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A pertinência de se ler Fanon, hoje - parte 1

PREFÁCIO a Os Condenados da Terra, edição da Letra Livre.


 

Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!


(Última prece de Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas.)
 

No dia 6 de Dezembro de 1961[1], morria em Maryland, Washington[2], Frantz Fanon. Soubera


um ano antes, em Túnis, que sofria de leucemia e que teria menos de um ano de vida. Ainda
assim, empenhara-se por acabar a tarefa que tinha entre mãos, Os Condenados da Terra, livro
que escreveu entre Abril e Julho de 1961, com um ritmo febril, nas palavras de Homi Bhabha[3],
e que acabaria por ver publicado. Morreria dias depois, aos 36 anos, sete meses antes da
proclamação da independência da Argélia (5 de Julho de 1962), a pátria adoptiva a que chegara
em 1953[4] (e de que seria expulso em 1957), depois de oito longos anos de uma guerra de
libertação que ceifou centenas de milhares de vidas humanas.
Franz FanonFrantz Omar Fanon nasceu no dia 20 de Junho de 1925, na ilha da Martinica, numa
numerosa família da classe média, cujos oito filhos puderam frequentar o liceu. Embora Fanon
fosse muito mais novo que o seu compatriota Aimé Césaire (1913-2008), foi durante o seu
tempo de estudante liceal que Fanon conheceu, enquanto aluno, e se tornou amigo do
ideólogo da négritude, poeta, dramaturgo e ensaísta, com uma carreira política como deputado
à Assembleia Nacional francesa pelo círculo da Martinica e como presidente da Câmara de Fort-
de-France (Césaire retirar-se-ia da vida pública em 2001). Fanon admirava o intelectual
defensor da valorização das raízes africanas da identidade antilhana, já então figura pública na
ilha, sobretudo com a fundação, em 1934, de L’étudiant noir, em Paris, e da revista Tropiques,
quando já de regresso à ilha natal. Apesar da admiração pelo seu antigo professor (chegou a
participar na sua campanha eleitoral para deputado à Assembleia Nacional francesa), Fanon
viria a discordar do autor de Discurso sobre o Colonialismo (que Fanon confessaria tanto ter
apreciado e que escolheu para epígrafe da sua primeira obra, Pele Negra, Máscaras Brancas),
anos depois, quando Césaire apoia o estatuto de département d’outre-mer atribuído à
Martinica (e a outras ilhas do «Caribe francês» e a Reunião, ilha na costa oriental de África)
através de uma lei de que o próprio Césaire seria relator, em 1946; diferenças que se
acentuariam quando Césaire faz campanha pelo «sim» da departamentalização no referendo
organizado pelo general de Gaulle, em 1958. Fanon discordaria ainda dos pressupostos
da négritude, que consideraria uma «miragem», começando por afirmar, logo no início, que iria
tenazmente questionar as duas metafísicas, o branco e o negro, e ver que elas são
frequentemente muito destrutivas[5], e criticando aquilo que considerava serem os esforços
dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco, custe o que custar, a existência de
uma civilização negra[6]. E mais adiante: «De fato, a negritude aparece como o tempo fraco de
uma progressão dialética: a afirmação teórica e prática da supremacia do branco e a tese; a
posição da negritude como valor antitético e o momento da negatividade.»[7]
Trata-se de um tema caro a Fanon – não na perspectiva dos intelectuais africanos das colónias
britânicas, sintetizada na metáfora da tigritude de Wole Soyinka, expressando a perversidade
da négritude. Para Fanon, a négritude era o resultado da lógica de internalização da dominação,
porque funcionava como uma «antítese afectiva, senão lógica, do insulto que o homem branco
fazia à humanidade»[8]. Mais:
 
Essa negritude, votada ao desprezo do branco, revelou-se, em certos sectores, a única capaz de
levantar proibições e maldições. Uma vez que os intelectuais guineenses deparavam, antes de
mais, com o ostracismo global, com o desprezo sincrético do dominador, a sua reacção foi
admirarem-se e cantarem-se. À afirmação incondicional da cultura europeia sucedeu a
afirmação incondicional da cultural africana. Em geral, os cantores da negritude irão opor a
velha Europa à jovem África, a razão enfadonha à poesia, a lógica opressiva à natureza agitada;
por um lado, dureza, cerimónia, protocolo, cepticismo, por outro, ingenuidade, petulância,
liberdade e até exuberância. Mas também irresponsabilidade.[9]
 

Fanon crescera num ambiente tão estimulante intelectual e politicamente (para além da figura
de Césaire, a Martinica era, à época, palco de acções culturais e políticas de intelectuais como
René Ménil, Georges Gratiant, Thélus Léro ou Léopold Bissol) que, aos 17 anos, já com a
Martinica sob jugo alemão, conseguiu chegar à ilha Dominica, então colónia britânica, para se
juntar às Forças Aliadas e combater contra a Alemanha nazi, tendo actuado no Norte de África
(Marrocos e Argélia) e em França (em várias frentes), numa altura em que o nacionalismo
argelino começava a convencer-se da improbabilidade de um diálogo com as autoridades
coloniais com vista à independência, apesar da «promessa» de emancipação da metrópole,
caso os argelinos participassem na guerra pela libertação da França ocupada pela Alemanha
nazi.[10] Esta missão em África, em que o jovem militar presenciou uma outra face do racismo
colonial, diferente do tipo de discriminação que vivenciara na sua Martinica natal, viria a marcar
de forma absoluta o percurso de vida de Frantz Fanon. Afinal, viveu uma dupla experiência
difícil, o colonialismo e o nazismo, e dessa dolorosa aprendizagem dá conta o seu primeiro
livro, Pele Negra, Máscaras Brancas (1952):
 

Quando éramos estudantes, discutíamos durante horas inteiras sobre os supostos costumes
dos selvagens senegaleses. Havia, em nossos discursos, uma inconsciência pelo menos
paradoxal. Mas é que o antilhano não se considera negro; ele se considera antilhano. O preto
vive na África. Subjetivamente, intelectualmente, o antilhano se comporta como um branco.
Ora, ele é um preto. E só o perceberá quando estiver na Europa; e quando por lá alguém falar
de preto, ele saberá que está se referindo tanto a ele quanto ao senegalês. Que conclusão tirar
de tudo isso?[11]

O encontro com a fria realidade da metrópole organizará o tecido da sua experiência de


discriminação. Com efeito, depois da guerra, e por causa da sua participação nela, em 1946
Fanon ganha uma bolsa de estudo e parte para França, onde se inscreve no curso de medicina
dentária, que viria a trocar pelo de psiquiatria, e que conclui em 1951, em Lyon, com uma tese
sobre «Distúrbios mentais e síndromes psiquiátricas em degeneração espino-cerebelar
hereditária. O caso de um doente de Friedrich com delírio de possessão»[12] – a segunda, pois
a primeira tese fora recusada pela crítica feroz que o jovem médico fazia à psiquiatria
positivista, antes propondo uma psicoterapia institucional, envolvendo a comunidade,
defendida pelo psiquiatra espanhol François Tosquelles, seu mestre e sob cuja supervisão
publicaria os seus primeiros ensaios sobre psiquiatria.O tema revelava já a preocupação de
Fanon com os traumas e distúrbios mentais que vira no Norte de África e que motivaria os
inúmeros escritos sobre psiquiatria que publicou, entre 1951 e 1959, em revistas de
especialidade em França, na Argélia, na Tunísia e em Marrocos.[13]
Por isso, embora seja evidente a anterioridade da expressão «os condenados da terra» que
compõe os primeiros versos de A Internacional («Debout, les damnés de la terre/ Debout, les
forçats de la faim»), julgo mais verosímil que o título escolhido por Frantz Fanon (e não pelos
editores, como nos seus outros livros) venha do sentido de um verso do poema «Sales nègres»
do livro Bois d’ébène(1945), de Jacques Roumain (1907-1944), poeta haitiano e fundador do
Partido Comunista haitiano que, juntamente com Nicolás Guillén, constitui uma das referências
da ideologia estética do negrismo caribenho, uma das matrizes da négritude[14]: 
 

(…)

Et nous voici debout


tous les damnés de la terre
tous les justiciers
marchant à l’assaut de vos casernes
et de vos banques
comme une forêt de torches funèbres 
pour en finir
une 
   fois 
     pour 
         toutes
avec ce monde
de nègres
de niggers
de sales nègres.[15]
 
Por outro lado, para além dessa visível homenagem, não é fácil fugir à forte sugestão bíblica
(apesar do assumido agnosticismo de Frantz Fanon) para a qual remete a expressão. Esse eco
bíblico acentua a metáfora que traduz o estado de contiguidade da exploração quotidiana, no
corpo e no espírito, na pele e na alma, da opressão e da repressão (sobretudo porque a escrita
deste livro releva de uma gestação muito vivencial, nos anos 50 do século xx, numa Argélia a
ferro e fogo), e os efeitos fracturantes desse estado, resultando não apenas na baixa auto-
estima do sujeito negro-africano colonizado devido ao preconceito e à discriminação racial e
etnocultural próprios da situação colonial, à sujeição a estruturas políticas e sociais numa
situação de confrontação, mas ainda nos traumas causados pela guerra, as «psicoses reactivas»
e as «psicotizações secundárias», que estuda no último capítulo. Os Condenados da Terra é,
neste contexto, uma explicação radical das consequências do processo de internalização da
dominação ante a violência colonial (e a antevisão da que se seguiria no período pós-colonial), a
alienação e suas artimanhas no mundo dominante que modifica e subverte a comunidade e os
sujeitos. E neste sentido Frantz Fanon tanto pode considerar-se um dos epígonos da geração
dos nacionalismos africanos, quanto um dos primeiros teóricos do que se chamaria depois
«estudos pós-coloniais». Com efeito, na pauta dos estudos pós-coloniais está não apenas a
ruptura com as noções essencialistas de identidade, um dos núcleos conceptuais dos estudos
culturais (com as contribuições dos celebrados Stuart Hall, Homi Bhabha, Edward Said, Kwame
A. Appiah, Walter Mignolo, Néstor García Canclini, entre outros), mas uma epistemologia que
propõe a (re)leitura do colonialismo a partir de paradigmas que consideram experiências de
alteridade, racializadas e culturalizadas, nas sociedades contemporâneas no jogo social e
político das relações de poder – campo de que realmente é pioneiro Fanon, que valoriza as
perspectivas da subjectividade e da cultura a par das dimensões da economia, da política e da
história no estudo da violência colonial e seus desdobramentos interiores – «A densidade da
Historia não determina nenhum de meus atos»[16], dissera Fanon em Pele Negra, Máscaras
Brancas. Outra «herança» fanoniana aos estudos pós-coloniais seria, precisamente, esse
cruzamento de epistemologias para o estudo do sujeito da situação colonial. É que, em Lyon,
Fanon não estudou apenas medicina: estudou também literatura, filosofia, história e sociologia.
E essa transversalidade de conhecimentos é igualmente visível na sua obra e, particularmente,
em Os Condenados da Terra. O próprio Fanon parece ter consciência dessa abordagem
transdisciplinar, não frequente naquela época, quando, no capítulo V do mesmo livro, sobre
«Guerra colonial e perturbações mentais», afirma: 
Vamos abordar aqui o problema das perturbações mentais provocadas pela guerra de
libertação levada a cabo pelo povo argelino.

Talvez se considerem inoportunas e singularmente deslocadas, num livro como este, tais notas
sobre psiquiatria. Nada podemos contra isso.[17]

Mais conhecido como revolucionário argelino do que enquanto intelectual antilhano produtor
de (uma) teoria, Fanon teve, a par dos seus escritos, uma existência muito tumultuosa. Estes,
por exemplo, antes de se afirmarem hoje como seminais dos estudos sobre as sociedades
contemporâneas, seja na perspectiva dos estudos culturais, pós-coloniais, seja nos estudos de
sociologia, de antropologia política ou de politologia, foram apreendidos em França,
censurados nos Estados Unidos e, obviamente, em Portugal[18] (onde a tradução da Ulisseia
de Os Condenados da Terra foi censurada e apreendida «a bem da nação», em 1967). Por sua
vez, uma citação de Fanon por um professor ou um cidadão[19] comprometido com causas
emancipatórias era um passaporte para um rótulo ostracizante, o de radical, eufemismo para
racista – atributo que, naqueles tempos e nestes, dimensionados numa visão pastoral do
colonialismo, à direita e à esquerda, empurrava o autor da citação para o campo do
maniqueísmo, que caracterizava a cena mundial durante a Guerra Fria, com repercussão nas
opções ideológicas (socialismo vs capitalismo) dos países do, então chamado, Terceiro Mundo.

Descobri Frantz Fanon relativamente tarde nos meus estudos sobre África, sob a urgência de
Mário Pinto de Andrade. E o que me surpreendeu nessa descoberta foi a «desconfiança» de
que muitos falavam de Fanon sem nunca o terem lido na verdade, pois Frantz Fanon implode
precisamente a «epistemologia» do maniqueísmo de que era acusado, ao afirmar que «o
maniqueísmo primário que regia a sociedade colonial permanece intacto no período de
descolonização»[20] – uma consideração bem ao jeito das formulações pós-coloniais sobre
relações de poder no âmbito da cultura, classe, etnia, do género, da orientação sexual e outras
categorias que compõem o xadrez das relações de poder internas à sociedade «descolonizada».
Portanto, nessa altura (finais dos anos 80-princípios dos anos 90), Fanon era, no mundo da
língua portuguesa – um mundo em que a teoria do luso-tropicalismo moldou mentalidades e a
visão paternalista do colonialismo, de forma explícita ou implícita, na análise histórica ou na
percepção do presente –, considerado radical. Tal como o movimento da négritude – e da
negritude (de língua portuguesa) – passava por um desmerecimento em que nem sequer a
catarse do discurso científico começara ainda a fazer-se. Comentadores e opinion-makers,
também os de origem africana, com acesso à comunicação social em Portugal (mesmo em
órgãos que se dizem dirigidos às comunidades africanas), dimensionados na ideia de um
«colonialismo intercultural», viam em Frantz Fanon um racista que apelava ao ódio entre as
raças. Concordo com quem considera que essa «percepção» da obra de Fanon se deve ao
célebre prefácio de Jean-Paul Sartre (nome com o qual os intelectuais negro-africanos se
haviam habituado a dialogar) a Os Condenados da Terra (como famoso se tornara «Orfeu
negro», prefácio a Anthologie de la poésie nègre et malgache, 1948, de Léopold Senghor, texto
que há muito ganhou o estatuto de ensaio, passando a circular em publicação autónoma). Com
efeito, estou convencida de que muitos leram apenas o prefácio e resumiram o texto de Fanon
ao apelo que Sartre encontrou nas palavras do intelectual martinicano:
 

Neste novo momento a agressão colonial se interioriza em terror entre os colonizados. Não me
refiro somente ao temor que experimentam diante de nossos inesgotáveis meios de repressão
como também ao que lhes inspira seu próprio furor. Estão entalados entre as armas que
apontamos contra eles e as tremendas pulsões, os desejos de carnificina que sobem do fundo
do coração e que eles sempre reconhecem: porque não é de início a violência deles, mas a
nossa, voltada para trás, que se avoluma e os dilacera; e o primeiro movimento desses
oprimidos é ocultar profundamente essa cólera inconfessável que a sua moral e a nossa
reprovam e que, todavia, é o último reduto de sua humanidade. Leiamos Fanon: descobriremos
que, no tempo de sua impotência, a loucura sanguinária é o inconsciente coletivo dos
colonizados.[21]
 

Sartre escreve, em 1961, claramente não para os destinatários de Fanon, mas para os
destinadores do seu texto, os agentes coloniais (Sartre afunila o âmbito do seu círculo de
destinatários, retirando daquele grupo um segmento a quem se dirige, a esquerda liberal
francesa). Todo o longo parágrafo e outros que se lhe seguem podem ler-se como uma
interpretação existencialista do texto de Fanon, revestida de uma justificação de violência que
Frantz Fanon alegadamente defende, como se de uma violência redentora se tratasse,
chegando a pontuar todas as manifestações culturais dos africanos com sinais de revolta (a
dança, as manifestações de religiosidade, os rituais que actualizam usos e costumes). Fanon
acabaria, pela visão de Sartre, a reificar o colonizado negro africano enquanto sujeito da
história – colonial e porventura antes da presença europeia – baseada na violência ao afirmar
que «os colonizados se defendem da alienação colonial voltando-se para a alienação religiosa.
No fim de contas, o único resultado é a acumulação de duas alienações, cada qual reforçada
pela outra. Assim, em certas psicoses, cansados de serem insultados todos os dias, os
alucinados imaginam de repente ouvir uma voz de anjo que os cumprimenta (…).»[22]
A «escolha» de determinado destinatário do texto de Jean-Paul Sartre – cuja leitura terá
deixado o próprio Fanon silencioso quando, já no hospital, recebeu o livro[23] – é importante
no contexto em que este é publicado: em 1961, a guerra da Argélia tinha atingido o zénite das
atrocidades (Fanon fala, ainda em 1961, em genocídio[24] e é assim que muitos historiadores
classificam as atrocidades cometidas pela Legião francesa e pelos pieds-noirs). O que Sartre faz
é desvelar, para «dentro», o processo de exploração do sistema colonial e as diligências
«necessárias» empreendidas pelo colonizador para que o sistema funcione. Vaticina o mal-
estar que a sua análise possa provocar mesmo na esquerda, a quem se dirige, e sintetiza que
«quando domesticamos um membro de nossa espécie, diminuímos o seu rendimento e, por
pouco que lhe demos, um homem reduzido à condição de animal doméstico acaba por custar
mais do que produz. Por esse motivo os colonos vêem-se obrigados a parar a domesticação no
meio do caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena.»[25]
David Macey, um dos biógrafos de Frantz Fanon[26] e um dos primeiros estudiosos da sua obra
a considerá-lo um dos precursores do que se entenderia, 20 anos depois, por «estudos pós-
coloniais», afirma ser Fanon muito mais do que um «apóstolo da violência» e «santo patrono»
dos Panteras Negras, como dele disse o «pantera» Stokely Carmichael. Na verdade, não é
temerário pensar que esse estatuto foi exponenciado pelo citado prefácio de Jean-Paul Sartre.
É um facto que, no ponto de partida das reflexões de Fanon, a violência é a práxis fundadora da
sociedade colonial, estando ela presente em todas as expressões materiais e simbólicas da
relação colonial. Por isso é que, segundo Fanon, «para o colonizado, essa violência representa
[também] a práxis absoluta (…) A violência é, por conseguinte, compreendida como a mediação
real. O homem colonizado liberta-se na e pela violência. Esta práxis ilumina o agente porque lhe
aponta os meios e o fim»[27]. Em Os Condenados da Terra, Frantz Fanon diagnostica, como
resultado dessa violência política, económica, social e cultural do opressor – que resulta em
massiva horda de marginalizados com ódio ao outro (também decorrente do «medo ao outro»)
–, uma reacção incontrolada do oprimido: violência gerada pelo recurso às regressões
identitárias e étnicas. Esta é uma das evidências da actualidade da obra de Frantz Fanon, se
pensarmos que esta é a situação que (ainda) vivemos hoje, decorrente de comportamentos
legitimamente entendíveis como de regressão identitária, porque resultando de «identidades
assassinas» (Amin Maalouf) – que também poderia ser «melancolia homicida», conforme
analisa o próprio na senda do Professor A. Porot[28]. No seu conjunto, o livro analisa os
antagonismos das relações dominado/dominante, no contexto da Guerra Fria, ainda que a
terminologia da ciência política tenha tornado inibidora a expressão «Terceiro Mundo» – que,
como se sabe, decorre (mas nela não se esgota) da teoria maoista dos «três mundos», hoje sem
qualquer fundamentação quer político-económica, quer geopolítica – e tenha optado por uma
pretensamente menos judicativa, os países do Sul, ou, simplesmente, o Sul. E quanta
actualidade não revela o seguinte excerto da «Conclusão»:
 

Camaradas, não teremos outra coisa a fazer senão criar uma terceira Europa? O Ocidente quis
ser uma aventura do espírito. (…)

Estamos, hoje, a assistir a uma paralisação da Europa. Fujamos, camaradas, desse movimento
imóvel onde a dialéctica, pouco a pouco, se transformou em lógica do equilíbrio.[29]
 

Não é que se possa inverter o lugar da «condenação», como se vê na provocatória pergunta


«Are the Europeans now the damned of the earth?»[30], no artigo em que Neelam Srivastava
estuda a recepção de Fanon na Itália. O que a pergunta encerra é, precisamente, a dimensão
universal e transtemporal das reflexões de Fanon sobre o poder, tal como a origem da
inspiração da expressão «os condenados da terra», que atrás já foi referida. A obra de Fanon
ganhou uma projecção tão intensa, que o filósofo camaronês Achille Mbembe considera, no
prefácio à obra completa de Fanon, em 2011, que existe agora uma «biblioteca Fanon», uma
crítica vibrante e dinâmica inspirada da sua obra, que atravessa quase todas as disciplinas das
ciências humanas e sociais, enfim, «uma verdadeira ‘biblioteca Fanon’ nasceu e permitiu, por
sua vez, a constituição de um campo de estudos florescente, rizomático e, hoje em dia, de
alcance planetário.»[31] Esta visão celebrativa da obra fanoniana pode não ser unânime, se
tivermos em conta a resposta, com um travo de pessimismo, de Paul Gilroy à pergunta «O que
tem o nacionalismo negro a dizer sobre a situação do mundo agora? Não muito.»[32]embora se
possa contrapor a esse pessimismo a proposta testamentária de Fanon e o seu convite
à relativização:
Cada geração deve, numa relativa opacidade, descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la. (…)
A nossa missão histórica, a missão daqueles que tomaram a decisão de acabar com o
colonialismo, consiste em ordenar todas as revoltas, todos os actos desesperados, todas as
tentativas abortadas ou afogadas em sangue.[33]
Continua (…)

[1] A data da morte de Frantz Fanon é um dos «problemas» das suas inúmeras biografias: encontram-se três datas –
5 de Dezembro, 6 de Dezembro e 8 de Dezembro. Parece, no entanto, consensual (pela predominância desta data)
que a sua morte ocorreu no dia 6 de Dezembro de 1961. Esta é a data que aparece numa das mais completas e
concisas notas biográficas de Frantz Fanon, publicada recentemente por Giovanni Pirellia e Rachel E. Love, que
teve a colaboração da família de Fanon, a sua esposa, o irmão Joby, colegas vários (do liceu, da faculdade, da vida
militar, de profissão, enfim), em vários períodos da sua vida. Giovanni Pirellia & Rachel E. Love «Biographical
Note on Frantz Fanon». Interventions: International Journal of Postcolonial Studies – New York University.
Published online: 06 Jan 2015. Vol. 17, No. 3, 6394–
416, http://dx.doi.org/10.1080/1369801X.2014.993680 (Fevereiro de 2015).
[2] Fanon estava hospitalizado no National Institutes of Health em Bethesda, Maryland, segundo alguns de seus
biógrafos contra a sua vontade, pois não lhe agradara ter de recorrer àquele «país de linchadores». Ironicamente,
Fanon, que se inscreve no hospital como Ibrahim Fanon, é evacuado em aeronave providenciada pela Embaixada
dos Estados Unidos em Túnis.
[3] «In a feverish spurt». Homi Bhabha «Foreword: Framing Fanon». Frantz Fanon, The Wretched of the Earth.
New York: Grove Press, 2004.
[4] Frantz Fanon chega à Argélia como médico psiquiatra colocado no hospital de Blida, que hoje homenageia esse
grande vulto da recente história da Argélia, Hôpital Psychiatrique Frantz Fanon.
[5] Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2008,
p. 26.
[6] Idem, ibidem, p. 46.
[7] Idem, ibidem, p. 121.
[8] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra. Lisboa: Letra Livre, 2015, p. 217.
[9] Idem, ibidem.
[10] Ver, por exemplo, Arthur Jose Poerner. Argélia: o caminho da independência. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966.
[11] Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas,  op. cit., p. 132.
[12] Tradução livre: Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l’hérédo-dégénérescence spino-
cérébelleuse: un cas de malade de Friedrich avec délire de possession.
[13] Ver: Claudine Razanajao e Jacques Postel, «La vie et l’œuvre psychiatrique de Frantz Fanon». Sud/Nord,
2007/1 – n.° 22 ( p. 147 – 174).
[14] Fanon também já homenageara Roumain com o título da revista Tam-Tam, editada em 1949: «Trop
tard/jusqu’au cœur des jungles infernales/retentira précipité le terrible bégaiement/télégraphique des tam-tams
répétant infatigables/répétant/que les nègres/n’acceptent plus/d’être vos niggers/vos sales nègres» («Sales
nègres», Bois d’ébène).
[15] Jacques Roumain, Bois d’ébène. Ênfase meu.
[16] Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas,  op. cit. p. 190.
[17] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 257.
[18] Em Portugal, o livro teve duas edições: uma pela Ulisseia, nos anos 60, e outra pela Ulmeiro, nos anos 80; no
Brasil, o livro também foi publicado por duas editoras: a Civilização Brasileira, em 1968, e a Editora da
Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2005.
[19] Lewis R. Gordon afirma que, pelo contrário, na América do Sul o pensamento de Fanon formou muitos
intelectuais, a começar por Paulo Freire. «Prefácio» a Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008,
p. 11. Nem é despiciendo o facto de haver, no seio da comunidade académica, um «Prémio Frantz Fanon por Obras
Excepcionais do Pensamento Caribenho», concedido pela Associação Filosófica Caribenha.
[20] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 54.
[21] Jean-Paul Sartre, «Prefácio». Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968,
pp. 10-11.
[22] Jean-Paul Sartre, op. cit., pp. 12-13.
[23] Alice Cherki, Frantz Fanon: Portrait. Paris: Seuil, 2000.
[24] «Aqui, é a guerra, é essa guerra colonial que muitas vezes toma aspecto de um autêntico genocídio, essa guerra,
enfim, que perturba e despedaça o mundo, que é o acontecimento desencadeante.» (Frantz Fanon, Os Condenados
da Terra, op. cit., p. 260).
[25] Jean-Paul Sartre, op. cit., p. 10.
[26] David Macey é autor de Frantz Fanon: A Life (London: Granta Books, 2000) e Frantz Fanon: A
Biography (New York: Picador, USA, 2001).
[27] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 88-89.
[28] Idem, idibem, p. 309.
[29] Idem, ibidem, p. 325.
[30] Neelam Srivastava «Frantz Fanon in Italy». Interventions: International Journal of Postcolonial Studies.
Published online: 17 Dec 2014 Vol. 17, No. 3, 309–328. http://dx.doi.org/10.1080/1369801X.2014.991419
[31] Achille Mbembe, «L’universalité de Frantz Fanon». Frantz Fanon Œuvres, Paris: La Découverte, 2011.
Existe uma tradução portuguesa deste ensaio, a partir da qual se cita
Mbembe: http://www.artafrica.info/html/artigotrimestre/artigo.php?id=36 (Acesso: 26 de Fevereiro de 2015).
[32] Tommie Shelby, «Cosmopolitanism, Blackness, and Utopia» – a conversation with Paul Gilroy.
Transition,  nr. 98, 2008,  pp. 116-135 (p. 120).
[33] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 211-212.
por Inocência Mata
Mukanda | 7 Outubro 2015 | anti-colonialismo, franz fanon, os condenados da terra, pos-colonialismo, violência

Inocência Mata.
Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), com pós-doutoramento em Estudos Pós-
coloniais (University of California, Berkeley). Também é membro do Centro de Estudos Comparatistas (CEC-FLUL).
É autora de diversos livros sobre literaturas africanas e sobre teoria pós-colonial, entre os quais: Laços de Memória
& Outros Ensaios sobre Literatura Angolana  (2006);  Literatura Angolana: Silêncios e Falas de uma
Voz  Inquieta  (2001);  Diálogo com as Ilhas: sobre Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe (1998).

A pertinência de se ler Fanon, hoje - parte 2

(…) Composto por cinco capítulos, que continuam as problemáticas de livros anteriores,
(especialmente Pele Negra, Máscaras Brancas), Os Condenados da Terra parece ser, de facto,
um livro testamentário, sobretudo tendo em conta o seu momento de escrita. Assim, a
alienação cultural e seus traumas, a internalização da dominação (hoje falar-se-ia de
subalternidade) e suas consequências na fragmentação da cultura nacional (cuja existência
Fanon recusa em situação colonial pois considera que esta paralisa na sua totalidade a cultura
nacional), a relação entre cultura nacional e lutas de libertação, as ideologias nacionalistas e
seus equívocos, os programas (mínimos e máximos) dos movimentos nacionalistas e seus
falhanços, o modus operandi monolítico dos poderes pós-coloniais e suas semelhanças com o
poder colonial, o papel da burguesia e da «nova» elite, as ideologias dos nacionalistas africanos
(que Fanon considera terem sido importadas), as ambiguidades do «intelectual colonizado», as
frustrações do ex-colonizado face ao novo país são matéria de Os Condenados da Terra: uma
análise multi e transdisciplinar, multidimensional, da violência como realidade inerente à
situação colonial que está presente em todas as expressões materiais e simbólicas da
sociedade, mesmo depois das independências, detendo-se demoradamente na terapêutica da
violência como inevitável, pois «as posições defensivas surgidas do confronto violento do
colonizado com o sistema colonial organizam-se numa estrutura que revela então a
personalidade colonizada»[1]. Quem ler antes Pele Negra, Máscaras Brancas tenderá a
considerar este livro como a síntese da análise da «extensão dos sofrimentos psíquicos
causados pelo racismo e pela presença viva da loucura no sistema colonial. Com efeito, em
situação colonial, o trabalho do racismo visa, em primeiro lugar, abolir toda a separação entre o
eu interior e o olhar exterior.»[2]
Os Condenados da Terra tem na sua base as vivências coloniais da violência, sobretudo na
Argélia em luta pela independência – e esta é uma das críticas que o angolano Mário Pinto de
Andrade aponta no pensamento de Fanon, ao afirmar que «a guerra da Argélia passou a
representar o ideal revolucionário que cristalizou a esperança dos colonizados», elevando, no
seu raciocínio, um caso particular – como, por exemplo, o papel do campesinato – «ao estatuto
de universalidade aplicável aos países colonizados»[3]. Albert Memmi, o tunisino que Fanon
conhecera na sua estada em Túnis, diria sobre essa «teorização» da vivência argelina, em «La
vie impossible de Frantz Fanon» (1973):
 

Na sua curta vida, Frantz Fanon experimentou pelo menos três fracassos graves. Nascido num
departamento francês, acreditava-se francês e branco. Quando foi estudar [na metrópole], fez
a dolorosa descoberta de que na sua pátria era negro das Índias Orientais [Antilhas].

Enfurecido, decidiu que não seria nem francês nem das Índias Orientais [antilhano], mas
argelino: não eram os norte-africanos, como ele, vítimas da mesma potência?[4]
 

Não seria bem assim, pois, quando saiu da sua Martinica em direcção à metrópole, após uma
estada no combate pela libertação de França durante a Segunda Guerra Mundial, Fanon já
tinha, se não uma consciência irredutível, a percepção muito crítica da condição de dominado,
(que advinha também da leitura de textos de intelectuais caribenhos) que a experiência
africana iria transformar – já na metrópole – numa «raiva vulcânica» (Jean-Paul Sartre).

É verdade que, para Fanon, «o homem colonizado liberta-se na e pela violência»[5]. Mas tal se
deve, segundo Fanon, ao facto de esse homem viver numa «atmosfera de violência», numa
«violência em acção» feita de «exercícios bélicos e [d]o odor a pólvora» – resultando numa
tensão que, de qualquer modo, o colonizado tem de libertar periodicamente em explosões
sanguinárias, contra o colonizador e contra o seu irmão: «Autodestruição colectiva muito
concreta nas lutas tribais, eis uma das vias por onde se liberta a tensão muscular do
colonizado»[6]. Fanon, sem o nomear, referia, já em 1961, uma série de «heranças» coloniais
com as quais se debatem os países africanos na actualidade, desde as consequências do
monolitismo das ideologias nacionalistas com o qual pensa(va) a elite governante fazer frente
ao tribalismo até à existência de actos letais decorrentes de relações na Françafrique (dir-se-ia
que Fanon antecipou em décadas, pela visão do que se passava no Congo ex-belga, com o
assassinato de Lumumba, as assassinas guerras civis ditas tribais, como o genocídio do Ruanda):
 

A violência do colonizado, como dissemos, unifica o povo. Com efeito, devido à sua estrutura, o
colonialismo é separatista. O colonialismo não se contenta com verificar a existência de tribos,
reforça-as, diferencia-as. O sistema colonial alimenta as circunscrições militares e reactiva as
velhas confrarias marabúticas. Na sua prática, a violência é totalizante, nacional. Por isso,
comporta na sua intimidade a liquidação do regionalismo e do tribalismo. Por isso, os partidos
nacionalistas mostram-se particularmente impiedosos com os caïds e com os chefes
tradicionais. A liquidação dos caïds e dos chefes é um preliminar à unificação do povo.[7]
 

Mas Fanon analisa também, segundo uma outra perspectiva, o processo de aniquilamento do
subjectivo, seja político, económico ou cultural, acelerado pelo aumento das desigualdades,
exclusão e fracturas sociais que provocam a reificação dos sujeitos da margem, nas relações
entre o Norte e o Sul, e internamente no Norte e no Sul.

O interessante em Frantz Fanon é que a sua análise das relações de poder, situando-se a nível
das relações coloniais (e não de quaisquer outras hoje na pauta dos estudos culturais e pós-
coloniais, de classe, de género ou orientação sexual), ultrapassa as «clássicas» abordagens
eminentemente materialistas (política, económica ou social), existencialistas e culturalistas e
introduz, nesse complexo analítico, saberes outros (a história, a filosofia e a psiquiatria) para
construir uma epistemologia que considera outras componentes do ser humano (a língua, o
corpo, o sexo, o ser) na sua experiência subjectiva, de que resultam traumas na estrutura
psíquica do sujeito colonizado. Essa transdisciplinaridade fanoniana pode até nem ser original
se considerarmos as reflexões de fenomenologistas como Edmund Husserl ou
Emmanuel Lévinas, ou os trabalhos do próprio Jean-Paul Sarte e de Simone de Beauvoir (sobre
o ser), porém, Fanon concilia esses saberes com os da psiquiatria para o estudo do fenómeno do
racismo. Para Fanon, o colonialismo é muito mais do que um sistema definido, apenas, como
exploração estrangeira dos recursos humanos de um território com recurso à mão-de-obra
local, mas, sobretudo, «negação sistemática do outro, uma decisão obstinada de recusar ao
outro qualquer atributo de humanidade»[8].
As reflexões de Fanon também não são «canónicas» na análise que faz dos antagonismos
sociais, numa altura em que a ideologia predominante nos movimentos nacionalistas, apoiados
pela esquerda europeia, tendia para o marxismo, teoria em que o proletariado é erigido a força
que dinamiza as transformações sociais. Fanon considera que, «nos países capitalistas, o pro-
letariado nada tem a perder e, eventualmente, teria tudo a ganhar [enquanto] nos países
colonizados, o proletariado tem tudo a perder»[9]. Porém, Fanon atribui a força motriz dessa
luta contra o capitalismo colonial ao campesinato, de certa forma tendendo mais para a
conciliação entre a classe operária e a campesina, de que falara Fredrich Engels após a morte de
Karl Marx. E porque acredita que «o camponês que permanece na sua terra defende
tenazmente as suas tradições e representa, na sociedade colonizada, o elemento disciplinado
cuja estrutura social se mantém comunitária»[10], Fanon critica:
 

O campesinato é sistematicamente esquecido pela propaganda da maioria dos partidos


nacionalistas. Ora é evidente que nos países coloniais só o campesinato é revolucionário, já que
não tem nada a perder e tem tudo a ganhar. O camponês, o desqualificado, o esfomeado é o
explorado que descobre mais depressa que só a violência paga. Para ele, não há compromisso,
não há possibilidade de entendimento. A colonização, ou a descolonização, é simplesmente
uma relação de forças.[11]
 

Interessante, neste contexto, é a reflexão de Mário Pinto de Andrade segundo a qual Fanon não
teria entendido as especificidades dos movimentos de libertação da África subsaariana,
dimensionado como estava no «modelo argelino». Embora considere, mais adiante, ter havido
«uma progressão no pensamento político de Fanon em torno da proposta do modelo argelino e
da relação dialéctica que ele estabeleceu entre a luta pela liberdade e a independência
nacional, e a luta contra o colonialismo em África»[12], Mário Pinto de Andrade critica aquilo
que considera «precipitação» de Fanon quanto à crítica que faz aos intelectuais assimilados:
 

Durante todo esse «ano da África» [«Fevereiro de 1960, na ocasião da conferência panafricana
realizada em Túnis»], debatemos com Fanon a validade da marcha empreendida pelo MPLA na
mobilização das camadas sociais. A nossa argumentação esbarrava num muro de convicções
bem arraigadas no único sujeito histórico revolucionário, aos seus olhos – o campesinato. Eis
porque Fanon acabou por se voltar para a UPA, legitimando-a.[13]
 
É que, para Fanon, os movimentos políticos nacionalistas – cuja noção é «importada da
metrópole» – não conseguiam implantar a sua organização nos campos, confirmando os
fracassos sofridos a «análise teórica» dos partidos nacionalistas[14]. E numa época em que a
ideologia dos movimentos nacionalistas africanos estava vinculada ao antagonismo
protagonizado pela pequena burguesia (isto é, aquela franja de colonizados com
um status burguês) e pelo proletariado, Fanon reequaciona a identidade dessa luta, e,
mantendo-a no âmbito do capitalismo colonial, desloca essa perspectiva do contexto europeu
para o contexto colonial, especificando as suas particularidades quanto aos modelos sociais, o
socialismo e o capitalismo (que se apresentavam como alternativas exclusivas naquela época),
afirmando que foram concebidos por homens de continentes e de épocas diferentes[15]. Isso
revela que Fanon não labora numa epistemologia maniqueísta, como tantas vezes dele se
afirmou. Por isso, mantendo a identidade original desse grupo, desde A Internacional, «os
condenados da terra» são, assim, todos os deserdados, explorados e espoliados, apesar de o
paradigma ser, para Fanon, os povos colonizados pela Europa.
Fanon tem, porém, consciência da performance deletéria da «elite colonial» no processo de
libertação: autoritarismo, totalitarismo, culto de personalidade, nepotismo, despotismo,
corrupção. Das «trevas coloniais» aos «sóis das independências», Fanon chegou a ser profético
nas suas análises – melhor seria dizer nas suas previsões, uma vez que em 1961 grande parte
dos países africanos vivia sob o jugo colonial. No capítulo inaugural do livro, «Sobre a violência:
sobre a violência no contexto internacional», Fanon já fala da impaciência do colonizado e das
suas frustrações que se prolongam na pós-independência e aponta que «a burguesia colonizada
que chega ao poder usa a sua agressividade de classe para açambarcar os postos outrora
ocupados pelos estrangeiros»[16], reproduzindo a nova elite do dito Terceiro Mundo a mesma
relação de poder para com o povo ex-colonizado numa dupla direcção: não apenas porque «os
elementos ocidentalizados têm para com as massas camponesas sentimentos que recordam os
existentes no seio do proletariado dos países industrializados»[17], mas também, continuará
em capítulos seguintes, porque «a falta de preparação das elites, a ausência de ligação orgânica
entre elas e as massas, a sua preguiça e, digamo-lo, a cobardia no momento decisivo da luta
vão dar origem a trágicos desaires»[18]. Fanon antecipa (até pelo tempo verbal futuro usado) a
crítica à «nova» classe que se vai erigir em governante e que ele considera antinacional,
«grosseira, estúpida e cinicamente burguesa», que «limitará as suas pretensões à reconquista
de escritórios e de casas comerciais outrora ocupados pelos colonos. A burguesia nacional toma
o lugar da antiga população europeia: médicos, advogados, comerciantes, representantes,
agentes gerais e agentes aduaneiros»[19].
Essa sua crítica aos movimentos nacionalistas tem uma projecção no futuro, por aquilo que não
fariam (em 1961) – e que, afinal, não fizeram (hoje) –, estende-se aos poderes pós-coloniais
pois «o partido único é a forma moderna da ditadura burguesa sem máscara, sem disfarce, sem
escrúpulos, cínica (…) A ditadura burguesa dos países subdesenvolvidos vai buscar a sua solidez
à existência de um líder»[20].
Para além dos «percalços da consciência nacional» que essa classe provoca, é essa burguesia
responsável pela fraqueza – pelo falhanço, vaticina Fanon – das organizações políticas que
emergiram das independências:

A fraqueza clássica, quase congénita, da consciência nacional dos países subdesenvolvidos não
é apenas a consequência da mutilação do homem colonizado pelo regime colonial, é também o
resultado da preguiça da burguesia nacional, da sua indigência, da formação profundamente
cosmopolita do seu espírito.[21]
 

Por outro lado, ao falar das metamorfoses por que passa o «intelectual colonizado», pode até
pensar-se que já nessa altura Fanon entendera a tão actual necessidade da descolonização
epistemológica, ao expressar «a preocupação de os intelectuais colonizados recuarem
relativamente à cultura ocidental em que correm o perigo de se submergir»[22], contra a
«colonialidade do poder» (Quijano) e contra a «desvalorização da história anterior à
colonização» que, ontem como hoje, assume o seu significado dialéctico (Joseph Ki-Zerbo
expressaria a mesma ideia, ao afirmar, muitos anos depois, na sua entrevista testamentária,
que os cientistas e intelectuais africanos teriam de deixar de se comportarem como «súbditos
coloniais»[23]). Fanon lembra, a propósito, que «a condenação do colonialismo é continental. A
afirmação, pelo colonialismo, de que a noite humana caracterizou o período pré-colonial diz
respeito a todo o continente africano”[24] – o que vale sempre lembrar quando se ouvem,
ainda hoje, considerações de que o colonialismo não teve só coisas más, versão outra da ideia
de que não se pode julgar a história, como se fosse possível estudá-la sem a julgar… E quando,
reeditando a questão de Jean-Paul Sartre, a Europa, na sua “intersubjectividade nacional”,
pergunta “o que é que ele [Frantz Fanon] quer?”, o filósofo responde “nada com a Europa”,
pois o destinatário do discurso fanoniano é o oprimido africano, argelino particularmente,
Fanon está a transformar a Europa no objecto do seu discurso – e esta parece ser a subversão
que leva Sartre a voltar a perguntar: “Que aconteceu então? Isto, simplesmente: éramos
sujeitos da história e actualmente somos os objetos. Inverteu-se a relação de forças, a
descolonização está em curso; tudo o que nossos mercenários podem tentar é retardar-lhe a
conclusão»[25]. Trata-se de uma proposição muito optimista sobre a neutralização do
eurocentrismo, embora este seja, sem dúvida, o gesto seminal que faz de Frantz Fanon um
pioneiro das investidas epistemológicas pela descolonização do saber.
Note-se, no entanto, que nessa altura também Frantz Fanon não escapou a algumas armadilhas
eurocêntricas, mesmo considerando o tempo de escrita (anos 50), sejam terminológicas, como
na expressão «homem de cor», sejam ideológicas, como na designação «descolonização» para
referir o processo de conquista da independência (que, porém, o próprio notou – não de forma
explícita, mas através de considerações quase premonitórias – não dever ser sinónimo de
conquista de liberdade). Com efeito, em todo o ensaio, Fanon fala constantemente
em descolonização – quando deveria, em muitos momentos, referir a independência. Ora, estas
duas designações para referir o mesmo processo relevam de lugares diferentes de enunciação,
e a historiadora Isabel Castro Henriques sintetiza da seguinte forma a questão:
 

A natureza hegemónica da colonização e do colonialismo impôs a noção europocêntrica de


descolonização (princípio dos anos 60), ignorando o papel dos povos oprimidos no processo da
sua libertação e reduzindo no mesmo movimento a importância das independências, umas
obtidas pacificamente, outras, como no caso português, conseguidas após anos de guerra, de
violências, de combates, de destruições[26].
 

De Frantz Fanon, exponencio o que disse um dia sobre Francisco José Tenreiro (que faleceu aos
42 anos, em 1963)[27]: que há duas espécies de escritores prolíferos, os que ficam na história e
os que apenas têm lugar numa nota de rodapé; e há os que publicam pouco mas cuja obra
constitui um desafiante campo de estudo. Tal é o caso de Frantz Fanon, que em vida publicou
apenas três livros – Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), L’an V de la révolution[28] (1959,
depois reeditado com o título Sociologie d’une révolution: l’an V de la révolution algérienne), Os
Condenados da Terra (1961) – e postumamente um quarto livro Pour la révolution
africaine (1964), editado pela viúva, Josie Fanon (Marie-Josephe Duble Fanon), que reúne
alguns dos seus escritos dispersos. Porém, antes mesmo do último livro da sua bibliografia,
Frantz Fanon era já um intelectual no panteão dos mais conceituados pensadores do mundo de
língua francesa (é verdade que apenas depois da tradução da sua obra para o inglês, em
meados dos anos 60), pelo reconhecimento da originalidade do seu pensamento, pela visão do
futuro e pela coragem discursiva de Os Condenados da Terra, cuja história e interlocução com,
nesse tempo, talvez o maior intelectual francês Jean-Paul Sartre tornaram o livro muito mais
visível do que Pele Negra, Máscaras Brancas, o seu livro inaugural escrito aos 25 anos e que
antecipa em muitos anos outro ensaio extraordinário sobre os traumas da alienação cultural
que é Retrato de colonizado precedido pelo retrato do colonizador (1957), de Albert Memmi,
também com uma introdução de Jean-Paul Sartre. A sua brilhante capacidade de análise do
todo (mundo colonizado) a partir da parte (Argélia, terra em que, cumprindo o seu último
desejo, repousa o seu corpo questionante) e de «previsão» fizeram dele um dos maiores
pensadores do século xx.
 

Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!

[1] Idem, ibidem, p. 258.
[2] Achille Mbembe, op. cit.
[3] Mário Pinto de Andrade, «Fanon et l’Afrique Combattante. Témoignage d’un militant angolais». Texto
original de uma comunicação de Mário Pinto de Andrade no Memorial Internacional Frantz Fanon, datado
de Fort-de-France, Martinica, Abril de 1982. Fundação Mário Soares: http://casacomum.net/cc/visualizador?
pasta=04330.008.016#!7 (Acesso: 23 de Março de 2015).
[4] (Tradução livre) «In his short life, Frantz Fanon experienced at least three serious failure. Born in a
French department, he believed himself French and White. When he went to study in the capital he made
the painful discovery that in the mother country he was West Indian and Black.
Infuriated, he decided that he would be neither French nor West Indian, but Algerian: were not the North
Africans, like himself, the dupes and the victims of the same mother country?», Albert Memmi, «The
Impossible Life of Frantz Fanon», translated by Thomas Cassirer and G. Michael Twomey. The
Massachusetts Review, 14.1 – Winter 1973. (p. 10). O artigo fora publicado dois anos antes: «La vie
impossible de Frantz Fanon», Esprit, 9 septembre 1971.
[5] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 89.
[6] Idem, ibidem, p. 58.
[7] Idem, ibidem, p. 96.
[8] Idem, ibidem, pp. 257-258.
[9] Idem, ibidem, p. 112.
[10] Idem, ibidem, p. 115.
[11] Idem, ibidem, p. 64.
[12] Mário Pinto de Andrade, op. cit.
[13] Idem, ibidem.
[14] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., pp. 111-116.
[15] Idem, ibidem, p. 101.
[16] Idem, ibidem, pp. 159-160.
[17] Idem, ibidem, p. 114.
[18] Idem, ibidem, p. 153.
[19] Idem, ibidem, pp. 156-157.
[20] Idem, ibidem, p. 169.
[21] Idem, ibidem, p. 154.
[22] Idem, ibidem, p. 214.
[23] Joseph Ki-Zerbo, Para quando a África? (Entrevista de René Holenstein). Porto: Campo das Letras,
2006, p. 15.
[24] Frantz Fanon, Os Condenados da Terra, op. cit., p. 216.
[25] Jean-Paul Sartre, op. cit., p. 18.
[26] Isabel Castro Henriques, «Colónia, colonização, colonial e colonialismo». Dicionário
Crítico das ciências sociais dos países da fala oficial portuguesa. Salvador: Editora da Universidade
Federal da Bahia, 2014,  p.  56.
[27] Inocência Mata, «Francisco José Tenreiro: entre as liminaridades identitárias e a ideologia
insular». In: Inocência Mata (Org.), Francisco José Tenreiro: as múltiplas faces de um intelectual. Lisboa:
Edições Colibri, 2011, pp. 305-323.
[28] É muito auspiciosa, na sua intenção, a tradução para o inglês deste título em 1965 como Studies In
A Dying Colonialism, depois abreviado em edições posteriores como A Dying Colonialism. 

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