportamento é Medido por critérios de custo-beneticio e outros parametros exclusiva. mente mercadologicos, que enfatizam a capacidade de diferen- ciagao de cada individuo na concorréncia com os demais, As- sim se dissemina uma ideologia da autossuperagao e uma busca pela clevagao do rendimento que vai além das capacida- des de cada sujeito e até dos limites biolégicos da espécie, quando se procura alcangar estados pds-normais ou sentir-se “mais do que bem” com a ajuda de produtos quimicos ¢ trei- namentos especificos. Esses estimulos avivam a aspiracao a efetuar atualizacdes constantes em todos os planos, inclusive o educativo. Tais atualizacdes devem ser articuladas gracas a um bom gerenciamento de si mesmo sob moldes empresariais. Essa corrida, por sua vez, é constantemente acelerada e ins- tigada por uma alianga tacita entre trés vetores fundamentais da contemporaneidade: meios de comunicagao, tecnociéncias e mercado. Tudo isso implica a necessidade de desenvolver certas com- Petencias que a escola tradicional nao s6 parece incapaz de inculcar, como seria até contraproducente nesse sentido: po- deria aniquila-las, abortando em seus alunos a incubagao dessas habilidades tao valorizadas na atualidade. E 0 que sus- tentam muitos discursos relacionados com o “empreendedo- rismo” neoliberal, presentes também no ambito das reformas pedagégicas em curso, quando destacam a importancia da distingao individual e as vantagens da singularizagao do indi- viduo como uma marca, explorando a propria criatividade Para poder ser sempre 0 primeiro e ganhar dos outros. Essas Propostas aderidas aos novos credos sao as mesmas que assi- nalam, de modo explicito, que a educagao formal poderia de- vastar tais aptiddes, cortando pela raiz as potencialidades das criangas de hoje, principalmente quando se considera a Voc 46 cao uniformizadora, homogeneizadora € normalizadora que costumava guiar por principio a instituigao escolar. Porem, antes de serem deflagradas essas mutagoes no am- biente moderno do ultimo par de séculos, cabe frisar que as primeiras e mais fundamentais modelagens corporais e subje- tivas eram efetuadas na privacidade domestica: no seio do lar, essa doce instituigao de confinamento habitada pela familia nuclear de inspiragdo burguesa. E tambem nas salas, nos patios: e nos corredores do colegio. Os resultados desse trabalho, que era tanto disciplinador como introspectivo, foram conceituali- zados de diversas formas pelos estudiosos das mudangas hist6- Ticas que torneiam as subjetividades. § urgiram denominagdes como homo psychologicus, homo privatus ou personalidades introdirigidas, que aludem a “interiorizagdo” caracteristica de certa manifestagao hegemonica do sujeito moderno. Esses r6- tulos se referem a um elenco de “modos de ser” que estariam ficando antiquados porque, neste século XXI que ainda esta comegando — embora avance a uma velocidade assustadora — do outros os corpos ¢ as subjetividades que se tornaram Necessarios. Por isso, agora e em toda parte, nao surpreende que reverberem outros tipos de sujeitos: novos modos de ser e estar no mundo que emergem e se desenvolvem tespondendo as exigéncias da contemporaneidade, ao mesmo tempo que contribuem para gerar e reforcar tais caracteristicas. Talvez seja nesse sentido que tais configura¢6es mais atuais seriam “doceis e uteis” a sua maneira e no Novo contexto, bora ainda seja Preciso indagar como se encarnam essa d. dade e essa utilidade no tempo presente, e em que medi sas tendéncias poderiam (ou mereceriam) ser recebida: Tesisténcia. Perguntas que também nao admitem res faceis, sobretudo Porque se trata de mudaneas muito r que ocorrem num cenario extremamente instavel, coi camentos constantes e um bom numero de contradic. em- locili- ida es- s com Postas ecentes m deslo- ‘Oes. Ain- 47 da assim, algumas caracteristicas das configuracées Corporais € subjetivas atualmente mais valorizadas )4 estao a vista Vale a pena refletir sobre esses tragos. Em vez de propagar a silencig sa introspecgao € o retrasmento nas profundesas do Psiquisme individual, por exemplo, com a ajuda de ferramentas como g leitura € a escrita — gestos que eram tao habituais em tempos nao muito distantes € que a escola se Ocupava de inculcar — nossa época convoca as personalidades a se exibir em telas cada vez mais onipresentes € interconectadas. Por outro lado, em vez de cinzelarem nos musculos a rigidez das cadéncias ¢ dos ritmos da maquinaria industrial, sob 0 peso gigantesco do valor-trabalho € os austeros repertérios da “ética protestante”, 08 novos ritos trabalhistas requerem outras habilidades e dis- Posigdes corporais ou subjetivas, ao mesmo tempo que des- prezam certas capacidades ou aptidoes antes valorizadas, mas que sao consideradas cada vez menos Uteis. Como fruto das varias lutas € disputas travadas ao longo do século XX, que dinamitaram certas asperezas dos codigos dis- Ciplinares € conquistaram a fusao entre trabalho e cio, por exemplo, hoje se estimulam a criatividade eo Prazer, inclusive Nos ambientes laborais. E, é claro, também nos outrora cir- cunspectos territorios escolares. Nessa mesma linha, 0 circuito Produtivo contemporaneo busca caracteristicas antes comba- tidas, como a originalidade ass ciada a certa espontaneidade inventiva, além da capacidade de mudar com rapidez, rec clando o que se é em veloz sintonia com as tendéncias globais. Tambem se valorizam a livre iniciativa, a motivacao, o perfil empreendedor e a vocagao proativa, como atitudes capazes de mover os mercados e gerar beneficios. Sem esquecer, por ou- tro lado, que tudo isso se dé numa cultura que enaltece a bus- ca da celebridade e 0 Sucesso imediato, combinando ness¢ Projeto a realizacao pessoal ea Satisfacao instantanea, exaltan- do valores como a autoestima, a aparéncia juvenil e 0 go2 constante. Em suma: bem-estar corporal, emocional, profis- sional e atetivo, derivados de un ideal de teheidade ou de reas lizayao pessoal que atravessa todos os dmbitos ¢ ja nao parece encontrar obstaculos nem diques capazes de inibi-lo. Por isso inscrevem-se Nessa progenie as qualidades e habi- Nidades mais bem cotadas no mercado de valores da atualida- de, assim come a capacidade individual de admunistra-las com desenvoltura e renova-las sem parar, proyetando-as na propria imagem, como acontece com qualquer outra marca em luta por veneer nos comercios altamente competitivos — e tao Assim, numa sociedade fortemen- Instaveis — das reputagd te midiatizada, tascinada pela incitagao a visibilidade e instada a adotar com rapidez os mais surpreendentes avangos tecno- ClenUficas, eM Meio aos vertiginosos processos de globaliza- ao de todos os mercados, entra em colapso a subjetividade interiorizada que habitava o espirito do “homem-maquina’, isto ¢, aquele modo de ser trabalhosamente conhgurado nas salas de aula e nos lares durante os dois séculos anteriores. Aos Poucos, ainda que numa velocidade que pode impedir a com- Preensdo dos sentidos dos processos, ao thes escamotear a densidade da experiéneia, desmorona-se toda a arquitetura Psicotisica que sustentava aquele Protagonista dos velhos tem- Pos modernos. Saem de cena, assim, um tipo de corpo e um modelo de subjetividade cujo cenario privilegiado transcorria em fabricas e colégios, e cujo instrumental mais valorizado era a palavra impressa em letras de forma.” Agora, esse eixo “interior” que constituia o n6 dos sujeitos Oitocentistas ¢ se con: lerava hospedado nas profundezas de cada um — e que, por isso, devia ser moldado e nutrido tanto pelas moralizacées familiares quanto pela aprendizagem esco- lar, sem descuidar tambem dos entrentamentos cotidianos contra ambos os tipos de modelagens — transfere-se para outtas zonas da condigao humana, ao mesmo tempo alimen- 49 tando e respondendo as insistentes demandas de Novos Mo de autoconstrugao. Em vez de uma vivéncia “naread, dos , : pel forte presenga normativa de uma interioridade confitus la ‘ada’, como afirma o psicanalista brasileiro Benilton Bezerra, deli. neia-se “uma subjetividade exteriormente centrada, avessa a experiéncia de conflito interno, esvaziada em sua dimensag privada idiossincratica e mergulhada numa cultura cientificis- ta que privilegia a neuroquimica do cérebro, em detrimento de crengas, desejos e afetos”."! Assim, junto com os deslum- brantes espagos ¢ utensilios que a contemporaneidade deu a luz, proliferam outras formas de construir a propria subjetivi- dade e também novas manciras de nos relacionarmos com os outros e de agirmos no mundo. Buscando entender os sentidos desses fendmenos, alguns autores referem-se a sociabilidade /fquida ou a cultura somd- tica de nosso tempo, que fariam surgir um tipo de ew mais epidérmico e ductil, capaz de se exibir na superficie da pele e das telas, edificando sua subjetividade nessa exposi¢ao intera- tiva, Alude-se também as personalidades alterdirigidas e nao mais introdirigidas, construgdes de si mesmo orientadas para o olhar alheio ou “exteriorizadas” em sua projegao visual.” Por outro lado, mas seguindo as mesmas pistas, anali diversas bioidentidades que proliferam hoje, como desdobra- mentos de um tipo de subjetividade que se escora nos tracos biologicos — genéticos ou cerebrais, por exemplo, inclusive hormonais — ou no aspecto fisico de cada individuo. Essas novidades estariam substituindo 0 habito j4 meio vetusto de tecer secretamente a propria identidade em torno daquele nucleo etéreo que se considerava tao interior quanto essencial € que, precisamente por isso, nao s6 era “invisivel aos olhos” € Mais verdadeiro que as vas aparéncias, mas também se apre- sentava como refratdrio a decodificagao técnica porque estava — € sempre estaria — cheio de mistérios. am-se as 50 Fica claro que 0s dispositivos eletronicos com que convi Fic mos € que usamos para realizar as Mais diversas taretas, vere com crescente familiaridade € proveito, desempenham um papel vit diano nao s6 provocam velozes adaptagoes Corporals € subye al nessa metamorfose. Esses artefatos de uso cot tivas a05 NOVOS rtmos € experiencias, permitindo responder com a maior agilidade possivel a necessidade de reciclagem constante e de alto desempenho, como também eles mesmos acabam por se multiplicar € se popularizar em virtude de tais mudangas nos estilos de vida. De tato, muitos us0s da parafer- nalia informatica e das telecomunicacoes, assim Como OCOrre com 05 frutos da mais recente investigacao biomédica ¢ farma- col6gica, constituem estratégias que Os sujcitos contempora- neos poem em jogo para se manter a altura das novas coagoes socioculturais, gerando maneiras inéditas de ser € estar no mundo. Por motivos obvios, os jovens abracam essas novidades € se envolvem com elas de maneira mais visceral e naturalizada, embora de modo algum se trate de uma exclusividade das ge- races mais novas. Todavia, surge aqui um choque digno de nota: justamente essas criancas e adolescentes, que nasceram ou cresceram no novo ambiente, tém de se submeter todos os dias ao contato mais ou menos violento com os envelhecidos rigores escolares, Tais rigores alimentam as engrenagens oxi- dadas dessa instituicao de confinamento fundada ha varios séculos e que, mais ou menos fiel a suas tradig6es, continua a funcionar com o instrumental analdgico do giz e do quadro- -negro, dos regulamentos e boletins, dos hordrios fixos e das carteiras alinhadas, dos uniformes, da prova escrita ¢ da ligao oral. Como diz uma frase que j4 se converteu em cliché quan- do se trata desse assunto, atribuida ao especialista em inteli- gencia artificial Seymour Papert: “Imaginemos que, um século atras, houvéssemos congelado um cirurgiao e um professor, e $1 agora os devolvéssemos de novo a vida; 0 cirurgiio entraria na sala de operages e ndo reconheceria nem o lugar nem 8 ob. jetos, e se sentiria totalmente impossibilitado de gir; em con. trapartida, o professor reconheceria 0 espago como uma sala de aula ¢ ainda encontraria um pedago de giz e um quadro- -negro com os quais poderia comegar a lecionar.” Apoiado na premissa aparentemente antiquada do Pro- gresso, 0 relato que acabamos de citar parece autoexplicativo em sua valorizacao negativa daquilo que teria permanecido imutavel num mundo que se move aceleradamente; no entan- to, talvez valha a pena questionar nao s6 o que essa frase afir- ma explicitamente, mas também certas suposi¢6es nao discu- tidas que se ocultam em suas entrelinhas. Para comecar, entao, se a atmosfera em que estamos imersos mudou tanto, caberia retomar aqui a pergunta central: para que precisamos de esco- las agora? Ou melhor, 0 que gostariamos que esse artetato fi- zesse com os corpos e as subjetividades que todos os dias tran- sitam por seus dominios, cada vez mais cheios de grades ¢ tentativas de controle? Em sua analise sobre a crise das socie- dades disciplinares e a veloz implantagao de um novo estilo de vida, Gilles Deleuze foi radical: “Essas instituigdes estao con- denadas”, diagnosticou o filésofo ha duas décadas. “Os minis- tros competentes nao param de anunciar reformas suposta- mente necessarias”, explicou, aludindo a escola ou ao hospital, ao Exército ou ao presidio. No entanto, o autor entendia que nao ha conserto possivel para esses inventos vetustos porque seu ciclo vital terminou. Essas instituicdes perderam seu se0- tido histérico, “Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupat 3s Pessoas, até a instalacdo das novas forgas que se anunciam> sentenciou Deleuze em 1990. Caso concordemos com tal veredicto, caberia desconfiat™ Mos de que a escola sofre de modo particularmente intens? @ angustia implicita de aguardar seu proprio atestado de obi $2 to, enquanto as “novas forcas” se apinham do lado ea omic ameagam desharata-la. Pois a instituigao escolar se nustentava — ha menos tempo do que parece — apoiada numa série ae valores que eram considerados indispensaveis para assegurar sua estrutura, € esses cimentos morais deviam conservar certa solidez para permitir 0 bom funcionamento de tao fabulosa maquinaria ortopédica. O respeito pela hierarquia ¢ 0 reco- nhecimento da autoridade de professores, diretores e supervi- sores, por exemplo, era um desses pilares dos quais nao se podia prescindir. Além disso, exigia-se uma valorizacao posi- tiva do esforgo e da dedicacao concentrada, com metas a longo prazo, assim como da obediéncia e do compromisso indivi- dual no cumprimento de rotinas fixadas com antecedéncia, segundo rigorosos enquadramentos espacotemporais que de- viam ser meticulosamente acatados — toda uma série de ceri- monias, enfim, realizadas com uma constancia compassada e perseverante, que poderiam ser resumidas destacando-se o enaltecimento do trabalho como um valor que constituia a pedra fundamental do “espirito do capitalismo”, a0 menos em sua configuracao classica, imbuido da “ética protestante”. Por todos esses motivos, a tenacidade disciplinar inscrita nos regulamentos da época aurea do sistema escolar — cujo detalhismo hoje pode nos parecer um tanto disparatado — internalizava-se, em tempos nao muito distantes, nas profun- dezas da alma, nao apenas a dos estudantes mas também a dos Pais € professores. “A alma, efeito e instrumento de uma ana- tomia politica; a alma, prisao do corpo’, assim o resumiu Fou- cault num célebre jogo de palavras, depois de refletir longa- mente sobre a situacdo.™ Isso significa que as normas eram respeitadas Porque se acreditava serem corretas: Prescreviam © que era certo ou errado em fungao de um consenso clara- mente institufdo e enraizado num solo considerado sélido. Esse acordo, amplamente compartilhado, via-se iluminado 33 pelo brilho de certa “moral laica’, de cujos Propésitos uy : Sitos uM er, ode “lihertar as consciéncias da tutela das religides yn + Como explicam os autores do esclarecedor compéndio de Manuai " IS la.’ Um credo seculariza. escolares intitulado A moral na ¢ do, certamente, mas que conservou seu poder de “aprisionar” os corpos modernos, mesmo apds a libertagao da profunda reveréncia pelo divino e do pavor do demoniaco que, em ou- tros tempos, assombraram as almas pecadoras. Ressoam aqui os parentescos antes assinalados entre a magna instituicao es- colar — de estirpe esclarecida, nacional e estatal, moderna e laica — e 0s ancestrais religiosos dessa pratica sociocultural de origem protestante, que foi depurada por jesuitas e dominica- nos, assim como pelos severos jansenistas e outras congrega- des ou ordens conventuais igualmente “disciplinadas”. Nao surpreende, nesse contexto, que fosse tao ténue a diferenca entre um pecado e uma desobediéncia a lei, como mostram certas cenas escolares de filmes ambientados nos séculos an- teriores, desde Jane Eyre (de Cary Fukunaga, 2011) até Oito e meio (de Federico Fellini, 1963). As regras desses regulamentos eram cumpridas porque sé acreditava firmemente que assim devia ser, sem maiores rebel- dias nem impertinéncias, nado so porque se estava sob estrita vigilancia e porque seu descumprimento acarretaria castigos mais ou menos penosos, mas também porque era assim que 4 maquina funcionava, e assim devia ser. Dai o poderoso efeito moralizador das adverténcias e suspensdes, assim como de todo o conjunto de sangées promulgadas pelos codigos ¢ esta- tutos da excelsa instituicdo escolar. Dai também sua eficacia funcional para consumar tao extraordindria missao. “Colocat 0s corpos num pequeno mundo de sinais, a cada um dos quis esta ligada uma resposta obrigatéria e s6 uma’, explicav? Fou- cault ao radiogratar 0 aparato escolar como uma “técnica de treinamento que exclui despoticamente [...] 0 menor murmi- 54 rio”, na qual a “obediéncia € pronta e cega”, pois “alaparéncia de indocilidade, 0 menor atraso, seria um crime™.” Se essa descrigao soa tao distante dos usos e costumes dos colegios contemporaneos, isso se deve principalmente a que 0 mundo mudou muito desde a época em que essa entidade foi idealiza- da e posta em funcionamento, em virtude de sua utilidade para perpetrar as metas politicas, economicas € socioculturals que — segundo se supunha — nos guiariam rumo a evolugao da humanidade. Afinal, a educagdo primaria tinha por missdo “a melhora moral, intelectual e fisica” das populagdes nacionais, segun- do a célebre postura do mencionado Domingo Faustino Sar- miento na passagem do século XIX para 0 XX. Ao enunciar seus principios pedagégicos, quase cem anos antes, Kant tam- bem havia destacado que “é preciso cuidar da moralizagao’, de modo que nao bastava aprender a ser habil para todos os fins: mais que isso, e talvez sobretudo, o aluno adquiriria “um cri- tério conforme o qual [escolheria] somente os bons objeti- vos”. A escola devia enraizar nos espiritos infantis os parame- tros necessarios para sempre avaliar o correto e 0 incorreto, assimilando as normas que regem os comportamentos, assim como a ideia de que ha um lugar e um momento adequados Para cada tipo de acao. Ao aprender o que é certo e o que é errado, os jovens seriam “capazes de se conscientizar de suas Proprias acées e de seu proprio lugar no mundo”, conforme explica Alfredo Veiga Neto, para concluir que assim se espera- va que, mais tarde, na idade adulta, cada individuo fosse capaz de julgar os prdprios atos e os alheios, “de modo que cada um Se autogoverne, isto é, passe a ser juiz de si mesmo”.* Tudo isso sugere, por outro lado, que os Padrées morais eram menos frouxos nesée contexto que ja se vai distanciando: se na socie- dade disciplinar estava tao claro o que era correto ou nao, por isso mesmo era bem mais facil ensind-lo e castigar seus des- 55 M108. Mas isso nado signitica que naquela Epoca todos possuiy sem uma moralidade inata ou certa hbra de canter que hoje escassela: tats codigos cram considerados Wo Untversals © ay dubitaveis porque eram absor vidos desde muito cedo no con diano famthar ¢ escolar Para alem do jogo de toryas ¢ dispulas sempre atuantes, especialmente na intensa era moderna, acreditava-se que che Rar a esse Consenso seria UMA virtude das mats civilizadas, “Uma sociedade em que cada um € capaz de constranger seus Impetos naturais de dentro para fora, em que cada um € capaz de pensar, avaliar ¢ censurar previa mente suas ayes, de modo a direciona-las positiva, produtiva ¢ disciplinadamente”, de. veria ser “uma sociedade mais segura, mais humana, mats ci- vilizada e mais feliz”, resume Veiga Neto. E claro que havia brechas nessas convicgdes, sobretudo a partir do momento em que a sobria ractonalidade ocidental se viu sugada pelo buraco negro do romantismo, abrindo os portoes para um lado irra- cional e inconsciente que seria constitutive de cada sujeito moderno. No entanto, ainda assim partia-se de um terreno supostamente firme, constituido pelo que se considerava nor mal ¢ pela grave falha que imphicaria nao conseguir alcanga-lo. “Ainda que cada adulto assim disciplinado conserve em si uma Parte a ser julgada’, continua Veiga Neto, “cada um sera capaz de olhar para si mesmo a partir de uma parte ja ndo mais selvagem, ja na maioridade ou, se quisermos, ja civilizada”. Esse tipo tao peculiar de sujeito, que julga a si mesmo ¢ se autogoverna, apesar de se saber habitado por uma inteniorida- de abissal, pensava em si como uma espécie de duplo; “ndo dissociado, mas retlexivo e em tensao permanente consizo mesmo’. Essa criatura foi esmiugada pelo sociologo Richard Sennett em seu livro O declinio do homem publica: se 0 sécu- lo XVIII se viu marcado por um individualismo de cunho ra- cional ¢ universal, sob o ideal de igualdade que irmanava (90 56 digna especie, o século XIX ansiou pela singubaridade inelivi dual e tentou construt la no espago privade da intimidade, enquanto no Ambito public imperavand oy TOTES MMpEsoaty da norma.” Nao toi a toa qu ¢ Lipo de individu acabou inve ntando: a psicanalise para se converter no objeto dessa terapta: [aly se de uma personalidade que sotria por ter que reprimin seus desejos proibidos em nome da lei vigente na sociedade, repre sentada pela figura autoritaria do pai, do protessor, do Estado, Por isso era necessario aprender a dobrar essa “parte maldita” das paixdes descontroladas gragas aos poderes moralizadores. da culpa organizados em torno do superego, ainda que em seu aAmago continuassem a pulsar os tesouros contlitivos ¢ eng, miaticos de cada interioridade. Esse tipo de sujeito, editicado ao longo do século XIX e durante boa parte do XX, ¢ sem du vida bem diterente daquele que constitu o foco das biocién cias mais recentes, ou Mesmo das tecnologias de comuNiCayaod e informagao que cintilam neste novo milénio. De alyum modo, enquanto se destazem das dores ¢ delicias dessa confi guragao “interiorizada’, tanto as subjetividades como os cor- Pos contemporaneos se tornam transparentes, decodificaveis e talvez até mesmo reprogramaveis. Nessa metamorfose, nado so se enfraquece a oposigdo entre espagos puiblicos ¢ privados como também perde forga a ideia de que valeria a pena repri- mir os préprios desejos em nome de algum valor transcen- dental. “A busca da felicidade individual assume um novo sig- nificado no periodo pos-guerra’, explica o fildsofo canadense Charles Taylor, em fungao de uma gradativa “erosao das limi- tagdes impostas a realizagao individual”. Esse tecido de crengas que escora a atual “era da autenticidade”, segundo a deno- mina¢ao do mesmo autor, supde que cada um “possui sua prépria maneira de realizar nossa humanidade, ¢ que é impor- tante encontrar-se a si proprio e viver a partir de si mesmo, em 57 contraposigao a render-nos ao conformismo Perante delo imposto”*! um mo. Assim, como fruto das transformagoes consum; . ‘ das na se gunda metade do século XX, ter-se-ia desvanecido a ideia de que se deve sacrificar a satisfacao pessoal em nome de alg 0 mais elevado e incontestavel. Até porque os valores desse tipo chados pelos questionamentos das ultimas décadas. Nao se trata de que ja nao se aposte na familia ou no trabalho, teriam perdido sua consisténcia, igualmente ra Por exemplo, oy mesmo na patria € até na religiao; porém, todas essas instan- Clas se converteram em op¢oes individuai — nao necessaria- mente dadas a priori, mas adaptaveis e definiveis ao gosto de cada um —, em vez de constituirem certezas estabelecidas com validade universal, de cunho obrigatério Para todos sob © peso da norma. Algo semelhante, talvez, se poderia dizer a respeito da escola? De fato, a uniformizacao do ensino formal em seu molde tradicional comega a ser questionada, mesmo que seja em busca de Positivos mais “eficazes” para aqueles que tem a possibilidade de escolher — e, é claro, o privilé- gio de poder Pagar pelo acesso a tal vantagem diferencial —, dando abertura a experimentacao de alternativas que teriam sido impensaveis algum tempo atras. Em fungao de todas essas redefini¢6es, num mundo satu- tado de opcées e estimulos dos Mais diversos tipos, certo S0- frimento por excesso de dispersao caracterizaria as experién- Cias contemporaneas, de um modo mais agudo que a classica Tepressao oitocentista diante do rigor coibitivo da lei. Por isso Paralelamente a manifesta adesdo aos ritmos atuais, nao € raro que se procure usar estratégias tendentes a deter um pouce esse fluxo inesgotavel, tentando capturar 0 que acontece pat converté-lo em experiéncia ou até mesmo em pensament- De um modo comparavel, 0 modelo subjetivo descrito rapr damente como tipico dos séculos XIK e XX tendia a sofrer co 58 a opressao de sua liberdade, por estar encerrado ou aprisio- nado — inclusive dentro da sala de aula — e, por esse motivo, procurava se libertar, rompendo muros ou pulando cercas. Ja nao parece ser isso 0 que acontece nas escolas atuals, por exemplo. Ou, pelo menos, essa angustia do confinamento ea urgencia em dinamita-lo nao se impoem como os problemas mais pungentes que assolam os que as habitam, tendo sido substituidos por outras duvidas e controvérsias. Embora nao convenha exagerar nem esquematizar as rup- turas histéricas, e apesar das evidentes continuidades que ainda nos atam ao horizonte arduamente tecido durante a modernidade, nao é dificil constatar até que ponto as coisas mudaram. A prescri¢ao regular de castigos fisicos nas rotinas estudantis e a severidade contra a pratica da masturbacao nos internatos, por exemplo, foram completamente abandona- das, ja ha varias décadas, e seriam inclusive penalizadas como graves abusos de autoridade se ocorressem atualmente. A sen- sibilidade contemporanea costuma rechacar com repulsa a visdo de cenas habituais em filmes que retratam o universo escolar da primeira metade do século XX, como Zero de con- duta (de Jean Vigo, 1933), A sociedade dos poctas mortos (de Peter Weir, 1989), ou mesmo Cinemia Paradiso (de Giuseppe Tornatore, 1988), nos quais os alunos sio duramente agoita- dos por seus professores e diretores por terem cometido pe- quenas infracdes que hoje nem sequer seriam registradas, ou que poderiam até vir a ser promovidas pela propria institui- ao. Essas diferencas de época na apreciacao de tais atos sao indicios — pontuais, embora bastante contundentes — das mudangas aqui estudadas. “A crianga, sem duvida, ainda nado tem nenhum conceito do moral”, afirmava Kant em 1803. Por isso 0 fildsofo reco- mendava nao ceder a seus desejos e, em vez disso, prescrever- -lhe “muitas coisas como um dever” Para assim temperar seu 59 orerers: espirito € acostuma-la a obediencia, Dese modo se ex * Waria estragar a criatura, pots “se ela € acostumada a ver Fealizad, © dos, Para que. brar sua vontade’, e “e preciso empregar Sastigos muito duros todos os seus Caprichos, depois sera tarde demais para corrigir o que for corrompido” Essa importante lareta estava nas Maos da escola, mas, antes, devia ser inculeada pela familia: as criangas “tambem sdo muito prejudicadas a0 se acudir a elas quando gritam, cantando-lhes alguma coisa, por exemplo, como tém o costume de tazer as amas’, esclarecera 0 fildsofo, acrescentando que “essa é, habitualmente, a Primei- ra perversao da crianga, pois, a0 ver que tudo atende a seus gritos, repete-os com mais frequéncia Ao contrario, porem, “deixando-as gritar, elas mesmas se cansam; todavia, quando se satistazem todos os seus caprichos na primeira infancia u Coragao e seus costumes se pervertem’. Nao se devia ceder, portanto, a “vontade despotica das criangas”, pois “é muito dificil reparar esse mal, e dificilmente se chega a consegui-lo”, No entanto, quando se consegue restringir essas tendéncias desde 0 inicio, concede-se aos futuros adultos algo inesti- mavel: “Depois, isso Ihes é da maior utilidade em toda a sua vida, pois s6 0 dever, nao a inclinagao, pode conduzir-nos nas imposig6es publicas, nos trabalhos do oficio e em muitos ou- tros casos.” Ante essas pinceladas de moral oitocentista em termos educativos, parece evidente que sao outros os valores reveren- ciados ao despontar o século XX1, globalizado e multicultural, tanto dentro como fora das paredes escolares. Por conseguin- te, nado pode nos surpreender que o edificio inteiro ameace desmoronar — como Sugere, a propésito, a problematica Te tratada no filme Entre os muros da escola, dirigido em 2008 por Laurent Cantet, cujo espirito esta sintetizado na epigrate qve encabega este livro. A subjetividade da crianga atual “violent © dispositive pedagégico”, segundo afirma jé no titulo um dos 60 artigos escritos pela semidloga argentina Cristina Corea no ) 2000." Talvez nos encentremos diante de uma situacao am os missionarios que tentavam ano comparavel a que enfrentar a duras penas “civilizar” os “selvagens” habitantes das colénias ultramarinas: por incompatibilidades socioculturais muito diferentes, mas talvez igualmente dificeis de driblar, o alunato atual também ¢ refratdrio as tecnologias pedagogicas que pre- tendem inculcar-Ihe sua antiquada catequese. Assim é que volta a tona, neste ponto, a questao que constitui 0 eixo deste ensaio: uma vez carcomidas suas bases pela reacomodagao — ¢ pela crescente fluidez — dos solos que sustentam 0 presente, como se pode pretender que a enferrujada estrutura escolar se mantenha de pé e continue a funcionar? 61 NOTAS, Bs, Historns x i philippe Avies. Historne sonal da erie eda farnil goo de fanerro: LICGEN # fartilia, trad, Dora Flaksman, OUP 10 > Immanuel Kant, * ag | Sobre a pe nore pedagoyna Buenos Aires: £ agoyin trad. Bra mem » ed. rev. 1999 ibid. p Se 18 ied. p. 18 19. ibd. p.5e 8. thd. P. Ibid. p. 6. ignacio Lewkowiez, “Escuela ¥ cidadamia’. In: Cristina Corea ¢ Ignacio Lewkowicz, Pedagogia del aburrido: escelas destruidas, Jamilias perpleias Buenos Aires: Paidos, 2010, p. 21 Alfredo Veiga Neto, “Pensar a escola como uma instituigdo que pelo menos garanta a manutengao das conquistas fundamentais da modernidade (En- revista)”, In: Marisa Vorraber Costa (org.), A escola tem futuro?, Rio de faneiro: DP&A, 2003, p. 116. 10, juan Vasen, Las certezas perdidas: padres y maestros ante los desafios del presente. Buenos Aires: Paidos, 2008, p. 88. 4. Ignacio Lewkowicz, “Escuela y cidadania’, In: Cristina Corea Ignacio Lewkowicz, Pedagogia del aburrido, op. cit. p. 20. 1D Ibid. 3. Michel Foucault, Vigiar e punir: historia da violencia nas prisdes, trad. Ligia M. P. Vassallo, Petropolis: Vozes, 1977, p. 148. ad. Blateph.com, 2001, p.4 asco Cock Fontenella, Ste Paulo: Uni “ Immanuel Kant, Sobre pedagogta, op. cit., p. 5. 'S Aledo Veiga Neto, “Pensar a escola. Jarisa Vorraber Costa (org.)s . Ace tem futuro2, op. cit p. 106. . (ibe Foucault, Vigiar e punir, op. cit, p. 49. / Van emwood: A History of Childhood: Children and Childhood in the ida de Medieval to Modern Times. Malden: Blackwell, 2003 | Ura ra fo tnfanea: da dade Média a épaca contempordnea no Oxides Ww, Philippe hee Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2004]. Aina qu Histria social da erianga e ca familia, op. cits p. XI Accoly hi8t Neto, “Pensar a escola... In: Marisa Vorraber Costa (org.)+ haa Van Mitre? OP- cit. p. 116. a toe gg) Sando Alvarez-Uria, Angueologia de ta escuela, Madris La Amo , v.90 Vieira, 5 be hanuet kan se do Espirito Santo, p. 5-6. Mado Vivein oe Pedagogia, op. cit., p. 6. & : op. cit., p.6. / $ Neal Sch ager patter "O marmore ¢ a murta: sobre a inconstineit Selig agg) Mons da alma sebmagem, Sao Paulo: Cosas mM 26 28 29 30) 3 36. Dy. 38. wae 40. 41. 42. 43. 4A. 45. 47. 48. Vieira, apud Eduardo Viveiros de Castro, op. cit, p. 185 Ibid. ps 188 Philippe Aries, Hestora social da erianea e da familea, op. cit p78 eter Sloterdiik. Regras para o Parque humane, tad. lose Oscar de Marques. Sao Paulo: Estagao Liberdade, 2000, p. 17 Michel Foucault, 0 poder psiquutatrice, trad, Eduardo Brandao, Sao Py Martins kontes, 2006, p. 62 Philippe Aries, Historia social da erianga e da familia, op. eit... 88 Almeida ule: Para aprofundar essay questoes, ver Paula Sibthia, O homem pos onyanuy corpo, subjetividade € tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Contr 12 Be clinica’, In: Carlos Plastino (org.), Transgressoes. Rio de Janeiro: Conteaca pa, 2002, p. 232 aponto, ilton Beverra }r,°O ocaso da interioridade e suas repercussoes sobre a 2. Para aprotundar essas questoes, ver Paula Sibilia, O show do eu: a intims dade como espetaculo, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008 illes Deleuze, “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” In: Con- versagoes: 1972-1990, trad. Peter Pal Pelbart. Rio de Janeiro: Fditora 34, 1992, p. 220. Michel Foucault, Vigiar e punir, op. cit., p. 32 Jean Gougaud e Colette Hernandez, La Morale a ecole (1905-1950). Paris: Berg International Editeurs, 2009. Michel Foucault, Vigiar e punir, op. cit. p. 149. Immanuel Kant, Sobre pedagogia, op. cit., p. 19. Alfredo Veiga Neto, “Pensar a escola...” In: Marisa Vorraber Costa (org,), A escola tem futuro?, op. cit., p. 116. Ibid., p.117. Richard Sennett, O declinio do homem publico: as tiramas da intirndade, trad. Lygia Araujo Watanabe. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1988 Charles Taylor, Uma era secular, trad. Nélio Schneider ¢ Lucia Araujo, Si Leopoldo: Unisinos, 2008, p. 569. Immanuel Kant, Sobre pedagogia, op. cit., p. 37-38 € 74-75. Cristina Corea, “El nino actual: una subjetividad que violenta el dispostt- vo pedagogico”, Jornadas sobre violencia social, Univ. Maimonides, 2000. Disponivel em Guy Debord, A sociedade do espetaculo, trad. Estela dos Santos Abreu, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14, 18 ¢ 189. . Cristina Corea, “Pedagogia y comunicacion en la era del aburrimiento’ in: Cristina Corea e Ignacio Lewkowicz, Pedagogta del aburride, op. cit. p43 “Desinteresse afasta alunos das escolas’, O Globo, Rio de kaneiro, 16 abr 2009; e Marcelo Neri, Morivos da evasdo escolar. Rio de Janes: Fa, 2009. “Desinteresse afasta alunos das escolas’ cit. 7 Helio Schwartsman, “Taxa de analtabetismo recua pouce 90 Pals", 5. Paulo, 19 set. 2009, otha de 214

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