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EDITORA 34 Editors 34 Leda Rua Hungrs, $92 Jardim Europa CEP 01455-0009 Sio Paulo SP Brasil TeVFax (011) 81646777 Un mestre na periferia do capital © Roberto Schwarz, 1997 | oTocomA DE QUALQUER FOL DESTELIVROf LEGAL, CONTICURA WMA Assesora editorial Mara Valles Revisios Hlerbone Mattioli Capas Antanio Liséreaga 3 Faigio - 1997 CCatalogagio na Fonte do Departamento Nacional do Liveo (Fundagio Bibiot:a Nacional, RJ, Brasil) 411m Umemente na perira do epatiamo: Machado tc Ass! Robo Scan Ful eto ip 1. Ati Mohd ds MB94908 Ce spec Tr Acumutlagao Literaria e Nacao Periférica (1) aparecimenta do Bris Cubas modificow 2 or. dem estabelecida: as posigies de José de Alencar, de Manuel Antinio de Almeida, de Taunay, de ‘Macedo — até entio os grandes nomes da nossa fit~ (elo — siveram que ser sensivelmente alseradss, LLicia Miguel-Percira, Prosa de Ficpa0 ‘Se soltarmor porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse mest adminivel e embebeu me- ticuloramente da obra dos predecessores. A sua li- tuba evolutiva mostra 0 escrtor altamente conscien- te, que compreenden o que bavia de certo, de defi nitivo, na orientacdo de Macedo para 2 descrigdo de costumes, no realismo sadio e colorido de Ma- uel Antinio, na vocagao anatitica de Joré de Alen car. Ele pressupie a existencia dos predecessores, € esta € urea das raxdes da sua grandeza: numa litera ‘ura em que, a.cada geragdo, os melbores recomesam dda capo e 56 os mediocres continuam 0 passado, ele saplicou o seu génio ere assimilar,aprofundar, feeun- 207 dar 0 legado positioo das experitmcias anteriores Erte € 0 segredo da sua independéncia em relacio 1205 contemporineos europeus, do seu albeamento 2 modatliterdrias de Portugal e Frama. Esta, ara ‘eto de nao terem muitos critics abido onde clas (feé-lo. Antonio Candido, Formagio da Literatura Brasileira ‘A descontinuidade entre as Memérias Péstumas ¢ a litera: ‘ura apagada da primeira fase machadiana € irrecusivel, sob pena de desconhecetmos o fato qualitativo, afinal de contas a sazto de ser da critica. Mas ha também a continuidade rigoro- sa, aliés mais dificil de estabelecer. Os dois aspectos foram assi- nalados ainda em vida do Autor, ¢ desde entio se costumam comentaz, cada qual por seu lado, no Ambito ilus6rio da bio- srafia: a crise dos quarenta anos, a doenga da vista, 0 encontro com a morte ou o estalo do génio explicam a ruptura; ao pas- s0 que 0 amadurecimento pessoal e 0 esforgo constante dio con- ta do progresso ininterrupto, Levada 20 terreno objetivo, da comparagio dos romances, a questio muda de figura e os dois ppontos de vista deixam de se excluir. Em lugar do percurso de ‘um individuo, em particular a sua evolucto psicol6gica ou dou- trinatia, observamos as alteraces mediante as quais uma obra de primeita linha surgiu de um conjunto de narrativas médias c provincianas. Em que termos conceber a diferenga? Para si- tuat 0 interesse da pergunta, digamos que ela manda reflecir sobre os aprofundamentes de forma, contetido © perspectiva {que se mostraram capazes de corrigir@ irelevancia de uma par: te de nossa cultura, ou de Ihe vencer 0 acanhamento historic. 208 ‘Tudo estaré em especificar 0 que muda ¢ 0 que fica, sempre fem fungio de um impasse literario anteriormente consttuido ‘ea superar, o qual subjaz& transformasao e The emptesta peri- néncia ¢ verdade. ‘A novidade dos romances da segunda fase esti no seu nat- tador. A vatios eiticos © humor ingles e a inspirasao literdria sem fronteitas pareceram sugerit, para mal ou para ber, um espaco alheio balizas nacionais. Nos capflos anteriores agu- mentamos em sentido contririo, tratando de salientar o funcio- rnamento fealista do universaismo, impregnado de particular dade ¢ atualidade pela tefraglo na estrutura de classes propria 20 pais. Analogamente, o patentesco entre o autor tio metafisi- co das Memérias e 0 mundo estreito ¢ edificante dos romances iniciais nto salta a vista, mas se pode demonstrat. ‘Vimos que 0 procedimento literétio de Bris Cubs sua volubilidade — consiste em desdizer ¢ descumprit a todo instante as regras que ele pr6prio acaba de estipular. Ora, com a velocidade a menos, a mesma conduta jé figurava nos roman- ces do primciro periodo, sob forma de assunso, De Ressurrei- {40 (1872) a laid Garcia (1878), as narrativas tém como objeto © estrago causado pela vontade imprevisivel ¢ caprichosa de ‘um proprietirio. A partir de A Mao ¢ Lava (1874), a travs- fo de classe do tema vem a frente ¢ 0 passa a detetminar. A ‘questio esti encarada do Angulo da moca de muitos méritos, ‘mas pobre e dependente, a quem as decisdes arbitririas de um filho-familia ou de uma vitva rica, aparentemente liberais, reservam seja humilhagbes ¢ desgracas, seja 0 possivel prémio de uma cooptagio. Os aspectos morais esmiusados pela andl se sio sobretudo dois, rigorosamente complementares, um em cada polo da telacio: a) visto 0 desequilibrio de meios entre 0 proprietirio ¢ os seus protegidos, qual a matgem de manobra dos segundos, caso nfo aceitem cometer indignidades ou ser destrtados, mas queiram, ainda assim, ter aesso aos bens da vida contemporinea? ¢ b) como nao sera ignobil nossa gen- te de bem, além de /ouca, se a promiscuidade entre desejo es- ‘cuso e auroridade social, impeditiva para qualquer espécie de 209 objetividade, decorre estruturalmente da falta de diteito dos demais? A perspectiva dos romances € civilizatria, pois euida de tomar estas relacdes menos brbaras para os dependentes, «€ menos estéreis para os abastados, isto mediante a compreen- slo esclarecida do interesse dos dois campos, ambos desorienta- dos pelos efeitos da arbitrariedade, o verdadeiro ponto a cortgit.' No conjunto, os romances da primeira fase exploram os dilemas do homem livre € pobre numa sociedade escravista, onde os bens tém forma mercantil, os senhotes aspiram 3 civic zaglo contemporinea, a ideologia é romantico-liberal, mas 0 mercado de trabalho nao passa ainda de uma hipétese no hoti- zonte. Se nio hé como escapar as relagdes de dependencia e fa- vor, ainda conhecendo o seu anactonismo hist6rico, existiria algum modo de thes evitar o efeito humilhante ¢ desteutivo? Conduzidos pela autocritica muito conseqtiente, os progressos de um livro a outto sio notaveis. © periodo culmina em Lai Garcia. Aqui o sistema do liberal-clientelismo esta exposto com amplitude, expresso na sua tetminologia propria, sustentado por uma galetia de personagens pertincntcs © difercaciadas, ‘organizado pelos conflitos priticos € morais que Ihe sio espect- ficos, ¢ ajudado, enfim, pot uma dramaturgia inventada sob medida, © ajustamento 4 peculiaridade nacional resulta de lum vasto trabalho de absorcio da empiria, e, nao menos im- portante, do deslocamento € cancelamento dos esquemas ro- ‘minticos, folhetinescos ou liberais, percebidos como ilusto. Nesta altura, a quantidade das observagées sociais € psicol cas, das reflexdes exitcas e das solugdes formais encontradas j& fepresenta uma acumulacio realista muito respeitivel — neutra- lizada, apesar de tudo, pelo enquadramento conférmista. Na sua versio mais complexa, catregada de ressonancia moral, ideolégica estética, 0 impasse fixado em laid Garcia sis", in Ao Vencedor as Batatas, So Paulo, Duas Cidades, 1977, 210 se prende a exigencia de dignidade dos dependentes. Estes ja rndo querem dever favores a ninguém, pois '*a sua taca de gra- tidao estava cheia’"?. Nem por isso deixam de prestar ¢ receber obséquios, uma vez que © seu espaco social nao Ihes faculta ‘outro modo de sobreviver. Contudo, desincumbem-se de sua parte a frio, sem envolvimento pessoal, buscando inibir 0 jo- 0 de simpatia ¢ reciprocidade, ¢ também de endividamento, inseparivel da priica do favor. Esta atitude cerceadora de si ¢ dos outros nao se deve tomar apenas como psicologia, pois re- presenta o resultado de uma experiéncia de classe, uma espécie de heroismo na tenGincia, refletido © peculiar, adequado & cir- cunstincia historic. A frieza paradoxalmente responde 3 hip6- tese mais favorivel ao dependente, aquela em que, embora de- samparado de qualquer direito, ele seria tratado como igual — porque a parte mais afortunada quis assim. Condicionada por um inaceitivel ingrediente de capticho, esta hipdtese feliz ‘constituiria 0 obséquio maior de todos, € por isso mesmo a maior indecéncia ¢ humilhacto. A sujeirdo da dignidade, dos valores rominticos e liberais 2 desfagates de une proprictirio € 0 pesadelo caracteristico a que a reserva dos pobres deveria por um pardeiro, mesmo ao prego de ficar tudo como esté. ‘A prosa que no verbaliza com liberdade o conflito expos- to na intriga constitui a principal limitagao aristica de Taié Garcia. A deficitncia nao decorre de falta de recursos, mas da restticio ideol6gica imposta pelo prop6sito de civilizar sem fal- tar a0 respeito. Por outro lado, a resttigao tem fundamento pri- tico na posigio dos inferiores, que nio dispdem da independén- cia necessitia 3 critica, © que empresta uma nota situada ¢ rea- lista a0 convencionalismo dos tetmos. Ainda assim, a injustisa das relagies como que pressiona 0 padrio comporado da escti- ta, cuja insuficiéncia € objetiva ¢ faz desejar um narrador me- ‘nos coibido em face dos proprietatios, Tanto mais que o roman- ce termina com a heroina procurando no trabalho assalariado 2, Iaid Garcia, Obea Completa, vol. I, p. 315, a ‘0 temédio para a “'vida de dependéncia e serilidade"” a que © paternalismo obriga o pobre. Estava aleancada a posiglo a partir da qual 0 desplante tranquilo dos abastados se podia en- ‘carat sem subserviéncia, fixado em seu arcaismo ¢ no vinculo inconfessivel com a escraviddo, Assim, 0 Gltimo romance da primeira fase trazia inscrito em negative um outro livro — 0 seguinte? — onde a superacio da dependéncia pessoal pelo tra- balho livre, um avango historico, petmitiria expor sem rebucos ‘o cariter inaceitivel ¢ destrutivo das relagbes de dominacao pr6- ptias a0 petiodo anierior. Sabemos contudo que Machado nfo ‘escteveu tal obra, e que 0 caminho do pais tampouco seria este. Passados os anos, € notério que 0 fim do cativeiro nto transformou escravos e dependentes em cidados, € que a téni- «a do processo, pelo contratio, esteve na articulacio de modos precitios de assalasiamento com as antigas relacdes de proprie- dade mando, que entravam para a nova era sem grandes aba- los. Nalguma altura anterior as Memériar e posterior a [aid fal- tando um decénio para a Aboligio, o romancista se teri compe- nettado deste movimento decepeionante © capital. O acranjo civilizado das relagdes entte proptictiios ¢ pobres, que estive- +4 no foco do trabalho literério da primeira fase, ficava adiado sine die. De agora em diante Machado inssttia nas vireualida- des retr6gradas da modernizacio como sendo o traco dominan- te € grotesco do progresso na sua configuragio brasileira. Vol- tando a laid Garcia, o esquema europeu embutido na sua 184 ligado 3 dindmica moralizadora do trabalho livre, estava fo- ta de combate. Se estivermos certos, este quadro permite apreciar a genia- lidade da viravolta operada nas Memérias. Ji nfo se trata de buscar um freio — irreal — a irresponsabilidade dos ricos, mas de salicnté-la, de emprestar latitude total a seu movimento, in- ‘ontrastado € nem por isso aceitivel. O tipo social do proprieté- tio, antes tratado como assunto entre outros ¢ como origem 3. led Garis, p. 46. a2 de ulteajes variados, passava agora 4 posicio (fidedigna?) de natrador. Ou, por outra, as condutas reproviveis (mas no re- provadas) do primeito reapareciam transformadas em procedi- mento narrativo, onde o vaivém entre arbitrio e discurso escla- recido, causa do mal-estar moral pritico do pobres, se encon- trava universalizado, afetando a totalidade da matéria romanes- ‘ca, Ajustando melhor o foco, digamos que a volubilidade nar- rativa confere a genetalidade da forma eo primeiro plano abso- uto 20 passo propriamente intoleravel dos relacionamentos de favor, aquele em que segundo a conveniéncia ou veneta do ins- tante a gente de bem se pauta ou nto pela norma civilizada, decidindo “entre duas xicaras de cha’ sobre a sorte de um dependente, Sai de cena 0 natrador constrangido dos primeitos romances, cujo decoro obedecia as precaucdes da posigao subal- tema, ¢ entra a desenvoltura catacteristica da segunda fase, a “forma livre de um Sterne ou de um Xavier'de Maistre", cu- jo ingrediente de contravencio sistemitica reproduz um dado cstrutural da situagio de nossa elite. No caso hi vinculo eviden- te, cabura wimplicado, cntie as questbes de forma litcriria € classe social: 0 ponto de vista troca de lugar, deixa a posigdo de baixo € respeitosa pela de cima e senhorial, mas para ins- tauir 0 processo contra esta Gitima. Nouttos termos, Machado se apropriava da figura do adversirio de classe, para deixi-lo mal, documentando com exemplos na primeira pessoa do singu- Jar as mais graves acusacdes que os dependentes the pudessem fazer, seja do Angulo tradicional da obrigacio paternalista, se- ja do Angulo moderno da norma burguesa. Depois do proprie- trio visto da perspectiva ressabiada do dependente, temos 0 dependente visto da perspectiva escarninha do proprietirio, que se di em espeticule® Em Ambito biogrifico, talvez se pu- 4, lad Gara, p. 402. 5. MPBC. p. 109. 6. Alfredo Bosi referee 20 ‘tom pseudoconformisa, na verdade es caminho, com que (0 nartador) dscorte sobre a normalidade burguesa” Em "A Mascara ea Fenda", A. Bos eta, Machado de Aus, Sto Paulo, Avica, 1982, p. 457. 23

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