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IX ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO

BRASILEIRA DE ESTUDOS DE DEFESA (ENABED)

“Forças Armadas e Sociedade Civil: Atores e Agendas da Defesa


Nacional no Século XXI”

ANÁLISE DA DOUTRINA MILITAR DE DEFESA


CIBERNÉTICA A LUZ DO DIH/DICA

Artigo para Apresentação em Painel

Nome do evento: P 20 Guerra Cibernética 1

Data: quarta-feira, 06 de julho de 2016

Local: Sala CSE 001

Área Temática: AT7 - Segurança Internacional e Defesa

Autor: Luís Eduardo Pombo Celles Cordeiro

Instituição: Universidade da Força Aérea


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a MD 31-M07 (Doutrina Militar de Defesa
Cibernética) como instrumento catalisador da unificação de pensamento para atuação das
FFAA no espaço cibernético, à luz do Direito Internacional Humanitário (DIH) / Direito
Internacional dos Conflitos Armados (DICA). A previsão de emprego do espaço cibernético,
delimitados pelos princípios, características, possibilidades e limitações da defesa
cibernéticas bem como as formas da ação e tipos de ação de defesa cibernética realizadas
pelas FFAA devem estar embasadas por meio do cumprimento das leis do DIH/DICA quando
aplicados como regulador dos meios e métodos de combate (jus in bello), por força do
previsto nos tratados de Genebra assinados em 1949 pelo Brasil. Existindo apenas um
único ciberespaço, onde militares e civis coexistem, não fica claro na MD 31-M-07 em quais
cenários as FFAA poderão ser empregadas em caso de Conflito Armado, pois a adoção dos
termos “situação de Guerra e de Não-Guerra”, para delimitar os cenários de operação, não
encontra respaldo no DICA/DIH. Isso posto, a análise busca demonstrar que as definições
empregadas na MD 31-M-07 (Guerra e Não-Guerra) não especificam a abrangência de
emprego das FFAA no espaço cibernético ao consideramos os conceitos de Conflito Armado
Internacional, Não-Internacional ou Internacionalizado como decisivos para a legitimidade ou
não do uso do DIH/DICA pelo Estado.

Palavras Chave: Direito Internacional Humanitário. Direito Internacional dos Conflitos


Armados. Lei da Guerra. Cibernética.
INTRODUÇÃO

O presente artigo visa debater a amplitude possível contradições entre a previsão de


emprego das Forças Armadas (FFAA) no ciberespaço à luz do Direito Internacional dos
Conflitos Armados (DICA), também chamado de Direito Internacional Humanitário. Tal
debate é relevante, pois o primeiro documento pesquisado define como são executadas as
ações no ambiente virtual, enquanto o outro especifica quais são os critérios estipulados
para que uma ação militar, em caso de conflito armado, seja legítima do ponto de vista
jurídico.
Considerando-se que ambas as publicações são formuladas pelo mesmo órgão, o
Ministério da Defesa brasileiro, e definem como as operações militares devem ser
realizadas, uma genericamente (em relação ao DICA) e outra em um ambiente especifico
(em relação a Guerra Cibernética), esperava-se que elas convergissem para um mesmo
objetivo através de conceitos comuns, nascendo assim a inquietação que motivou essa
pesquisa: haveria uma discordância entre o “como deve ser feito” nas publicações
pesquisadas?
Para tentar responder essa pergunta entendeu-se necessário inicialmente explicar os
fundamentos legais que normatizam o DICA, fazendo uma abordagem histórica desde a sua
criação até o seu momento atual. A partir disso, promoveu-se uma análise da visão política
sobre o tema Defesa no Brasil com a leitura da Política Nacional de Defesa (PND) e da
Estratégia Nacional de Defesa (END), seguida de uma explicação de como a sociedade em
rede, uma realidade atual, influenciou no pensamento estratégico de Defesa no país
resultando na criação de uma doutrina militar específica para a Guerra Cibernética.
Ao abordarmos os conflitos, explorou-se os conceitos utilizados pelo Ministério da
Defesa do Brasil em um documento próprio que procura formatar o DICA em cinco princípios
base. De posse dos dados, foi possível fazer algumas ponderações sobre as ideias
presentes em ambos os documentos e por fim apresentar uma conclusão sobre os
resultados desse trabalho. Dessa maneira espera-se oferecer uma pequena contribuição na
discussão sobre temas tão complexos e, ao mesmo tempo, tão atuais cujo debate, como
veremos adiante, iniciou-se a milênios.

A GÊNESE DO DIREITO INTERNACIONAL DOS CONFLITOS ARMADOS

O nascimento do Direito Internacional (DI) não é conhecido formalmente, sabe-se


apenas que em determinado momento civilizações começaram a estipular entre si regras de
convívio em prol do benefício mútuo e quase sempre visando fortalecer a segurança. Uma
vez que o ser humano passou a viver em sociedade, sentiu a necessidade de estabelecer
regras de convivência não somente internas, aplicadas aos seus cidadãos, mas também
externas para regular a convivência entre coletividades.
Desnecessário dizer que por existir em um ambiente heterogêneo e sem a
preponderância de uma entidade universal e suprema que possa servir de fonte única de
poder (algo como o Leviatã proposto por Hobbes), é um dos ramos mais complexos de ser
aplicado, porém ao mesmo tempo um dos mais necessários para a existência de uma
realidade mais justa e pacífica, podendo ser dividido em três áreas:
 O DI Público: que trata das relações entre os sujeitos do DI, como Estados e
Organizações Internacionais;
 O DI Privado: visa legislar sobre a relação entre o DI e o Direito Interno do
país, e;
 O DI Comercial: aborda como devem ser aplicadas as regras relativas as
relações privadas internacionais no que tange aos aspectos comerciais
(CAMPOS;TÁVORA, 2014).
Um longo caminho foi percorrido até que essa divisão fosse estabelecida, tendo os
primeiros registros conhecidos da assinatura de tratados bilaterais ocorrido por volta de
2.100 a.C, entre Lagash e Umma, representados por seus soberanos, sob um bloco de
pedra e tratava da fronteira que deveria separar as cidades-estados da Mesopotâmia em
questão. E, no séc. XXI a. C, o Tratado de Paz entre o faraó egípcio Ramsés II e o rei
Hatusil III, que além de consolidar os limites territoriais entre as partes, promovia uma
aliança defensiva contra possíveis ataques de outros (CAMPOS;TÁVORA, 2014).
Porém foi no séc. XVII que se pode identificar o nascimento do DI no Ocidente, com
a publicação da obra “O Direito da Guerra e da Paz” em 1625 por Hugo Grotius. Inspirada
na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e predecessora aos Tratados de Munster e
Osnabruck, que culminaram na Paz de Vestfália (1648), onde Grotius foi o representante do
Rei da Suécia, essa obra outorga aos Estados o papel de agentes no cenário internacional,
em detrimento ao entendimento anterior da autoridade com papel superior à autonomia dos
países. Esse conceito cria as bases do DI, que tem como características a universalidade, a
igualdade jurídica e o livre acesso (CAMPOS;TÁVORA, 2014).
Nessas relações entre civilizações, destaca-se o uso da força como um fator
característico do ser humano, inclusive nas relações internacionais. Estima-se que em um
período de 3258 anos, entre 1946 a.C. e 1861 d.C. a proporção foi de 01 ano de paz para 13
anos de guerra (MELLO, 2002). No Ocidente, testemunhou-se o aumento da incidência do
uso da violência na solução de controvérsias nos últimos dois séculos, tendo em vista que
no período entre 1800 e a 1944 eclodia um conflito a cada doze ou vinte e quatro meses,
após, verificou-se que o prazo máximo diminuiu para catorze meses (TILLY, 1996).
Natural que houvesse um ramo em especial do DI, o Direito Internacional
Humanitário (DIH) ou Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA), nascido em virtude
do relacionamento violento entre Estados, cujo objetivo fosse limitar as consequências dos
conflitos armados de maneira a minimizar o sofrimento e a legitimar o uso da força. Sua
origem remonta ao Rei Hammurabi que em seu código, escrito por volta de 1772 a.C., previa
condutas no trato de reféns. Também servem de referência às Leis de Manu, contidas na
obra hindu Mahabharata escritas por volta de 100 a.C, que proibia o uso de armas
envenenadas ou o ataque ao combatente desarmado (CINELLI, 2011).
No Ocidente, as Cidades-Estado da Grécia adotavam normas de conduta para seus
combatentes bem como para os prisioneiros e mortos em combate, após os romanos
estabeleceram o conceito de declaração formal de guerra com a adoção do jus fetiale, um
ato de caráter religioso, mas com efeito legal. Após a adoção do cristianismo e com o
acúmulo de poder pelo Papa, Santo Agostinho estipulou no séc. V o conceito de “guerra
justa”, aliviando dos pecados o soberano e justificando o combate contra os infiéis. Mais
adiante, no séc. XIII, São Tomás de Aquino ratificou o conceito criado com a definição do
que seria uma guerra justa: aquela cuja a intenção fosse legítima, onde houvesse a ordem
de uma autoridade legal e uma “justa causa” para combater (CINELLI, 2011).
Porém, com o fim da Guerra dos Trinta anos e a paz celebrada entre católicos e
protestantes marcou a dissociação do Estado da autoridade suprema do papa, o que levou
no séc. XVIII a criação (e utilização) de exércitos profissionais, o que veio a corroborar a
utilização das “leis da guerra”, aquelas aplicadas aos militares no exercício da profissão
peculiar. Porém em 1806 Napoleão Bonaparte invade a Prússia com um exército que,
embora constituído por muitos profissionais militares, tinha na base da sua força o cidadão
voluntário que acreditava na legitimidade daquele conflito. Nascia assim o exército-cidadão,
composto por profissionais e sustentado pela vontade popular (CINELLI, 2011).
A necessidade pela guerra legítima, ou seja, aceita pela sociedade, veio a moldar o
conceito atual do DIH. Durante a guerra civil americana (1861-1865), o presidente Lincoln
pediu ao professor Francis Lieber que desenvolvesse um manual de conduta baseado no
DI, onde estivesse detalhado os deveres e direitos do militar em combate. E em 1859 o
suíço Henry Dunant realizava uma viagem de negócios quando se deparou com os feridos
da Batalha de Solferino. A falta de atendimento aos feridos o levou a escrever o livro “Uma
recordação de Solferino”, onde o autor sugeria o tratamento igualitário aos feridos em
combate (CINELLI, 2011).
Seus esforços foram reconhecidos e, em 1863, em uma conferência em Genebra
que culminou na criação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). No ano
seguinte, foi assinado na mesma cidade um tratado internacional que garantia tratamento
aos feridos independente da nacionalidade, a proteção ao pessoal sanitário (de saúde) e a
identificação do símbolo da cruz vermelha sobre o fundo branco como um sinal distintivo de
identificação de pessoas e objetos que não poderiam ser alvo de ataques (CICV, 2016a).
Nascia assim o DICA, tal como o conhecemos hoje, como uma subdivisão do Direito
Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), sendo muitas vezes confundido com esse. A
principal diferença entre eles é que o primeiro categoriza pessoas e objetos e assim justifica
a sua proteção ou não, enquanto o DICA nunca pode ser suspenso ou derrogado e visa
limitar os meios e métodos de violência utilizados contra as pessoas e objetos considerados
alvos legítimos (CINELLI, 2011).
No Brasil, o Ministério da Defesa (MD) divide o DICA em três vertentes:
 Direito de Genebra: visa proteger e salvaguardar as vítimas dos conflitos;
 Direito de Haia: estabelece os direitos e deveres dos combatentes durante as
operações, e;
 Direito de Nova Iorque ou Misto: normas estabelecidas sob a égide da ONU
(BRASIL, 2011a).
Ele deve ser aplicado nas situações de conflito armado que, por definição do MD,
ocorre quando [...] “casos em que ocorrer guerra declarada, ou qualquer outro conflito
armado, que possa surgir entre dois ou mais Estados, ainda que o estado de guerra não
seja reconhecido por um deles” [...]. Verifica-se assim que as Forças Armadas (FFAA)
deverão cumprir rigorosamente os tratados assinados quando no cumprimento de suas
missões quando envolvidas em situações de conflito armado (BRASIL, 2011a).
Vale ressaltar que no mundo pós 1945, optou-se pela utilização do termo “conflito
armado” em detrimento de “guerra”. Isso porque, no período citado, de 190 conflitos
observados, em apenas 19 as partes envolvidas consideraram o evento como sendo um ato
de beligerância, ou de guerra. Daí a necessidade da adoção do DIH como válido para
eventos de conflito, mesmo sem que haja uma declaração formal por parte dos atores
envolvidos (CINELLI, 2011).
Cria-se a divisão entre o Conflito Armado Internacional (CAI), onde existe o confronto
bélico direto entre as altas partes contratantes (Estados); e o Conflito Armado Não-
Internacional (CANI) onde existe o enfrentamento entre as forças militares de um Estado
contra um ou mais grupos armados não governamentais que dominem uma parcela do
território onde exerçam controle efetivo ou entre grupos não governamentais. Do ponto de
vista jurídico, essas são as únicas formas de conflito armado existentes e, portanto, onde a
aplicação do DICA é obrigatória, não sendo considerados como conflitos, distúrbios ou
tensões internas, mesmo que haja a utilização das FFAA (CICV, 2016b).
Tal fator é relevante no estudo da Defesa Nacional, um tema importante nos debates
políticos, acadêmicos e econômicos no Brasil desde o final dos anos 90. Com a
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, logo em seguida
houve debates sobre a relevância do trecho do art. 142 onde está escrito que as Forças
Armadas devem “defender a pátria, garantir os poderes constituídos e, por iniciativa de
qualquer um deles, garantir a lei e a ordem” (BRASIL, 1988, grifo do autor). Pelo exposto,
pode-se afirmar que no caso grifado, aplicar-se-á o ordenamento jurídico interno e não o
DICA, por tratar-se de um caso de segurança pública. Revisar momentaneamente essa
definição do papel das FFAA brasileiras, no final do século passado é necessário para o
entendimento da importância das questões cibernéticas que, ao lado do nuclear e
aeroespacial, tornou-se um dos três setores estratégicos para a Defesa.

A DEFESA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL

Visando definir a separação entre Defesa e Segurança Pública, em 1996 houve a


elaboração da PND, durante o primeiro mandato do então presidente Fernando Henrique
Cardoso, seguida da criação do Ministério da Defesa em 1999. Em 2005, houve a
aprovação de uma nova PND, sendo acrescentada a Estratégia Nacional da Defesa e a
promulgação do Livro Branco de Defesa em 2007 (BRASIL, 2011b).
O maior mérito de todos esses documentos talvez seja a importância, ressaltada
inúmeras vezes em todas as versões (a última delas datada de 2012), da participação da
sociedade como um todo, e não somente dos militares, na elaboração do planejamento da
Defesa Nacional, haja vista que a segurança da soberania do Brasil não interessa somente
aos membros das Forças Armadas, mas sim a toda sociedade brasileira. Essa ligação entre
sociedade e FFAA visa transmitir a legitimidade das ações, a começar pela definição do
“que”, “por quem” e “como”.
A Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END)
buscam traçar os rumos que o Brasil deve tomar no tocante a Defesa ao fixar objetivos (na
PND) e definir as ferramentas para atingí-los (na END) de maneira a formatar o
planejamento estratégico brasileiro em relação a Defesa (BRASIL, 2012).
Na PND podemos então identificar os objetivos nacionais de defesa:
I. Garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade
territorial;
II. Defender os interesses nacionais e as pessoas, os bens e os
recursos brasileiros no exterior;
III. Contribuir para a preservação da coesão e da unidade
nacionais;
IV. Contribuir para a estabilidade regional;
V. Contribuir para a manutenção da paz e da segurança
internacionais; Intensificar a projeção do Brasil no concerto das
nações e sua maior inserção em processos decisórios
internacionais;
VI. Manter Forças Armadas modernas, integradas, adestradas e
balanceadas, e com crescente profissionalização, operando de
forma conjunta e adequadamente desdobrada no território nacional;
VII. Conscientizar a sociedade brasileira da importância dos
assuntos de defesa do País;
VIII. Desenvolver a indústria nacional de defesa, orientada para a
obtenção da autonomia em tecnologias indispensáveis;Estruturar as
Forças Armadas em torno de capacidades, dotando-as de pessoal e
material compatíveis com os planejamentos estratégicos e
operacionais;
IX. Desenvolver o potencial de logística de defesa e de
mobilização nacional (BRASIL, 2012).

Na END estão previstas ações com o objetivo de promover para o Brasil a Inserção
Internacional, e dentro deste tópico, incrementar o apoio à participação brasileira no cenário
mundial, mediante a atuação do Ministério da Defesa e demais ministérios:
- nos processos internacionais relevantes de tomada de decisão, aprimorando e
aumentando a capacidade de negociação do Brasil;
- nos processo de decisão sobre o destino da Região Antártica;
- em ações que promovam a ampliação da projeção do País no concerto mundial e
reafirmar o seu compromisso com a defesa da paz e com a cooperação entre os povos;
- em fóruns internacionais relacionados com as questões estratégicas, priorizando
organismos regionais como o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) da União de
Nações Sul-Americanas (UNASUL);
- no relacionamento entre os países amazônicos, no âmbito da Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica;
- na intensificação da cooperação e do comércio com países da África, da América
Central e do Caribe, inclusive a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos
(CELAC); e
- na consolidação da Zona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), e o
incremento na interação inter-regionais, como a Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP), a cúpula América do Sul-África (ASA) e o Fórum de Diálogo Índia-
Brasil-África do Sul (IBAS) (BRASIL, 2012).
Nesse contexto, o Brasil vem tentando projetar-se no cenário internacional,
participando de missões sob a gerência das Organizações das Nações Unidas (ONU),
fazendo parte dos seus contingentes, tal como podemos identificar na diretriz nº19 da END:
“Preparar as Forças Armadas para desempenharem
responsabilidades crescentes em operações internacionais de apoio
à política exterior do Brasil. Em tais operações, as Forças agirão sob
a orientação das Nações Unidas ou em apoio a iniciativas de órgãos
multilaterais da região, pois o fortalecimento do sistema de
segurança coletiva é benéfico à paz mundial e à defesa nacional”
(BRASIL, 2012).
Essa visão apenas corrobora uma postura brasileira que, ao longo do tempo,
tradicionalmente busca uma postura jurídica igualitária no sistema jurídico internacional, pois
desde a sua primeira constituição republicana em 1891 o Brasil aboliu a metodologia de
guerra por conquista, tendo sido pioneiro a ressaltar a importância da adoção de tratados e
acordos igualitários entre países, desde sua participação na segunda conferencia de paz em
Haia, realizada em 1907 (BRASIL, 2012).
Em face ao exposto, fica claro que a PND e a END buscam definir o que são e qual o
papel das FFAA na sociedade brasileira, e paralelo temos o DIDH (embutido no Constituição
de 1988) direcionando o preparo e emprego em tempo de paz bem como o DICA
delimitando os meios e métodos que poderão ser utilizados em caso de conflito.
Porém como Kissinger (2015) observa, a natureza das comunicações em rede, com
sua capacidade de impregnar e penetrar os setores sociais, financeiros, militares e
industriais atropelou a compreensão daqueles que têm o dever de ajustar as normas
públicas à sociedade em evolução. Torna-se necessário entender como o ambiente virtual
influencia a sociedade e como o princípio soberano de uso da força pelo Estado por meio
das FFAA está normatizado segundo o MD.

A SOCIEDADE EM REDE E A GUERRA CIBERNÉTICA

A sociedade atual está se modificando de uma maneira mais rápida do que a


capacidade de adaptação do Estado, até porque tais mudanças foram impulsionadas,
sobretudo, a revelia das ações políticas ou econômicas estatais. Foi iniciada no fim dos anos
70 por meio da popularização da informática para fins de uso pessoal, e esse fenômeno
modificou não somente o espaço físico a habitável, mas criou um novo espaço virtual e
universal: o ciberespaço (LÉVY, 1999).
Esse novo ambiente, utilizado sobretudo para a comunicação virtual dos indivíduos
reais, permeia todas as camadas sociais e diminui o espaço entre a camada governante e a
população, permitindo e valorizando as ações de afirmação e expressão por indivíduos ou
grupos de indivíduos e dessa maneira moldando o comportamento da sociedade, que agora
passa a ser, no ciberespaço, não mais vertical e hierarquizada mas sim horizontal e em rede
(LÉVY, 1999).
Se o comportamento humano molda o ciberespaço, é natural que suas atitudes no
mundo real sejam replicadas no mundo virtual, inclusive no campo da Defesa. Não por
acaso, as questões cibernéticas estão, ao lado da nuclear e aeroespacial, como estratégicas
e prioritárias na PND (BRASIL, 2012). Da mesma maneira, a utilização do ciberespaço para
realizar operações que façam parte de um conflito armado devem estar limitadas pelos
mesmos princípios que norteiam os meios e métodos previstos no DICA, mesmo que não
exista nenhum tratado atualmente que verse exclusivamente sobre o tema (CICV, 2016c).
Com relação ao emprego no ciberespaço, foi aprovada em 2014 a Doutrina Militar de
Defesa Cibernética (MD 31-M07), cujo objetivo é proporcionar uma unificação de
pensamento sobre o assunto no âmbito do Ministério da Defesa em prol da operação
conjunta das FFAA no ambiente cibernético. As ações no ciberespaço (ou espaço
cibernético) são divididas de acordo com o nível de decisão: Segurança da Informação e
Comunicações e Segurança Cibernética no nível Presidencial, Defesa Cibernética no nível
ministerial e Guerra Cibernética nos níveis de comando e execução das atividades (BRASIL,
2014).
No planejamento e execução das ações, é definido como Guerra Cibernética [...]
“uso ofensivo e defensivo de informação e sistemas de informação para negar, explorar,
corromper, degradar ou destruir capacidades de C2 do adversário, no contexto de um
planejamento militar de nível operacional ou tático ou de uma operação militar” (BRASIL,
2014).
Essas operações baseiam-se em quatro princípios:
 Princípio do Efeito - as ações no Espaço Cibernético devem produzir efeitos
que se traduzam em vantagem estratégica, operacional ou tática que afetem o
mundo real, mesmo que esses efeitos não sejam cinéticos.

 Princípio da Dissimulação - medidas ativas devem ser adotadas para se


dissimular no Espaço Cibernético, dificultando a rastreabilidade das ações
cibernéticas ofensivas e exploratórias levadas a efeito contra os sistemas de
tecnologia da informação e de comunicações do oponente. Objetiva-se, assim,
mascarar a autoria e o ponto de origem dessas ações.

 Princípio da Rastreabilidade - medidas efetivas devem ser adotadas para se


detectar ações cibernéticas ofensivas e exploratórias contra os sistemas de
tecnologia da informação e de comunicações amigos. Quase sempre, as ações
adotadas no Espaço Cibernético envolvem a movimentação ou a manipulação de
dados, as quais podem ser registradas nos sistemas de Tecnologia e Informação das
Comunicações.

 Princípio da Adaptabilidade - consiste na capacidade da Defesa Cibernética


de adaptar-se à característica de mutabilidade do Espaço Cibernético,
mantendo a proatividade mesmo diante de mudanças súbitas e imprevisíveis.
(BRASIL, 2014, grifo do autor)

Possui dez características, dentre as quais para os fins deste artigo destaca-se o da
Incerteza que diz [...] as ações no Espaço Cibernético podem não gerar os efeitos
desejados em decorrência das diversas variáveis que afetam o comportamento dos
sistemas informatizados.” (BRASIL, 2014, grifo do autor).
No que tange as formas de atuação (item 2.7.4), a Guerra Cibernética pode ser
utilizada em “[...] um ambiente de crise ou conflito, em apoio a uma operação militar.”
(BRASIL, 2014, grifo do autor). Dessa maneira, são três as possibilidades de emprego em
ações cibernéticas:
 Ataque Cibernético - compreende ações para interromper, negar, degradar,
corromper ou destruir informações ou sistemas computacionais
armazenados em dispositivos e redes computacionais e de
comunicações do oponente.

 Proteção Cibernética - abrange as ações para neutralizar ataques e


exploração cibernética contra os nossos dispositivos computacionais e
redes de computadores e de comunicações, incrementando as ações de
Segurança, Defesa e Guerra Cibernética em face de uma situação de crise
ou conflito. É uma atividade de caráter permanente.

 Exploração Cibernética - consiste em ações de busca ou coleta, nos Sistemas


de Tecnologia da Informação de interesse, a fim de obter a consciência
situacional do ambiente cibernético. Essas ações devem preferencialmente
evitar o rastreamento e servir para a produção de conhecimento ou identificar
as vulnerabilidades desses sistemas (BRASIL, 2014, grifo do autor).

Sendo essas ações limitadas, no que tange as formas de atuação (item 2.7.4 da MD
31-M-07), em operações de Guerra e Não-Guerra da seguinte maneira:
 Operações de Não-Guerra - por ocasião da execução de Operações de Não-
Guerra, o emprego de ações de ataque cibernético necessita de autorização
expressa de autoridade competente, normalmente em nível político. Para
as ações de exploração cibernética, deverão ser observados atos normativos
do ordenamento jurídico em vigor. Em caso de dúvidas, caberá ao EMCFA
consultar o nível político acerca do emprego das ações anteriormente
mencionadas.

 Operações de Guerra - somente serão executadas as ações efetivamente


necessárias para o cumprimento do item 2.7.4. Em caso de dúvidas,
caberá ao EMCFA consultar o nível político acerca do emprego dessas ações
(BRASIL, 2014, grifo do autor).

Sendo o ambiente virtual considerado como um palco de atuação das FFAA, é


esperado que ocorra no ciberespaço, e por meio, dele confrontos onde a utilização legal da
força por meio de países, incluindo o Brasil. Faz-se necessário conhecer a documentação
legal que orienta as FFAA do Brasil nos conflitos armados.

O DICA NAS FFAA BRASILEIRAS

No âmbito do MD, o documento que normatiza o estudo, a difusão e serve como


fonte de consulta em relação ao DICA nas FFAA, nas situações de emprego singular ou
conjunto no âmbito de conflitos é o Manual de Emprego do Direito Internacional dos
Conflitos Armados (DICA) nas Forças Armadas – MD 34-M-03 (BRASIL, 2011a).

Sendo o DICA baseado em tratados multilaterais com o objetivo de diminuir o


sofrimento e atenuar o uso da força contra pessoas e bens, dos quais o Brasil ratificou ou
aderiu cerca de 50 documentos nesse sentido, existe uma amplitude dos documentos
normativos, por isso convencionou-se, no MD, a adoção de cinco princípios básicos cuja
filosofia devem nortear a aplicação desse ramo do direito nas FFAA brasileiras:

1. Distinção – distinguir os combatentes e não combatentes. Os não


combatentes são protegidos contra os ataques. Também, distinguir bens de caráter
civil e objetivos militares. Os bens de caráter civil não devem ser objetos de ataques
ou represálias.

2. Limitação – o direito das Partes beligerantes na escolha dos meios para


causar danos ao inimigo não é ilimitado, sendo imperiosa a exclusão de meios e
métodos que levem ao sofrimento desnecessário e a danos supérfluos.
3. Proporcionalidade – a utilização dos meios e métodos de guerra deve ser
proporcional à vantagem militar concreta e direta esperada. Nenhum alvo, mesmo
que militar, deve ser atacado se os prejuízos e sofrimento forem maiores que os
ganhos militares que se espera da ação.

4. Necessidade Militar – em todo conflito armado, o uso da força deve


corresponder à vantagem militar que se pretende obter. As necessidades militares
não justificam condutas desumanas, tampouco atividades que sejam proibidas pelo
DICA.

5. Humanidade – o princípio da humanidade proíbe que se provoque sofrimento


às pessoas e destruição de propriedades, se tais atos não forem necessários para
obrigar o inimigo a se render. Por isso, são proibidos ataques exclusivamente contra
civis, o que não impede que, ocasionalmente, algumas vítimas civis sofram danos;
mas todas as precauções devem ser tomadas para mitigá-los (BRASIL, 2011a).

Vale ressaltar que a adesão brasileira aos tratados ratificados imputa a


obrigatoriedade do cumprimento da legislação, tornando-se obrigatório a observância dos
cinco princípios citados no planejamento e execução das ações quando ocorrerem situações
de CAI e CANI onde as FFAA brasileiras estejam envolvidas.

PONDERAÇÕES SOBRE OS CONCEITOS CITADOS

Na análise dos princípios de emprego de Guerra Cibernética percebe-se que o


Principio do Efeito deve levar em consideração não somente a vantagem desejada mas
também a legitimidade do alvo com base nos princípios do DICA, sejam os efeitos cinéticos
ou não. O Principio da Dissimulação deve ser passível de controle e arquivo das operações
para, caso seja necessário, a responsabilização de ações que infrinjam o DICA.

Torna-se necessário discutir no Princípio da Rastreabilidade até que ponto o


monitoramento do ciberespaço respeita os princípios da Limitação, Necessidade Militar e
Distinção. Por fim, é imperativo que toda e qualquer mudança nas operações cibernéticas,
que implique em uma adoção de novas técnicas e procedimentos de ação, seja avaliado a
luz do DICA.

Quanto as características, foi ressaltada entre as dez, aquela que se entendeu mais
relevante, pois a Incerteza significa que não se pode estimar a extensão dos danos
causados. Isso implica na inobservância de pelo menos quatro princípios: Distinção, uma
vez que não será possível distinguir quem será afetado pela ação; Limitação, pois não será
possível saber se os danos serão supérfluos e o sofrimento desnecessário; Necessidade
Militar, pois não será possível precisar a vantagem militar esperada e Humanidade, pois não
se pode garantir o ataque exclusivo contra objetivos legítimos.

Essa análise influencia diretamente nas possibilidades de emprego, pois o Ataque e


a Proteção Cibernética visam negar o acesso ao ciberespaço ao inimigo. Considerando a
importância do ambiente virtual na sociedade atual e somado a característica da Incerteza é
questionável, do ponto de vista do DICA, a legitimidade de tal ação devido a abrangência
(talvez desconhecida no momento do planejamento) das consequências da ação.
No tocante as formas de ação, inicialmente percebe-se um erro de semântica na
medida em que, como foi demonstrado, mesmo em uma situação de “não-guerra” pode-se
observar a existência de um CAI ou CANI. Portanto a definição deveria observar que, em
caso de um conflito armado tal qual definido na legislação em vigor, as FFAA estariam
limitadas pelo emprego descrito no DICA e nas demais situações conforme as legais em
vigor. Por fim, considerando uma “Operação de Guerra” como análoga a uma situação de
CAI, cabe a ressalva que as operações devem ser restritas ao previsto no DICA, não
cabendo espaço ao nível político nesse tipo de decisão.

CONCLUSÃO

Pode-se concluir ao final deste trabalho que embora a Doutrina Militar de Defesa
Cibernética procure abranger todo o conhecimento necessário para o direcionamento das
ações nesse campo, cabe ainda algumas ressalvas quanto ao emprego militar quando nas
operações em conflitos armados.
Procurou-se abordar os princípios, as características, as possiblidades e as
limitações de emprego da Guerra Cibernética, tal qual definida na MD 31-M07 (Doutrina
Militar de Defesa Cibernética), à luz dos princípios do Direito Internacional dos Conflitos
Armados definidos também pelo Ministério da Defesa no Manual de Emprego do Direito
Internacional dos Conflitos Armados (DICA) nas Forças Armadas (MD 34-M-03).
Foi identificado que, em alguns momentos, as definições do “como deve ser feito”,
relativos as operações militares, são conflitantes. Utilizou-se como premissa que, sendo o
DICA fruto de acordos ratificados e internalizados pelo Brasil, sua filosofia tem precedência
sobre qualquer doutrina de emprego das FFAA, inclusive sobre a cibernética, cabendo
assim, uma adequação dessa última em relação a primeira.
Conclui-se que o assunto não se esgota nesse trabalho, especialmente ao
observarmos a complexidade dos temas envolvidos: conflitos armados, ciberespaço e
Direito Internacional. Sendo assim, espera-se que novas abordagens surjam sobre esse
tema e que novas linhas de debate apareçam, sempre com o intuito de melhorar a
capacidade de defesa do Brasil.

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