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Lugares e nao lugares em Marc Augé Teresa Sa As transformagSes que atualmente ocorrem na vida cotidiana de cada um de rds, eque resultam do processo de globalizacio, refletem-se na nossa relagio com 0 espago, © tempo ¢ os outros. As duas nogbes analisadas por Mare Augé, “lugar antropol6gico/nao lugar”, permitem-nos tomar consciéncia dessas transformag6es, que surgem de uma forma aparentemente “natural” € vio substituindo a cidade antiga pela emergéncia de uma “nova cidade”. Entendemos essas duas nogGes — “lugar antropolégico” e “nto lugar”? — como “tips ideais” (cf. Weber, [1922]* 1971), que representam os espacos dominantes respectivamente das sociedades sem escrta e da sociedade con- ‘temporinea ocidental. (O que a nogio de “no lugar” nos permite é algo menos rigido ¢ talvez ‘menos rigoroso sob o ponto de vista cientifico, exatamente pela ambiguidade dda sua definigi0, como veremos neste texto. Porém, mais interessante sob 0 ponto de vista da anilise soc € a recomposigio minuciosa das partes. Corresponde empiricamente a um conjunto de construsdes com caracteristicas muito diferentes aeroportos, cadcias de horis, hipermercados, autoestradas etc. Augé no analisa exaus- € encontrar uma imagem do todo que nio tivamente nenhum desses tipos de espago, mas procura perceber 0 que & comum a todos eles ¢ de que modo sua proliferagio provoca mudangas na organizagio social-cconémica-simbélica da sociedade ¢, portanto, na vida cotidiana dos individuos: “O problema é descobrir aquilo que é comum a oro note smn seemed Fn cole opie (Miche De Cane: maple (Mein Weber berper (Fan Chap ep de fms eps do hag (Mama na. 2 Ce Ma Ag 2005) ae ‘lao chindicn © db tin nl dado « sihindsion Teme rial rin veep an Design meen Pe Cb, *Adtacome olde nh lise abe. Hs Indica na ric verge scm sali ide pleaser) Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 4. Bg baie Vide po comme: 4 mera det ease om morse. Ro de Jain, Za, 208 2). todos. E um problema, poder-se- r de tradugio, de traduziro que esti dito numa linguagem [...] numa expressio de uma linguagem diferente” (Lévi-Strauss, 1987, p. 21). A alteragao da linguagem no nivel da cons- trugio desses espagos implica também uma alteragdo da linguagem social daqueles que vio ocupé-los. A relagao nao é determinista, como veremos, mas ela existe. ‘A alteridade ou "nds e 0 outro” Ao leros varios livros publicados por Marc Augéa partir de 1992, quan- do se refere pela primeira ver.4 nogio de “nao lugar”, percebemos que esse conceito esté presente em quase todos os seus trabalhos, como se incorpo- rasse qualquer coisa de fundamental que acompanha seu pensamento sobre a sociedade contemporiinea. Parece que 0 que esti em jogo na construgio dos espacos e na sua propria vivéncia, que permite a aceleragio do tempo a virtualizagio do espaco, é a transformagio de nés mesmos em outros, algo que realizamos mas do qual no nos damos conta: “todos nés temos a impressio de estarmos sendo colonizados, mas sem que saibamos ao certo por quem” (Augé, 1998, p. 7). Zygmunt Bauman, em Vida pana consumo’, desenvolve a tese da passagem da “sociedade de produtores” para a “socie- dade de consumidores” e refere-se a Siegfried Kracauer como um autor que conseguir nos anos de 1920 ver o invisivel e perceber como fundamental aquilo que parecia passageiro. Afirmava Kracauer, em 1929: ° de produtos de beleza nem sempre & um luxo. Com medo de serem descartados dos sldes de beleza surge em parte de preocupagGes exstenciais, € 0 uso ‘como ultrapassados, tanto as senhoras como os cavalheiros tingem 0 seu cabelo, ‘enquanto os quarenGes se dedicam a fazer esporte para continuar magros. “Como ser bonito” € 0 titulo de um folheto recente que apareceu no mercado, ¢ nosjornais publicado o caminho que cada um deve seguir “para se manter jovem ¢ bonito agora e para sempre” (apud Bauman, 2007, p. 18). Assim como Kracauer conseguiu antever a importincia do marketing do principio do século xx, que se ajusta as “preocupagdes existenciais” ca- racteristicas de uma sociedade onde o “individualismo” tem um peso cada vex maior, Marc Augg centra-se nos nao lugares para tentar perceber de que forma certos espagos construidos, cujo principal objetivo € permitir “fazer cada ver mais coisas em menos tempo’ , est3o nos transformando em outros. 20 Tempo Social revista de sociologia da US, v.26, 2 Se é verdade que a histéria da humanidade ¢ um acentuar de transforma- ‘gBes que ocorrem ao longo do tempo, autor alerta para a quantidade e a rapider de certas transformagdes atualmente em curso. Essa situa¢ao permite cada ver menos vermo-nos simultaneamente enquanto ator ¢ espectador, pois o ritmo das mudangas ultrapassa o ritmo da vida — nada esta parado & nossa espera, tudo muda constantemente. Seo lugar antropolégico representa um tempo passado e o nao lugar um provivel futuro, pensar a relacio entre os dois é de certo modo pensar uma realidade que se joga entre o que fomos/somes ¢ aquilo em que poderemos. nos tornar, ou melhor, aquilo em que estamos nos tornando* Mare Augé, ao analisar a relagio entre lugar antropol6gico e nao lugar 1a sociedade contemporinea, transporta para o espaco a questo da alte- ridade: “Se a tradigéo antropolégica ligou a questao da alteridade (ou da identidade) & do espago, é porque os processos de simbolizagao colocados em pritica pelos grupos sociais deviam compreender e controlar 0 espaco para se compreenderem e se organizarem a si mesmos” (Augé, 1994b, p. 158). O exemplo jé clissico de Lévi-Strauss em relagao & aldeia dos Bo- roros mostra como a localizagao espacial das palhogas estava diretamente relacionada com a sua organizago social, politica e econdmica. Quando (8 missionérios salesianos mudaram sua disposigao, colocando-as em linha reta e substituindo sua forma tradicional circular, os Bororos perderam 0 sentido das tradiges e da sua prépria cultura. A pergunta que parece estar sempre subjacente 20 pensamento de Augé 6 saber de que forma os “nao lugares’ podem provocar uma perda de nds _mesmos como grupo ¢ sociedade, prevalecendo agora apenas o individu “solitétio” Os tréstipos de alteridade apresentados pelo autor— social (diferenga de sexo, idade, classe social etc), intima (aquilo que cada um consegue fazer de si proprio) e completa (o estrangeiro, entendido como o inimigo) (cf. Idem, ibidem) — sempre existiram na histéria das sociedades. Mas o que se passa hoje, no perfodo que Augé denominou sobremodernidade, marcado pelos excessos de acontecimentos, imagens e referéncias espaciais e individuais (cf. Augé, 1994a), é a perda da categoria do outro. Se, por um lado, os “nao lugares” permitem uma grande circulagao de pessoas, coisas e imagens em um tinico espago, por outro transformam o mundo em um especticulo com 0 qual mantemos relagoes a partir das imagens, transformando-nos em espectadores de um lugar profundamente codificado, do qual ninguém faz. verdadeiramente parte. Como afirma Teresa i 5 ke dimen vinta oonimn, hesopenatd ha lglg men ue permite pe: se em canfoman de nk novembro 2014 an Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 Gérard Althabe, a relagio de cada um com o planeta é uma relagio direta, sem mediadores, é “a imagem vertiginosa da solidao” (/dem, pp. 135-136). A relagao com 0 outro é minimizada em detrimento da relagio com nés ‘mesmos ~ nao temos tempo para estar/parar, estamos de passagem, em viagem, espago onde a agio racional se impoe a vida de qualquer coisa: “O nao lugar é 0 espago dos outros sem a presenga dos outros, 0 espago constituido em espectéculo” (Augé, 1994b, p. 167). desejo de tudo fazermos em um periodo de tempo cada ver mais curto, de nao perdermos nada do que se passa ja nao s6 & nossa volta, mas também ‘no mundo, nao permite a vida nos espagos fisicos que ocupamos. Os espagos fisicos transformam-se em meios que possibilitam a interag3o no espago virtual: nunca estamos onde estamos fisicamente — contatos, informagoes, publicidade (celulares, computadores, cartazes, monitores, alto-falantes) ~, tudo isso nos transporta para outrasrealidades, problemas, alegrias, desejos, nos faz sonhar sem 0 sonho. Essa substituigio do espago real pelo espago virtual surge como um constrangimento que parece libertar-nos e manifesta-se nas transformagSes aque esto a emergir na organizagao do espago, das quais nao nos damos conta facilmente, porque parecem a resposta mais simples & resolucio de rnossos problemas do dia a dia. Pensamos com facilidade no que se ganha, ‘mas nao no que se perde. Daf que Augé se refira 8 importincia dos antro- pélogos para analisar 0 mundo contemporiineo hoje, exatamente porque estes desde sempre analisaram a alteridade e “foram sempre mais sensiveis A beleza daquilo que se desmorona do que 4 amplitude do que se anuncia” (Augé, 2003, p. 16). E necessério olharmo-nos criando uma distancia entre nése nds, distancia essa que antropélogo tem natunalmente quando estuda uma sociedade arcaica, visto que ali ele esté face a face com uma realidade marcadamente diferente, mas que deve procurar criar ao estudar a sociedade ocidental. Lugar e nao lugar entrelagados Mare Augé parte de uma concepgio do espaco cujas bases so encon- tradas no pensamento de Georges Simmel, para quem 0 espago fisico € 0 espago social estdo juntos, um nao existe sem o outro: "A agio reciproca faz do espago, até entao vazio e nada, qualquer coisa pant nés, preenche-o enquanto ele a torna possivel” (Simmel, [1908] 1992, p. 601). A dicotomia lugar/nao lugar é de certo modo uma dicotomia dupla, pois o que esté em ‘2a Tempo Social revista de sociologia da US v.26, 2 causa sio simultaneamente os espagos construidos ¢ os espagos vividos. Os primeiros, que correspondem 20 “nao lugar”, so aqueles que possibilitam a aceleracao do tempo; os segundos tém aver com as relagbes que af acontecem. © autor estabelece assim um contraste entre as interagies que se praticam, nos “nao lugares”, denominados relagdes de “solidao”, associadas & ideia de “contratualidade solitsria’, eas que se praticam nos “lugaresantropolégicos”, denominados relagdes de sociabilidade. Lembremos do que se passa quando vamos a um grande hipermercado: [Ls] as grandes superfices nas quais o cliente circula silenciosamente, consulta as ctiquetas, pesa os legumes ou a fruta numa méquina que Ihe indica, juntamente com 0 peso, o seu prego, ¢ depois estende o cartio de crédito a uma mulher jovem ‘também ela silenciosa, ou pouco faladora, que submete cada artigo a0 registro de uuma méquina decodificadora antes de verificar 0 bom funcionamento do cartio de crédito (Augé, [1992] 2005, p. 84). Em um livro posterior, referindo-se ao supermercado, 0 autor afirma: “circula-se nele de um corredor de prateleiras para outro ¢ dialoga-se tao 56 ‘com as etiquetas” (Augé, [2003] 2006, p. 124). Uma ida & mercearia de bairro (cf Giard e Mayol, 1980), que ainda conseguimos presenciar ou recordar, implica um tipo de interagao com os outros (dono da loja, empregados, vizinhos) completamente diferente. Mas as coisas complicam-se, porque é impossivel esquematizar dessa forma ples a realidade social. Assim, um nao lugar como espago empitico pode ser sob o ponto de vis social simultaneamente um “lugar antropo- 6gico” (e vice-versa). Se definirmos o nao lugar ndo como um espago empiricamente idemtificével (am aeroporto, um hipermercado ou um monitor de televisio), mas como 0 espago criado pelo olhar que o toma como objeto, podemos admitie que o nio lugar de uns (por exemplo, os passageiros em transito num aeroporto) sejao lugar de outros (por exemplo, os que tabalham nesse acroporto) (Augé, 2006, p. 116) Se é verdade, como afirma Kevin Lynch (2007, p. 151), que “o espago sugere ago, 20 mesmo tempo que a limita’, s40 as pessoas em tiltima instin- cia que interagem no meio desse jogo de possibilidades e que determinam a cexperiéncia urbana. O processo de interacao social permite a cada individuo uma possibilidade de “jogo”, que parte das diferentes configuragaes (cf. Elias, Teresa i novembro 2014 20 Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 6, Contin dace por Mare Aug, dicamene re ae om nae cama sete niin hinds daca caer ot agar mpi 1999, p. 78) que cada um ocupa, 0 que permite até contornar as regras preestabelecidas. Lembremos De Certeau, quando defende que o transeunte consegue inventar novos caminhos para além daqueles que a ordem espacial possibilita: “Assim, Charlie Chaplin multiplica as possibilidades da sua bengala: faz outras coisas com a mesma coisa, ultrapassando os limites que fixavam sua utilizagio as determinagoes do objeto” (De Certeau, 1980, p. 181). Mas, se essa margem de liberdade é& sempre possivel para cada indivi- duo considerado isoladamente, os nao lugares io mais constrangedores do que libertadores, devido a racionalidade subjacente da sua organizagio, & excessiva codificagio do espago, a0 poder das imagens ¢ do espetdculo a elas associado —trata-se de um espago de circulagao e movimento, de passagem, onde 0 que est em causa é 0 objetivo que se quer (chegar a um local, comprar um objeto). Os “nao lugares” sio espagos multifuncionais, cujo objetivo é possibilitar a cada um fazer cada vex mais coisas em um ‘mesmo espago. Sao espagos para consumir,e para criar “novas necessidades” (publicidade, informagio). Sao eles que caracterizam a sobremodernidade*: Mas, na medida em que o nio lugar &0 negativo do lugar, torna-se de fato neces- sitio admitir que o desenvolvimento dos espacos da circulagio, da comunicago ‘do consumo é um trago empitico pertinente da nossa contemporancidade, que «esses espagos sio menos simbélicos do que codificados, assegurando neles toda uma sinalécica e todo um conjunto de mensagens especticas (através de monitores, de ‘vores sintéticas) nacirculago dos transeuntes e dos passageiros (Augé, 2006, p. 115). Se, por um lado, no pensamento de Mare Augé parece haver alguma nostalgia em relagio aos “lugares antropolégicos”, por outro, também existe ‘uma atracio pelos nao lugares, pois permitem um distanciamento do co diano, da rotina, uma experiéncia de anonimato: ‘Se, como muitos, me sinto saisfeito por passar um perfodo na casa de amigos, por ‘me beneficiar da sua hospitalidade, por aflorara sua intimidade, as longas viagens de trem ou de avio, a estagbes os aroportos e até mesmo a clegincia estereotipada dos hotéis internacionais proporcionam-me um prazer diferente, ligado, sem divida, a tudo aquilo que também poderfamos denunciar como sinal de uniformizagio e despersonalizago crescentes:o anonimato, a solidi, a reducio ao estado de agente de ligagio cuja dentidade édefinida pelo trajto[...]ligado igualmente a todos os beneficios secunditios de um parénteses: 6 fururo limitado 4 duragio da estadia, dda viagem ou da correspondéncia, o desprendimento das obrigagées cotidianas, a ‘2m Tempo Social revista de sociologia da US v.26, 2 distancia, no sentido préprio no figurado, em relagio ao ponto de partida ~ no conjunto, um certo estado de inocéncia (Aug; 1989, pp. 137-138’. © autor, mais tarde, faz uma comparagio entre as oposigdes lugar/nio lugare cheio/vazio, argumentando que o lugar antropolégico esti carregado de sentido social, onde tudo se justifica, mas acrescenta: “A liberdade indivi- dual nao tem grande significado em meios fechados, como costuma se dizer, €.a sobrecarga de sentido (o faro de o menor movimento ser interpretado) tem por corolirio essa auséncia de liberdade, esse vazio” (Augé, 2006, pp. 127-128). Por outro lado, os nao lugares, espagos de comunicagio, circu- lagio e consumo, esto demasiado cheios de pessoas e de fungdes, onde 0 global penetra no local, marcados por uma plurifuncionalidade: um grande aeroporto é também um hipermercado, um lugar de informagao, de publi- cidade (CF. Idem, pp. 129-130). Trata-se, assim, em ambos os casos, “lugar antropolégico” “nao lugar”, de espagos simultaneamente cheios e vazios. ‘Como o autor refere em um livro mais recente, o que sempre esti em causa em qualquer sociedade é a oposigao entre “sentido social” e liberdade. Se privilegiamos o “sentido”, relacdo entre uns ¢ outros como esti definida a prioria parti da constituigao da sociedade e da cultura, perde-se a liberdade, (ou seja, o individuo. Se privilegiamos o desejo individual, perde-se a relagio com a sociedade. “Nem loucura totalitéria nem a loucura da solidéo sabem (Augé, 2011, p. (© que parece inquietar Augé & sibira e répida substituigao dos lugares pelos nio lugares, tornando a cidade cada vez mais um espago de anoni- mato e solidio, ou seja, fazendo prevalecer a liberdade (individuo) sobre 0 sentido (sociedade). orientar ¢ comandar a vida s Do espaco piiblico a0 néo lugar: o centro comercial é um nao lugar? ‘Um dos exemplos apresentados por Marc Augé como um “nio lugar” sio os grandes centros comerciaist. Discutiremos aqui, tendoem mente um arti- .g0 de Pedro Monteiro publicado na revista Trajectosem 2003, se tis espagos devem ou no ser assim clasificados. Monteiro considera fundamental 0 ppensamento de Mare Augé para analisar esses espagos, embora nao concorde com a classificagdo de “nao lugar” em relagio aos centros comerciais e em particular ao Amoreiras Shopping Center. © autor comega sua argumentagio com uma definigio geral de centro comercial: espago piiblico privatizado, forte visibitidade fisica, presenga de um sujeito enunciador, lugar de comu- Teresa i 1 Ts abide tHe oon slo 2 pj sem talimee va Ba Sag om Pomp sp sprocran uma aide de Smo Ca, 209, novembro 2014 2 Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 nicagio. Chama a atengio para a existéncia de uma diversidade de centros comerciais, mais especificamente para o Amoreiras Shopping Center. Para le, a primeira questao € perceber o que atrai os individuos até os centros comerciais, defendendo que “hé uma légica de validagio desses espagos que ultrapassa a légica estrita do consumo, e talvez até a légica estrita do lazer” (Monteiro, 2003, p. 9). A partir da definigio de Augé de “nao lugar” como espagos nao iden- titérios, no hist6ricos € nao relacionais, Monteiro defende que 0 centro comercial das Amoreiras é um /ugar porque constréi uma identidade que passa por sua localizagdo em um espago. Um cartaznesse centro traz a ins- crigéo “centro histérico da cidade”, o que revela a busca de uma simbologia que ultrapassa a simples esfera do consumo. O autor compara a histéria (contada e/ou vivida) com as “narrativas histéricas” que se constroem tendo em conta 0 local onde os centros foram inseridos, a hist6ria do pais ou a arquitetura inovadora da sua construgao. Essa histéria construida aparece via publicidade, imagens, esteridtipos, mas tem, para o autor, uma verdade simbélica: “Como espago simbolizado, o centro comercial carece a um s6 tempo de passado e de futuro. ‘uma identidade com raizes (profundidade hist6rica) ea abertura ao exterior que o faz balancear entre a busca de € A modernidade: entre a programagio cultural e histérica (meméria) e 0 culto da novidade comercial” (Idem, p. 13). Pedro Monteiro transforma o Amoreiras Shopping Center em um “novo lugar”, partindo da definicao de lugar antropolégico utilizada por Augé, valorizando positivamente aquilo que o autor depreci . Assim, quando identifica os grandes centros comerciais como “ jo lugares’, Augé critica essa “construgio da historia” através da publicidade e das imagens que procuram formar virtualmente a sua prépria meméria. Ora, a meméria é algo que se vai construindo na relagio entre as pessoas ¢ as coisas. Nao pode ser algo que vem de fora como uma “boa imagem”. E 0 centro comercial 6 antes de tudo um local de consumo, cuja meméria se constréi de forma ciclica — Natal, dia dos pais, dia dos namorados etc. -, tendo 0 consumo como elemento central. A identidade desse espago é feita através da semelhanca com outros espagos de outras partes do mundo “civilizado”. Corresponde de fato a sturas dos paises ociden- tais: “De um lado ao outro do planeta, os aeroportos, os avides, as cadeias ‘uma arquitetur wadora ¢ igual a outras ara hoteleiras colocam sob o signo do idéntico e do comparivel a diversidade geogrifica e cultural” (Augé, 2003, p. 53). O que nos atrai neles € 0 que ‘6 Tempo Social revista de sociologia da US, v.26, 2 vem de fora, & a sua funcionalidade e nio alguma relagdo com 0 nosso pais, a nossa cultura. Para a andlise desses locais, é interessante entender as relagdes que ali se estabelecem entre nés ¢ os outros: a auséncia de uma relagio com os empregados (que esto em constante mudanga); a impossibilidade de “ca minhar” procurando novos percursos; a relagio com o ambiente (ar, luz, sol); a homogeneidade dos frequentadores (nao hé mendigos, guardadores de cartos, toxicodependentes) etc. Como refere Sennett (1989), uma das preocupagdes dos projetos dos centros comerciais é a quase inexisténcia de locais onde as pessoas possam se sentar por muito tempo para conversar?, O tipo de agio social pretendida nesses locais esté associado a circulagao e 20 consumo, ou sea, trata-se de um uso econémico e nao politico ou social. Voltemos a De Certeau ¢ & ideia de caminhada como “retérica do an- dar’, em que o transeunte escolherd seus percursos ¢ irs se apropriando do cespago. Pensemos como isso é possivel quando caminhamos em um centro ‘comercial: ali escolhemos 0 qué em detrimento de qué? Que sensagies temos, quando passamos pela Zara ou pela Lacoste? Que surprest temos quando olhamos para as lojas que se seguem umas as outras, todas mais ou menos. iguais? Enfim, que tipo de caminhada fazemos quando circulamos em um centro comercial que nao seja a do consumo, ou que nao esteja “suspensa’” pelo consumo? Segundo Mare Augé, 0 centro comercial nao é um espago relacional, é tum espago de consumo, de lazer e de informagao. Pedro Monteiro concorda com esse aspecto, mas considera que essas caracteristicas fazem parte dos lugares antropolégicos, enquanto Mare Augé as considera “nao lugares”: “Espagos onde se coexiste ou coabita sem vivermos juntos, onde o estatuto de consumidor ou de passageiro solitério passa por uma relago contratual com a sociedade” (Augé, 1994a, p. 157). Essa “relagao contratual com a sociedade” comega a ser visivel quando pensamos nas transformagoes do “homem piblico” nas grandes capitais, do século xix. Ainda que brevemente, abordaremos aqui o clissico livro de Richard Sennett, O declinio do homem piiblico”, para entender melhor esse processo de mudanca. F nasalteragdes que o comércio de varejo foi sofrendo a0 longo do século x1x que Sennett procura algumas das causas da transfor- magio da vida publica. Referimo-nos concretamente ao aparecimento do bazar, que tem o centro comercial como seu sucedaneo no século xX e que surge nas principais cidades europeias na segunda metade do século xix, em. um perfodo de grande crescimento demogrifico. Trata-se de um conjunto de Teresa i 9.4m Regal no eae cg eo pnd pup de indians, ie roe jens apace it 10a: St Pad, Compan de Lean 198 ovembro 2014 20 Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 lojas concentradas em um edificio, que com 0 tempo se expandiu e passou a ocupar os espagos limitrofes. Georges Simenon assim descreve 0 Grand Bazar de Lidge: “Na praca Saint-Lampert, os candeeiros mais numerosos, ‘ais brilhantes do Grand Bazar, cujas instalagées nao param de crescer e jé devoraram dois quarteirdes de casas. As bonitas montras, as portas de cobre que deslizam sem fazer barulho e aquele bafo quente, tao particular, que se (Simenon, [1931] 2006, p. 12). Segundo Richard Sennett, as transformagoes da vida publica do século xix estdo estende até a0 meio do passci profundamente ligadas a0 modo como o comércio de varejo se transformou, ras capitais do século xix. O bazar, que substituirs os mercados ao ar livre € as pequenas lojas, era o exemplo do local de encontro de um ntimero cada vex maior de pessoas, mas onde se estabeleciam cada vez menos relagies de sociabilidade: “O surgimento do bazar, que pode parecer um tema mundano, é de fato a forma disfarcada do verdadeiro paradigma de como o dominio piblico enquanto um intercimbio ativo permitiu que a vida das pessoas experimentasse 0 piblico mais intensamente ¢ de forma menos sociavel” (Sennett, [1974] 2002, p. 316). © Bazar Bon Marché, aberto em Paris em 1852, bascava-se em trésideias originais: ‘margem de lucro sobre cada artigo seria pequena, mas 0 volume de vendas seria grande; os pregos dos produtos seriam fixos e marcados; qualquer pessoa poderia entrar na loja e nao se sentria obrigada a comprar (cf. Idem, ibidem). A primeira ideia pressupoe uma forte ligagao entre o bazar e a fabrica, j4 que era necessétio fabricar muitos produtos iguais a pregos baixos, a serem comprados por um nimero cada ver. maior de pessoas. Por outro lado, vender cada ver mais produtos, embora a pregos mais baixos, 36 seri possivel se a classe trabalhadora ¢ a burguesia emergente tivessem um aumento de nivel de vida, permitindo ‘um aumento de consumo. Para isso, era necessério que o maior niimero de pessoas tivesse acesso ao bazar, 0 que implicava construir novas estradas © ofrecer mais transporte puiblico. As ruas sinuosas eestreitas da antiga cidade ‘nao permitiam répidos deslocamentos, “calculava-se que, devido as estreitas, meandrosas estradas de Paris nos principios do século x1x, uma viagem a pé que hoje dura quinze minutos naquela época requeriria uma hora e meia” (dem, p. 319). A construcao dos grandes bulevares em Paris nos anos de 1860 (por Haussman), assim como a criagdo de um sistema de transportes, em Paris ¢ Londres, tornou mais ficil a mobilidade dentro da cidade. O segundo aspecto, os pregos fixos, veio a acabar com uma pritica social que fazia parte do jogo de interagdes que os atores sociais, funcionando de fato como atores, representavam na vida cotidiana. A rua era de certo ‘0 Tempo Social revista de sociologia da US v.26, 2 modo o palco de um teatro onde 0 ato de comprar nio era algo passivo ¢ silencioso, mas resultava de uma encenagio cujas regras eram conhecidas por todos e onde a capacidade de representacio, argumentagio e sedugio tinha o seu lugar. O terceiro aspecto, a nao obrigatoriedade de comprar, suprimia 0 cons- trangimento da “obrigacao” da compra ao entrar em uma loja. Como refere Sennett (2002), na Paris do Antigo Regime e do inicio do século xix, entrar numa loja significava que se iria comprar algo. O bazar acabou com esse constrangimento e propés uma nova postura diante do consumo, permitindo usufruir do espaco, ver os produtos, desejé-los, mas sem o sentimento de obrigagao da compra — trata-se da “liberdade” do consumidor. Mas essa liberdade foi contornada por estratégias adotadas pelos comerciantes, que procuravam, pelo seu lado, estimular as pessoas a consumir"!. Walter Ben- jamim, no seu texto oélebre “Paris, capital do século x0”, refere-se a figura do flaneur que deambula no meio da multidio, afastando-se des espacos familiares. O flaneurera apenas aquele que olhava, mas acabou por partici- par do jogo do consumo: “O grande armazém de comércio é 0 cenario da iiltima deambulacao do flaneur” (Benjamin, 2001, p. 74). A substituigéo do “mercado de rua” pelo bazar no século xix, associada a diminuigdo dos custos ¢ & existéncia de uma maior diversidade de pro- duos, e mais tarde do bazar pelo centro comercial, foram transformando © espago piblico em um espago cada vez mais de consumo. E exatamente essa diminuigao de relagdes sociais no espago piiblico, essa passividade do cidadao, que caracteriza os nao lugares de Marc Augé. Espaco de fluros e ndo lugares: entre Manuel Castells e Marc Augé ‘Manuel Castells tem um percurso de investigagio bem diferente de Mare ‘Augé, mas que, como ele, defende quea organizagao do espago éum elemen- to crucial para a compreensio da sociedade contemporinea: “ao contrério, do espago pelo tempo, proponho a hipstese de que o espago organiza o tempo na so- ciedade em rede”? (Castells, 2002, p. 493). Este ponto de partida comum, «que ressaltaa importincia do espago na organizagio social, justifica que nos da maioria das teorias sociais clissicas, que supdem 0 domi detenhamos na nogio de “espaco de fluxos” desenvolvida por esse autor. Castells analisa a nova légica espacial, resultante da interagio entre tecno- logia, sociedade e espago, denominando-a “espago de fluxos"®. Esse espago, que se constitui a partir de um conjunto de servigos avangados — finanga, Teresa i 11, Tas dig de frie de meal. pode coca pr Seamer seprabe porque é que ato nnn pean, 1 mii 06 poet ter cme quo abjace oma at incom tes de ce mane” nme, 202, pp. 27328, 12. Ea pn i dnd sumbn por Mikel Fossa 22 1907 on ume wets refte we Code dBaabe cm, igus ingen dat bs de Be wana sn marge de iin ai mis com oop do gt ce emp (2005p. 2. 13. Ome daceweaicpge spied combine de wt cormpente a um ito de ln pb ipmenen steps diners © sspiede conde plot a tab ed nde hon el hb 0 tenho conmpenle A engage ci de laine ‘peer ings di novembro 2014 20 Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 seguros, bens imobilist , projetos, marketing, pesquisa e desenvolvimento, inovagao cientifica etc. -, materializa-se em uma organizagio espacial em torno de centros de controle e comando, aquilo que corresponde & ideia de “cidade global” (cf. Sassen, 2001), em que algumas cidades mundiais do- ‘minam asfinangas internacionaise grande parte dos servigos empresariais e de consultadoria, de ambito internacional, constituindo-se assim uma nova lite “politica-empresarial-tecnocritica” (Castells, 2002, p. 497). O eespago de fluxos — de capital, de informagio, de tecnologia, de inte- ragio organizacional, de imagens, sons e simbolos (cf. Idem, p. 535) ‘posto de uma organizacao espacial historicamente enraizada, a que Castells, chamou de “espago dos lugares”: “Um lugar é um local cuja forma, fungi ¢ significado sio independentes dentro das fronteiras da contiguidade fi- sica” (dem, p. 549). Como exemplo, refere Belleville, em Paris, bairro de imigrantes que o autor conhece desde 1962 e que, em 1995, continua a ser ‘um lugar, apesar de ter se transformado fisica e socialmente. Os novos imigrantes (asiéticos, iugoslavos) uniram-se a0 grupo mais antigo de judeus tunisinos, mugulmanos do Magreb e pessoas do sul da Europa. Verificaram-se diversos processos de renovagio urbana na década de 1970, que transformaram 0 bairro sob o ponto de vista arquitetdnico € social. Alguns migrantes pobres foram obrigados a abandonar o lugar devido aos processos de renovagio (cf. Pinson e Bekkar, 1999) e novas familias da classe média, sobretudo jovens, mudaram-se para Ii por causa da vitalidade urbana. Em Lisboa, a Mouraria apresenta algumas semelhangas com Bel- leville. Apesar de se situar no centro da cidade e ser um bairro muito mais antigo, ali os autéctones ¢ os migrantes convivem em um espago marcado pela diversidade étnica: “A intensa atividade comercial que caracteriza 0 bairro tem uma forte componente étnica, que remonta aos grupos pionei- ros de migrantes de origem indiana que se estabeleceram nesta drea, entre 1976-1980, aos quais se seguiram outros grupos migrantes, sendo este um. espago de confluéncia de pessoas e de grupos sociaisheterogéneos” (Mendes, 2012, p. 7). Manuela Mendes, no artigo referenciado, chama a atengio para o perigo de se repetir na Mouraria um processo de renovagio urbana semelhante ao de Belleville, o que inflacionaria os pregos da habitacao, im- plicando processos de gentrification em que os mais pobres sio afastados do seu habitat tradicional. Mas, segundo Castells, em Belleville ainda estamos diante deuma urbanidade muiltipla, em que diferentes comunidades étnicas, cocxistem pacificamente, embora com algumas tenses: “entre a casa € © mundo existe um lugar chamado Belleville” (Castells, 2002, p. 552). 120 Tempo Social revista de sociologia da US, v.26, 2 0 “espago dos lugares” opde-se ao “espago dos fluxos’, projetado para ‘© mundo, sem raizes no lugar. O “espago dos fluxos”,frisa Castells, nao é a tinica légica espacial das nossas sociedades, mas é a d corresponde aos interesses representados pela elite empresarial tecnocritica jnante, porque ¢ financeira com exigéncias espaciais especificas. Manuel Castells, partin- do da importincia dessas exigencias, mostra como clas estio relacionadas com a apropriagio € 0 controle do espaco onde se instalam, constituindo comunidades simbolica e espacialmente segregadas. As lites criam um “estilo de vida’ que é semelhante em todo o mundo, assim como sio semelhantes os espagos por elas habitados: hotéis intemacio- nais com decoragio e design igual em todo o planeta, salas vip de aeroportos, restaurantes, condominios fechados etc. Hi um “estilo de vida" associado a cesses espagos que passa pela utilizago de certos objetos, roupas, preocupagSes: © uso do computador portitil em viagens, a pritica do jagging, a dieta, a combinagao de trajes sociais ¢ roupas esportivas etc. Tudo isso sao simbolos de uma cultura internacional, sem ligagio com uma sociedade espectfica. Assiste-se & criagio de um “espago internacional” localizado no centro das grandes cidades, segregado (pelo prego seguranga), hamogénco e sem raizes cculturais. Estamos diante de um espago desenraizado, virtual, apropriado por um conjunto de individuos também eles desenraizados. Richard Sennett, 20 analisar a questio da identidade, partindo das relagdes dos individuos com. © espago € 0 trabalho, refere-se a situagao de dois grupos: os emigrantes ¢ a nova elite da globalizagao. Esses grupos, apesar de suas situagdes econémicas, sociais e culturais diferentes, possuem muita dificuldade de se identificar com 0 espago que habitam. Por outro lado, ¢ esse & 0 aspecto que mais nos interessa aqui, a nova elite da “cidade global” controla, gere ¢ investe em restaurantes, discotecas, apartamentos, mas tem pouco interesse em controlar ‘o que ocorre em hospitais, escolas ou outros dominios puiblicos da cidade (cf. Sennett, 2000, p. 181). Hé uma espécie de desligamento do espago fisico e social onde se habita, até porque ele é transitério, e procuram-se pequenos. “nichos” que sao iguais em qualquer parte do mundo. Como afirma Castells, “as elites sio cosmopolitas e os individuos locais” (2002, p. 540). Os pontos de contato e de conflito entre essas duas abordagens, que partem de légicas, pressupostos e comunidades cientificas muito diferentes, certamente giram em tomo da nogio de espago: é semelhante 0 que Castells chama de “espago dos lugares” e Augé de “lugares antropolégicos”, onde a cexperiéncia dos individuos esté vinculada aos espagos que eles percorrem € habitam, a sua cultura, a sua hist6ria. Quanto a ideia de “espagos de fluxos” Teresa i novembro 2014 2a Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 see cles pride do Lous @ Mace Gags (Ag 2003.79. 15, fio baikiae Bo de Jann, Berend Heal, 197 oe. de “nao lugar”, as semelhangas ndo sio tio evidentes. Quando Castells se refere a0 “espago dos fluxos’, define-o nao s6 como um espago geogréfico ligado as Novas Tecnologias de Informacao (Wtt) e & globalizagao, mas também como um espago social de uma elite dirigente, ligado ao poder € 8 riqueza. Essa relagio entre espago geogrifico € classe social nao é tio clara em Mare Augé, pois nao hé sempre uma classe especifica ou grupo social associado aos “nao lugares”. No entanto, em Letempsen ruines, Augé, referindo-se a uma arquitetura que chamou de “singularidades" e dos no lugares”, associou-a a uma minoria rica esclarecida. Trata-se de um espago virtual, de uma utopia que ¢ hoje apropriada por essa minoria ¢ nao pela humanidade: “Os nao lugares tém a beleza do que poderd vira ser. Do que ainda nao é. Do que, um dia, talver, ters lugar” (Augé, 2003, p. 135). Por outro lado, podemos dizer que alguns “nao lugares” (grandes centros comerciais, hipermercados, autoestradas) so os “espagos de fluxos” de uma classe média europeia cada vex. mais empobrecida, do “homem médio” (cf. ‘Mauss, [1950] 2004). Espaco onde quase no se estabelecem relagoes sociais que ao mesmo tempo promove a interagio entre as elites. A cidade, a "grande cidade” Em Poruma antropologia dos mundos contemporineos®, Marc Augéafirma que“a cidade é um mundo”, o que significa que ela contém simultaneamente ‘um espago simbolizado e utilizado pelos individuos e outro que reflete todos os tracos do mundo atual. E nesse jogo, entre interior/exterior, comunidade! sociedade, que a cidade emerge. A cidade dos individuos é 0 mundo onde cada um mantém relagio com o lugar partir da meméria, do cotidiano, das experiéncias vividas. A identificagao de cada pessoa com um lugar sobressai dessa ligagdo forte com um territério. E também af que surge a cidade do transeunte que inventa (8 seus percursos ao andar (cf. De Certeau, 1980), ¢ a cidade dos poetas escritores. As grandes cidades (Berlim, Paris, Nova York) aparecem na literatura, na poesia, e sao tema de muitas cangdes populares! Para além da liberdade e da poesia que a cidade permite, ela é 0 reflexo também das transformagies sociais ¢ econdmicas. © mundo atual é o da globalizago, que tem como pano de fundo a mobilidade e 0 consumo. Os “nao lugares” de Marc Augé sao exatamente os meios que permitem a circu- lagao de tudo e de todos, “sao nao lugares, na medida em que sua vocagio primeira nao ¢ territorial, nao é a de criar identidades singulares, relages ‘2 _Tempo Social revista de sociologia da US v.26, 2 simbélicas e patriménios comuns, masantes de facilitara circulagao (¢, dessa maneira, 0 consumo) em um mundo com as dimensbes do planeta” (Augé, 2003, p. 85). A construgio de espagos de circulagio e consumo, desligados do territério e das pessoas que os habitam, implica dois grandes riscos segundo Augé: a uniformidade e a generalizagio do espago urbano. ‘A primeira é perceptivel pelo conjunto de edificios semelhantes encontra- dos em todo o mundo e que se referem aos espagos extraterritoriais, espacos do déja-vu (cf. Idem, ibidem), porque se parecem todos uns com os outros: estamos exatamente no mundo dos “nao lugares", onde o viajante nao se sente nem estrangeiro nem “em sua casa”, € 0 autéctone sente-se estranho, residente, perdendo a singularidade do seu territério. ‘Ao mesmo tempo, assiste-se a uma generalizagao do urbano, um alastrar das cidades através da construgio de edificios residenciais, zonas industriais comerciais etc., “que ndo tém vocagio estritamente local mas antes regional ‘€ marcam a paisagem com o cunho de uma incrivel monotonia, ‘desqualifi- cando-a no sentido estrito do termo, ja que nao é possivel qualifici-la nem. como urbana nem como rural” (Augé, 1994a, p. 165). Esses dois movimentos, cujo objetivo parece ter sido o de resolver proble- mas de circulagio, consumo e comunicago das populagdes, correspondem, segundo Marc Augé, antes vontade de facilitar a circulagao e o consumo de ‘um mundo globalizado cujo territério é cada vez mais o planeta (cf. Augé, 2003, p. 85). E nesse processo que se constroem os “nao lugares”, que vio destruindo a cidade moderna e construindo cada ver mais espagos agres- tes. Em Portugal, temos bons exemplos desse tipo de urbaniza¢io quando observamos os arredores de uma cidade média (Portalegre, Castelo Branco etc.), onde avistamos uma paisagem que ja nao é nem rural nem urbana, coberta de grandes armazéns, com grandes parques de estacionamento, grandes vias de circulagao, rodeado de edificios residenciais entremeados por resquicios de zonas verdes. Esses espagos permitem 0 aumento do con- sumo para um grande niimero de pessoas, mas também esto associados a uma vida urbana cada vez. mais agressiva: distancia dos locais de trabalho, segregasio nos bairros, desemprego, problemas econdmicos associados & compra de casa etc. ‘Como Mare Augé, Manuel Castells também defende que nas cidades das sociedades desenvolvidas a tendéncia predominante é a construgio de espagos de consumo, circulagio € comunicagao. Ele se refere & construgio de “cidades globais” (cf. Sassen, 2001), marcadas por “um horizonte de cespago de fluxos a-histérico em rede, visando impor a sua légica nos lugares Teresa i novembro 2014 222 Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 iam po de Wd iy Fa (ur esp igs bal don ng iter so oandonocomalniede mdse depen, tem pie do rie po thom on chads Gur ssbsorcom la dempue segmentados ¢ espalhados, cada vez menos relacionados uns com os ou- tros, cada vez menos capazes de compartilhar eédigos culturais” (Castells, 2002, p. 555). Mas, embora essa seja a tendéncia mais provavel, hd cidades, segundo Castells, que recuam diante dos riscos da I6gica econdmica subja- cente & “cidade global”. Téquio passou por um periodo de reurbanizagio durante os anos de 1980, obedecendo a légica da cidade global. No entanto, governantes ¢ habitantes sempre se mostraram sensiveis tanto ao perigo da perda da identidade e da esséncia hist6rica, quanto & I6gica instrumental da cidade global’. A arquitetura contempordnea e as cidades™ Mare Augé ¢ Manuel Castells, ao pensarem a cidade a partir das nogbes de “espago de fluxos” e “nao lugares”, tém em mente nao s6 uma dimensio social, politica e econdmica, subjacente a0 processo de globalizacio, mas também a anilise dos espacos urbanizados ¢ arquiteturados da sociedade contemporinea. Para além dos dois riscos jé referidos, que resultam da expansio ¢ da ho- _mogeneidade do espago urbano, encontramos em Augé certa ambiguidade 1a anilise da arquitetura contemporinea, mantendo atitude prudente, de certo modo distante, ¢ ressaltando ora aspects positivos, ora negativos. Ao falar de Paris, ele se refere a alguns edificios recentes, como a nova sede do ministétio das finangas, o Palicio Bercy e a Biblioteca Nacional, izado. Por outro lado, ele teme a construgio de novos bairros nas margens do Sena, onde hi como espagos com os quais se sente relativamente famili espacadamente ora um barco, ora uma casa velha, ora uma clareira. Teme que as novas construgGes sigam 0 modelo das “cidades genéricas’, onde todos os edificios séo iguais, quer estejam em Téquio, Berlim ou Paris. No entanto, Augé deixa uma margem de diivida a0 considerar muito dificil julgar esses temas: “é preciso dar tempo & cidade, e sao os transeuntes de amanha que poderao dizer se Paris continua sempre Paris transformando- se” (Augé, 2003, p. 127). Castells desenvolve com menos ambiguidade a sua ideia sobre a anquite- tura contemporinea. Distingue duas formas de arquitetura: a das “cidades globais”, que corresponde & arquitetura dos “espagos de fluxos”, e a “arqui- tetura ecolégica’, que pode estar surgindo. A arquitetura das “cidades globais” ¢ pés-moderna, que representa o fim de todos os sistemas de significados, uma arquitetura a-hist6rica, a-cultural: ‘an Tempo Social revista de sociologia da US, v.26, 2 Deste modo, a arquitetura escapa histériae & culeura de cada sociedade e tomase idades,ilimitadas, que sublinham a Idgica transmitida pelo multimedia: a cultura da navegacio eletonica, refém do novo e admirivel mundo imaginério das possi como se pudéssemos reinventar todas as formas em qualquer lugar, apenas sob a condigao de mengulhar na indefinigao cultural dos Auxos do poder. O encerramento dda arquiterura numa abstragio histéica € a fronteira formal do espago de fluxos (Castells, 2002, p. 543). Para além da arquitetura do “imagindrio mundo novo”, a arquitetura dos “espagos de fluxos” manifesta-se também em outro tipo de edificios que correspondem aos “nao lugares” de Mare Augé. Trata-se de uma arquitetura cujas “formas sio tio puras, tio neutras, tio didfanas, que nao pretendem dizer nada” (Idem, p. 546). Castells a chama de “arquitetura da nudez”, “a sua mensagem é 0 siléncio””. Afirma que deveriam ser construidos grandes € luxuosos pabicios para os novos senhores, mostrando assim a existéncia real dessa nova classe de dirigentes, quase invisivel, no meio da imaterialidade do “espago de fluxos”. © segundo tipo de arquiterura que poderia ter lugar hoje corresponderia, em um movimento oposto, a construir a partir das raizes dos lugares, segundo a cultura dos individuos, aproximando-se de uuma “arquiterura eool6gica”™. Segundo Montaner, a sensibilidade da arquitetura contemporinea a0 lugar (como espaco empirico, concreto, existencial e delimitado) éum fend- meno recente: tem a ver com a cultura organicista desenvolvida na obra de Frank Lloyd Wright eas propostas dos arquitetos nérdicos encabecados por Alvar Aalto (cf: Montaner, 2001, p. 34). Hi uma “dissolugio contemporinea do lugar’, devido a0 surgimento de trés tipos de espago: medistico, “nao lugar” ¢ ciberespago. Segundo 0 autor, hoje se verifica uma simultaneidade de espacos/antiespagos, lugares/no lugares, que se entrelagam, interpenetram © convivem. Fle defende, como Castells, uma arquitetura para o presente, referindo-se “arquitetura ecol6gica’, que parte de uma ecologia do ji cons- truido, gerando um reequilibrio entre os seres humanos ¢ o seu ambiente: *O desafio atual consiste em demonstrar que a arquitetura ecolégica, além deser necessiria globalmente ¢ correta socialmente, pode ser muito atraente do ponto de vista estético, conceitual e cultural” (Idem, p. 196). Trata-se de uma arquitetura que aceita a diversidade cultural, mas fomenta a criagao de espagos comunitétios. Pensar aarquitetura ¢ também pensar o tipo de sociedade que queremos construit, ou seja, ter em conta uma dimensto social e politica. Voltemos Teresa i lo 6 arp de Bava rote por Bal ¢ 4 so cea de Mae de Rail Mone Cell, 292, 6540, 2. ecw a 6 lindo por Mar Asa dsj ibn d age apligi rnovembro 2014 225 Luugares no lugares em Marc Augé, 209-229 a Mare Augé e & sua imagem da “cidade é um mundo”, em que autor se refere a varias stuagoes da vida cotidiana na cidade —o tempo passado nos transportes, os jovens que erram pelos “bairros perigosos”, os guetos étnicos, desemprego etc. —, mostrando a ligacdo entre certo tipo de sociedade e certo tipo de cidade. Como afirma o autor, se é verdade que nao é o arquiteto, nem 0 urbanista, nem o socidlogo ou antropélogo que podem resolver, 6s problemas sociais e econdmicos dos individuos que habitam a cidade, também é verdade que “um urbanismo irrefletido e uma arquitetura feia sao um prejuizo na nossa rela¢do com 0 mundo” (Augé, 1994a, p. 172). Henri Lefebvre defendia, j4 em 1974, que a dominagio do espago natural pela técnica caracteriza a sociedade moderna ~ “uma autoestrada, que brutaliza a paisagem ¢ © pais: corta, como se fosse uma grande faca, © espago” (Lefebvre, [1974] 2000, p. 191). Por outro lado, a autoestrada pode aproximar pessoas que estavam fisicamente distantes. Mas a possibi- lidade de estreitar 0 tempo € 0 espaco seré uma vantagem que justifique a destruigao de seu entorno? Auge, referindo um trabalho de Jean-Paul Dollé, dé o exemplo da construgio de uma grande autoestrada em Marselha, que atravessa um bairro da cidade: (© que esperar daqueles que imaginaram, em Marselha, construir esa autocstrada [...] nfo oferecendo como horizonte aos que moram nos andares mais baixos endo ‘0 tabuleito das vias suspensase a parte de tris dos carros? Nada a nfo ser o desprezo ‘mais total dos seres humanos, a vontade plenamente deliberada de os tratar como coisas, de agredir os seus sentimentos ¢ de atacat a sua integridade corporal efsica (Augé, 1994a, pp. 166-167). Construir uma autoestrada nao é uma decisio técnica, é antes de tudo ‘uma decisio politica. Se por um lado ganhamos tempo, por outro “perde- ‘mos o espago”, brutalizando a paisagem e tornando também mais brutal a vida de muitas pessoas. F por isso que Marc Augé faz. um alerta: “Pedir aos urbanistas € aos arquitetos que se mantenham fiéis & histéria de todos € tornem possivel a de cada um é pedir-lhes que reconstruam espagos onde se possam conjugar o sentido do lugar e a liberdade do nao lugar” (Idem, pp. 174-175). 228 Tempo Social revista de sociologia da US v.26, 2 Referéncias Bbliogrdficas ‘Avct, Marc. (1989), Domaines et chateau. Pais, Editions du Seuil (19942), Pour une anthropologie des mondes contemporains. Pais, Aubiet (19948), Le sens des autres. 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A pergunta que parece estar sempre subjacente ao pensamento de Marc Augé & saber de que forma os “no lugares” podem provocar uma perda de nés mesmoscomo grupo, como sociedade, passando a prevalecero individuo iolado ou “ Abstract Mare Augés places and non-places *Non-places’ aterm first used by Marc Augé in 1992 in his book Non-Lieux, runs through his work as the embodiment of something fundamental to understanding contemporary society. In this article we try to clarify the meaning, or multiple meanings, tributed by the author to this term, examining among other things the discussion fon the shopping centre as a “non-place” and looking for similarities and differences, bberween “non-places” and the “space of lows” (Castell) The question tha always seems ‘to underpin Marc Augé’sthought is whether and how non-places” can cause us to lose ‘ourselves as a group, a society, such that isolated Tone" individuals come to prevail Keywords: Non-places; Supermodernity; Flows of space; solated individual. Teresa i Ta hide em 3172012 roe 20872013 Tem 56 ¢ profane 0 Deperaneno de Geni Sechine de Teri Fad hide de Argutecra dh Ui seni Tenis de Lin mat exameymailon, novembro 2014 29

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