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Cidade Vazia
Cidade Vazia
ebp.org.br/correio_express/2020/04/18/cidade-vazia/
Saí às ruas da cidade em que habito para fazer algumas compras munida de minha
autorização para sair. Um sentimento, que se pode qualificar de “bizarro”, invadiu-me,
então. Eu havia recebido, anteriormente, um vídeo de Veneza, vazia; ecos de Nova York,
parada. E agora, Paris, vazia. Todas as ruas em volta, vazias; as praças, vazias; as
perspectivas, vazias. Que sentimento de estranheza!
O vazio da cidade a torna Unheimliche. Esse termo tem, em francês, uma tradução infiel;
sua tradução em inglês, de James Strachey, The Uncanny, tampouco é fiel. Em suma,
Unheimliche é um impossível da tradução. Tenhamos em memória que o impossível é,
sob essa forma, o primeiro traço que caracteriza o Unheimliche, e observemos que é
também um dos nomes do real em Lacan.
“Das Unheimliche” é um artigo curioso. Nele, Freud aborda a noção inerente a essa
palavra própria à língua alemã por três vias: pelos dicionários, pela história do próprio
termo na língua alemã; pela literatura, na obra de E.T. Hoffmann; e, finalmente, por sua
própria experiência clínica (autoanálise) do fenômeno clínico em jogo (2), principalmente
em dois fragmentos clínicos.
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A primeira vem em apoio ao “fator de repetição não intencional”. Ela mostra Freud
flanando pelas ruas de uma cidadezinha italiana e, em seguida, apressando-se para
deixar a rua em que se encontrava após ter constado que era a região dos bordeis, mas
voltando ali, sem se dar conta, por três vezes. Arrastado para o sexo sem se dar conta,
ele é tomado, então, pelo sentimento de Unheimliche. A segunda via, que se encontra em
uma nota, relata a sua experiência “sozinho em um compartimento de vagão-
dormitório”, vendo “um senhor mais velho, de pijama, com o boné de viagem na cabeça”
adentrando em sua cabine. “Logo reconheci, perplexo – escreve ele – que o invasor era a
minha própria imagem refletida no espelho da porta intermediária”. O fator em jogo
aqui é o duplo que vem perturbar o que Freud chama “a prova da realidade”. Nessas
duas experiências, o ponto comum – que, aliás, Freud não ressalta – é essa báscula da
dita “realidade” diante do retorno do mesmo, a partir de alguma alteração desse mesmo.
Nos dois casos, o equívoco permite dizer que ele não se reconhece ali.
Na terceira e última parte, Freud busca precisar esse ponto distinguindo diferentes
modalidades do que ele chama realidade: “realidade material”, “realidade psíquica”,
“realidade comum”, “realidade literária ou ficcional”. Em suma, assistimos à explosão do
termo “realidade”. É o preço a pagar pelo dogma freudiano da verdade, isto é, o dito
complexo de Édipo, na medida em que ele implica, para o sujeito Freud, um
intransponível mais além do pai. De fato, em sua carta a Romain Rolland, em 1936,
Freud, (8), aos 80 anos, volta pela primeira vez à experiência que ele havia tido,
anteriormente, na Acrópole. Analisa que, nesse momento em que realiza um passo mais
além do pai, é invadido por um sentimento estranho, que ele qualifica não de
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Unheimliche, mas de “Entfremdungsgefühl”, uma espécie de despersonalização que lhe
acomete, então, e que ele formula assim: “o que eu vejo não é real” (9). Entfremd vem no
lugar de Unheimliche quando se trata de ir mais além do pai.
Compreendemos que nessa experiência da cidade vazia, trata-se do real. O que diz
Lacan?
Mas às vezes esse enlaçamento vacila. Encontramo-nos então confrontados com o que
Roland Barthes chama “um efeito de real”, uma Uberdeutlichkeit, uma claridade bastante
intensa segundo o termo utilizado por Freud a propósito do sonho de Signorelli. Mas
corrijamos imediatamente esse ponto. Não se trata de um sonho. Trata-se do sono
quando, precisamente, ele não é incomodado pelo sonho. Isso dorme de verdade, até
mesmo em Nova York. É, portanto, o inconsciente que está confinado. Quando ele não é
mais correlato a -ϕ, ao signo do desejo do Outro, o vazio faz “sinal do real” (13),
expressão que colhi em um texto de J.-A. Miller sobre a angústia. Para retomar o apólogo
de Lacan sobre o encontro com o louva-a-deus, não há mais louva-a-deus.
Falas analisantes
Tudo isso é bem teórico, me dirão vocês. E vocês têm razão. Lugar seja dado à fala
analisante.
Confinado com sua família, ele fala de um afeto estranho e repentino que o invadiu
durante “uma compra em um supermercado. Nosso carrinho, inicialmente vazio, se
enchia de mantimentos. Fui então tomado por uma impressão estranha. Mais o meu
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carrinho se enchia, mais eu me sentia vazio. Quando essa impressão abrandou, depois
que a formulei em sua bizarrice, pude nomear para mim mesmo esse momento de vazio
ligando-o a uma tensão entre a necessidade e até mesmo o dever de alimentar a família,
meus próximos amados, e esse amontoado de produtos de consumo, que me pareceu,
então, indecente. Uma tensão entre a barriga [bide] e o vazio [vide] se encarnara em meu
corpo”. A oralidade é, para esse sujeito, um dos modos preponderantes de gozar, que
traz a marca da fala materna em sua infância – ele tinha que comer até o fim os pratos
servidos à mesa familiar. Não tinha acesso ao vazio, mas sobre ele repousava a
responsabilidade de esvaziar o objeto oral.
Afirmemos, portanto, que esse confinamento produz nos corpos falantes que somos um
esvaziamento do gozo pulsional que traça a via de nosso habitat, como diz Lacan, onde
habitamos, mesmo que não saibamos onde, e nem por isso deixamos de ter o hábito.
Segue-se daí, na imediatez de um instante, um encontro com o real, um encontro para
além do signo que constitui, para cada um, a angústia. Mais além da angústia o real
surge. É o vazio ali onde estava a pulsão.
Notas
1. Brousse, M.-H. “Os tempos do vírus”. In: Correio Express n. 07. Publicado
originalmente em Lacan Quotidien, n. 876 (25/03/2020).
2. Freud, S. “O infamiliar” [Das Unheimliche] seguido de “O Homem da areia”.
Trad. Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares e Romero Freitas. In: Obras
Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2019, p. 75, 77 e nota
p. 103.
3. Ibid., p. 45.
4. Ibid. p. 49 e seguintes
5. Ibid., p. 35.
6. Ibid., p. 89 e 91.
7. Ibid., p. 93.
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11. Sobre esse ponto, leremos uma passagem fundamental de O Seminário, livro
10: a angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005, p. 103-104.
12. Lacan, J. “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 536.
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