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Redes ou paredes Aescola em tempos de dispersao — O que vocés esperavam ao me denunciar para o diretor? — Que 0 senhor fosse castigado, como nés. — Ah, querem me castigar? — O senhor nos insultou e merece castigo... 0 senhor disse “ordinarias” e nds dissemos “filho da puta”, é a mesma coisa! — Mas vocés tém que entender que eu sou 0 professor, e pronto! Laurent Cantet, Entre os muros da escola (2008) Antes de mais nada, é necessdria'a obediéncia no carater da crianga, particularmente no do aluno. [...] A obediéncia pode nascer da coa¢ao, e entdo € absoluta, ou da confianga, e entao é raciocinada. Esta obediéncia voluntdria €é muito importante, mas aquela é extremamente neces- sdria, porque prepara a crianga para 0 cumpri- mento das leis que depois ela tera de cumprir como cidada, ainda que nao lhe agradem. Immanuel Kant, Sobre a pedagogia (1803) Introdugao: Para que serve a escola? O colégio como tecnologia de época O molde escolar ea maquinaria industrial Educar 0 soberano disciplinando os selvagens Os incompativeis: outros ti pos de corpos e subjetividades O desmoronamento do sonho letrado: inquietacao, evasao e zapping As subjetividades midiaticas querem se divertir Do aluno ao cliente, da lei a negociagao Da crianga ao consumidor: cai o mito da transmissao Do empregado ao empresario, da formagio a capacitagao Mercado em vez de Estado: das adverténcias ao bullying Violéncia e inseguranga: do reformismo moral a blindagem policial Do quadro-negro as telas: a conexao contra o confinamento Salas de aula informatizadas e conectadas: muros para qué? Resistir a0 confinamento ou sobreviver 4 rede? Conclusao: Inventar novas armas Notas 13 27 35 45 63 81 93 105 123 141 181 199 207 213 INTRODUCAO Para que serve a escola? Este ensaio comega com uma pergunta ¢ corre o saudavel risco de desembocar, ao final de todo seu percurso, num mar de ecos emitidos pela mesma indaga 10. Enquanto deslizamos velozmente a bordo deste século XXI que tantas surpresas nos tem trazido, ostentando seus feiticos tecnoldgicos e seu estilo de vida globalizado, sera que a escola se tornou obsoleta? E munto dificil responder a esta interrogacao de modo ca- tegorico; talvez as possiveis respostas ainda sejam impronun- ciaveis. A finalidade destas paginas é aprofundar esse ques- tionamento, explorando algumas de suas arestas, nao com 0 proposito de oferecer solugdes tranquilizadoras, mas para re- finar sua formulagao e tornd-lo mais fecundo. As ferramentas de que dispomos para realizar essa tarefa nao sao as do espe- cialista em educagao, com as vantagens e desvantagens que isso implica. Em vez de surgir da vasta tradigao pedagdgica, e ainda que sem duvida aspire a dialogar com algumas de suas vertentes, nossa anilise parte de um terreno que ainda costu- ma ser considerado muito distante dos rituais escolares, quase seu antagonista: 0 dos meios de comunicagao. Sobretudo em sua rutilante conjugacao informatica, digital ¢ interativa, que vem se colocando em sintonia, no nivel mundial, com os avan- Gos j4 mais assentados da cultura audiovisual. Tentaremos também, e com énfase especial, langar um olhar antropoldgico e genealdgico sobre o problema, no intui- to de detectar algumas tendéncias proprias de nossa era: aque- la que nos impregna, a0 mesmo tempo que a tecemos € cruza- mos a toda a velocidade, motivando a incerteza da indagagao inicial. Se ainda emudecemos ou titubeamos na hora de res- TO TSASIBIGAS REDES Ou parenes, Pondé-la, a0 menos 5 © Menos este clima de epoca properciona algo in- solito, que deveriamos aproveitar como uma rara dadiva: ele Permite por o presente em questa. Por nos encontrarmos de Fepente em uma encruzilhada, vemos como explodem as cer- cas erguidas a Partir de velhas convicgdes e certezas que ja nao funcionam. Sermos contemporaneos nao é uma tarefa isenta de riscos: se estivermos atentos aos sinais do mundo, talvez tenhamos a sorte de eles nos perturbarem a ponto de suscita- Tem © pensamento; mas isso s6 ocorrerd se ConseguirMos es- capar dos perigos que aparecem quando pisamos terrenos tio Pantanosos sem evitar a complexidade dos fendmenos nem desprezar suas contradigdes. O desmoronamento em curso € doloroso e desconcertante, mas, a partir dessa abertura, a visao se expande para outras diregdes. Em consequéncia disso, os caminhos podem se multiplicar. Por tais motivos, o foco deste ensaio nao aponta somente para a escola nem para o peculiar entorno sociocultural, eco- nomico e politico que a viu nascer e se desenvolver com sua orgulhosa missao ci ilizadora. Além de contemplar esse marco com suma curiosidade, o estudo tende a se concentrar no con- texto atual, que sem duvida mudou bastante e em varios sen- tidos em relagao aqueles tempos cada vez mais remotos. Com esta premissa como pano de fundo, nossa analise tem em vista um componente vital dessa maquinaria, cuja modelagem constituiu seu principal objetivo: os corpos e as subjetividades Para Os quais essa institui¢do foi criada, no momento de sua invengao e durante sua gradativa consolidagao. A natureza humana ndo € imutavel, constituida como uma entidade inal- teravel através das historias e das geografias; pelo contrario, as subjetividades se constroem nas praticas cotidianas de cada cultura, € os corpos também se esculpem nesses intercambios. Este texto busca acompanhar Os itinerarios que compuseram €ssa trama até ela chegar a sua configuragao mais atual, deten- 10 do-se prioritariamente nos modos de ser e estar no mundo que surgem hoje em dia, e que costumam se relacionar com a escola de modos contlitivos. Um primeiro desdobramento da questio que nos ¢ pode ser o seguinte: que tipos de corpos e de subjetividades a escola tradicional produziu em seu apogeu? Essa localizaygo historica remete principalmente a segunda metade do secu- lo XIX e boa parte do XX, ou seja, a um denso bloco temporal durante o qual essa instituicao irradiava ares de plena sol- uia vencia, longe de ser acusada de obsolescéncia ou de estar po- tencialmente ultrapassada. Ha outra pergunta latente nessa averiguagao: por que e para que nossa sociedade — ocidental, moderna, capitalista, industrial — se propds, naquela epoca, gerar esse tipo peculiar de seres humanos? Este trajeto indaga- torio é fundamental, mas sobretudo porque em sua meta cin- tilam os nds problematicos que privilegiaremos aqui: que Upo de modos de ser e estar no mundo sao criados agora, no des- pontar da segunda década do século XXI? Como, por que € para qué? Avancando um pouco mais nesta aventura, surgird 2 pet gunta mais interessante € também mais espinhosa, cuja res- posta talvez ainda deva permanecer aberta e pulsante: que ti- pos de corpos e subjetividades gostariamos de forjar hoje em dia, pensando tanto no presente quanto no futuro de nossa sociedade? Uma vez definida essa sondagem tao complexa, até no intuito de contribuir para depura-la ou aprofunda-la, também seria preciso justificar as possiveis respostas, tornan- do a indagar sobre seus pontos-chave: por que e para qué? Por Ultimo, nesta tentativa de desentranhar a medula do assunto, caberia introduzir a duvida crucial que inspirou a redacao deste livro, como um disparo para novos rumos: de que tipo de escola — ou de que substituto dela — necessitamos para alcangar esse objetivo? i Ocolégio como tecnologia de época Vritre tantas perguntas em aberto e cada vez mais dificeis de Fespondlet, em tung ao de sua crescente especitividade e da di heuldade de imaginar alternativas para o nosso futuro, uma certeza € quase obvia ¢ paderia servir aqui como ponto de partid: a escola esta cm crise, Por qué? Os tatores que levaram dessa situaydo sdo mnumeros ¢ sumamente complexos, mas um caminhe para compreender os motives desse mal estar consiste em recorrer a sta genealogia. Ao observa-la sob o Prisma historiogratico, essa instituigae ganha os contornos de uma fecnologia: podemos pensa-la como um dispositive, uma terramenta ou um intrincado artetato destinado a produzir algo. E nao € muito dificil verificar que, aos Poucos, essa apa- relhagem vai se tornando incompativel com os cOrpos e as subjetividades das criangas de hoje. A escola seria, entao, uma Maquina antiquada. Tanto seus componentes quanto seus modos de funcionamento ji nao entram facilmente em sinto- nia com os jovens do século XXL. sim e€ apesar de tudo, insiste Nessa jungdo — que, ainda a em acontecer todos os dias durante longas horas, em quase todos os cantos do planeta —, as pegas nao se encaixam bem: descobrem-se ressaltos imprevistos em suas engrenagens ¢ os equéncia, ocasionando toda sorte circuits se obstruem com fi de atritos, ruidos, transbordamentos ¢ até cnormes desastre Trata-se,em suma, de organismos que nao se ajustam (a0 har- Moniosamente quanto costumava suceder algum tempo atras, € que, por conseguinte, ao serem postos em contato, tendema desencadear conthitos de toda espécie ¢ da mais variada grave dade. Para além das particularidades individuais de cada estu- 13 PEDES ou eapeoes dante ¢ q nte ¢ das diversas institui escola’, tambem deixando relativas aos contextos socic cada caso, se icOes acolhidas na ampla cate oria de lado as significativas diterencas vECONOMICOS € até ZEOPOliticos de a tia dificil negar essa incompatibilidade. Ha uma Wergencia de época: um desajuste coletivo entre 05 colégios ¢ seus alunos na contemporaneidade, que se confirma e prova velmente se reforca dia a dia na experiéncia de milhoes de Criangas e jovens de todo o mundo. E algo que ja parece cons. tituir a marca de uma geracao e€ que, alids, tem sido teorizado Por Varios autores recorrendo a nomes relacionados com cer- tas letras do alfabeto — geragao Y ou Z, por exemplo, assim como N de net e D de digital — ou, entao, ao melancélico r6- tulo “pos-alfa’, bem como a exitosa expressdo “nativos digitais” € outras no mesmo estilo. Seja como for, e embora ninguém ignore que esse desen- caixe jd vem se engendrando ha bastante tempo, talvez até ao longo de todo o extenso e conturbado século XX, a brecha tornou-se incontestavel nos ultimos anos. A primeira década do novo milénio foi decisiva nesse sentido, e é provavel que © sejam ainda mais as que virao. Esta constatagao ocorre jus- tamente quando se esta soldando um encaixe quase perfeito entre, de um lado, esses mesmos corpos e subjetividades e, de outro, um novo tipo de maquinaria, bem diferente da pa- rafernalia escolar e talvez oposta a ela. Referimo-nos, € claro, aos aparelhos moveis de comunicagao e informagao, tais como 05 telefones celulares ¢ os computadores portateis com acess a internet, que alargaram num abismo a fissura aberta ha mats de meio século pela televisao e sua concomitante “cultura au- diovisual”, A partir da evidéncia desse choque, originaram-se as diversas tentativas de fundir de algum modo os dois un versos: 0 escolar e 0 midiatico. Essas iniciativas se deflagram atualmente em varias partes do mundo, respondendo a urges- cia do conflito e procurando resolvé-lo de modos inovadores, 14 © COMO TFECNOLOGIA DE EPOCA se bem que ainda com metodos experimentais € resultados. incertos. E claro que nao se trata de um fendmeno fortuito nem muito enigmatico: ha explicagdes historicas ¢ até antropolo- gicas para essa discrepancia crescente entre os colegios € os jovens de hoie, assim como para a hostilidade e os dilemas que costumam acompanha-la. Essas justificativas abarcam um amplo leque de fatores econdmicos ¢ politicos, alem de impor- tantes mudangas sociais, culturais ¢ morais que se foram de- sencadeando nas ultimas decadas, com uma brusea aceleragao em anos recentes. De que transtormagoes se trata? Embora estejam em jogo certos movimentos contraditorios ou de alta complexidade, que nada mais fazem do que acrescentar in- certezas ao quadro atual, seus contornos basicos revelam-se quase obvios para os que transitaram por algumas decadas do século passado e se tornaram adultos no inicio do sécu- lo XXI. E estao longe de poder sintetizar-se mediante a alusao exclusiva aos avangos técnicos. Provavelmente iniciada no periodo do apos-guerra, Ou, mais seguramente, a partir da década de 1960, a germinagao desses processos demorou bastante, mas agora seus frutos se consolidam com um triunfalismo que nao da margem a duvi- das. E, embora seja evidente que a causa de tao complexo movimento hist6rico nao se limita aos dispositivos tecnoldgi- cos recentemente popularizados, sua confluéncia com essa crise que ja se vinha propalando levou, precisamente, a que 4 fissura se tornasse cada vez mais iniludivel. Por um lado, en- tao, temos a escola, com todo o classicismo que ela carrega nas costas; por outro, a presenga cada vez mais incontestavel des- ses “modos de ser” tipicamente contemporaneos. Tornou-se ficil evitar tamanha desarticulagao com um olhar muito dif para outro lado, ou um fingir que nao ha nada acontecendo, ou um buscar em vao remendar esse artefato abstruso que, a0 45 ate ¢ das diversas mstirunaes acolhid Ay Ha ampla ¢ als signaticatiy 208 CONTE aS sOCIOECONOMICOS & cada caso, seria dial neg, Megoria, as dilerencas ate Beopoliticos de st esst incompattbilidade, clivergenaa de epoca unr desaruste essoid, tambeny denando de lado relativas Ha uma voletive entre os Colegios ¢ seus GUNS Na Contemporancidade, que se confirma ¢ velmente se retorya dia a dia na experiencia de enlangas ¢ jovens de todo o mundo, E Prova. milhoes de algo que ja parece cons. alias, tem sido teorizado a nomes relacionados com cer- htuir a marca de uma gerayao e que, Por varios autores recorrendo tas letras do altabeto — erayao Y ou Z, por exemplo, assim como N de nete D de digital — ou, entao, ao melancolico r6- tulo “pos-aita’, bem como a exitosa expressio “nativos digitais” € Outras nO Mesmo estilo. Seja come tor, € embora ninguém ignore que esse desen- caixe ja vem se engendrando ha bastante tempo, talvez até ao longo de todo o extenso e conturbado século XX, a brecha tornou-se incontestavel nos ultimos anos. A primeira década do novo milénio toi decisiva nesse sentido, e € Provavel que © seam ainda mais as que virao. Esta constatagao ocorre jus- tamente quando se esta soldando um encaixe quase perfeito entre, de um lado, esses mesmos corpos e subjetividades e, de outro, um novo tipo de maquinaria, bem diferente da pa- raternalia escolar € talvez oposta a ela. Ret ferimo-nos, é claro, aos aparelhos méveis de comunicas ao ¢ informagao, tais Como 9s teletones celulares € 05 computadores portateis com aces sO a internet, que alargaram num abismo a fissura aberta ha mais de meio século pela televisae © sua concomtante “cultura au- diovisual”, A partir da evi Vota desse Che que, Originaram-se fund de alyumn versos: 0 escolar eo midiitico, b ay diversas tentativas de cos dors unt As intichativas se deflagram atualmente em varias partes vido mundo, tespondende a urgen cia do contite & procurande resolve lode modoy inovadores. 4 ue ainda com metodos experimentais € resultados se bem 4 incertos. £ claro que 9 9 enigmatico: ha explicagdes historicas € até antropolé- ara essa discrepancia crescente entre os colégios e os de hoje, assim como para a hostilidade e os dilemas m acompanha-la. Essas justificativas abarcam um jo se trata de um fendmeno fortuito nem muit ge as Pp jovens que costuma amplo leque de fatores econdmicos e politicos, além de impor- tantes mudangas sociais, culturais e morais que se foram de- sencadeando nas ultimas decadas, com uma brusca aceleragao em anos recentes. De que transformagées se trata? Embora estejam em jogo certos Movimentos contraditorios ou de alta complexidade, que nada mais fazem do que acrescentar in- certezas a0 quadro atual, seus contornos basicos revelam-se quase Obvios para os que transitaram por algumas décadas do seculo passado e se tornaram adultos no inicio do sécu- lo XX1. E esto longe de poder sintetizar-se mediante a alusdo exclusiva aos avangos técnicos. Provavelmente iniciada no periodo do apds-guerra, ou, mais seguramente, a partir da década de 1960, a germinacao desses processos demorou bastante, mas agora seus frutos se consolidam com um triunfalismo que nao da margem a duvi- das. E, embora seja evidente que a causa de tao complexo movimento histérico nao se limita aos dispositivos tecnoldgi- cos recentemente popularizados, sua confluéncia com essa crise que ja se vinha propalando levou, precisamente, a que a Assura se tornasse cada vez mais iniludivel. Por um lado, en- Bo, temos a escola, com todo 0 classicismo que ela carrega nas mde a Presenga cada vez mais incontestavel des- muito dif ita ev contemporaneos. Tornou-se para outro lado, - tamanha desarticulacao com um olhar Ou um buscar em wae rin ae me ha nada acontecendo, artefato abstruso que, a0 15 que tudo indica, parece ter perdido boa Parte : de sua e seu sentido ao se deparar com a nova P. ficac : “a MSA8EM Que cre = aseu redor. ne Em virtude da generalizagao desse Panorama, este beste @y 5 Ns, pretende examinar em que consistem essas Mudangas Salo 0 pro. as subjetividades No: ultimos tempos, e que agora permitiriam vislumbrar a con, f " a consy. magao de uma metamortose. De fato, ainda que ela tenh, = a prosperado no curto prazo de uma mesma geracdo, tr: fundas que vem afetando os corpos e , ‘ata-se de uma transformagao tao intensa que costuma despertar toda sorte de perplexidades, especialmente naqueles que nao nasce. ram imersos no novo ambiente, Mas atravessaram essa muta- GO € agora sentem seus efeitos na propria pele. Afinal, esta- mos aludindo a uma transigao entre certos modos de sere estar no mundo, os quais, sem duvida, eram mais compativeis com o colegio tradicional e com as diversas tecnologias adscri- tas a linhagem escol. Essas novas subjetividades que flores- cem atualmente manifestam sua flagrante desconformidade com tais ferramentas, ao passo que se encaixam alegremente com outros artefatos A partir desta perspectiva, portanto, fica claro que a es- cola € uma tecnologia de época. Ainda que hoje pareca tio “natural”, algo cuja inexisténcia seria inimaginavel, o certo é que essa institui¢ado nem sempre ey tiu na ordem de uma eternidade improvavel, como a Agua e 0 ar, tampouco como as ideias de crianga, infancia, filho ou aluno, igualmente natu- ralizadas mas tambem passiveis de historicidade. Ao contrario: © Tegime escolar foi inventado algum tempo atras em uma cultura bem definida, isto é, numa confluéncia espagotempo- ral conereta ¢ identificay Para ter se fato, el, diriamos até que recente demais arraigado a ponto de se tornar inquestionavel. De “ssa Instituigao foi concebida com 0 objetivo de atender a um conjunto de demandas especificas do projeto historico 16 a planejou e procurou po-la em pratica: a modernidade ue antes houvera escolas ou colégios, mas eles nac es termos, No que F claro q equivaliam ao que hoje denominamos por Idade Média, por exemplo, “eram reservados a um pequenc misturavam as diferentes idades den numero de clérigos ¢ a tro de um espirito de liberdade de costumes’, relata Philippe Aries, esclarecendo que somente “no inicio dos tempos mo- dernos [tornaram-se] um meio de isolar cada vez mais as criangas durante um periodo de formagao tanto moral como intelectual, de adestra-las, gragas a uma disciplina mais auto- ritaria, e, desse modo, separa-las da sociedade dos adultos”. Mas, como sublinha o mesmo historiador francés, “essa evolu- gao do século XV ao XVIII nao se deu sem resisténcias”! Sem duvida, foi uma estratégia sumamente ousada, que em contrapartida também requeria certas condigdes basicas para poder funcionar: além de estipular metas e objetivos, foi pre- ciso estabelecer determinados requisitos de indole variada Para que essa maquinaria pudesse funcionar com eficacia. Entre as exigéncias histéricas a que a criagdo dessa curiosa entidade procurou responder figuraram os compromissos desmedidos da sociedade moderna, que se pensou a si mesma — pelo menos idealmente — como igualitaria, fraterna e de- a. Por conseguinte, assumiu a responsabilidade de educar todos os cidadaos para que ficassem & altura de tio Magno projeto, servindo-se para esse fim dos potentes recur sos de cada Estado nacional. Era preciso alfabetizar cada habi- tante da nagao no uso correto do idioma patrio, por exemplo, ensinando-o a se comunicar com seus. contemporaneos e com as proprias tradigdes por intermédio da leitura e da escrita Além disso, era necess ‘rio instruir todos para que soubessem fazer calculos ¢ lidar com os imprescindiveis numeros. Em Suma, umn conjunto de aprendizagens uteis e praticas, que fo tam substituindo uma multidao de dogmas e mitos sem res v7 paldo cientifico ou cuja inutilidade se tornava flagrante, ou seja, tudo aquilo que ja nao servia para nada, apés ter Perdido o substrato cultural que antes Ihe dera sentido. Por ultimo, embora nao menos essencial, era preciso treinar os homens do futuro nos usos e costumes ditados pela virtuosa “moral laica” desfraldada pela burguesia triunfante: um cardapio inédito de valores e normas que se impos com esse imenso projeto poli- tico, econdmico e sociocultural. Submersa nessa atmosfera em ascensao, a plataforma sobre a qual se ergueu tal programa ostentava um lema muito claro: disciplina. Em suas conferéncias ministradas no fim do século XVIII e publicadas alguns anos mais tarde, em 1803, sob o titulo Sobre a pedagogia, ninguém menos que Immanuel Kant deixou claro que seria esse 0 objetivo prioritario da edu- cagao. “A disciplina converte a animalidade em humanidade”, afirmava o filésofo alemao ha mais de duzentos anos, asseve- rando que s6 com esse instrumento nas maos seria possivel “dominar a barbarie”.* Assim se explicitou a fungao basica da instituicéo escolar, entéo em seus primordios: humanizar o animal da nossa espécie, disciplinando-o para modernizé-lo e, desse modo, iniciar a evolugdo capaz de converté-lo num bom cidadao. Uma vez atingida essa primeira meta, em segundo lugar caberia tornar os homens capazes de desenvolver deter- minadas habilidades, como ler ¢ escrever ou aprender outras destrezas mais especificas. Essa tarefa tequereria “a instrugao e © ensino”, mas s6 poderia consumar-se a partir do trabalho civilizador previamente realizado sobre a natureza crua dos alunos. Nesse sentido, para Kant, a disciplina seria um traba- Iho negative, destinado a anular uma etapa prévia: “a agao pela qual se apaga no homem a animalidade”. Assim se expurgaria a condi¢ao primitiva oua barbarie origindria que se verificava m algo gravissimo para o Projeto moderno: 0 desconheci- mento da lei. 18 Em contrapartida, a instrucao ja constituiria a parte positi vada ed' al do ado anterior, uma vez que s6 “a disciplina submete o ho ucagao, necessariamente inscrita na supressao vit. est as leis da humanidade e comega a fazé-lo sentir a coagao mem desta’.’ Portanto, essa fase basica nao consistiria apenas em ensinar as criangas quais sao as regras concretas que coman dam a sociedade, porém em algo muito mais elementar e im- prescindivel: saber que a lei existe e, como tal, deve ser respei- tada. Seguindo a escala de prioridades da pedagogia kantiana, além da disciplina e da instrugao, em terceiro lugar seria ne- cessdrio propagar a “civilidade”, logrando que cada homem adquirisse “boas maneiras, amabilidade e certa prudéncia” para poder adaptar-se com éxito aos costumes e usos sociais. Por ultimo, o fildsofo destacava que “é preciso cuidar da mo- ralizacao’, a fim de que, havendo aprendido a executar um conjunto de tarefas com finalidades distintas, cada um tivesse também “um critério conforme o qual [escolhesse] somente os bons objetivos”. Em sintese, a pedagogia teria como meta propiciar “o desenvolvimento da humanidade’, de maneira cumulativa e cada vez mais aperfeigoada, procurando fazer com que ela fosse nao apenas “habil, mas também moral”, pois “nao basta o adestramento; 0 que importa, acima de tudo, é que a crianca aprenda a pensar”; e, fundamentalmente, que saiba se comportar como convém.* Esse exercicio da raciona- im pautada, era lidade, transmitido pela educagao formal ass também — e, talvez, principalmente — normalizador: ensina- va-se a pensar e a agir do modo considerado correto para os Parametros da época. O texto de Kant, sem duvida, merece a atengao que the dedicamos aqui, ja que sua obra constituiu um dos pilares da modernidade; por isso nao convém desdenhar do vinculo que essa pena selou entre a educagao formal e a disciplina come um projeto basilar do Iuminismo. Esta ultima deveria se: 19 aplicada ¢ infundida de imediato em cada recém-nascidg “pois, de outro modo, depois € muito dificil modificar g h 0. mem’, explicava 0 filosofo, Do contrario, aconteceria algg muito perigoso: » homem ficaria a mercé de seus caprichgy, por isso a capacidade de se curvar A razdo e a disciplina de. veria ser Muito precocemente inculeada na trajetéria Vital de todos os cidadaos. “Se, em sua juventude, ele é deixado en. tregue 2 sua vontade, conservard alguma barbdrie durante entando que “de nada The serve, tampouco, ser mimado na infancia pela excessiva terny. toda a vida’, advertia 0 autor, act ra materna, pois, mais tarde, nao fara sendo chocar-se com obstaculos por toda parte ¢ sofrer continuos fra logo interfira nos assuntos do mundo”. Por tais motivos, com. a e 0 controle familiar, foi ‘ASSO, tig plementando a severidade paterr necess.rio instituir a escola moderna para reforgar essa mis- sao, cuja utilidade seria tanto individual quanto coletiva. Nao foi por razOes banais, entao, que se adotou o novo habito: desde muito pequenos, os meninos da era burguesa tiveram que ser enviados todos os dias as escolas, “nao ainda com a inteng3o de aprenderem algo’, como repisou o proprio Kant, “mas com a de habitua-los a permanecerem tranquilos e a cumprirem pontualmente o que lhes [fosse] ordenado’.* Por isso, para o cidadéo moderno, nao ter sido instruido a fim de dominar certas habilidades implicaria um problema, sem du- vida; porém, muito pior que qualquer impericia — mais grave ate que certa ignorancia ou necedade — seria o fato de nao ter disciplina. Isso o levaria a se equiparar a um selvagem ou um barbaro e, uma vez consumada essa falha na crianga, ela ja n40 Poderia ser remediada, mais tarde, com ensinamentos pon- tuais: convertido num adulto indisciplinada, esse homem €s- taria arruinado, sem possibilidade de emenda para os fins bus- sados pela civilizagao. De fato, além de denunciar com firmez essas falhas de cardter nos pequenos mal-educados, que fatal- 20 > converteriam em adultos sem disciplina — por isso iment “los” _, esse autor identificava algo semelhante “entre on que, ainda que prestem servigos durante muito te 08 europeus, Nunca se acostumam com oO modo de tempo : 5 an ver destes”. Ao explicar os motivos de tal resisténcia ao rigor viver d . s provenientes de outras culturas, 0 fildsofo disciplinar nos seres se neles “uma emao desmentiria categoricamente que houve: al nobre inclinagdo pata a liberdade, como creem Rousseau e& outros tantos” Em vez disso, Kant denunciou uma espécie de “O animal prutalidade que seria inerente a essas criaturas ainda nao desenvolveu em sia humanidade.” Ainda que essas palavras provoquem certo desconforto nos eitores do seculo XX1, convém esclarecer que foram redigidas sem hesitagao, ha dois longos séculos, por um dos pensadores de maior relevancia em nossa tradigio; e, certamente, suas reflexdes contribuiram para consolidar a instituigao escolar tal como a conhecemos. E que a educagao formal constituiu um importante brago armado do Huminismo: além de desenvol- ver seus impetos modernizantes e secularizadores, libertando 0 soberano das trevas da ignorancia, também acabou sendo cao cultural, capaz de des- qualificar ¢ asfixiar sob sua hegemonia racionalista todas as um forte movimento de uniformiza (muitas) manifestagdes consideradas inferiores. Um exemplo tipico foi o dos idiomas que se impuseram como linguas na- cionais, com a forca da coagao estatal, esmagando os milhares de dialetos falados nos tempos pré-modernos, tanto nos terri- torios europeus quanto em suas colénias ultramarinas. O en- Sino irradiado nos colégios foi fundamental para consolidar essa homogeneizagao em torno da norma e sob a firme tutela de cada Estado, contribuindo para cimentar os valores com- Partilhados no territério delimitado pela simbologia nacional. oe representativa exige que os cidadaos dele- ler aqueles que manejarao diretamente os recur- 21 sos do Estado e tomarao decisdes politicas capazes de - | . - Aleta, toda a populagao do pais. Por isso se fez necessarig « : educar y i ; i “Algo que 56 se poderia conseguir por meio de relatos referentes soberano” forjando sua “consciéncia nacional” brim 2 UM Passady comum a todos os cidadios de uma mesma nacao, capares d ye : as azes de constituir certa identidade ligada a ideia de pove. Com efeit 0, no século XIX, o “sujeito da consciéncia’, filosoficamente ins. tituido duzentos anos antes, tornou-se “sujeito da consciéneia nacional”, como uma exigencia da sofisticagao do aparato is ridico moderno.® Assim, sobre essa “ficgao ideologica” de um passado comum que seria causador do presente comparti- lhado — um relato gerado pelo discurso historico — recaiu a fungao de dar consisténcia coletiva a cada povo. Sua solene materialidade compds-se do classico repertorio escolar: hinos cantados orgulhosamente de pé; comemoragoes patrias enga- lanadas com feriados ¢ atos presididos por porta-bandeiras sob declamagdes circunspectas; manuais ou livros de leitura carregados de relatos edificantes sobre préceres, heroismos e gestas nacionais; e até museus €e MONUMeNtos a serem visita- dos nas esporddicas excursdes extramuros. Para que tudo isso pudesse frutificar, com os sentidos con- tundentes que tal mitologia soube conquistar naquele periodo historico, era preciso plantar uma semente muito especial na terra fértil constituida por cada crianga escolarizada. Median- te o ensino da historia e a ritualizacao das comemoragoes & colares, dever-se-ia conseguir que brotasse em cada future cidadao a consciéncia da identidade nacional. Cabe lembrat que na palavra discipulo ressoa sua entranha disciplinas cura origem etimoldgica remeteria a discere e pueris, dizer as crian- Sas: explicar-lhes o que é certo e o que € errado, inculand -lhes 6 que se supunha que deveriam saber e fazer ae mesma linha, 0 curioso vocabulo aluno também escom a : iment0: lagos significantes que o ligam a estirpe do esclarec™ 22 -_ | ) COLEGIO COMO TECNOLOG IS EE UT TT” alta de luz e 2 conseguinte necessidade enguanto outros & studiosos da ual o aluno escer. Mas, alguns 0 associa J de ser iuminado (ate ia de nutrigao, segundo aq eset alimentado para poder er n filologica que revela a plas- ser cultivado, cabe pelo Estado nesses \final, essa entidade a de constituindo-se camo um solo firme, jas sublinham a ide seria aquele que dev ssaltar essa linhag e sua capacidade de do alunate » papel crucial desempenhado aleangou a envergadur: processos. uma megainstituiys rantir o bom funcionamento de tod. tidoeg ad SO- capaz de dar sen is instituigdes em torno das quais se OF ais como a familia, a escola, a fabrica, © nizou as den ciedade moderna, t Exército ¢ a prisdo. Nesse contento historico, cujas bases hoje parecem se dis- solver em contato fluido com as légicas do consumo e dos meios de comunicacaio, o Estado encarnava a solidez do insti- tituidor. De sua tuido, que ao mesmo tempo era fortemente ins sobria investidura surgia a lei universal, sob cujo amparo se gerou um tipo de subjetividade que alguns autores denomi- nam, precisamente, “estatal” ou “pedagogica”. Segundo o his- toriador e filosofo argentino Ignacio Lewkowicz, por exemplo, seus dispositivos institucionais a “o Estado-nagao delegava a produgdo e a reprodugio de seu suporte subjetivo: 0 cida- dao” Esse tipo de sujeito era tanto a fonte quanto o efeito do principio democratico que postulava a igualdade perante a lei, ou seja, um individuo constituido em torno desse codigo, o qual, por sua vez, apoiava-se em duas instituigdes fundamen- tails a familia e a escola, ambas encarregadas de gerar os cida- dios do amanha. Trata-se, portanto, de um modo peculiar de sere estar no mundo, que se ia formando minuciosamente desde o nascimento de cada individuo; assim, em seu desen- _ Volyimento progressive rumo a idade adulta, ele seria capaz de fansitar entre todas essas instituigdes irmanadas por um fim eae ee 23 idéntico, que usavam a mesma linguagem e se alinha Vv, Por isso, a0 atravess, ams uma causa comum arem pela Prime, vez o circunspecto portico escolar, vestindo Uniformes im culados e esgrimindo suas maletinhas cheias de materian m estudo, as criangas ja chegavam preparadas gragas a uma ta delagem prévia que ocorria entre as paredes do lar. Algo sen lhante acontecia na transicao do colégio para a universida.), ow a fabrica: todos esses recintos eram compativeis entre g com seu respectivo material humano, j4 que funcionavam ,, gundo a mesma logica Em virtude desse encadeamento, “cada uma das instit., goes operava sobre as Marcas Prev iamente forjadas”, exphca Lewkowicz, assegurando e reforgando assim a eficacia do fun cionamento disciplinar: “A escola trabalhava sobre as mare. oes familiares; a fabrica, sobre as modulagées escolares: prisio, sobre as molduras hospitalares.”'” Nesse sentido, cada uma dessas instituiges poderia pensar-se como um disposit: vo que exigia dos sujeitos a manutengao de certos tragos e 3 execucao de determinadas operagdes para nelas permanecer Além de produzir as subjetividades de seus habitantes, na pra- tica cotidiana desse conjunto de atos e gestos, o proprio dispe- sitivo se consolidava em sua agao: ambos eram fabricados em unissono. Desse modo, jd convenientemente disciplinados instruidos, civilizados e moralizados — para retomar os qu:- tro pilares pedagogicos destacados por Kant —, os sujeites Podiam ingressar em cada uma dessas instituigées munides das premissas que as guiavam, Compreendiam entao seus c0- digos e cram capazes de colocd-los em pratica, para além das rom is can ca a resistencia que oer dle individuais e da cepecl . Ihagem, Ao ce ra revelaria essencial para mobi liza ai S€ dirigirem a cada nova instancia, ess ‘viam ser reforcados no cidadao, depurando dess¢ tal aparel tracos d 24 modo a configuragdo de subjetividades cada ve7 mais compa tiveis com esses estilos de vida. A perda de eficacia no funcionamento bem azeitado das engrenagens disciplinares ¢. justamente, um dos indicios do crise atual, Um ingrediente primordial de Estado no papel de megainstituigde ¢ ssa deteriotagde ¢ 0 enfraquccimento do paz de avalizar ¢ dotar de sentido todas as demais. Em conse: iincia com esse declinio, perdem peso € gravidade as invest: duras que revestiany figuras chave da autoridade moderns, como o pai ¢ © professor, por exemplo, cujas definiyoes, att: butos ¢ poderes se transformaram amplamente nos ultimos tempos. Assim, a incompatibilidade aqui sugerida —- entre escola como tecnologia de (outra) época ¢ a garotada de hoi — seria um sintoma sumamente eloquente desse desajuste historico que hoje vivemos. 25 O molde escolar e a maquinaria industrial iragrafos anteriores resumimos os principais motivos Nos pa simo sistema que le escolar, semeando suas ramificagdes por toda parte, tanto nas aram ao desenvolvimento do complexis metrdpoles mais pujantes do momento como nos confins da civilizagao. Por outro lado, para que esse novo e tio ambicioso artefato sociotecnico pudesse entrar em operagao, uma condi- gao basica era contar com sua matéria-prima indispensavel: certos tipos de corpos infantis. Em seu livro Vigiar e punir, isdo e Michel Foucault explica que, ao tomar por modelo a pr 0 Exército, a escola concebida pelas sociedades industriais teve de ser uma instituigao em que “cada corpo se constitui como pega de uma maquina”! Um projeto bastante temerdrio e nada modesto, até descomunal, mas em perfeita concordancia com a configuragao disciplinar dos estilos de vida e com a inabalavel ambigao do progresso cientifico-industrial. No en- tanto, como sabe qualquer um que tenha mantido contato ias dezenas delas, reuni- formi-las em com criangas — mais ainda com v das num mesmo recinto —, nao é facil trans pecas de um aparelho bem calibrado, nem agora nem nunca, provavelmente. Mais arduo ainda é conseguir a proeza de manter essa ordem todos os dias e sem falta, durante varias horas ao longo de tantos anos, pelo menos até que os peque- nos componentes desse mecanismo se convertam em adultos e passem a integrar outros aparatos. Por causa dessa dificuldade recorreu-se ao confinamento iplinar de importancia vital, nao s6 nos como um recurso di colégios, mas também nas diversas instituigdes que subsidia- ram a industrializagao do mundo. Sua chave consiste em en- 27

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