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Um amigo libanês, pintor de primeira e bruxo militante, mostrou-me certa vez uma adaga
em uma bainha de prata ricamente trabalhada com uma inscrição em árabe que ele traduziu.
A frase alertava ao portador da arma que seria sábio quem não a desembainhasse, mas
aquele que o fizesse não usando a arma seria um covarde.
A delicada conjuntura em que nos encontramos está cheia de blefes, o que torna difícil a
análise. A direita ameaça com o impedimento da presidente, um ex-presidente ameaça
colocar o “exercito” de outros para defender o seu governo, outro ex-presidente tece
pendores democráticos e de respeito a legalidade enquanto seu partido conspira na direção
oposta.
[TRÊS BLEFES]
O equilíbrio do governo de pacto social sempre foi difícil uma vez que supõe poder
conciliar o que é inconciliável, isto é, os interesses de classe opostos de trabalhadores e
burgueses. A engenharia possível pressupõe uma certa estabilidade econômica e uma
governabilidade negociada por meio de cargos no governo, favorecimentos eleitorais e
emendas ao orçamento para responder aos lobbies por trás (pela frente e por todos os lados)
dos digníssimos parlamentares eleitos e se completa com a ação de governo que garante as
condições para a acumulação de capitais em proporções adequadas. Enquanto isso acena
aos trabalhadores com a miragem da inserção na sociedade de mercado via garantia dos
níveis de emprego e salário, acesso ao crédito e programas compensatórios de combate às
manifestações mais agudas da miséria absoluta.
Aqui o primeiro blefe. O PMDB tem a vice presidência e vários ministérios chaves.
Controla um quinhão invejável no segundo e terceiro escalões, governos de estado que por
sua vez dependem de projetos e verbas federais, assim como de favores eleitorais dos mais
diversos. Tem pouca chances de um vôo solo como alternativa e suas chances estão ligadas
ao sucesso do governo que enfraquece para negociar melhor.
O PSDB, histrionicamente bradando contra o governo com o cacife de uma oposição que
garfou mais de 48% dos votos no último pleito, também se encontra em posição
problemática. Não pode atacar o governo pelas medidas impopulares assumidas, pois as
defendeu abertamente na campanha. Da mesma forma tampouco pode se dar ao luxo de se
contrapor à linha geral da condução da economia e do Estado, pois no essencial respeita os
compromissos macro econômicos, a premissa sacrossanta do superávit primário, a lógica
privatista e mercantilizadora da vida… Escolheu a centralidade dos escândalos e da
corrupção, mas convenhamos, é um terreno em que o PSDB não tem só o telhado de vidro,
mas uma casa todinha de vidro. Basta lembrar a forma como foi feita a privatização das
tele-comunicações sob a batuta do falecido Serjão, a entrega da Vale do Rio Doce, as
contas não tão secretas em paraísos fiscais, para não falar do metrô de São Paulo e outras
aventuras conhecidas.
Eis o segundo blefe. Alardeia-se o combate à corrupção, torcendo para que a apuração
rigorosa e profunda, “doa a quem doer”, não chegue muito perto da mão que acusa, como o
caso do HSBC parece indicar. Se o caos interromper o mandato da presidente e gerar
dividendos eleitorais ao PSDB, ótimo para eles, mas não se pode fritar muito de modo que
a fumaça não sufoque a todos na cozinha do Estado burguês. Qualquer alternativa de
governo do PSDB passa pela negociação com o PMDB, daí o dilema: como queimar a
gordura do PT sem tostar o bife do PMDB?
Por isso o escudeiro do caos, Aloysio Nunes e outros asseclas, vão às ruas pelo “sangue” de
Dilma Rousseff, enquanto FHC e Aécio Neves, pedem um pouco mais de calma. Afinal,
somos todos civilizados, não é?
[A APOSTA PETISTA]
O governo, um tanto quanto desorientado, pois julgava que bastava a mera repetição do
mesmo procedimento anteriormente exercitado e uma base sólida no Congresso para
escapar do pior da crise, tateia erraticamente. Antes das eleições sua prioridade era
recompor uma base e compensar as defecções, como as PSB e PTB, mas, prioritariamente
mostrar-se confiável aos financiadores de campanha: as empreiteiras, os bancos, os
industriais, o agronegócio, em suma, os donos do governo. As alianças, o programa e o
perfil da campanha não deixaram margem à dúvida desta prioridade.
No entanto, a polarização da campanha contra o PSDB (Marina foi um episódio inflado que
não se manteve) obrigou os petistas a desenterrar o discurso da luta entre ricos e pobres, do
fantasma do passado e, na reta final, produzir um factóide diversionista segundo o qual
trata-se de um embate de projetos que contrapunha de um lado uma direta privatista, que
atacaria os direitos dos trabalhadores e reverteria as “conquistas” alcançadas, e de outro
uma proposta progressista que enfrentaria a crise com crescimento (o que implicava, por
sua vez, a manutenção da generosa ajuda aos capitalistas) e não realizasse ataques aos
direitos dos trabalhadores.
Vejam que o governo agiu com uma certa sinceridade. Precisava atrair os setores sociais
(por isso o discurso), mas não podia romper com suas alianças e com as exigências de seus
patrões (por isso a manutenção do rumo geral conservador). Não é esse o blefe do governo.
É que tem gente que quer tanto uma coisa que a projeta na realidade como se realidade
fosse…
Evidente que isso gerou um descontentamento muito grande, mas aqui fico na incômoda
posição de defender a presidente Dilma. Ela falou que ia fazer isso, era evidente que faria.
Os setores sociais que apostaram, com razões louváveis e algumas até justificadas, nesta
opção estão descontentes com a imagem que criaram e não com o real efetivo. Acontece
com torcidas de futebol, com relacionamentos amorosos… acontece também com projetos
políticos. Já cantava Chico com as palavras de Ruy Guerra:
[A VELHA DIREITA]
Aqui é que começa o problema. Apesar de ter cedido em tudo… tudo mesmo, ao que a
ordem burguesa exigiu, o governo de pacto social do PT continua ameaçado. Ocorre é que
a metáfora da adaga aqui se torna limitada. Não estamos diante de um instrumento nas
mãos de um sujeito, mas de uma dinâmica política que uma vez desencadeada ganha certa
autonomia. Os sujeitos políticos são compósitos, formados por fragmentos, facções
segmentos que reproduzem em ponto menor o dilema da sociabilidade burguesa: a
contradição entre interesses individuais particulares e interesse geral.
Nenhum ator particular que desembainhou a adaga parece de fato querer o impeachment,
mas parece que a adaga quer. Em tempos de fetichismo absoluto, um fenômeno desses não
devia nos espantar. É verdade que a burguesia monopolista em suas diferentes facções
(industrial, bancária, agrária, comercial, etc.) nunca ganhou tanto e prescreveu o remédio
que seus funcionários no governo estão zelosamente administrando. Precisa de estabilidade
institucional, teme reviravoltas que possam colocar em risco, real ou potencial, a ordem.
Mas adorariam encerrar este ciclo de governos petistas. E se houver possibilidade, porque
não?
O mesmo pode ser dito do imperialismo. Alguns governistas afoitos e seu exercito de dedos
nervosos nas redes sociais, desenterraram o imperialismo como o sujeito oculto da
desestabilização. Ora o imperialismo sempre pensa em cenários e a desestabilização nunca
ficou fora da pauta. A pergunta é: como se pensou nestes doze anos enfrentar esta
evidência? Armando o povo, preparando as forças armadas e buscando aliados, como na
Venezuela? Ou se mostrando confiável e evitando se apresentar como responsável, como
nos governos Lula e Dilma, e fazendo um acordo militar com os EUA, mobilizando e
dirigindo tropas de intervenção no Haiti?
A grande burguesia e o imperialismo lucraram com o ciclo petista, mas não lutarão para
defendê-lo se ele ameaçar ir para o ralo. A burguesia não é fiel, nem monogâmica. Nunca
foi. Não será agora que irá mudar sua natureza.
[A EXTREMA DIREITA]
Isso é diferente quando se trata da extrema direita. Ela é o cachorro louco da burguesia. É
incômoda e caricatural, mas útil. Não pede licença para pôr fogo no circo. Em épocas
normais a burguesia a mantém presa na jaula do Estado de Direito, mas a crise é seu habitat
natural. Isolada ela é só pitoresca, como nas marchas que andou ensaiando pelo país. Mas,
num certo caldo de cultura, se alimenta do irracionalismo e do conservadorismo, cresce e
pode se tornar uma ameaça, mesmo um incômodo para seus donos.
A extrema direita foi às ruas e ganhou dimensão massiva nos últimos protestos pelo
impeachment. A extrema direita quer o impedimento da presidente, se possível seu
fuzilamento e a exumação do corpo de Marx para ser fuzilado também. Parece que
descobriram o motivo do desmonte da educação no Brasil, é um perigoso terrorista de
barbas longas (sem turbante) chamado Paulo Freire.
[O BLEFE PETISTA]
Diante deste cenário intricado o PT mantém-se fiel à sua ação aparentemente errática. Faz
todos os esforços para garantir a credibilidade diante do grande capital e de seus aliados de
direita, que constituem a base operacional de seu governo; ao mesmo tempo em que precisa
mobilizar suas “bases sociais” (de fato eleitorais) para não virar presa fácil contra aqueles
que querem sua queda.
Neste ponto a coisa fica ridícula. O governo impõe as chamadas medidas de austeridade e
ataca diretamente os direitos dos trabalhadores. O principal partido do governo (talvez o
segundo na linha hierárquica depois do PMDB) – o PT – aprova por maioria as medidas de
austeridade propostas, e o ex-presidente Lula conclama que elas são necessárias e não
atacam os direitos dos trabalhadores. Ao mesmo tempo conclama suas “bases sociais” (na
verdade, em parte aparelhos burocráticos que um dia foram organizações independentes da
classe trabalhadora) para atos em defesa do governo, mas contra as medidas de
austeridade… do mesmo governo… que implementa as medidas… Estão acompanhando?
Ora, aqui também não se deve culpar o PT. Ele não pode fazer outra coisa. Os setores que,
com razões honestas, queriam uma guinada à esquerda estão trabalhando com o desejo, não
com a realidade. Este seria o caminho mais rápido para o impeachment. O governo jamais
fará isso. Todos sabem. Desde os que sinceramente gostariam que o governo fosse mais à
esquerda, até os governistas mais renitentes que acham que tudo está certo e não há nada a
ser corrigido.
Este é o blefe.
Mobilizam as massas, mas para apassivá-las. As mobiliza para usá-las como instrumento
em seu jogo e não como força própria em busca de seus próprios interesses de classe. É
para ameaçar seus aliados e adversários. Desembainha uma adaga que não pretende usar.
A direita chama um ato pelo impeachment. Lógico que a extrema direita se anima. Mas as
lideranças estão preocupadas, seus nomes andam sendo divulgados pelas listas dos
envolvidos nos atos de corrupção. FHC pede calma, não é hora de impeachment. Michel
Temer sorri ao lado dos presidentes do Senado e da Câmara (os dois na lista) na arte de
fazer de conta que ele não tem nada haver com isso.
Na mais alta temperatura do acirramento, escuto a notícia que Dilma propôs um pacto…
com o PSDB… que não aceitou… mas, está pensando. Depois do domingo amarelo…
duvido.
No meio disso uma população tentando entender o que está acontecendo. De um lado, um
cara com uma adaga bradando – “vou te meter um impeachment no bucho!” – (lógico, com
muita calma para não prejudicar os negócios), de outro um senhor que pregava a paz e o
amor e que adora dizer que banqueiros nunca ganharam tanto em seu governo ameaçando
chamar as massas para uma rebelião (lógico, desde que não atrapalhe o bom
relacionamento da ministra do agronegócio com a presidente e as medidas de austeridade,
que na verdade são necessárias… não é?).
“Querem saber o motivo da vaia? É simples: estou cansada de trabalhar e não ter nada”.
“Ela mexeu nos direitos do trabalhador. Falou a campanha inteira que não ia e fez”.
E que ideário é esse? A rede Globo em mais uma demonstração de miséria jornalística tenta
enquadrar a realidade no molde de seu jornalismo de desinformação, transformando o circo
de horrores da direita na rua no dia 15 em uma “festa da democracia” e perguntando aos
inquietos e perdidos ministros Rosseto e Cardoso como o governo responderia às
“demandas da ruas”, a “voz das ruas”, o “grito das ruas”. Apesar da emissora (que recebeu
auxílio governo petista para não quebrar) tentar reapresentar o samba de uma nota só da
corrupção, as “ruas” gritavam coisas como: “pela intervenção militar”, “morte aos
comunistas”, “em defesa do feminicídio”, “pela maioridade penal”, “contra as doutrinações
marxistas nas escolas”. Algumas demandas, para facilitar o entendimento, escritas em
inglês e francês.
Vejam, com todos os problemas das Jornadas de 2013 podíamos ver ali como central um
conjunto de demandas como a defesa do transporte público, contra os gastos com os
eventos esportivos, contra a violência da política militar, a denúncia dos limites desta pobre
democracia representativa. Ainda que houvesse por um tempo, a tentativa de contrabando
das bandeiras direitistas elas foram sendo isoladas das manifestações. Agora elas dão o tom
e organizam grandes manifestações em defesa da barbárie.
[Oficial da
tropa de choque tira foto com família verde a amarela. A imagem foi capturada pelas
lentes da TV Trip na cobertura que fez da manifestação em São Paulo]
Meu barbeiro, filho de operário eletricitário, que se animou com a campanha das diretas
porque queria votar para presidente, diz que este governo precisa acabar porque senão vai
implementar aqui um regime parecido com o da Venezuela e sugere duas alternativas:
entregar o Brasil para ser administrado pelos EUA ou devolver aos índios (eu sugeri que ele
insistisse na segunda alternativa).
O mais surpreendente, no entanto, foi sua conclusão diante das minhas ponderações. Com o
olhar sério e aquela autoridade que só possui quem segura uma navalha afiada em sua
garganta, ele concluiu: “Sabe, eu acho que ninguém quer o impeachment, o que eles
querem é deixar este governa sangrar por quatro anos para depois derrotá-lo de uma vez por
todas nas próximas eleições”.
Sabe do que mais, acho que meu barbeiro está certo. Feito isso, pegou a navalha e aparou o
que restava de cabelo na minha nuca, limpando a espuma em um pano. Lá na rua ainda se
ouvem os gritos de combatentes segurando suas adagas cegas que não pretendem usar…
“olha que eu te furo”… “não se eu te furar primeiro”… enquanto se prepara o acordo.