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DIO PICHON-RIVIERE Enrique Pichon-Riviére O PROCESSO GRUPAL Tradugiio MARCO AURELIO FERNANDES VELLOSO e MARIA STELA GONCALVES (3 artigos firais) Revisiio da tradugio MARIA STELA GONCALVES | Martins Fontes j SGo Paulo 2005 ecenemssl retirement Indice Prélogo 1 Uma nova problemdtica para a psiquiatria 9 A nogdo de tarefa em psiquiatria 33 Prdxise psiquiatria 39 Freud: um ponto de partida da psicologia social 45 Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal 49 Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletiva 63 Grupos familiares. Um enfoque operativo 73 Aplicagoes da psicoterapia de grupo 85 Discurso pronunciado como presidente do Segundo Congresso Argentino de Psiquiatria 95 A psiquiatria no contexto dos estudos médicos 101 Apresentagao a cdtedra de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de La Plata 111 Prologo ao livro de F. K. Taylor, Uma andlise da psicoterapia grupal 115 Técnica dos grupos operativos 121 Grupos operativos e doenga tinica 139 Grupo operativo e modelo dramdtico 161 Estrutura de uma escola destinada a psicélogos sociais 169 Discépolo: um cronista de seu tempo 183 Implacdvel interjogo do homem edo mundo 193 masenointansn aiesisrnentetcee A Ana Pampliega de Quiroga, cujo afeto e colaboracéo sao a necessdria companhia na tarefa. Uma teoria da doenga 197 Uma teoria da abordagem da prevengao no ambito do grupo familiar 213 Transferéncia e contratransferéncia na situagao grupal 221 Questiondrio para Gentemergente 229 Entrevista em Primera Plana 233 Contribuigées a diddtica da psicologia social 237 Conceito de ECRO 249 O conceito de porta-voz 257 Historia da técnica dos grupos operativos 271 Prélogo Connaissance de la mort Je te salue mon cher petit et vieux - cimetiére de ma ville oit jappris @ jouer avec les mori Ceest ici ott j'ai voulu me révéler le secret de notre courte existence @ travers les ouvertures d'anciens cercueils solitaires. E. PICHON-RIVIERE! O sentido deste prdlogo é esclarecer alguns aspectos de meu esquema referencial, questionando sua origem e sua historia, em busca da coeréncia interior de uma tarefa que mostra nestes escritos, com tematica e enfoques hete- _ togéneos, seus diferentes momentos de elaboracao tedrica. Como crénica do itinerario de um pensamento, ele sera necessariamente autobiografico, na medida em que o esquema de referéncia de um autor nao s6 se estrutura como uma organiza¢ao conceitual, mas se sustenta em ali- cerce motivacional, de experiéncias vividas. E através delas. que o investigador construiré seu mundo interno, habitado por pessoas, lugares e vinculos que, articulando-se com um tempo proprio, num processo criador, iréo configurar a es- tratégia da descoberta. Eu poderia dizer que minha vocagao pelas Ciéncias do Homem surge da tentativa de resolver a obscuridade do 1, Poema escrito em 1924, [Conhecimento da morte / Eu te satido / mew querido, pequeno e velho / cemitério de minha cidade / onde aprendi a brincar / com os mortos. / Foi agui que eu quis que me fosse revelado o segredo de / nossa curta existéncia / através da abertura /de antigos caixdes solitdrios. (N. doT.)] Prélogo 3 diato. Os mistérios nao esclarecidos no plano do imediato (a que Freud chama “romance familiar”) e a explicagéo magica das relacdes entre o homem e a natureza determi- naram em mim a curiosidade, ponto de partida de minha vocagao para as Ciéncias do Homem. O interesse pela observagao dos personagens prototi- picos, que nas pequenas populages adquirem uma signifi- cacao particular, estava orientado, ainda nao consciente- mente, para a descoberta dos modelos simbélicos, através dos quais se torna manifesto o interjorgo de papéis que con- figura a vida de um grupo social em seu ambito ecoldgico. Algo do magico e do mitico desapareceria, entao, dian- te do desvelamento dessa ordem subjacente, porém explo- ravel: a da inter-relagao dialética entre o homem e seu meio. Meu contato com o pensamento psicanalitico foi ante- rior ao ingresso na Faculdade de Medicina e surgiu como a descoberta de uma chave que permitiria decodificar aquilo que era incompreensivel na linguagem e nos niveis de pen- samento habituais. Ao entrar na Universidade, orientado por uma vocagao destinada a qualificar-me para a luta contra a morte, 0 con- fronto desde cedo com o cadaver, que é paradoxalmente o primeiro contato do aprendiz de médico com seu objeto de estudo, significou uma crise. Ali reforgou-se minha decisdo de trabalhar no campo da loucura, que, mesmo sendo uma forma de morte, pode ser reversivel. Os primeiros contatos com a psiquiatria clinica abriram-me o caminho para um en- foque dinamico, o que me levaria progressivamente, a par- tir da observagao dos aspectos fenoménicos da conduta desviada, 4 descoberta de elementos genéticos, evolutivos e estruturais que enriqueceram minha compreensao do com- portamento como uma totalidade em evolucao dialética A observagao, no ambito do material trazido pelos pa- cientes, de duas categorias de fendmenos nitidamente dife- rencidveis para o operador (0 que se manifesta explicita- process grupal mente € 0 que subjaz como elemento latente), permitiu in- corporar, de forma definitiva, em meu esquema de referén- cia, a problematica de uma nova psicologia que desde o ini- cio se dirigia ao pensamento psicanalitico. O contato com os pacientes, a tentativa de estabelecer com eles um vinculo terapéutico, confirmou 0 que de algu- ma maneira fora intuido: que por trds de toda conduta “des- viada” subjaz uma situac4o de conflito, sendo a enfermida- de a expressao de uma tentativa falida de adaptagao ao meio. Em sintese, a doenga era um processo compreensivel. Desde os primeiros anos de estudante trabalhei em cli- nicas particulares, adquirindo experiéncia no campo da tare- fa psiquidtrica, na relacdo e na convivéncia com internos. Esse contato permanente com todo tipo de paciente e seus familiares permitiu-me conhecer em seu contexto o proces- so da enfermidade, particularmente os aspectos referentes aos mecanismos de segregaco. Tomando como ponto de partida os dados sobre estru- tura e caracteristicas da conduta desviada que me eram proporcionados pelo tratamento dos enfermos, e orientado pelo estudo das obras de Freud, comecei minha formacao psicanalitica. Isso culminou, anos mais tarde, em minha and- lise didatica, realizada com 0 dr. Garma. Através da leitura do trabalho de Freud sobre “a Gra- diva” de Jensen, tive a vivéncia de ter encontrado 0 caminho que me permitiria obter uma sintese com base no denomi- nador comum dos sonhos e do pensamento magico, entre aarte e a psiquiatria. Durante o tratamento de pacientes psicéticos realizado segundo a técnica analitica e pela indagagao quanto a seus Processos transferenciais, torou-se evidente para mim a existéncia de objetos internos, multiplices “imago”, que se articulam num mundo construido segundo um processo ptogressivo de internalizagao. Esse mundo interno confi- Prélogo sau see are gura-se como um cenério no qual é possivel reconhecer o fato dinamico da internalizacdo de objetos e relagdes. Nes- se cenério interior, tenta-se reconstruir a realidade exterior, mas 0s objetos e os vinculos aparecem com modalidades di- ferentes pela passagem fantasiada a partir do “fora” para o Ambito intra-subjetivo, o “dentro”. E um processo compa- ravel ao da representaco teatral, no qual nao se trata de uma repeticéo sempre idéntica do texto, mas em que cada ator recria, com uma modalidade particular, a obra e 0 per- sonagem. O tempo e 0 espago inserem-se como dimensdes na fantasia inconsciente, cr6nica interna da realidade. A indagagao analitica desse mundo interno levou-me a ampliar 0 conceito de “relagao de objeto”, formulando a no- go de@incuilo, que defino como uma estrutura complexa que indi um sujeito, um objeto e sua mttua inter-relagdo com processos de comunicacao e aprendizagem. Essas relacées intersubjetivas sao dirigidas e estabele- cem-se com base em necessidades, fundamento motiva- cional do vinculo. Tais necessidades tém um matiz e inten- sidade particulares, nos quais ja intervém a fantasia incons- ciente. Todo vinculo, assim entendido, implica a existéncia de um emissor, um receptor, uma codificacao e decodifica- cao da mensagem. Através desse processo comunicacional, torna-se manifesto o sentido da inclusdo do objeto no vin- culo, o compromisso do objeto numa relacao nao linear, mas dialética, com o sujeito. Por isso insistimos que em toda es- trutura vincular (e com o termo estrutura ja indicamos a in- terdependéncia dos elementos) 0 sujeito e 0 objeto intera- gem, realimentando-se mutuamente. Nessa interacaéo ocorre a internalizago dessa estrutura relacional, que ad- quire uma dimensao intra-subjetiva. A passagem ou inter- nalizacao tera caracteristicas determinadas pelo sentimento de gratificagao ou frustragdo que acompanha a configuragao inicial do vinculo, que ser entao um vinculo “bom” ou um vinculo “mau”. 0 processo grupal As relacdes intra-subjetivas, ou estruturas vinculares internalizadas, articuladas num mundo interno, condicio- narao as caracteristicas de aprendizagem da realidade. Na medida em que o confronto entre o ambito do intersubjeti- vo e 0 ambito do intra-subjetivo seja dialético ou dilematico, essa aprendizagem sera facilitada ou dificultada. Ou seja, dependera de que o processo de interacao funcione como um circuito aberto, com uma trajetéria em espiral, ou como um circuito fechado, viciado pela estereotipia. O mundo interno define-se como um sistema, no qual interagem relagdes e objetos, numa mttua realimentacao. Em sintese, a inter-relacdo intra-sistémica é permanente, enquanto se mantém a interagao com o meio. Formulare- mos os critérios de satide e doenga a partir das qualidades da interacao externa e interna. Esta concepgaéo do mundo interno e a substituigao da nogao de instinto pela de estrutura vincular (entendendo- se o vinculo como uma proto-aprendizagem, como 0 vefcu- lo das primeiras experiéncias sociais, constitutivas do sujeito como tal, com uma negagao do narcisismo primdrio) condu- zem necessariamente a definic&o da psicologia, num senti- do estrito, como psicologia social. Mesmo que essas ponderagdes tenham surgido de uma praxis e estejam sugeridas, em parte, em alguns traba- lhos de Freud (Psicologia das massas e andlise do ego), sua for- mulacao implicava romper com o pensamento psicanalitico ortodoxo, ao qual aderi durante os primeiros anos de mi- nha tarefa, e para cuja difusao contribuf com meu esforco constante. Acredito que essa ruptura tenha significado um verdadeiro “obstaculo epistemoldgico”, uma crise profun- da, em cuja superacao levei muitos anos, e que, talvez, s6 hoje, com a publicagao destes escritos, essa superago es- teja sendo realmente conseguida. Esta hipdtese poderia ser confirmada pelo fato de que, a partir da tomada de consciéncia das modificacées significa- Prology saussutgueaueuutaaueu nee tivas de meu quadro referencial, me voltei mais intensamen- te para o ensino, interrompendo o ritmo anterior de minha produco escrita. $6 em 1962, no trabalho sobre “Emprego de Tofranil no tratamento do grupo familiar’, em 1965, com “Grupo operativo e teoria da enfermidade tinica”, eem 1967, com “Introdugado a uma nova problematica para a psi- quiatria”, obtive uma formulacao mais totalizadora de meu esquema conceitual, ainda que alguns aspectos fundamen- tais desses trabalhos estejam relacionados entre si, e muito especialmente nos mais recentes, ou seja, “Propésitos e me- todologia para uma escola de psicdlogos sociais” e “Grupo operativo e modelo dramatico”, apresentados respectiva- mente em Londres e Buenos Aires, no Congresso Interna- cional de Psiquiatria Social e no Congresso Internacional de Psicodrama, no ano de 1969. A trajetéria de minha tarefa - que pode ser descrita como a investigagao da estrutura e do sentido do comporta- mento, na qual surgiu a descoberta de sua indole social - configura-se como uma praxis que se expressa em um es- quema conceitual, referencial e operativo. A sintese atual dessa investigacdéo pode evidenciar-se pela postulagaéo de uma epistemologia convergente segun- do a qual as ciéncias do homem dizem respeito a um obje- to tinico: “o homem-em-situagdo” suscetivel de uma abor- dagem pluridimensional. Trata-se de uma interciéncia, com uma metodologia interdisciplinar que, funcionando como unidade operacional, permite um enriquecimento da com- preensdo do objeto de conhecimento e uma mtitua reali- mentagao de suas técnicas de abordagem. E.P-R. Uma nova problematica para a psiquiatria’ A histéria da psiquiatria aparece demarcada, em dife- rentes épocas, pelas especulagées de alguns investigadores quanto a possibilidade de haver um parentesco entre todas as doencas mentais, a partir de um nticleo basico e universal. No entanto, essas tentativas, viciadas por uma concepco or- ganicista da equacao etiolégica (origem da doenga), excluem da patologia mental a dimensao dialética em que, através de saltos sucessivos, a quantidade se transforma em qualidade. A concepgao mecanicista e organicista leva, por exemplo, no caso da psicose maniaco-depressiva, a estabelecer uma di- visdo entre formas enddgenas e exdgenas, sem indicar a cor- relac4o existente entre ambas. Freud, por sua vez, sustenta que a relacao entre o endégeno e o exégeno deve ser vista como relagao entre o disposicional e os elementos vincula- dos ao destino do préprio sujeito. Ou seja, ha uma comple- mentaridade entre disposigio e destino. Acrescentamos a essa idéia que, quando se insiste no fator endégeno ou nao com- preensivel psicologicamente, os psiquiatras ditos classicos 1. Acta psiquidtrica y psicoldgica de América Latina, 1967, 13. (Numero em homenagem ao autor.) 1 Jeeseesani nae abinSEnEsISSEEERISESESEIIE _____ Oprocesso grupal deixam transparecer sua incapacidade de detectar 0 mon- tante de privagdo, que ao exercer impacto sobre um limiar, varidvel em cada sujeito, completa o aspecto pluridimensio- nal da estrutura da neurose ou da psicose. Ao considerar en- dégena uma neurose ou psicose, nega-se de forma implicita a possibilidade de modificd-la. O psiquiatra assume o pa- pel de condicionante da evolugao do paciente e entra no jogo do grupo familiar que tenta segregar o doente, por ser este o porta-voz da ansiedade grupal. Em sintese: 0 psiquia- tra transforma-se no lider da resisténcia 4 mudanga em ni- vel comunitario e trata o paciente como um sujeito “equi- vocado”, do ponto de vista racional. Nos tiltimos anos, ao uso instrumental da légica formal acrescentou-se 0 da légica dialética e 0 da nogao de conflito, em que os termos nao se excluem, mas estabelecem uma continuidade genética com base em sinteses sucessivas. A operacao corretora ou terapéutica é levada a termo seguin- do 0 trajeto de um vinculo nao linear, que se desenvolve na forma de uma espiral continua, através da qual se resolvem as contradi¢oes entre as diferentes partes do mesmo sujeito. Inclui-se assim uma problemética dialética no processo cor- retivo ou no vinculo com o terapeuta, que funciona como enquadramento geral, permitindo investigar contradicdes que surgem no interior da operacao e do contexto em que ela ocorre. A fragmentacao do objeto de conhecimento em domi- nios particulares, produto da fragmentac&o do vinculo, é seguida de um segundo momento integrador (epistemolo- gia convergente), cumprindo-se assim dois processos de sinais contrarios, que adquirem complementaridade atra- vés da experiéncia emocional corretora. Pode-se também afirmar que se trata de dois momentos de um mesmo pro- cesso, tanto na doenga como na corregao. Se esse acontecer € posto em movimento pelo terapeuta, seré impedida, se- gundo a eficdcia de sua técnica, a configuracdo de situagdes Uma nova problemtica para apsiquiatria dilematicas, génese de todo estancamento, e a formacado de esteredtipos de uma conduta que assume caracteristicas de desvio por falta de ajuste dos momentos de divergéncia e convergéncia. A dificuldade de integragaéo desses dois momentos é dada pela inevitavel presenga, no campo da aprendizagem, do obstaculo epistemoldgico. Esse obstaculo, que na teoria da comunicacao é representado pelo ruido e na situagao trian- gular pelo terceiro, transforma a espiral dialética da apren- dizagem da realidade num circulo fechado (esteredtipo), que atua como estrutura patogénica. O perturbador de todo o contexto de conhecimento é 0 terceiro, cuja presenga em nivel do vinculo e do didlogo condiciona os mais graves disturbios da comunicagdo e da aprendizagem da realida- de. Dai deriva minha definicado de vinculo, substituindo a denominagao freudiana de relagao de objeto. Todo vinculo, como mecanismo de interagao, deve ser definido como uma Gestalt, que é ao mesmo tempo bicorporal e tripessoal. (Gestalt como Gestaltung, nela introduzindo-se a dimensao temporal.) Dessa Gestalt vai surgir o instrumento adequado para apreender a realidade dos objetos. O vinculo configura uma estrutura complexa, que inclui um sistema transmissor-re- ceptor, uma mensagem, um canal, sinais, simbolos e ruido. Segundo uma anilise intra-sistémica e extra-sistémica, para obter eficacia instrumental é necessaria a similitude no es- quema conceitual, referencial e operativo do transmissor e do receptor; do contrario, surge o mal-entendido. Toda a mi- nha teoria da satide e da doenga mental centra-se no estudo do vinculo como estrutura. A adaptagao ativa a realidade, critério basico de satide, sera avaliada segundo a operativi- dade das técnicas do ego (mecanismos de defesa). Seu uso pluridimensional, horizontal e vertical, adaptativo, operacio- nal e gnosiolégico, em cada aqui e agora, ou seja, de uma for- ma situacional, através de um planejamento instrumental, 2 O proceso grupal deve ser tomado como sinal de satide mental, que se ex- pressa através de um limitado desvio ou bias* do modelo na- tural. Isso é possivel através de uma primeira fase, que po- demos chamar teérica, realizada através de técnicas de per- cepcdo, penetracdo, depositacao e ressonancia (empatia), em que 0 objeto é reconhecido e mantido a uma distancia 6tima do sujeito (alteridade). E por isso que tanto a quali- dade como a dinadmica do conhecimento condicionam uma atividade na qual se reconhece um estilo proprio de abor- dagem e de criagéo do objeto. Abordagem que tende a apreendé-lo e modificd-lo, constituindo-se assim 0 juizo de realidade, critério de satide e doenga mental, através de uma permanente referéncia, verificagao e avaliacao no mun- do externo. A adaptagao ativa a realidade e a aprendizagem esto indissoluvelmente ligadas. O sujeito sadio, 4 medida que apreende o objeto e o transforma, também modifica a si mesmo, entrando num interjogo dialético, no qual a sin- tese que resolve uma situacao dilematica se transforma no ponto inicial ou tese de outra antinomia, que devera ser re- solvida nesse continuo processo em espiral. A satide mental consiste nesse processo, em que se realiza uma aprendiza- gem da realidade através do confronto, manejo e solugao in- tegradora dos conflitos. Enquanto se cumpre esse itinerdrio, atrede de comunicagées é constantemente reajustada, e sé assim é possivel elaborar um pensamento capaz de um did- logo com o outro e de um confronto com a mudanca. Essa descricao refere-se a superestrutura do processo. O campo da infra-estrutura, depésito de motivos, necessi- dades e aspiragées, constitui o inconsciente com suas fan- tasias (motivagdo), que sdo 0 produto das relagdes dos mem- bros do grupo interno entre si (grupo interno como grupo mediato e imediato internalizado). Esse fendmeno pode ser * Em inglés no original. (N. doT.) Uma nova problemdtica para a psiquiatria estudado no contetido da atividade alucinatéria, em que o paciente ouve a voz do lider da conspiragaéo inconsciente em didlogo com o self, a quem controla e observa, ja que é uma parte projetada dele mesmo. Outro fato curioso do de- senvolvimento da psiquiatria é que até hoje se insistia ex- clusivamente na relagdo com o objeto perseguidor projeta- do, abrindo-se um campo tao vasto quanto 0 anterior ao se descobrir uma patologia do vinculo bom, e a dimensao grupal do contetido inconsciente, perceptivel através da nogao de grupo interno, em permanente inter-relagdo com o externo. Encontramos na fantasia motivacional, como fizemos na alu- cinacdo, uma escala de motivos, necessidades e aspiragdes que subjazem no processo da aprendizagem, da comunica- do e das operagdes que tendem a obtencao de gratificagao em relagdo com determinados objetos. A agio e a decisao alicergam-se nessa constelagéo de motivos e o ganho esta mais relacionado com a apreensao do objeto do que com a descarga de tensdes, como foi descrito por Freud. A apren- dizagem e a comunicagcao, aspectos instrumentais da con- quista do objeto, possuem uma subestrutura motivacional A conduta motivacional, a mais ligada ao destino do sujeito, consta também dessa dupla estrutura, na qual se pode observar que o aspecto direcional primario esta liga- do as etapas iniciais do desenvolvimento. O processo uni- versal que promove a motivagao é o da recriagdo do objeto, que adquire em cada sujeito uma determinagao individual, surgida da conjugacao das necessidades bioldgicas e do apa- rato instrumental do ego. O aspecto direcional secundario, escolha de tarefa, par, etc., passa pelo filtro grupal, que de- cide a escolha em definitivo. A descoberta da motivagao constitui a maior contribuigdo de Freud, que relacionou os fendémenos do “aqui e agora” com a histéria pessoal do su- jeito. Isso se chama “sentido de sintoma”. A dupla dimensao do comportamento, verticalidade e horizontalidade, torna-se compreensivel por uma psicolo- 14 Eee _____ Oprocesso grupat gia dinamica, historica e estrutural, distanciada da psiquia- tria tradicional, que se movimenta somente no campo do fenoménico e descritivo. A dupla dimensao condiciona as- pectos essenciais do processo corretivo. A corregao é obtida através da explicacdo do implicito. Essa concepgao coincide com 0 esquema que alguns filésofos, economistas e socié- logos relacionaram ao econémico-social, falando de uma superestrutura e de uma infra-estrutura, situando a necessi- dade como nticleo dinamico de ado. No ambito do proces- so terapéutico, a resolugao da fissura entre as duas dimen- sdes 6 conseguida através de um instrumento de producao, expresso em termos de conhecimento que permite a passa- gem da alienagao ou da adaptacao passiva num bias progres- sivo a adaptacao ativa a realidade. Em nossa cultura, 0 ho- mem sofre a fragmentagao e dispersdo do objeto de sua ta- refa, criando-se entao, para ele, uma situacdo de privacdo e anomia que lhe torna impossivel manter um vinculo com esse objeto, com o qual conserva uma relacao fragmentada, transitdria e alienada. Ao fator inseguranga diante de sua tarefa vem acres- centar-se a incerteza diante das mudangas politicas, sendo ambas sentimentos que repercutem no contexto familiar, no qual a privacgao tende a se globalizar. O sujeito vé-se im- potente no manejo de seu papel, e isso cria um baixo limite de tolerancia as frustragdes, em relagao com seu nivel de aspiragées. A vivéncia de fracasso inicia 0 processo de en- fermidade, configurando uma estrutura depressiva. A alie- nagao do vinculo com sua tarefa desloca-se para vinculos com objetos internos. O conflito internaliza-se em sua to- talidade, passando do mundo externo ao mundo interno com seu modelo primdrio da situagao triangular. Essa de- prtessao, que aparece com os caracteres estruturais de uma depressio neurdtica ou neurose de fracasso, submerge o su- jeito num processo regressivo para posi¢ées infantis. O gru- po familiar, em estado de anomia diante da doenga de um 15 Uma nova problemdtica para a psiquiatria de seus membros, incrementa a depressao do sujeito. Esta- mos no ponto de partida que, num processo de regressao, vai articular-se com uma estrutura depressiva anterior, re- forgando-a. E o momento, nesta exposicao, de considerar a vigéncia de outras depresses e analisd-las na diregao do desenvolvimento, no sentido inverso aquele seguido no processo terapéutico que parte do aqui e agora. Tomarei como esquema de referéncia aspectos da teo- ria de M. Klein, Freud e Fairbairn para tornar compreensi- vel minha teoria da enfermidade tinica. Levarei em consi- deracao as duas primeiras posigdes do desenvolvimento: a instrumental esquizoparandide e a depressiva (patogenéti- ca existencial), qual acrescento outra: a patorritmica (tem- poral), que inclui os diferentes tempos em que se manifes- tam os sintomas gerados na posigao patogenética ou de- pressiva, estruturada com base na posigo instrumental es- quizoparandide. Através de todo esse trajeto permanecerei conseqiiente com minha teoria do vinculo. Porém, antes de prosseguir na descricdo das posigdes, vamos estudar os in- gredientes da causagao de uma neurose ou psicose, ou, usan- do a formulacao de Freud: a equacao etiolégica. Entendo que os principios que regem a configuracao de uma estru- tura patoldgica sdo: 1) policausalidade, 2) pluralidade feno- ménica, 3) continuidade genética e funcional, 4) mobilida- de das estruturas, 5) papel, vinculo e porta-voz, 6) situagao triangular. Como primeiro principio devemos destacar o da poli- causalidade ou equacao ctiolégica, processo dindmico e con- figuracional, expresso em termos do montante de causagao. Em detalhe, os parémetros sao: fator constitucional, dividido em dois anteriores: 0 genético propriamente dito e o preco- cemente adquirido na vida intra-uterina. A influéncia sofri- da pelo feto através de sua relaco bioldgica com a mae ja inclui um fator social, visto que a seguranca ou inseguranga da mae estd relacionada com o tipo de vinculo que esta man- DOr et process grupal tém com seu parceiro ¢ a situacdo de seu grupo familiar. Levando em consideragao a situacao triangular, vemos que ela opera desde 0 inicio. Ao fator constitucional se acrescenta, no desenvolvimento, o impacto no grupo familiar. A inte- ragao desse fato com o fator anterior tem como resultado aquilo que se chama disposicao ou fator disposicional (se- gundo Freud, fixacao da libido numa etapa de seu percur- so), lugar ao qual se volta no processo regressivo com a fi- nalidade de se instrumentar, como aconteceu no momento disposicional. O regresso é promovido pelo fator atual, no qual o montante disposicional entra em complementarida- de com o conflito atual, descrito por mim como depressao desencadeante, iniciando-se ai uma regressdo que marca 0 comeco da doenga. Pluralidade fenoménica. Este principio baseia-se na con- sideracao de trés dimensGes fenoménicas da mente com suas respectivas projegdes, denominadas em termos de reas: rea um, ou mente; area dois, ou corpo; drea trés, ou mun- do exterior. Essas trés areas, fenomenicamente, tém impor- tancia enquanto o diagnéstico é feito em funcao do predo- minio de uma delas, ainda que uma anilise estratigrafica demonstre a existéncia ou coexisténcia das trés areas com- prometidas nesse processo em termos de comportamento, porém em diferentes niveis. E isso que constitui o compor- tamento na forma de uma Gestalt ou Gestaltung em perma- nente interagao das trés areas. No entanto, levamos em con- ta que 0 processo ordenador, ou seja, o planejamento, em termos de estratégia, tatica, técnica e logistica, funciona a partir do self situado na drea um, ou seja, que nenhum com- portamento lhe é estranho. Qualquer outra investigacéo que negasse esta totalidade totalizante cairia numa flagran- te dicotomia. As areas sao utilizadas na posicao instrumental esquizo- parandide que se segue a depresso regressiva, para situar Uma nova problemética para a psiquiatria os diferentes objetos e vinculos de sinais opostos num cli- ma de divaléncia, com a finalidade, como ja dissemos, de preservar o bom e controlar o mau, impedindo assim a fu- s&o de ambas as valéncias, o que significaria a configuracdo da posigdo depressiva e a aparicao do caos, do luto, da ca- tastrofe, da destrutividade, da perda, da solidao, da ambiva- léncia e da culpa. Se a posicao instrumental nao esta parali- sada, funciona na base do splitting, configurando os vinculos bom e mau, com seus respectivos objetos. Aqui aparece a fundamentacgéo de uma nosografia genética estrutural e funcional em termos de localizagéo dos dois vinculos nas trés areas, com todas as varidveis que podem existir. Por exemplo, a titulo de ilustragao: nas fobias, agorafobia e claus- trofobia, o objeto mau, parandide ou fobigeno, esta proje- tado na area trés e atuando; isso configura a situacao fobi- ca, em que tanto o objeto mau (fobigeno-parandide) como 0 objeto bom, sob a forma de acompanhante fébico estao situados na mesma Area. Por um lado, o paciente teme ser atacado pelo objeto fobigeno, preservando, por outro lado, © objeto acompanhante depositario de suas partes boas, por meio do mecanismo de evitacao. Assim nao se juntam, evitando a catastrofe que se poderia produzir diante do fra- casso da evitagao. Toda uma nosografia poderia manifes- tar-se em termos de area comprometida e valéncia do obje- to parcial. Essa nosografia, muito mais operacional do que as conhecidas, caracteriza-se pela compreensao na opera- ¢ao corretora, nos termos ja assinalados, e por sua mobili- dade ou passagem de uma estrutura a outra, constituindo o quarto principio que pode ser observado durante o adoecer e durante o processo corretivo. Continuidade genética e funcional. A existéncia de uma posicao esquizoparandide com objetos parciais, ou seja, 0 ob- jeto total cindido, pressup6e a existéncia de uma etapa pré- via em relagéo com um objeto total, com o qual se estabe- 18 O processo grupal lecem vinculos de quatro vias. A cisao ou splitting produz-se no ato do nascimento, e todo vinculo gratificante fara que o objeto seja considerado bom. E 0 que Freud chama (erra- damente, a meu ver) instinto de vida (Eros), enquanto a outra parte do vinculo primario e de seu objeto, com base em experiéncias frustrantes, se transforma em objeto mau, num vinculo persecutério, o que de novo Freud considera inStinto, neste caso, instinto de morte, agressao ou destrui- cdo (Thanatos). Como se vé, no meu entender, os instintos de vida ou de morte sao, de fato, uma experiéncia em forma de com- portamento em que o social esta incluido através de mo- mentos gratificantes ou frustrantes, produzindo-se a inser- do da crianga no mundo social. Ela adquire através dessas frustragGes e gratificagdes a capacidade de discriminar en- tre varios tipos de experiéncias como primeira manifesta- cdo de pensamento, construindo assim uma primeira esca- la de valores. A divisao do objeto total tem como motivagao impedir a destruigdo total do objeto, que, ao cindir-se em bom e mau, configura os dois comportamentos primérios em relagéo com o amar e ser amado, e odiar e ser odiado, ou seja, dois comportamentos sociais que determinam o comego do processo de socializagdo na crianca, que tem um papel e um status no interior de um grupo primario ou familiar. Retomando 0 ponto de partida da protodepressao, com 0 aparecimento do splitting como primeira técnica do ego, introduzimo-nos na posigaéo esquizoparandide, des- crita por Fairbairn e M. Klein de forma paralela aos meus primeiros trabalhos sobre esquizofrenia. Com o surgimento dessa técnica defensiva, configu- ram-se dois vinculos: uma situagéo de objeto parcial em relacao de divaléncia (e nao de ambivaléncia como definiu Bleuler), processos de introjegao e projegao, de controle oni- potente, de idealizagao, de negagao, etc. Levando em conta esse conceito da posigao esquizoparandide, é possivel revisar 19 Uma nova problemtica para a psiquiatrig 0 conceito de repressao, tao importante na teoria psicanalf- tica e ponto de partida da divergéncia entre Freud e P. Janet. Freud sustentava que o processo de repressao era uma es- trutura tinica e caracteristica na génese das neuroses; Janet, no entanto, entendia que o processo primario podia ser de- finido em termos de dissociagdo. Penso que a questao fica resolvida ao se considerar que a repressdo é um processo complexo que inclui a dissociagao ou splitting, processos de introjegao e projecao, e de controle onipotente, etc. Por exemplo, o fracasso deste tiltimo constitui o que Freud chama a volta do reprimido, que é 0 negado, o frag- mentado, 0 introjetado e projetado, podendo voltar a qual- quer das trés areas ou dimensdes fenoménicas em que a mente situa os vinculos e objetos para seu melhor manejo. Nesse voltar, o reprimido é vivido pelo self como 0 estra- nho e oalienado. A ansiedade dominante na posigao esqui- zoparandide é a ansiedade persecutéria ou parandide de ataque ao ego, como produto de uma retaliacao pela proje- cao da hostilidade* que volta agigantada ou realimentada, como um bumerangue, sobre o préprio sujeito. Essa ansie- dade parandide volta como se procedesse de objetos huma- nos ou deslocamentos, depositarios da hostilidade da qual 0 ego se liberou pela projegao. A essa ansiedade, a nica descrita anteriormente, acrescento a outra, proveniente das vicissitudes do vinculo bom, ou dependéncia de objetos de- positarios dessa qualidade de sentimentos. As alternativas sofridas por esse vinculo tém como produto outro tipo de ansiedade, diferente da persecutéria, com a qual, no entan- to, muitos a confundem: é 0 sentimento de “estar 4 mercé do depositario”. A ansiedade parandide e 0 “sentimento de estar 4 mer- é” (ansiedade depressiva da posicao esquizdide) sdo coe- 2. A hostilidade emerge como produto da frustrasao. 20 O processo grupal xistentes e cooperantes em toda estrutura neurdtica normal. A antiga diferenciagdo entre ansiedade, angustia e medo desaparece 4 medida que incluimos a dimensao do incons- ciente ou do implicito. As definigGes de ansiedade e angtis- tia estavam viciadas pelo conceito de relagado an-objetal. A posicao esquizoparandide vincula-se a crescente idea- lizagao do objeto bom, conseguindo 0 ego, por meio de sua técnica, a preservacao do objeto idealizado. A medida que se incrementa a idealizacdo do bom, aumentam o controle e o afastamento do mau e persecutério, tornando-se o pri- meiro um objeto invulnerdvel. Essa situagao de tensdo en- tre os dois objetos em diferentes dreas torna necessaria a emergéncia de uma nova técnica diante do carater insu- portavel da perseguicao: a negagado magica onipotente. Entre os outros processos que operam, devemos assi- nalar a identificacao projetiva. Nesse mecanismo, 0 ego pode projetar parte de si mesmo com diferentes objetivos: por exemplo, as partes mds, para livrar-se delas, assim como para atacar e destruir o objeto (irrup¢ao). Podem-se também pro- jetar partes boas, por exemplo, para coloca-las a salvo da maldade interna ou melhorar o objeto externo através de uma primitiva reparagao projetiva. Nesse momento, pode- mos compreender aquilo que chamo situagao depressiva esquizéide ou neurstica. Ela é produzida pela perda do con- trole do depositario e do depositado. Essa depressao nao deve ser confundida com a depressao da posigao depressi- va basica. Nesta, observamos a presenga de um objeto total, vinculos de quatro vias, ambivaléncia, culpa, tristeza, soli- dao em relagao a imagem do préprio sujeito. Na depressio esquizdide observa-se 0 vinculo com um objeto parcial, com depositacao dos aspectos bons. E uma depressao vivida fora, sem culpa, em uma situagao divalente e com sentimento de estar a mercé. O sentimento basico da depresséo esquizéide é a nos- talgia. M. Klein a descreveu, sem perceber sua estrutura di- ferenciada, quando se referiu a situagao de despedida nor- 21 Uma nova problemtica para a psiquiatria mal. A parte boa colocada no objeto viajante ou depositario afasta-se da pertenga do ego. Este fica enfraquecido, e a partir desse momento nao deixar de pensar em seu desti- no; e ainda que a preocupacao manifesta seja pelo deposi- tario, sua preocupaco esta vinculada ao estado das partes dele proprio que se desprenderam, criando-se uma situa- ¢ao de naufrdgio permanente. A nostalgia é algo diferente da melancolia. O termo, criado por Hofer, é uma condensagao das palavras gregas nostos — (vootoc) retorno — e algos — (aos) dor. O splitting permite ao ego emergir do caos e ordenar suas experiéncias. Esta na base de todo pensamento se con- sideramos que a discriminagao é uma das primeiras mani- festacgdes deste comportamento da area 1. Posicio depressiva. A posigao esquizoparandide, ao obter um manejo bem-sucedido das ansiedades dos primeiros meses, leva a crianga pequena a organizar seu universo in- terno e externo. Os processos de splitting, introjecdo e pro- jec4o permitem-lhe ordenar suas emocées e percepgées, separar 0 bom (objeto ideal) do mau (objeto mau). Os pro- cessos de integragdo tornam-se mais estaveis e continuos, surgindo um novo momento do desenvolvimento: a posi- cao depressiva caracterizada pela presenga de um objeto total e um vinculo de quatro vias. A crianga sofre um pro- cesso de mudanga subita e a existéncia de quatro vias no vinculo causa nela um conflito de ambivaléncia, do qual emer- ge a culpa. A maturacao fisiologica do ego traz como conse- qiiéncia a organizagéo das percepcées de origem miltipla, assim como o desenvolvimento e a organizagéo da mem6- ria. A ansiedade dominante, ou medo, refere-se a perda do objeto, devido a coexisténcia no tempo e no espago de as- pectos maus (destrutivos) e bons, na estrutura vincular’. 3. Que abrange 0 ego, 0 vinculo e o objeto. © processo grupal Os sentimentos de luto, culpa e perda formam um ni- cleo existencial junto a solidao. A tarefa do ego, nesse mo- mento, consiste em imobilizar 0 caos possivel ou iniciante, recorrendo ao tinico mecanismo ou técnica do ego perten- cente a essa posi¢ao: a inibigdo. Essa inibicdo precoce, mais ou menos intensa em cada caso, iré constituir uma pauta estereotipada e um complexo sistema de resisténcia 4 mu- danga, com perturbages da aprendizagem da comunica- cao e da identidade. A regressao a partir de posigdes mais elevadas do desenvolvimento a esses pontos disposicionais, que adquirem o contexto daquilo que M. Klein chamou de neurose infantil, traz como conseqiiéncia a reativacdo desse esteredtipo que denominamos depresséio bdsica, com a pa- ralisagao das técnicas instrumentais da posicao esquizéide. Se 0 processo regressivo do adoecer consegue reativar o splitting e todos os outros mecanismos esquizdides, com a reestruturagdo de dois vinculos com objetos parciais, um to- talmente bom e outro totalmente mau, configuram-se en- tao as estruturas nosograficas, segundo a localizacao des- ses objetos nas diferentes areas. As duas posicdes descritas por M. Klein e Fairbairn (es- truturas predominantemente espaciais), acrescentamos 0 fator temporal para construir a estrutura tetradimensional da mente. A situacao patorritmica expressa-se em paradas, velocidades ou ritmos que constituem momentos de estru- turaco patoldgica, que vao da inibicao e desaceleracgao dos processos mentais ao pélo explosivo, onde tudo acontece com as caracteristicas das crises coléricas infantis (e de onde tomarao sua configuracao). Se essa bipolaridade chega a predominar na maneira de ser e de expressar-se das ansie- dades e das técnicas do ego que tendem a controld-las e elabord-las, encontramo-nos no amplo campo da enfermi- dade paroxistica (epilepsia). Na equacao etiopatogénica da neurose e psicose, deve- mos considerar 0 que acontece no processo do adoecer e do Una nova problemdtica para a psiquiatria 23 recuperar-se, durante a operagao corretora com o psicote- rapeuta, assim como a reparagéo dos aspectos instrumen- tais do par aprendizagem-comunicagao. E a essa perturba- cao — uma estrutura com vigéncia na posigao depressiva do desenvolvimento, e com antecedentes constitucionais — que se retorna (partindo da depressao desencadeante) no pro- cesso regressivo. A funcionalidade desse processo deve ser descrita em termos de “voltar ao lugar onde as técnicas do ego foram eficientes”; mas ao imobilizar e dificultar a estru- tura depressiva, esta se torna rigida, repetitiva (esteredtipo), permanecendo, de forma latente, como posicao basica. Essa estrutura atuou como ponto disposicional no momento do desenvolvimento, e, se houve um bom controle dos medos basicos, ficou estancada como estrutura prototipica que constitui o nticleo patogenético do processo do adoecer. Isso é 0 que eu chamo de depressao basica (depressao do desenvolvimento, acrescida da depressao regressiva com aspectos da protodepressao). Denomino depressiio desencadeante a situagao habitual de comego, cujo denominador comum foi expresso por Freud em termos de privagao de ganhos vinculados em ni- vel de aspiracao. Esse fator pode ser retraduzido quando se estuda sua estrutura, em termos de depressao por perda ou privagao. Nao sé em termos de satisfacao da libido e seu estancamento, mas também em termos de privagdo de ob- jeto, ou situacao em que o objeto aparece como inatingivel por impoténcia instrumental de origem miltipla. A impossi- bilidade de estabelecer um vinculo com o objeto acarreta primeiro fantasias de recuperagao, nas quais 0 fantasiado esta em relacao com os instrumentos do vinculo (exemplo: caso. do membro-fantasma na amputagao de um brago; ne- gacdo da perda do membro). Isso constitui a defesa ime- diata diante da perda que, contudo, nao resiste 4 confron- taco com a realidade e faz 0 sujeito mergulhar na depres- sao. Ao impor-se a cruel verdade da perda, inicia-se a re- a ________ Oprocesso grupal gressdo e elaboracao do luto que configuram a complexi- dade fenoménica e genética da depressao regressiva. Em sintese, a estrutura da pauta depressiva da conduta esta assentada na situagaéo de ambivaléncia diante de um objeto total. Dessa situagdo de ambivaléncia surge a culpa (amor e ddio diante de um mesmo objeto, num mesmo tem- po e espaco). A ansiedade depressiva deriva do medo da perda real ou fantasiada do objeto, o conflito de ambiva- léncia, produto de um vinculo quadruplo (0 sujeito ama e sente-se amado, e odeia e sente-se odiado pelo objeto), pa- ralisa 0 sujeito devido a sua intrincada rede de relagdes. A inibicao centra-se em determinadas fungées do ego. A tris- teza, a dor moral, a soliddo e o desamparo derivam da per- da do objeto, do abandono e da culpa. Diante dessa situa- cao de sofrimento surge a possibilidade de uma regressao a uma posicao anterior, operativa e instrumental para 0 con- trole da ansiedade da posigao depressiva. O mecanismo ba- sico é a divisao do ego e seus vinculos, e o surgimento do medo do ataque ao ego, seja a partir da area 2 (hipocondria) ou a partir da drea 3 (parandia). Aparece também um medo depressivo diante do objeto bom depositado, com senti- mento de estar a mercé e de nostalgia. As neuroses sao técnicas defensivas contra as ansieda- des basicas. S40 as mais bem-sucedidas e préximas do nor- mal e estao distanciadas da situagdo depressiva basica pro- totipica. As psicoses sao também formas de manejo das ansiedades basicas, assim como a psicopatia. As perversdes sao formas complexas de elaboragao da ansiedade psicstica, e seu mecanismo centra-se no apaziguamento do perse- guidor. O crime é uma tentativa de aniquilar a fonte de an- siedade projetada a partir da area 1 para o mundo exterior, enquanto esse mesmo processo, quando internalizado, con- figura a situacSo de suicidio. A “loucura” é a expressdo de nossa incapacidade para suportar e elaborar um montante determinado de sofrimento. Esse montante e o nivel de ca- Uma nova problemdtica para apsiquiatria pacidade sao especificos para cada ser humano e consti- tuem seus pontos disposicionais, seu estilo proprio de ela- boragao. Depressio iatrogénica, Denominamos depressao iatro- géenica 0 aspecto positivo da operacao psicoterdpica, que consiste em integrar 0 sujeito através de uma dosificagao operativa de partes desagregadas e fazer que a constante universal de preservacio do bom e controle do mau funcione em niveis sucessivos, caracterizados por um sofrimento to- lerdvel, por diminuigao do medo da perda do bom e uma diminuicgao paralela do ataque durante a confrontacgdo com a experiéncia corretora. Na adjudicagao sucessiva de papéis que ai se realiza, o psicoterapeuta deve ter a flexibilidade su- ficiente para assumir o papel adjudicado (transferéncia), nao 0 atuando (acting in do terapeuta), mas introduzindo-o (in- terpretagao) em termos de uma conceitualizacao, hipdtese ou fantasia acerca do acontecer subjacente do outro, estan- do atento para sua resposta (emergente), que, por sua vez, deve ser retomada num continuo, como um fio de Ariadne em forma de espiral. Agora j4 podemos formular 0 que deve ser considerado como unidade de trabalho, tinico método que, por suas possibilidades de predicao, mais se aproxima de um método cientifico, de acordo com critérios tradicio- nais. Critérios que, por sua vez, devem ser analisados para nao se tornarem vitimas de esteredtipos, que, atuando a partir de dentro do ECRO, de maneira quase inconsciente, funcionam da parte do terapeuta como resisténcia 4 mu- danga. A unidade de trabalho é composta por trés elementos que representam 0 ajuste da operacao: existente-interpre- tagao-emergente, O emergente é expresso no contexto da operagao e tomado pelo terapeuta como material. Quando 0 contetido é multifacetado e, em seguida, atua fora pelo paciente, configura-se o acting out, diante do qual o tera- peuta nao tera de emitir juizo segundo uma ética formal, 26 Oprocesso grupal mas funcional, relacionando-o com o aqui e agora que in- clui aspectos positivos vinculados com a aprendizagem da realidade ou da reparacdo das comunicagées. Se o terapeuta julga o paciente em terrnos de bom, mau, imoral, etc., poe em risco sua possibilidade de compreensao. No processo corretor, através de fendmenos de apren- dizagem, comunicacdo e sucessivos esclarecimentos, dimi- nuem os medos basicos e possibilita-se a integracdo do ego, produzindo-se a entrada em depressdo e a emergéncia de um projeto ou prospectiva que inclui a finitude como situa- co propria e concreta. Aparecem mecanismos de criagao e transcendéncia. Entao a posicao depressiva da oportunida- de ao sujeito de adquirir identidade, base do insight, e faci- lita uma aprendizagem de leitura da realidade por meio de um sistema de comunica¢Ges, base da informagao. Em sin- tese, as conquistas da penosa passagem pela posigéo de- pressiva, situagao inevitavel no processo corretor, incluem a integracdo que coincide com a diminuigao dos medos ba- sicos, reativados pelo processo desencadeante, a diminui- cdo da culpa e da inibigdo, o insight, a movimentagao de me- canismos de reparagao, criagao, simbolizacgao, sublimacao, etc., que tém como resultado a construgdo do pensamento abstrato, que, por nao arrastar 0 objeto subjacentemente existente, acaba sendo mais util, flexivel, capaz de avalia- cOes em termos de estratégia, tatica, técnica e logistica de si mesmo e dos outros. O planejamento e a prospectiva, juntamente com as tl- timas técnicas citadas, constituem o que Freud chama de processo de elaboragao que se segue ao insight. Esse pro- cesso, uma vez ativado, persiste ainda que se interrompa 0 vinculo com o terapeuta, continuando-se a elaboragao de- pois da anilise (after analysis). Isso acontece quando o pro- cesso corretor seguiu uma estratégia adequada. Paradoxal- mente, 6 0 momento dos maiores ganhos para a autocon- ducao. Com a depressao iatrogénica, fechamos nosso esque- Uma nova problemdtica para a psiquiatria 27 ma das cinco depressées: protodepressao, de desenvolvimen- to, desencadeante, regressiva, iatrogénica. Elas constituem o nticleo basico do acontecer da enfermidade e da cura. Retomando os componentes da causacgao configura- cional, depois do principio de continuidade genética estru- tural e funcional através de cinco depressées, irei referir-me ao quarto principio: mobilidade e interacio das estruturas. Ja assinalamos 0 carter funcional e significativo das estrutu- ras mentais que adquirem a fisionomia do que chamamos doenca mental. Uma anilise seqiiencial e estratigrafica pro- va-nos 0 carater complexo e misto de cada uma delas, dife- renciando-se umas das outras pelo cardter dominante da colocag&o dos medos basicos em cada area, através de vin- culos significativos. Geneticamente, observa-se no desen- volvimento o mesmo que no processo de adoecer e no pro- cesso corretor. As estruturas sao instrumentais e situacio- nais em cada aqui e agora do processo de interacao. As dis- cussées bizantinas dos psiquiatras devem-se, em grande parte, a um mal-entendido, ja que a estrutura que foi vista em um momento de observacao pode variar no tempo e no espago, considerando-se que a relagéo vincular com o pes- quisador determina a configuragéo de estruturas com esse carter funcional, instrumental, situacional e vincular, figu- rando este tiltimo em relagao com 0 tipo especifico de codi- ficagdo e decodificagao, aprendizagem, etc. Por isso susten- tamos esse principio em seus aspectos fenomenoldgico e genético, estrutural e clinico. Quinto principio: vinculo, papel, porta-voz: jA definimos © conceito de vinculo como uma estrutura complexa de in- teracao, nao de forma linear, mas em espiral, fundamento do didlogo operativo, em que a cada giro hé uma realimen- taco do ego e um esclarecimento do mundo. Quando essa estrutura se estanca pelo montante dos medos basicos, pa- talisam-se a comunicagado e a aprendizagem: estamos na 28 Oprocesso grupal presenca de uma estrutura estatica e nado dinamica, que im- pede uma adaptagao ativa a realidade. O conceito de papel, incorporado a psicologia social e desenvolvido por G. H. Mead, o grande precursor dessa disciplina, que baseou todo o seu desenvolvimento tedrico no conceito de papel, de sua interacdo, 0 conceito de mim, de outro generalizado, que representaria o grupo interno como produto de uma internalizagao dos outros, padece, no entanto, de uma limitagdo que resolvemos incorporan- do a idéia de grupo interno ou mundo interno do sujeito a internalizagéo chamada ecoldgica. Consideramos que a in- ternalizagao do outro nao se faz como a de um outro abs- trato e isolado, mas inclui os objetos inanimados, o habitat em sua totalidade, que alimenta intensamente a constru- cao do esquema corporal. Defino este tiltimo como a repre- sentagao tetradimensional que cada um tem de si mesmo em forma de uma Gestalt-Gestaltung, estrutura cuja patolo- gia compreende os aspectos da estrutura espago-temporal da personalidade. A nogao popular de “queréncia”, ou “pago”, vai muito além das pessoas que a integram, e isso é observado nas rea- des das situacdes de migracdo: o medo da perda paralisa o migrante camponés no momento em que tem de assumir um papel urbano, provocando sua marginalizagao. Reto- mando 0 conceito de papel, consideraremos algumas situa- gGes que se apresentam com maior freqiiéncia nos grupos operativos. O campo do grupo operativo esta povoado por Ppapéis prescritos ou estabelecidos, que definimos em termos de pertenga, afiliacao, cooperagao, pertinéncia, comunica- cdo, aprendizagem e telé, os quais, representados na forma de um cone invertido, convergem como papéis ou fungdes para provocar na situacao de tarefa a ruptura do esterestipo. Pode-se dizer que, no acontecer do grupo, determina- das pessoas vao assumir esses papéis correspondentes de Uma nova problematica para a psiquiatria ee acordo com suas caracteristicas pessoais: porém, nem tudo se realiza em termos de uma tarefa positiva. Outros papéis, de certa maneira prescritos por sua fre- qiiéncia, so assumidos por membros do grupo, como os papéis de porta-voz, sabotador, bode expiatério e, quando algum deles vem associado a comando, o papel de lider (0 lider autocratico, democratico ao qual acrescento o dema- gdgico, cuja estranha auséncia nos pesquisadores nos cha- ma a atencao). Os membros do grupo podem assumir os pa- Péis prescritos, e, quando a adjudicagao ou assunciio do papel se realiza adequadamente deniro dos limites do lugar que ocupam, sua funcionalidade aumenta. Certos papéis, como o de conspirador ou sabotador, sao geralmente eleitos pelo extragrupo e introduzidos no intragrupo com uma missao secreta de sabotar fundamentalmente a tarefa e o esclareci- mento. Essas infiltragdes, em forma de conspiracdo, devem ser tomadas como um fato natural e sao as forcas que atuam a partir de fora, introduzidas no interior do grupo com a fi- nalidade de sabotar a mudanga, ou seja, so representantes da resisténcia 4 mudanga. Papéis por delegac3o, as vezes com infinitos degraus, mas que desembocaraéo em outro grupo, o qual, como grupo de pressao, assume na comuni- dade o papel da resist@ncia 4 mudanga e do obscurantismo. O nivel de cooperagao nos pequenos grupos pode ser operativo, porém também o é, principalmente, nos grupos maiores. Quando as liderancas adquirem um campo maior, a identificagao cooperativa soma-se a identificagao chama- da cesariana, que pode exercer um papel na histéria quan- do as situagGes grupais estéo em perigo, ou sao incapazes de compreender 0 processo histérico, e quando o medo rea- tivado por situagdes de inseguranca e perigo torna-se per- secutorio. O movimento regressivo dirigido por um lider cesariano tenta entdo controlar o grupo ou tomar o poder. As identificagdes deste tipo entre os membros de um grupo ou comunidade, massa e lider, conduzem & idéia de que a 30 Oprocesso grupal desgraca que caiu sobre a comunidade foi produzida exclu- sivamente por uma conspiragao de certas pessoas ou gru- pos, aos quais é adjudicado o papel de responsaveis e de bodes expiatérios. Porém, é freqiiente encontrar um fio con- dutor que vai da lideranga ao “bode expiatério”, no qual am- bos desempenham uma espécie de role-playing, em que um éobom eo outro é o mau. Situagao triangular © complexo de Edipo, tal como foi descrito por Freud, com suas variantes negativas e positivas, pode ser com- preendido de uma maneira muito mais significativa se re- corrermos @ sua representacao espacial em forma de um triangulo, colocando no angulo superior o filho, no 4ngulo inferior esquerdo, a mae, e no angulo inferior direito, o pai. Seguindo a diregdo de cada lado do triangulo, temos uma representagao de quatro vinculos. Por exemplo: a crian- a, num primeiro nivel, ama e sente-se amada pela mae; num nivel subjacente, odeia e sente-se odiada pela mae; no outro lado esta a relagéo da crianga com o pai, na qual, num primeiro nivel, odeia e sente-se odiada e, num segun- do nivel, ama e sente-se amada. O que poucas vezes é as- sinalado é o parametro que opera desde a vida pré-natal. E a estrutura vincular entre mae e pai, na qual um ama e sen- te-se amado pelo outro, ou odeia e sente-se odiado pelo outro. Fazendo abstracao dos participantes, este vinculo te- tia também quatro vias; mas, na realidade, visto simulta- neamente a partir de cada um dos extremos, complica-se mais ainda, porque tanto um como outro adjudicam e as- sumem papéis originarios de cada um dos membros do ca- sal. O montante de adjudicagGes e assungdes dependerd do papel de ser amado e ser odiado. Essa totalidade, verdadei- ra selva de vinculos, forma uma totalidade totalizante, ou Uma nowa problematica para a psiquiatria 31 seja, uma Gestalt em que a modificagao de um dos parame- tros acarreta a modificagao do todo. Cerca de 80% dos trabalhos que tratam da crianga e de seus vinculos referem-se a relacéo com a mae; o pai apare- ce como uma personagem escamoteada, mas por isso mes- mo operativa e perigosa. E a nogo do terceiro, que defini- tivamente nos leva a definir a relagaéo bipolar ou vinculo como sendo de carter bicorporal, mas tripessoal O terceiro, na teoria da comunicagao, ¢ representado pelo ruido, que interfere numa mensagem entre emissor e receptor, conceito este que, ao ser aplicado em qualquer si- tuacao de contflito social, nos faz de novo encontrar a situa- co triangular como estrutura basica e universal. Partem de cada Angulo, por deslocamentos sucessivos, pessoas que desempenham papéis semelhantes com relacao a idade e sexo; dessa maneira, separamo-nos progressivamente do endogrupo endogamico para o extragrupo exogamico, que representa a sociedade. No endogamico, 0 tabu do incesto orienta as linhas de parentesco com suas proibigGes e tabus, e dessa maneira passamos da psicologia individual, com sua situagdo endopsiquica, a psicologia social, que trata das inter-relages no endogrupo ou intragrupais, e finalmente a sociologia, quando tratamos das inter-relacdes intergrupais. Eo campo do exogrupo, ambito especifico da sociologia. Se consideramos a fungao partindo desses parametros, podemos falar de comportamento econémico, politico, re- ligioso, etc., num nivel grupal ou comunitario, cuja andlise e evolucao se realizam partindo das seis fung6es descritas: pertenga e afiliagao, cooperagao e pertinéncia, aprendizagem, comunicacao e telé, cooperando nos niveis corresponden- tes aos dos campos das ciéncias sociais mencionadas e diri- gidas para uma situagao de mudanga que pode ser descrita nos niveis individual, psicossocial, comunitario e nas dire- ¢6es dos comportamentos. A nogao de tarefa em psiquiatria' (em colaboragao com o dr. A. Bauleo) A nog&o de tarefa na concepgao de psicologia social por nés proposta permite-nos um posicionamento diante da patologia e, por sua vez, uma estrutura de linhas de acao. Para isso, distinguiremos trés momentos abrangidos por essa nocdo: a pré-tarefa, a tarefa e o projeto. Esses momentos apresentam-se numa sucessao evolutiva, e seu surgimento e interjogo constante podem situar-se diante de cada situa- do ou tarefa que envolva modificagdes no sujeito. Iremos desenvolvendo cada um desses momentos sa- bendo, desde ja, que sdo proposigGes relativas a posigdes te- rapéuticas, e como tais devem ser admitidas, isto é, como proposigées. Na pré-tarefa situam-se as técnicas defensivas, que es- truturam o que se denomina resisténcia 4 mudanca e que sao mobilizadas pelo incremento das ansiedades de perda e ataque. Essas técnicas sao empregadas com a finalidade de pos- tergar a elaboracdo dos medos basicos; por sua vez, estes tl- timos, ao se intensificarem, operam como obstaculo episte- molégico na leitura da realidade. Ou seja, estabelece-se uma 1.1964, 34 O proceso grupal distancia entre o real e o fantasiado, que é sustentada por aqueles medos basicos. A pré-tarefa também aparece como campo no qual o projeto e a resisténcia 4 mudanga seriam as exigéncias de sinais opostos e criadoras de tensao; a busca de safdas para essa tensdo é obtida através de uma figura transacional, re- solugdo transitoria da luta: aparece o “como se” ou a im- postura da tarefa. Tudo é feito “como se” se tivesse execu- tado o trabalho especificado (ou a conduta necesséria). Os mecanismos defensivos atuantes no momento da pré-tarefa sao os caracteristicos da posigdo esquizoparandide (M. Klein), instrumental e patoplastica (P.-Riviére); mecanis- mos que operam como meios de expressdo e configuragdo das estruturas patolégicas (neurose, psicose, perversdes, etc.). Além disso, é nessa pré-tarefa que se observa um jogo de dissociagdes do pensar, atuar e sentir, como que fazendo parte também dos mecanismos enunciados anteriormente. Podemos estipular que 0 “como se” aparece através de condutas parcializadas, dissociadas, semicondutas ~ pode- riamos dizer -, pois as partes sao consideradas como um todo. E impossivel a integragao dos aspectos manifestos e latentes numa denominagao total que os sintetize. O problema da impostura nos é apresentado nessas se- micondutas da pré-tarefa. Se a significagao esta reduzida e © sujeito ndo apresenta a opacidade que sua presenga re- quer, ha uma certa transparéncia. Com a falta de totalida- de, efetua-se em seu corpo a decantacdo significativa. O sujeito é uma caricatura de si proprio, seu “negativo”. Fal- ta-lhe a revelagéo de si mesmo, sua denominacdo como homem. A situagao se lhe apresenta com um sabor de es- tranheza, e é essa estranheza que o desespera; para supe- rd-la recorre a comportamentos estranhos a ele como su- jeito, porém coerentes com ele enquanto homem alienado. Entrega-se entdo a uma série de “tarefas” que lhe per- mitem “passar 0 tempo” (mecanismo de postergacao, atrds 35 A nogdio de tarefia em psiquiatria__ do qual se oculta a impossibilidade de suportar frustrages de inicio e término de tarefas, causando, paradoxalmente, uma constante frustracao). Os mecanismos de defesa sao somente elementos for- mais, cujo contetido (tarefa e projeto para cada sujeito) esta dissolvido neles. O sujeito aparece como mais uma estru- tura daqueles mecanismos e seus fins esgotam-se em cada manifestac4o. Portanto, o que se observa so maneiras ou formas de ndo entrar na tarefa. O momento da tarefa consiste na abordagem e elabo- racao de ansiedades, e na emergéncia de uma posigao de- pressiva basica, na qual 0 objeto de conhecimento se torna penetravel pela ruptura de uma pauta dissociativa e este- reotipada, que vinha funcionando como fator de estanca- mento da aprendizagem da realidade e de deterioragéo da rede de comunicacao. Na tarefa, aquela posigdo depressiva requer elabora- cdo, processo cuja significagéo central esta em tornar “consciente o inconsciente”, e no qual se observa uma total coincidéncia das diferentes areas de expressao fenoménica. O sujeito apareceria com uma “percepgao global” dos elementos em jogo, com a possibilidade de manipuld-los e com um contato com a realidade no qual, por um lado, Ihe é acessivel o ajuste perceptivo, ou seja, o situar-se como sujeito, e por outro lado, lhe é possivel elaborar estratégias e taticas mediante as quais pode intervir nas situagdes (projeto de vida), provocando transformagées. Essas trans- formagées, por sua vez, modificarao a situagao, que se tor- nara entao nova para o sujeito, e assim 0 processo comega outra vez (modelo da espiral). Na passagem da pré-tarefa para a tarefa, 0 sujeito efe- tua um salto, ou seja, a acumulagao quantitativa prévia de insight realiza um salto qualitativo durante 0 qual o sujeito 36 _____ Oprocesso grupal se personifica e estabelece uma relacdo com 0 outro dife- renciado. No contexto da situagao terapéutica, corretora, a situa- ¢a0 transferencial e contratransferencial ocorre, principal- mente, no ambito da pré-tarefa do sujeito. Se confunde a pré-tarefa com a tarefa, o terapeuta entra no jogo da neu- rose transferencial e atua nela. A tarefa do terapeuta trans- forma-se em pré-tarefa, ao ter ele mesmo resisténcia a en- trar em sua tarefa especifica, por evitar o problema essencial do tornar-se responsavel, do “compromisso”, do ser cons- ciente e do projeto. (Resisténcias ideoldgicas a praxis.) Conclui-se entao que as nogées de pré-tarefa, tarefa e projeto apareceriam como elementos para situar uma ati- tude terapéutica. Seria esquematico resumir, sob a nocdo de tarefa, tudo © que implica modificagao em dupla diregao (a partir do su- jeito e para o sujeito), envolvendo assim a constituicdo de um vinculo. Trata-se de estabelecer uma nog&o que englobe, ao examinar um sujeito, sua relagéo com os outros e coma si- tuagao. A nogao “trabalho” tem a conotacio ideolégica de ser feito por alguém, modificando algo. Sua indeterminagaio faz que diversas concepcées filosdficas, teoldgicas e metafi- sicas tenham falado a respeito dele. Para nés também é um elemento ideoldgico, mas sua incluso em nossa concepgéio psicossociolégica tem por finalidade, como eu disse ante- tiormente, elaborar, através de esquemas adequados, cer- tas situacGes praticas. O estabelecer pré-tarefa, tarefa e pro- jeto como momentos situacionais de um sujeito, permite- nos uma aproximacao e um diagnostico de orientacao. Pois em cada um desses momentos configuram-se um pensar, um sentir e um agir, cuja discriminacao é central para toda terapia. Mas isso, por sua vez, nos leva a pensar que, se situa~ Mos 0 sujeito em cada uma dessas situagdes, em diregao a alguém com quem esta relacionado, nao ser4 necessdrio Annogio de tarefa em psiquiatria = estabelecer 0 porqué e o para qué da situagao total e de cada momento particular. E é assim que, tanto em relacao a si- tuagdo geral como diante de nds mesmos enquanto obser- vadores, temos de agir logo sobre esses mecanismos, jé que 0 porqué e o para qué da situacao assim se nos apresentam: Por outros Para outros Etiopatogenia _— Diagndstico Profilaxia Profilaxia Tratamento Por tiltimo, diremos que estabelecer pré-tarefa, tarefa e projeto consiste na busca de nogées que, partindo da supo- sicio do homem-em-situacao (Lagache), permitam esta- belecer melhor a relacdo entre os dois limites dessa suposi- do, para poder operar no campo pratico. Praxis e psiquiatria' 1) A praxis da higiene mental, tarefa essencialmente social, nutre-se das principais teorias provenientes de diferentes posturas ideolégicas. Segundo seu esquema referencial, qual a contribuicgao desse mesmo esquema para a higiene mental? Chama a minha atencdo 0 uso de uma linguagem que entra em flagrante contradigao com 0 aspecto da semantica e da tarefa. Ao perguntar se a praxis da higiene mental, ta- tefa essencialmente social, se nutre das principais teorias provenientes de diferentes posturas ideolégicas, poderiamos responder dizendo que nao existe uma praxis da higiene mental. Jalvez exista uma confusdo entre métodos de hi- giene mental. De qualquer maneira, ainda que o problema formal esteja repleto de mal-entendidos, a “tarefa essen- cialmente social” centra o problema nao sobre os métodos da HM, mas sobre os métodos ou estratégias de como mu- dar a estrutura socioeconémica da qual emerge um doente mental. Ha mais de vinte anos venho sustentando que o doente mental é 0 porta-voz da ansiedade e dos conflitos 1. Reportagem realizada pela Revista Latinoamericana de Salud Mental, 1966. i O processo grupal do grupo imediato, ou seja, do grupo familiar. E essas an- siedades e conflitos que sao assumidos pelo doente sao de ordem econémica e acabam acarretando um sentimento crénico de inseguranga, um indice de ambigiiidade consi- derdvel e, principalmente, um indice de incerteza também crénico, submetido a ziguezagues, de acordo com a situa- ¢ao hist6rica de cada momento. O paciente, se for analisa- do detidamente, esta denunciando: ele é 0 “alcagiiete” da subestrutura da qual ele se tornou responsavel e que traz como conseqiiéncia o emprego de técnicas de marginalida- de ou segregagao (intemamento em hospital psiquidtrico), em que num interjogo implicito, mas certamente nao ex- plicito, o psiquiatra assume o papel de resisténcia 4 mudan- ¢a, ou seja, de mantenedor da cronicidade do paciente. Ele esta inexoravelmente comprometido com a situacao e, des- sa maneira, é leal 4 sua classe social. Poderiamos chegar a uma interpretagao mais profunda, com o risco de atrair a repulsa dos psiquiatras como comunidade, se empregar- mos a palavra simbolo, j4 que alguns acreditam que ela foi uma invencao de Freud. O doente mental, entao, é 0 simbolo e depositario do aqui e agora de sua estrutura social. Curd-lo € transforma-lo ou adjudicar-lhe um novo papel, 0 de “agen- te de mudanga social”. Assim, estamos em plena militan- cia, todos estéo comprometidos através de uma ideologia com revestimentos cientfficos. Quanto as principais teorias provenientes de diferentes “posturas”, sao simplesmente ideologias. A psicoterapia tem como finalidade essencial a transformagao de uma situacao frontal numa situacdo dia- lética, que percorre um trajeto com a forma de uma espiral permanente, através de uma tarefa determinada. Ali sim, encontramos o verdadeiro sentido da praxis, no qual teoria e pratica se realimentam mutuamente através dessa suces- sao, resultando na criagéo de um instrumento operacional que configura uma situacdo que poderiamos denominar “operagdo-esclarecimento”. O que chamamos ECRO, esque- Prixis e psiquiatria__ ere EtesuaEE suite ma conceptual, referencial e operativo, é 0 produto da sintese de correntes aparentemente antag6nicas, mas principal- mente ignoradas, situagao que cria, por exemplo, pelo des- conhecimento da psicandlise, um clima sonolento e de bi- zantinismo. Finalizando essa resposta, direi que o psiquiatra, em geral, tem todas as caracteristicas de uma personalida- de autoritdria etnocéntrica, que pensa sempre em termos absolutos e nao dialéticos; e naqueles que aparentemente pensam dessa forma dialética, suas proposigGes chegam a estereotipar-se de tal modo, “como se as tivessem estudado de memoria”, transformando-se paradoxalmente em pes- soas que, devendo ter adquirido flexibilidade e personali- dade democratica, se comportam da mesma maneira que os primeiros, de forma autoritdria, absoluta, sem aberturas, chegando alguns deles a situar-se na mais covarde das po- sig6es, que é dificil de pronunciar, e que se intitula ecleticismo. 2) Complementam-se essas idéias com as provenientes de ou- tras escolas? Se considerarmos o homem como um ser total e totali- zante em pleno desenvolvimento dialético, as idéias com as quais se prope atuar sobre ele so emergentes das pré- prias contradigées do paciente e absorvidas pelo terapeuta, configurando-se uma situacao alienada e realimentada por ambos os personagens. Toda compreensao do paciente men- tal deve partir da compreensAo vulgar, ou seja, de uma psi- quiatria da vida cotidiana. O grau de profundidade a que se pode chegar dependera do instrumental operacional e situa- cional empregado por cada psiquiatra, j4 que no final das contas nao existem progndsticos em relacao as enfermida- des, mas sim prognésticos em relagao a cada terapeuta. 3) Considera possivel o trabalho em comum de investigado- res de diferentes ideologias cientificas no campo da satide mental? Sou um veterano da investigacao grupal, sempre que o grupo seja manejado com técnicas operativas centradas na BO process grup tarefa (a doenca mental), e nao se gaste o tempo da tarefa no pingue-pongue da pré-tarefa, nas discussGes intermi- naveis sobre ideologias cientificas. A tarefa deve estar cen- trada no como obter uma maior satide mental numa co- munidade especifica, situada no tempo e no espago. 4) No campo concreto da praxis, e de acordo com seus princi- pios tedricos e com suas experiéncias, que medidas praticas consi- dera oportunas para uma educagao sanitdria em higiene mental? Primeiramente, eu faria que o estudante de psiquiatria entendesse o sentido real da praxis e nado o dissociasse em campos concretos e principios tedricos. O melhor meio di- datico para formar psiquiatras é fazer que a tarefa esteja centrada nao na doenga mental, mas na satide mental. O termo higiene esta viciado por um materialismo ingénuo, e os grupos de trabalho, repetimos, devem estar centrados nos fatores que condicionam um certo modo de satide men- tal (nado na forma absoluta de satide mental como valor maximo e absoluto). Trata-se de quantidades de satide men- tal que, através de saltos dialéticos, transformam a quanti- dade em qualidade, ja que a satide mental é medida princi- palmente em termos de qualidade de comportamento social e suas causas de manutenc&o ou deterioragdo estao rela- cionadas com situagdes sociais como os fatores socioeco- némicos, estrutura de familia em estado de mudanga e prin- cipalmente nesse indice de incerteza que se torna persecu- trio e que perturba o comportamento social, ja que o que se quer obter é uma adaptagao ativa a realidade, na qual o sujeito, na medida em que muda, muda a sociedade, que, por sua vez, atua sobre ele no interjogo dialético em forma de espiral, na medida em que se realimentando em cada passagem realimenta também a sociedade a qual pertence. Aqui esta o erro mais freqiiente: o de considerar um pacien- te “curado” quando é capaz apenas de cuidar de seu asseio pessoal, adotar boas maneiras e, principalmente, nao de- Praise psiquiatria 43 monstrar rebeldia. Este ultimo sujeito, desde ja, com sua conduta passiva e parasitaria, continua filiado a alienagao. 5) Qual é sua opinido quanto a uma orientacio em higiene mental relacionada com as estruturas socioeconémicas e culturais? Creio que em minhas opinides anteriores estao mais implicitas as respostas a esta pergunta. O que, por sua vez, me faz perguntar a mim mesmo: é possjvel que exista al- gum psiquiatra que ainda duvide disto? Freud: um ponto de partida da psicologia social' Sigmund Freud assinala claramente sua posigao diante do problema da relagao entre psicologia individual e psico- logia social ou coletiva em seu trabalho Psicologia das massas e andlise do ego. Na introdugao desse livro, em geral tio mal compreendido, diz: “A oposicao entre psicologia individual e psicologia social ou coletiva, que a primeira vista pode nos parecer muito profunda, perde grande parte de sua signifi- cacao quando a submetemos a um exame mais minucioso. A psicologia individual concretiza-se, sem duvida, no homem isolado e investiga os caminhos através dos quais ele tenta alcancar a satisfacao de seus instintos, porém, s6 muito pou- cas vezes, e sob determinadas condigGes excepcionais, Ihe é dado prescindir das relacdes do individuo com seus se- melhantes. Na vida animica individual, aparece integrado sem- pre, efetivamente, 0 outro como modelo, objeto, auxiliar ou adver- sdrio, e desse modo a psicologia individual 6 ao mesmo tempo, e desde o principio, psicologia social, num sentido amplo, mas ple- namente justificado.” Freud refere-se logo as relacdes do individuo com seus pais, com seus irmaos, com a pessoa objeto de amor e com 1. 1965. BOO process grep seu médico, relagSes que tém sido submetidas a investiga- Ges psicanaliticas e que podem ser consideradas como fe- ndémenos sociais. Esses fendmenos estariam em oposigdo aqueles denominados por Freud narcisicos (ou autisticos, por Bleuler)*. Podemos observar, de acordo com as contri- buig6es da escola de Melanie Klein, que se trata de relacdes sociais externas que foram internalizadas, relagGes que de- nominamos vinculos internos, e que reproduzem no ambito do ego relagdes grupais ou ecolégicas. Essas estruturas vin- culares que incluem 0 sujeito, 0 objeto e suas mtituas inter- relacGes se configuram com base em experiéncias muito pre- coces; por isso, excluimos de nossos sistemas 0 conceito de instinto, substituindo-o pelo de experiéncia. Mesmo assim, toda vida mental inconsciente, ou seja, o dominio da fanta- sia inconsciente, deve ser considerada como a interacao en- tre objetos internos (grupo interno), em permanente inter- relacao dialética com os objetos do mundo exterior. Freud insiste na necessidade de uma diferenciagao dos grupos, mas afirma que de qualquer maneira as inter-rela- des entre individuos continuam existindo, e que para sua compreensao nao é necessario recorrer a existéncia “de um instinto social primrio e irredutivel, podendo o comego de sua formacao ser encontrado em circulos mais limitados, por exemplo, na familia” Em outro pardgrafo, diz Freud: “Basta pensar que 0 ego entra, a partir desse momento, na relagao de objeto com o ideal do ego por ele desenvolvido, e que, provavelmente, to- dos os efeitos reciprocos (que poderiamos assinalar como regidos pelo principio de agao reciproca funcionando em forma 2. Poderiamos objetar aqui que essa oposigao nao existe, pois todo nar- cisismo € secundério, na medida em que no vinculo interno, que pode ter uma aparéncia narcisica, 0 objeto foi previamente introjetado. Ou seja, dada uma estrutura vincular, “o outro”, o objeto, esta sempre presente através de tal vinculo, ainda que seja escamoteado sob a aparéncia de um narcisismo secundario. 47 Freud: wo ponto de partida da psicologia social de espiral) desenvolvidos entre 0 objeto e 0 ego total, con- forme nos foi revelado na teoria das neuroses, se reprodu- zem agora no interior do ego.” Esse conjunto de relagées internalizadas, em permanente interacao, e sofrendo a atividade de mecanismos ou técni- cas defensivas, constitui o grupo interno, com suas relagdes, contetido da fantasia inconsciente. A andlise destes paragrafos mostra-nos que Freud al- cangou, por momentos, uma visao integral do problema da inter-relagéo homem-sociedade, sem poder desapegar-se, no entanto, de uma concepcao antropocéntrica, que o im- pede de desenvolver um enfoque dialético. Apesar de perceber a faldcia da oposigao dilematica entre psicologia individual e psicologia coletiva, seu apego a “mitologia” da psicandlise, a teoria instintivista, e seu des- conhecimento da dimensao ecolégica, impediram-Ihe a for- mulacao do vislumbrado, isto é, de que toda psicologia, num sentido estrito, é social. Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal' Minha contribuigdo neste Coléquio Internacional so- bre Estados Depressivos trata do uso instrumental e situa- cional de uma droga antidepressiva (Tofranil), empregada durante o transcurso de tratamentos psicoterdpicos indivi- duais e grupais. O objetivo principal do uso da droga é faci- litar a mobilizagao de estruturas ou pautas estereotipadas (esteredtipos) que se apresentam e operam com as caracte- tisticas de resisténcias ao progresso do processo terapéutico. As ansiedades diante da mudanca ou aprendizagem, de tipo depressivo e parandide, promovem a estruturagao do este- redtipo (“mais vale um passaro na m4o do que dois voan- do”). A oportunidade de um coléquio sobre estados depres- sivos fundamenta-se no fato de que, finalmente, a psiquia- tria aparece progressivamente centrando-se ao redor da génese, estrutura e vicissitudes de uma situacao depressiva bdsica. Acredito ser necessdrio esclarecer previamente, em termos gerais, 0 texto e contexto do quadro ou esquema de referéncia com o qual penso e opero. Assim, farei primeiro uma rapida cronica do desenvolvimento biografico desse esquema referencial. 1. Acta Neuropsiquidtrica Argentina, 6, 1960 50 Oprocesso grupal I Construgao de um esquema conceitual, referencial e operativo (ECRO) Minhas investigagGes sobre uma situagdo depressiva bd- sica (1938) partiram de dois campos ou quadros de trabalho em continua interagdo: 1) de uma pratica continua como psicoterapeuta de ca- sos individuais e de grupos, e 2) de uma vasta experiéncia paralela a anterior e, amitide, combinada com ela, empre- gando tratamentos bioldgicos: choque hipoglicémico, con- vulsoterapia, sono prolongado, etc. No ano de 1946, publi- quei a primeira sintese pessoal sobre uma teoria geral das neuroses e psicoses, introduzindo os conceitos de plurali- dade fenoménica, de unidade funcional e genética (enfermidade unica) e de policausalidade. Sustentava entao: “Através da psicanalise de esquizo- frénicos e epilépticos, e apoiado pelas observacées realiza- das durante os tratamentos bioldgicos, tornou-se evidente um nuicleo psicético central, bem delimitado e do qual par- tem todas as outras estruturas como maneiras ou tentativas de resolver tal situagdo basica. Essa situaco configura-se com os elementos que caracterizam o estado depressivo, com seus conflitos e mecanismos especificos”, “... que a si- tuagao assim estabelecida... situagao basica das psicoses ¢ configurada no sentido de uma estrutura melancélica, é 0 ponto de onde se inicia a elaboragao de outras situagdes que vao configurar todos os outros tipos clinicos descritos. Em termos gerais, poderiamos dizer que esta é a tinica enfermi- dade; todas as demais estruturas sao tentativas feitas pelo ego para ‘desfazer-se dessa situacao depressiva bdsica...’. Criada essa situagao penosa, 0 ego tende a livrar-se dela recorren- do a um novo mecanismo de defesa que € a projeciio. Se for projetada no corpo, configura-se a segunda estrutura, que é.a Emprego do Tofranil em psicoterapia individual egrapal hipocondriaca. Tado 0 que o hipocondriaco diz de seus 6r- gaos é uma transposicéo da situagdo anterior, podendo-se dizer que, enquanto o melancélico é um sujeito perseguido por sua consciéncia, 0 hipocondriaco o é por seus drgiios... Se a pro- jecdo for feita no exterior, configura-se a terceira estrutura: a estrutura parandide... A f6rmula ja expressa de que o melan- célico é um sujeito perseguido por sua consciéncia e o hi- pocondriaco por seus 6rgaos, acrescentaremos que 0 para- néide o é por seus inimigos interiores projetados” (3, 4, 5)*. Indagacées posteriores, em continuidade a estas, per- mitiram-me a construcgao de um esquema conceitual, refe- rencial e operativo cujas caracteristicas podemos, grosso modo, assim definir: 1) A resposta depressiva deve ser considerada como pau- ta total de conduta diante de situagGes de frustragéo, perda, privagao, tendo além disso um carter unitdrio em seu apa- recimento, estrutura e fun¢do. 2) Uma situagao depressiva infantil esta incluida no de- senvolvimento normal (M. Klein [2]), junto a outras situa- bes: esquizdide e epileptéide. 3) A situacao depressiva bdsica opera no desenvolvi- mento de toda doenga mental (situagao patogenética viven- cial). O fator disposicional pode ser expresso em termos de graus de fracasso na elaboragao da situagao depressiva infantil (luto). A regressao, durante o processo da enfermidade, rea- tiva a posigdo depressiva infantil (situagao patogenética), assim como promove o emprego da posicao esquizdide (si- tuagao patoplastica e instrumental), como também da situa- ¢a0 epileptdide (situagao patorritmica temporal). 4) Outra situagao depressiva a ser descrita é aquela que esta incluida em todo processo terapéutico. A resolugao das * Esses ntimeros remetem a bibliografia no final do capitulo a __— O proceso grupal divisdes ou cisdes do ego e de seus vinculos, ou seja, 0 pro- cesso de integracao, sé é possivel através desta nova Ppassa- gem por uma situagdo depressiva (grau de insight conse- guido; é a conseqiiéncia, junto com o processo de re-disso- ciagao). 5) A estrutura da pauta de reagdo inclui o conflito de am- bivaléncia diante de um objeto total. Dai surgem 0 sentimen- to de culpa e a inibicdo ou desaceleragdo de determinadas fungdes do ego. A tristeza, a dor moral, o sentimento de so- lidao e desamparo derivam da perda de objeto e da culpa. A possibilidade de reparar e sublimar estao seriamente im- pedidas. 6) Diante dessa situacao de sofrimento surge a possibi- lidade de uma regressao a uma posicao anterior, operativa e instrumental, para o controle da ansiedade (situagao esqui- z6ide). O mecanismo bdsico aqui € a divisao ou dissociacio (split) do ego e de seus vinculos, coma conseqiiente emer- géncia da ansiedade parandide que substitui a culpa. A situa- ¢4o epileptdide e patorritmica assinala as formas nas quais 0 tempo se manifesta através do manejo das ansiedades bd- sicas ou medos. 7) As neuroses sao técnicas defensivas contra ansieda- des basicas, psicéticas. Essas técnicas sao as mais bem-su- cedidas e as mais préximas do normal, e esto afastadas da situagdo depressiva basica prototipica. As psicoses sao tam- bém formas de manejo de menor sucesso que as anterio- Tes, como as psicopatias, que tém como caracteristica priva- tiva o mecanismo de delegacao. As perversdes manifestam-se como formas complexas de elaboragao das ansiedades psi- coticas e seu mecanismo geral centra-se em torno do apazi- Suamento do perseguidor. O crime constitui a tentativa de ani- quilar a fonte de ansiedade maxima projetada no mundo externo, enquanto esse processo centrado no proprio sujeito configura a conduta swicida. 8) O sofrimento inerente a posigao depressiva esta vin- Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal 53 culado ao incremento do insight (autognose), ou seja, 0 co- nhecimento e compreensao da realidade psiquica interna e externa. O fracasso da elaboracdo da posigdo depressiva (luto), além das conseqiiéncias assinaladas, acarreta inevi- tavelmente o predominio de defesas que carregam em seu bojo o bloqueio das emocGes e da atividade da fantasia. Impedem, principalmente, 0 aparecimento de um certo grau de autognose necessdrio a uma boa adaptaco a reali- dade. (As defesas manfacas que emergem em certos casos condicionam a superficialidade manifestada pelo ego, im- pedindo de certa maneira seu fortalecimento e aprofunda- mento durante o processo terapéutico.) 9) Rickman afirma (6) que nao existe uma psiquiatria sem lagrimas e que é melhor enfrentar concretamente o que se relaciona com a vivéncia depressiva sem, é claro, descui- dar dos outros aspectos que tém relagdo com 0 processo de progressao. Além disso, no contexto de toda psiquiatria di- namica a indagagao e o processo terapéutico sao insepardveis. O paciente, diz Rickman, s6 poderd nos revelar os mais profundos niveis de seu sofrimento sob a condi¢g&o de ex- perimentar, ao mesmo tempo que acontece o processo de indagagao, um alivio de seu proprio sofrimento devido ao proprio processo de indagacao (temos aqui um modelo da- quilo que é denominado indagagao ativa operativa dentro do campo da psicologia). 10) Esse esquema referencial foi depois completado com o enquadramento grupal da situagao depressiva, assim como com as nogées de porta-voz da ansiedade do grupo (0 paciente), de pauta grupal estereotipada, de depressdo basica grupal, de grupo operativo, de coincidéncia do pro- cesso de comunicagao, esclarecimento, aprendizagem e trei- namento centrado na tarefa e no processo terapéutico. Uma espiral dialética assinala a direcdo desse complexo processo.

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