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LITERATURA E SOCIEDADE EM MOCAMBIQUE: BREVE PANORAMA HISTORICO Jacqueline Kaczorowski Mariana Fujisawa? Resumo: 0 presente artigo visa apresentar um breve panorama histérico da literatura mogambicana, com 6 intuito de introduzir questdes relevantes acerca do tema ao piblico em geral, mesmo aos leitores no familiarizados com os estudos literarios. A exposigdo parte do pressuposto de que a dialética entre texto € contexto é de importincia fundamental para a anilise literdria, sobretudo quando se toma por objeto a produgdo de um pais como Mogambique, cuja histéria turbulenta de passado colonial e sucessivas guerras influenciou diretamente a cultura e sociedade nacionais, Palavras-chave: Literatura mogambicana. Literatura e sociedade, Panorama hist6rico. Abstract: The following article aims to present a brief historical overview of Mozambican literature, introducing specific and relevant issues on the theme to the general public, familiar with the literary studies or not. The exposition comes from the assumption that the dialectic between text and context is fundamental for analysis, specially regarding a literary work from Mozambique, whose turbulent history of colonial past and successive wars, directely influenced its culture and national society. Keywords: Mozambican literarure, Literature and society. Historical overview. * Jacqueline Kaczorowski é mestranda em Estudos Comparados de Literaturas de Lingua Portuguesa na Universidade de Sao Paulo, sob orientagao de Rita Chaves, > Mariana Fujisawa ¢ graduada em Letras - Portugués pela Universidade de So Paulo. Desenvolveu pesquisas sobre Literatura angolana e mogambicana, tendo coneluido em 2014 intercdmbio na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, sob supervisio de Rita Chaves. F também ilustradora das seguintes obras mogambicanas publicadas recentemente no Brasil pela editora Kapulana: O regresso do morto, Sangue Negro e Orgia dos loucos. CADERNOS CERU V. 2 dez. 2016 INTRODUCAO Em ensaio matricial denominado “A literatura Antonio Candido afirma que, no Ambito da critica literdria, a sociologia aparece como disciplina auxiliar, ndo pretendendo explicar a totalidade do fenémeno literério, mas, ainda assim, mostrando-se indispensavel & compreensio de grande parte de seus objetos. Para a sociologia moderna, © a vida social interessaria principalmente a andlise dos tipos de relagdes ¢ os fatos estruturais ligados a vida artistica, como causa ou consequéncia. Todos os objetos literérios, desta maneira, constituiriam inter . pois ‘mesmoa literatura hermética apresenta fendmenos que a tomam tio social, para 0 sociélogo, quanto a poes! politica ou o romance de costumes ~ ao utilizar, por exemplo, uma linguagem pouco acessivel, resultando em distingdo! de “grupos iniciado: decitfré-la A critica literdria, no entanto, é solicitada, capazes de para além da leitura sociolégica, a compreensio profunda de todos os elementos que constituem 0 fato literdrio e, mais que isso, a compreensio de como agem dialeticamente no interior da estrutura textual, ‘A formalizagio de elementos externos ao texto, incorporados pelo trabalho attistico no sé como tema, mas também como estrutura esteticamente composta, caracteriza 0 texto literdrio enquanto obra dearte, Com o objetivo de constituir uma interpretagio critica, utilizando-se do aparato sociolégico, a primeira tarefa € investigar as influéncias coneretas_exercidas pelos fatores socioculturais. E dificil discrimind-los, na sua quantidade ¢ variedade, mas pode-se dizer que os mais decisivos se ligam & estrutura social, aos valores e ideologias, as técnicas de comunicagao. O graue a maneira por que influem estes trés grupos de fatores variam conforme 1 © conceito pode ser lido na esteira de Bourdieu (2007). CADERNOS CERU V. 2 ¢ © aspecto considerado no processo artistico, Assim, os primeiros se manifestam mais visivelmente na definigio da posigdo social do artista, ou na configuragdo de grupos receptores; os segundos, na forma e conteiido da obra; os terceiros, na sua fatura e transmissio. Eles marcam, em todo 0 caso, os quatro momentos da produgao, pois: a) 0 artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrées da sua época, b) escolhe certos temas, ¢) usa certas formas ¢ d) a sintese resultante age sobre o meio, Como se vé, ndo convém separar a repercussdo da obra da sua feitura, pois, sociologicamente ao menos, ela sé esté acabada no momento em que repercute © atua, porque, sociologicamente, a arte & um sistema simbélico de comunicagdo inter-humana, ¢ como tal interessa ao socidlogo. Ora, todo processo de comunicagio pressupde um comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando, que é 0 piblico a que se dirige; gragas a isso define-se o quarto elemento do proceso, isto & 0 seu efeito. (CANDIDO, 2008, p. 31) Ao mostrar a literatura como construida em inerente relagdo com seu contexto sécio-histérico, Candido se opée A critica literdria excessivamente formalista, segundo a qual a arte existiria em sie por si, acima e separada da esfera social, resultado apenas do arranjo de estratégias estéticas sob comando do autor. Deste mode, interessa tanto ao socidlogo quanto ao critico literdrio, embora com enfoques diversos, Se & compreensio integra da literatura ocidental canonizada é indispensdvel 0 olhar que enfoca a dialética entre texto ¢ contexto, ao escolher a literatura mogambicana como objeto a perspectiva demanda reforgo. ‘Trata-se, afinal, de um sistema literdrio recente, consolidado principalmente a partir do século XX, originario de um pais de independéneia éculos de tardia ¢ histéria turbulenta, mareada por 173, colonialismo, guerras e grandes confitos politicos ideologicos, Neste contexto balizado pela instabilidade, a literatura surge e reverbera como forma de luta, critica social, anilise ¢ reeserita histérica, autoafirmagio, identificagao e contestagao, Dos gritos no coro da luta anticolonialista 4 lirica autocritica © transgressora, as obras mogambicanas caminham entrelagadas & historia social de seu povo e de seu pais 1, Primeiras manifestages: o olhar colonial No si de reafirmasio politica, ideolégica e territorial culo XIX, a Europa entrou em proceso do colonialismo, Exercendo dominio sobre parte do territério africano desde o avango comercial © imperialista das grandes navegagdes, ocorridas principalmente entre os séculos XV e XVII, as poténcias europeias disputavam expansio ¢ poderio sobre as ainda de forma regides exploradas, desarticulada competiti Da necessidade de acordo e oficialis \s0 deste dominio ocorre, entre 15 de novembro de 1884 © 26 de fevereiro de 1885, a Conferéneia de Berlim, que define, entre as metrépoles europeias, as regras de legitimagao da ocupago dos tertitérios africanos € a partilha do continente em coldnias, a fim de evitar atritos entre as poténcias. Evidentemente, como é sabido, © comum acordo europe desprezou nao apenas o que restava dos velhos impérios ibéricos espalhados pelo continente, mas também os povos africanos com suas respectivas culturas, histérias e sociedades. As de negociagdes foram alvo de criticas de outras poténcias, intengdes, Portugal durante as especialmente a Inglaterra. O famoso “Mapa cor-de- rosa” pretendido pelos portugueses visava a conexdo entre as colénias de Angola e Mogambique, com a anexagao dos territérios que hoje configuram Zambia, Malawi ¢ Zimbébue, a fim de facilitar o transito comercial da metrépole, que poderia, entdo, percorrer mais livremente as terras da costa do Atlantico & do CADERNOS CERU V. 2 ¢ Indico. Os ingleses, entio colonizadores da regido central africana, passaram a pressionar Portugal para que desistisse da empreitada, culminando no famigerado episédio do Ultimatum inglés de 1890. © atrito deu inicio a um movimento de intensificagao do sistema colonialista portugués, que visava assegurar o poderio sobre suas colénias, aumentando a exploragao da mao deobrade seus povos € dos recursos naturais ao final do século XIX. Mais tarde, com a emergéncia do Estado Novo em 1926, surge um contomo ainda mais definido e incisivo na politica colonial portuguesa. Em confluéncia com as empreitadas politicas e militares sobre os territérios africanos, amplifica-se a valorizagio. salazarista do trabalho de uma intelligentsia a servigo de seu govemno: a colonizagio no poderia, jd em meio a0 século XX, ser unicamente territorialista. As colénia africanas passaram a ser consideradas “provineias ultramarinas”; os colonizados que se adequassem aos pardmetros ocidentais, os ditos “assimilados”, poderiam se tomar “portugueses de segunda”; a exploragdo tornou-se um “espago econdmico integrado” (CABAGO, 2007, p. 314) © repertério discursive desenvolvido a servigo da dominagio visava, por um lado, justificar seus procedimentos ¢ sua necessidade perante a propria populagdo portuguesa, além do cenério intemacional, ¢, por outro, convencer o dominado de sua inferioridade. O sistema colonial, enquanto estrutura essencialmente violenta, teve necessidade niio s6 de oprimir objetivamente as populagdes pela forga, mas também de controlar todas as dimensdes da vida, Esse proceso desmedido de subjugagao do outro utilizou como uma de suas mais poderosas armas a colonizagdo do imaginario e da subjetividade do outro, para que se mantivesse “em seu devido lugar”. A negagdo da humanidade do colonizado se sustenta por meio de uma poderosa violéncia simbélica® que, no entanto, interessava maquiar com ? A respeito da violencia simbdlica, éinevitivel recorrera Fanon, Quando, por exemplo, aborda.a existéncia de um grande nimero de hospitais psiquidtricos nos paises colonizados, afirma: ‘Em diversos trabalhos cientificos temos, desde 1954, chamado 174 as “mais generosas intengdes civilizatérias”, A servigo desta empreitada ideolégica, toma mais forma em Portugal uma literatura estritamente vinculada a politica colonial, cuja _aderéncia a0 discurso vigente na metrépole & reffetida na construgiio das narrativas. Estudos acerea desta literatura passaram a admitir dois campos distintos - embora confluentes - de produgdo: a literatura exotica a literatura colonial’. © exotismo refere-se diretamente & oposigio entre civilizagdo e natureza, proposta a partir do século XVIII por pensadores europeus como Montaigne, que, em seu famoso ensaio “Dos Canibais”, define: (.) chamamos selvagens 0s frutos que a natureza produziu por si mesma € por seu avango habitual; quando na verdade os que alteramos por nossa técnica e desviamos da ordem comum. € que deveriamos chamar de selvagens. Naqueles so vivas © vigorosas, © mais iiteis ¢ naturais, as virtudes propriedades verdadeiras, ¢, nestas, nés as abastardamos adaptando-os a0 prazer de nosso gosto corrompido, E por conseguinte, 0 préprio saber ¢ a delicadeza de diversos frutos daquelas paragens que no sio cultivados so excelentes até para nosso gosto, 2 atengdo dos psiquiatras franceses e intemacionais para a Jificuldade que havia de “curat” corretamente um colonizado, isto €, de o tomar homogéneo de parte a parte com um meio social de tipo colonial, Por ser uma negagdo sistematizada do outro, uma decisio furiosa de recusar a0 outro qualquer atributo de humanidade, © colonialismo compele @ povo dominado a se interrogar ‘constantemente: “Quem sou eu na realidade?” [AS posigées defensivas nascidas deste conffonte violento do ccolonizado e do sistema colonial organizam-se numa estrutura ‘que revela entio a personalidade colonizada. Para compreender ‘essa ‘sensitividade’ basta simplesmente estudar, apreciar 0 niimero e a profundeza das feridas causadas a um colonizado no Conforme sustenta MENDONCA, Fétima (2011, pp. 24-32) CADERNOS CERU V. 2 « se comparados com 0s _nossos. (MONTAIGNE, 2010, p. 145). literatura exética se constitui, portanto, desta oposigdo reiterada no fragmento supracitado entre 0 “eu” ocidental e o “outro” selvagem, em seu territério tropical, mesmo que colocado por vezes em posigio elevada e idilica, Nestas obras, as terras alheias e seus habitantes so vistos sob a égide da estranheza e do fascinio: a consciéncia da alteridade faz com que narradores e personagens atentem a um cendrio que se toma interessante apenas na medida em que Ihes € estranho e surpreendente, na tentativa de restituir 0 vinculo primordial entre homem e natureza, sempre pautados pela reiteragdo de estereétipos. Embora grandes tragos de exotismo ainda se fagam presentes, na literatura colonial a perspectiva da construgZonarrativa é distinta, Por“literatura colonial” entende-se a produgdo literéria elaborada também por europeus e para europeus, mas cuja intengdo era a de legitimar as colonizagdes e desvalorizar os colonizados, tidos, na melhor das hipéteses, como povos selvagens, infantilizados, incultos e, portanto, necessitados da presenga civilizatéria europeia. ‘A natureza tropical deixa de ser vista como © Eden perdido para se tornar um terreno indspito ¢ hostil ao homem branco; os habitantes locais no sio mais detentores de virtudes perdidas pelo Ocidente, mas seres carentes de civilizagio, Tendo ampla divulgago em Portugal ¢ em suas col6nias, estas produgGes visavam no apenas fortalecer a ideologia da dominacdo na metrépole, mas também ii pedir agdes de revolta por parte dos colonizados, que, grosso modo, deveriam se sentir gratos pela benevoléncia portuguesa em suas terras, almejando a assimilagio como forma de elevagdo social. Assim, a literatura, tida geralmente como instrumento de humanizagao, também serviu, em muitos casos, as causas coloniais. Uma evidéncia da ligagdo direta entre literatura © colonizagao foi escrita em 1926, data de publicagdo, no Boletim da Agéncia Geral das Colénias (ano TI, n°7), da chamada para o primeiro 175 Coneurso de Literatura Colonial em Portugal. Este incentivo justificava-se Considerando que é necessério intensifiear por todos os meiosa propaganda das nos coldnias ¢ da obra colonial portuguesa; Considerando que a literatura na forma de romance, novela, narrativa, relato de aventuras, ete., constitui um excelente meio de propaganda, muito contribuindo para despertar, sobretudo na mocidade, 0 gosto pelas coisas cotoniais; Considerando que este género de literatura esti muito pouco desenvolvido entre nés, provavelmente por falta de estimulo © iniciativa;, Considerando que se tem encontrado da parte de varias entidades com interesses mais ou menos ligados is coldnias uma manifesta boa vontade em auxiliar pecuniariamente esta ideia (pp. 169-170) © evidente desagrado e sentimento de revolta por parte dos colonizados acerea das condigdes degradantes a que eram submetidos era tio recorrente quanto reprimido. A identificagdo entre os colonizados pela ja de um passado com caracteristicas comuns foi capaz de fortalecer movimentos agrupamentos, objetivando distanciar-se ¢ diferenciarse do que era até ento produzido pelo colonizador. Apesar do apoio da metrépole a iniciativas como a promogio do concurso de literatura colonial, a partir do século XX comega-se a observar, na coldnia, a formalizagdo do descontentamento dos colonizados também na conformagdo textual ¢ literdria, Tratava-se da apropriagdo da voz por aqueles que nunca antes haviam sido considerados sujeitos de sua propria historia. 2. Primeiros brados dissonantes: a procura por uma identidade Desperta. © teu dormir ja foi mais que terreno. Ouve a vor do progresso, este outro nazareno Que a mio te estende e diz: — Africa, surge et ambula! (Rui de Noronha, “Surge et ambula”) A divisio de fronteiras africanas a régua, CADERNOS CERU V. 2 ¢ elaborada na Conferéneia de Berlim e alheia aos interesses dos inimeros povos do territirio, de maneira contraditéria passou de simbolo de opressiio europeia a pardmetro de constituigdo de nacionalidades, A unio geogréfica arbitréria de populagdes culturalmente distintas, deliberadamente claborada também como estratégia politica para evitar revoltas locais, foi de fato um grande obstaculo para a constituigdo das lutas de libertag4o nacional nas coldnias africanas: os tnicos pardmetros que uniam 0s colonizados, tais como a lingua oficial portuguesa © 0 conceito de Estado-nagdo, eram intrinsecamente io do sistema colonialista. vinculados & opre Sob a mesma égide, a literatura que era entio veiculada nas colénias, com raras ex: estava vinculada ao projeto da literatura colonial, a servigo das estratégias das metrépoles europeias. Considerando 0 imenso indice de analfabetismo dos colonizados ¢ 0 fato de que a propria nogio de literatura como forma escrita de produs%o cultural era ainda um conceito externo as culturas subjugadas, a produgdo literdria das colénias sé péde surgir, tomar corpo ¢ legitimar-se como tal a partir de um movimento de criago que, apesar das adversidades politicas e contradigdes inerentes, foi capaz de buscar aspectos daquela realidade ainda nao abordados pelas metrépoles, com a correlata pesquisa de novas forma estéticas capazes de representar estes novos objetos. A literatura brasileira, por exemplo, foi uma fecunda fonte inspiradora para o desenvolvimento desta posterior etapa criativa Durante o final do século XIX e inicio do XX, a maior parte da escrita em Mogambique vinculava- se @ literatura colonial, claborada muitas vezes por portugueses que trabalhavam temporariamente na col6nia a servigo da metrépole, nos principais centros urbanos. Algumas poucas produgdes adeptas a outras perspectivas foram esparsamente produzidas neste periodo, mas configuraram apenas o que Candido denomina “manifestagées literdrias” (2007), néo tendo formado propriamente uma tradigdo literdria Os textos cram publicados nos primeiros periédicos 176 que circularam em Mogambique, tais como o Boletim do Governo da Provincia de Mocambique (criado em 1854) © a Revista Africana (criada em 1881). © primeiro marco de oposigio a estas produgdes hegemdnicas ocorreu em 1909, com a criagio do jomal 0 Africano, mais tarde substituide por 0 Brado Africano. No caso da literatura. mogambieana, bem como de outras ex-colénias afficanas, 0 inicio desta produgdo antecipa a propria independéncia do pais. Em outras palavras, considera-se que Mogambique jé possufa uma produgio literdria propria e anticolonial antes de 1975, num contexto em que a propria nagio ainda ndo tinha vias para existir. Sob esta perspectiva, em divisio esquemética, QO, p. 12) considera haver trés tempos da literatura a pesquisadora Fatima Mendonga mogambicana: o “proto-nacionalismo”, que aparece ainda fragil no inicio do século XX, ganhando corpo principalmente nas décadas de 30 ¢ 40; 0 movimento do nacionalismo eda negritude até a década de 60; © as “tendéncias variadas pés-independéncia”, aos poucos desenvolvidas apés 1975 ‘A partir desta periodizagao, j4 parece evidente a relago intrinseca entre a literatura mogambicana € os contextos em que sua escrita ocorre. De fato, embora os cénones literdrios “universais” estejam comumente ligados as classificagdes europeias, & imprescindivel considerar a condigdo colonial ¢ socialmente preciria de Mogambique ao longo do século XX para compreender a especificidade da literatura que surge neste tertitério. © primeiro periodo “proto-nacionalista” é ainda segundo a autora, a fase contraditéria em que os autores da entéo colénia mogambicana produzem suas obras confrontando a ideologia de opressio colonial, ‘mas, a0 mesmo tempo, utilizando — conscientemente ‘ou no — aspectos ¢ estruturas impostas por Portugal. Até meados da década de 30, a produgdo literdria dos autores colonizados parece dedicar-se mais a uma autoafirmagdo de “afficanidade” do que necessariamente a uma oposigdo sistemdtica a cultura CADERNOS CERU V. 2 ¢ da metropole, Maior exemplo disto é 0 poeta Rui de Noronha, nascido em 1909 na entio Lourengo Marques. Considerado por vérios autores como 0 precursor da poesia mogambicana, Rui de Noronha escreveu extensa obra poética, em que estio presentes temas e cenérios mogambicanos, ainda que com 0 uso recorrente de perspectivas pautadas pelo cristianismo europeu e de estruturas poéticas classicas, Seu famoso poema “Surge et ambula”, elaborado sob a forma de um soneto e com mote biblico, é ja imperative ao afirmar que a Africa deve caminhar sobre suas proprias pemas, sustentando uma nova voz. sua obra A. consideragio de como paradigmatica do inicio da literatura mogambicana no se deve, portanto, ao fato de 0 autor ter criado um novo estilo literdrio completamente distanciado da metrépole, tampouco pelo fato de ter nascido em terras mogambicanas, visto que parte da produgdo da literatura colonial foi elaborada por colonos que também habitavam Lourengo Marques ¢ outros centros urbanos. © marco de sua obra é justamente da literatura a perspectiva adotada, contraposta colonial que, segundo Francisco Noa, assume-se “implicita ou explicitamente como uma forma mais ou menos elaborada de revelagdo de uma realidade mal conhecida ou simplesmente ignorada” (2015b, p. 81) Trata-se, pela primeira vez, de um “eu” mogambicano falando de si mesmo e de sua propria realidade. Apesar do cardter inaugural da obra deste ¢ de alguns outros autores, este periodo teve ainda poucas € esparsas produgdes, poucas amplamente divulgadas, nfo chegando a constituir © que Candido (2007) definiriacomo“sistemaliterario”,ouseja,omovimento continuo e retroalimentado entre autor, obra e piblico. Tal fato explica-se pelas parcas condigdes materiais ¢ intelectuais permitidas aos colonizados pelo governo portugués que, além da censura ao desenvolvimento € produgdo locais, dificultava a aquisigiio de prelos ¢ papeis (HOHLFELDT, 2010, p. 196). A impresséo € reprodugdo de livros e sua leitura na colénia eram, portanto, de muito dificil acesso. Neste contexto, jornais e periddicos voltados a0 pequeno pablico leitor mogambicano comegaram a surgir no inicio do século XX, a partir de uma elite intelectual e artistica engajada nas discussdes anticolonialistas. Em 1909, 0 jomal O Africano foi fundado por José e Jodo Albasini, abrindo caminhos para a publicagdo e divulgagdo de textos literarios, cuja produgdo era ainda incipiente ¢ censurada pela metrépole portuguesa, Fato interessante acerca deste periddico é a inclusdo, em todas as edigdes, de uma pagina eserita em ronga: trata-se da primeira publicagdo escrita em uma das linguas nativas do territério de Mogambique. Mais tarde, em 1918, os mesmos irmfos fundariam O Brado Africano, jomal de fundamental importineia para a literatura mogambicana, ‘A partir de entio, os jormais passaram a constituir 0 maior vefeulo de divulgagao literéria em Mogambique, especialmente até o final das lutas de libertagdo. © conflito entre coldnia produtora consolidando censura metropolitana acabou estes © outros periddicos como os vefculos mais importantes, porque mais viéveis, para a reprodugdo de textos literdtios ¢ ideias politicas anticoloniais, fato que, dentre outros, propiciou a opgao dos autores mogambicanos majoritariamente pela poesia e por narrativas curtas, 3. © coro anticolonial: construgio voz" tenho no coragio gritos que ndo sdo meus somente porque venho de um Pais que ainda nao existe, (José Craveirinha, “Poema do futuro cidadio”) Dofinal da décadade 1940 até 1975, asagdesda colonizagdo portuguesa se intensificaram. O término da Segunda Guerra Mundial ¢ suas consequéncias brutais sobre as economias, bem como a pseudo- abertura salazarista que permitiu a candidatura de Norton de Matos, opositor de Salazar, 4 presidéncia CADERNOS CERU V. 2 ¢ da Repiblica de Portugal em 1949, abalaram a seguranga do poderio portugués sobre suas colénias, que teve de se reafirmar mais incisivamente. Neste contexto, produgdes culturais ea imprensa local enfrentaram processos censérios por parte da metrépole, que impediram, por exemplo, a circulagdo de O Brado Africano de 1932 a 1933*, Quando voltou a circular, 0 jornal passou a ser acompanhado pelas entidades oficiais com mais rigor, dificultando a divulgagdo de textos de cunho contestatdrio ¢ revolucionétio. Tal fato explica, para Orlando Mendes, a opgdo majoritéria pela poesia em vez da prosa no pais, “por ser, entre as formas literdrias, a que melhor pode sensibilizar e que permite confundir o inimigo com menores possibilidades de repressio, circular mais facilmente pelo pais, a partir das cidades onde se elaborava” (1982, p. 36). Outros periddicos de fundamental importincia foram o jomal Vor de Mocambique ¢ a revista Msaho, que também contavam com contribuigdes literdrias. Apesar das perseguigdes, surge a partir destes periédicos o maior movimento literdrio visto até entio a de em Mogambique. Grandes autores como N Sousa, José Craveirinha e Rui Knopfli, engajados na criagao de uma poesia combativa e socialmente critica, comegam a manifestar suas vozes de resisténcia a0 colonialismo, tendo intensa repercussio em diversos segmentos da sociedade. Em reunides clandestinas situadas_muitas vezes no bairro da Mafalala, onde viviam varios dos artistas. politicamente engajados, foi-se gestando também literariamente a ideia de construgdo de uma nacionalidade, conceito que ainda atua entre os mogambicanos como “uma espécie de atestado que se conquista, no plano coletivo e no individual” (CHAVES, 2005, p. 141). No plano coletivo, adere- se luta politica e militar de libertagao nacional; no plano individual, o artista passa a se reconhecer como afficano ¢, mais especificamente, futuro mogambicano. * 0 jomal foi brevemente substituido por O Clamor Africano, fundado por José Albasini, que contou com 12 nimeros, até a retomada das atividades dO Brado. 178 Em sintese, neste periodo: A. literatura, pela deniimcia das iniquidades, das humilhagdes e das brutalidades da ocupagao, alimentouna imaginagao dos nacionalistas urbanos a utopia de um amanha de liberdade que se anunciava. (...) E nos poemas de José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Orlando Mendes, Fons Amaral, Kalungano e tantos outros que a utopia da “nagdo vai ganhando contornos, emogdes.” (CABACO, 2007, p. 391) Destaca-se, naquela altura, a produgao poética, mais volumosa e significativa. Representativas do momento sio as antologias Poesia de Combate’ (I, Tle MM), publicadas respectivamente em 1971, 1977 © 1980 como recotha de textos que circulavam no periodo “quente” da luta anticolonial, muitas vezes recitados nas reunides populares — 0 que possibilitava (© acesso daqueles que nao tinham a escrita como base de compreensdo, O prefiicio do terceiro volume dé a dimensio da premissa do projeto_literério empreendido pelas coletineas: ) E facil constatar também que a mudanga estrutural das condigdes de vida na Repiblica Popular de Mogambique correspondeu a um leque maior de possibilidades de expressio artistica. O poeta nao esta limitado a0 estatuto da contestagio, da recusa, da resisténcia, Nao se trata, hoje, de cantar a promessa de um futuro livre da dominagio e da opressio. Esse futuro comegou com a proclamacao de Independéncia, E 0 poeta participa como homem e como artista na construgdo e consolidagdo desse futuro carregado de esperanga. E, portanto, outro 0 cotidiano que o inspira ¢ que alimenta a sua poesia. Esse cotidiano € ainda marcado pelo conflito. E, por isso, enquanto momento de criagdo € 5 Poesia de Combate, antologia publicada em 1971, € depois republicada em 1979 e, a partir de entio, recebe o titulo de Poesia de Combate I CADERNOS CERU V de comunicagdo, a poesia ndo actua num terreno neutro. Tal como no passado, ela deve erigir-se em arma, deve ser poesia de combate. (Poesia de combate Ill, 1980, pp.3-4 apud MENDONGA, Fétima, 2011) Ainda considerando a relevaneia da linguagem poética como arma de luta anticolonial, vale destacar José Craveirinha ¢ Noémia de Sousa, dois poctas maiores da literatura mogambicana, cujas voz ecoam ainda hoje através dos ventos do tempo. © famoso poema “Se me quiseres conhecer”, de Noémia de Sousa, parece exemplar de textos portadores de simbolos de identificagio, capazes de fortalecer a unido pela construgo de uma identidade comum — condigio necesséria, naquele momento, & consolidagiio da uta de libertagZo, Seus textos empreendem um mapeamento da multiplicidade cultural © identitéria existente em Mogambique, de buscando, a0 mesmo tempo, fortalecer a idé unidade (ainda que na diversidade): Se me quiseres conhecer Se me quiseres conhecer, estuda com os olhos bem de ver esse pedago de pau preto ‘que um desconhecido irmao maconde de maos inspiradas talhou e trabalhou em terras distantes lé do Norte. ‘Ah, essa sou eu: orbitas vazias no desespero de possuir a vida, boca rasgada em feridas de angistia, mos enormes, espalmadas, erguendo-se em j de quem implora © amega, corpo tatuado de feridas visiveis invisiveis pelos chicotes da escravatura Torturada e magnifica, altiva e mistica, Africa da cabega aos pés, ~ ah, essa sou eu: Se quiseres compreender-me vem debrugar-te sobre minha alma de Africa, nos gemidos dos negros no cais nos batuques frenéticos dos muchopes na rebeldia dos machanganas na estranha melancolia se evolando duma cangao nativa, noite dentro. E nada mais me perguntes, se é que me queres conh r. Que nfo sou mais que um bizio de came, onde a revolta de Africa congelou seu grito inchado de esperan, Escrito em 1949, © poema nao s6 reforga € exemplifica as idéias supracitadas, como também angaao futuro o grito derevolta, inchado de esperanga, que permeard toda a produgo subseqiiente. Nao é & toa que a poetisa é conhecida como “Mae dos poetas ‘mogambicano: José Craveirinha, atravessando o tempo com sua produgio poética iniciada ainda nos anos 40, em seu primeiro livro publicado, Xigubo (1964), paraalém dos aspectos identitirios, ja reforga também, desde © infcio da produsio, a expresso de questdes caras 4 luta de libertagdo, como a exploragdo do trabalho © a insergGo do negro na luta de classes, aspectos representativos dos contextos ideolégicos marcados pelos nacionalismos afticanos, “alimentados por concepgées marxistas” (MENDONCA, 2011): Grito negro Eu sou carvio E tu arrancaste-me brutalmente do 2016 CADERNOS CERU V. 2 ¢ chao E fazes-me tua mina Patrao! Eu sou carvao! E tu acendes-me, patrio Para te servir eternamente como forga motriz, mas eternamente ndo Patrio! Eu sou carvao! E tenho que arder, sim E queimar tudo com a forga da minha combu Eu sou carvao! Tenho que arder na explorago Arder até as cinzas da maldigao Arder vivo como aleatro, meu irmao ‘Até ndo ser mais tua mina Patrao! Eu sou carvao! Tenho que arder E queimar tudo com o fogo da minha combustio. s i Eu serei o teu carvio Patrio! Percebe-se a convergéncia entre elementos da luta de classes ¢ da dominagdo colonial na figura do “Patro”. Do ponto de vista formal, a opco pelo verso livre, procedimento emblematico da poesia modema, exemplifica a capacidade de Craveirinha de integrar procedimentos estéticos diversos ao seu texto. O olhar atento a sua poética permite entrever a realizagdo daquilo definido por Fatima Mendonga: [a andlise de influéneias modernas] permitiré mostrar a convergéncia, na literatura mogambicana, de elementos estéticos. que, _nas literaturas de referéneia, se revelaram incompativeis, como, por exemplo, a integragdo simultinea de processos oriundos da estética presencista e neo-realista ou negritudinista, em contextos ideolégicos__ marcados pelos nacionalismos __afticanos, alimentados por concepgdes marxistas (MENDONCA, 2011, pp. 65-66) Ja no dominio da narrativa, vale destacar a produgao de Jodo Dias, inaugural, e a de Luis Bemardo Honwana, Publicada em 1952, Godido e outros contos de Joie Dias & considerada a prim ra obra de ficcdo efetivamente mogambicana, Godido, personagem do conto que di nome ao livro, remete ao nome do filho de Ngungunhane, famoso imperador de Gaza, de maneira a valorizar a recuperagio da meméria histérica do pais e de parte de seu povo, Tal fato ganha relevancia na formagio das literaturas anticoloniais especialmente quando trata de figuras histéricas que se opuseram as investidas portuguesas, como é 0 caso de Ngungunhane em Mogambique e de Nzinga em Angola. Ainda no ambito da prosa curta, Honwana publica em 1964 Nés matémos 0 cdo-tinhoso, reuniéo de contos que tratam de temas como opressio, racismo e violéncia, No jornal Voz de Mogambique, Rui Knopfli e Eugénio Lisboa chamaram a atengo para este langamento como um marco inovador da literatura mogambicana que se buscava construir. Tratava-se, segundo os autores, de uma voz j4 dotada de som proprio, um gosto até, um gozo de escrever jé de si pronunciados, um exemplo de trabalho e de apuro que jé no engana © que fazia esperar uma daquelas obras que ajudardo a edificar, aos poucos, © edificio da almejada_ Literatura Mogambicana. (KNOPFLI; LISBOA apud MENDONCA, 2014). Assistiremos ainda nos anos 60 4 publicagao CADERNOS CERU V. 2 ¢ (1965), de Orlando considerado o primeiro romance mogambicano, dada de Portagem Mendes, sua perspectiva critica as estruturas de dominagio © choque entre a presenga do mulato a sociedade cindida entre brancos ¢ negros, marcada ainda pela condigdo colonial. 4. Década de fronteiras da 1980: guerra AEMO ¢ Charrua nas. Pode ver o barutho que faz uma pagina em branco? ‘As vozes que dentro dela se agitam? (Eduardo White, O poeta diarista e os ascetas desiluminados) A partir da década de 1980 houve uma iva mudanga nas trilhas da literatura signifi mogambicana, até entdo marcada pela busca de vozes coletivas ¢ socialmente atuantes, explicitamente ligadas ao contexto histérico da luta e conquista da independéncia de Mogambique. De maneira geral, embora a produgio literdria antes se concentrasse nos arredores de Maputo, com © agravamento da guerra de desestabilizagao - a partir do apadrinhamento da Renamo pela Africa do Sul em 1980 - a capital passou a enfrentar um isolamento cada vez maior em relagdo as demais regides do pais. A instabilidade provocada guerma, principalmente nas areas rurais de Mocambique, onde se concentravam produgdo ¢ armazenamento de suprimentos da Frelimo, no chegou diretamente a capital urbanizada © recém-ocupada apds a saida dos colonizadores. Os escritores que ali produziam, atentos aos conflitos ¢ isolados por eles, analogamente passaram a se dedicar a escrita de um lirismo mais intimista, metalinguistico e autocritico, passando a se debrugar com mais liberdade sobre o individuo e as relagdes que 0 constituem. Ao mesmo tempo, os ideais das lutas pela libertago de Mogambique estavam passando por um proces 10 de degradagdo: em meio & populagdo © a intelectualidade, 0 cenario pés ‘olonial, muito 18 distinto do desejado, gerou um sentimento de distopia em relagdo ao novo governo e ao futuro da nova nagao. Sobretudo 0 adiamento prolongado da tio esperada “paz nacional”, em virtude da guerra — alimentada pela politica racista de paises vizinhos como a antiga Rodésia ¢ a Africa do Sul -, fez com que a escrita coletiva, engajada © partidéria tivesse suas bases afetadas. E necessério reiterar que a literatura uulo XX, altura em que 0 Ocidente desenvolvia as mais diversas mogambicana se fortaleceu no s tradigdes e rupturas literdrias: no Brasil e em Portugal vivia-se a consolidagio do Modemismo, a insergo das s. da oralidade cotidiana na eserita, a transgre: formas, 0s movimentos de vanguardas artist Se por um lado os novos autores mogambicanos se encontravam imersos no referencial modemo, por outro sua literatura havia se consagrado com perspectivas analisiveis sob uma esfera andloga 4 do Romantismo brasileiro, em seu esforgo de uni nacional, Apés a conquista da Independéncia, ou seja, com a concretizago da esperanga de construgio nacional dos poetas das décadas de 60 ¢ 70, surge a necessidade latente de pesquisa de novas formas e temas para a literatura mogambicana, estruturando tais produgdes no contexto de modemidade global ha muito observada ¢ referenciada por seus autores. Segundo Francisco Noa (2015, p. 32), a década de 80, pelos olhos ¢ pela pena vida de irreveréncia ¢ de liberdade criativa de uma nova geracio, traria outros sinais de afirmagdo individual € estética, e, sobretudo, de reinvengao da contemporaneidade. © sentido de resisténcia ganha nio sé novos cambiantes, como também outros alvos Neste periodo, © surgimento da obra Raiz de Orvalho e outros poemas de Mia Couto (1983), inala a nova primeiro livro publicado pelo autor, a: CADERNOS CERU V 2016 liberdade criativa, Dotado de lirismo e subjetividade, tratando de temas como 0 amor, o erotismo, a vida € 4 morte, 0 livro causou ampla repercussdo na esfera cultural e politica de Mogambique. Primeira Palavra Aproxima o teu coragao ¢ inclina o teu sangue para que eu recolha 0s teus inacessiveis frutos para que prove da tua dgua e repouse na tua fronte Debruga o teu rosto sobre a terra sem vestigio prepara o teu ventre para a anuneiada visita até que nos labios umedega a primeira palavra do teu corpo. Ospardmetros do cénonemilitante da literatura mogambicana foram ampliados ao serem confrontados por uma nova perspectiva: a partir desta obra, a critica literéria em formagio foi convidada a repensar seus paradigmas, refletindo sobre a concessio de valor estético e politico a produgdes que ndo tratassem imediatamente, no plano temitico, da realidade mogambicana ou da critica social ¢ anticolonial. E notivel que este processo de reconfiguragao literéria ¢ analitica ainda hoje luta por sua existéncia, Sobre isso, relata Noa (2015, p. 13): Quando, hé algum tempo atrds, discutia com alguns estudantes do curso de licenciatura em literatura mogambicana os temas que iriam desenvolver para a culminagdo dos seus estudos, apercebi-me, uma vez mais, que todos eles, sem excegio, privilegiavam uma perspectiva onde explicitamente elementos de ordem cultural ¢ social tinham especial relevancia. (...) Aliés, um olhar panordmico sobre a pluralidade de reflexdes e publicagdes que tém vindo & luz, nos nossos paises e nio s6, elucidar-nos-ia, de imediato, sobre a prevaléncia desses mesmos aspectos nos exercicios interpretativos que tém como objeto as literaturas africanas em lingua portuguesa. Com © intuito de ruptura ¢ libertagdo da criatividade na eserita, iniciativas de novos escritores na década de 1980 marcaram o inicio de um novo perfodo da literatura mogambicana Em 1982 6 criada a Associagio dos Escritores (AEMO), intensiva de escritores como Lus Bemardo Honwana, Mogambicanos com a _participagio Marcelino dos Santos ¢ Rui Nogar, iniciando uma da atividade editorial ¢ dinamizaga literdria, ampliando a divulgagdo © publicagdo de novas produgdes. Em 1984, surge a importante Revista Charrua, publicada pela AEMO e representada principalmente pelas figuras de Ungulani Ba Ka Khosa, Luis Carlos Patraquim ¢ Eduardo White. A chamada “Geragio da Charrua” caracterizou-se por promover rupturas com o paradigma do ednone literdtio combativo, sem negar sua devida importincia, mas ambicionando a criago de outras vias para a literatura mogambicana, tais como a lirica preconizada por Mia Couto, Outros expoentes deste periodo so os escritores Filimone Meigos, Marcelo Panguana ¢ Armando Artur. De certa maneira, podemos considerar que estas novas obras ocuparam um local de intermédio entre diversas dicotomias sociais ¢ culturais as quais estavam expostos os autores: a luta anticolonial passada e as expectativas frustradas de um futuro; a heranga tematica ¢ formal da poesia de combate da década de 40 e as novas tendéncias da literatura mundial; a aquisigdo de voz propria nacional ¢ 0 cosmopolitismo; a degradacdo do socialismo ¢ 0 inicio da abertura do mercado; o analfabetismo © a movimentago do mercado editorial interno ¢ externo ete. CADERNOS CERU V. 2 dez. 2016 5. Tratado de paz, mercado editorial e produgdes recentes: algumas novas perspectivas a partir de 1990 Depois do distirbio ¢ das guerras, 0 que faz correr o povo? “O povo corre para dentro de si, tragando no chao 0 circulo da sua identidade” - diz 0 velho, sentado 4 sombra de grande arvore (Luis Carlos Patraquim. A pergunta eo povo. in: Pneuma, 2009) Em 1992 foi oficialmente assinado o Acordo Geral de Paz entre Frelimo ¢ Renamo, apés guerra que permeou dezesseis anos desde a independéncia em 1975. E sabido que, especialmente nas provincias do norte de Mogambique, esta paz declarada viveu (¢ ainda persiste) emuma situagdo de extrema fragilidade Entretanto, 0 acordo ¢ a consequente abertura de processos eleitorais multipartidarios para 1994 foram marcos fundamentais do inicio de um novo periodo politico e social no pats, o qual catalisava a criagdo de novos parimetros sociais, ideoldgicos e culturais A respeito das produgdes da_literatura mosambicana da década de 90 até a atualidade, ainda pouco foi escrito em termos de critica. Podemos destacar alguns aspectos que justificam a lacuna, Em primeiro lugar, a formagdo de critics literdrios em um pais de pouquissimos leitores, ¢ cuja abertura de proceso seletivo para ensino superior ocorreu pela primeira vez apenas em 1991, é evidentemente ainda precéria. Mesmo os criticos da literatura mogambicana origindrios de outros paises, embora em niimero crescente, surgiram recentemente e, no raro, enfrentam ainda preconceitos de ordem etnocéntrica nos estudos académicos, quando comparado a0 tratamento dado a estudiosos que se debrugam sobre objetos e sistemas literdrios consolidados ha mais tempo, Além disso, & evidente a énfase da critica na produgdo iteréria_mogambicana do periodo imediatamente anterior e posterior as lutas de 183 libertagdo. Seja por motivos politicos, académicos ou editoriais, poucos autores contemporaneos sio levados a0 conhecimento do piblico em geral, com claras excegdes de Mia Couto e Paulina Chiziane. No caso destes autores, sem desmerecimento das obras que produziram, teméticas ¢ estilos, bastante consagrados especialmente no Ambito internacional, tém muito de seu sucesso devido a “indices de estranhamento, quando nao de novidade (agora cada vez menos, obviamente) que a escrita de ambos ita” (NOA, 2015, p. 14). Por fim, apesar de a AEMO continuar seus su incentivos a divulgagio de novos autores, nota-se uma diminuigio do ritmo de publicago nos tltimos anos, o que se pode justificar pela entrada do mercado editorial privado em Mogambique a partir do inicio da década de 90 — 0 que poderia, em uma anilise ingénua, ampliar quantitativamente a produgo, mas acaba por ditar experiéncias literdrias de acordo com © interesse mercadologico das obras (MENDONGA, 2011, p. 118). A falta de meios efetivos de divulgagio ¢ reflexdo sobre a literatura no impediu, entretanto, que a produgio fosse gestada de maneiras cada vez mais diversificadas, abrangendo cada vez mais vozes. Dentre as principais, podemos destacar, na prosa, Suleiman Cassamo, Joio Paulo Borges Coelho, Aldino Muianga ¢ Clemente Bata. Quanto & poesia, nomes como Luis Carlos Patraquim, Lica Sebastiio € Nelson Saiite tém repercussio inclusive no Brasil. Caracterizando a novissima gerago de poetas, Fatima Mendonga conelui: A poesia mogambicana nestes 35 amos nfo ficou, pois, enclausarada nas malhas de um modelo unico. Na sua diversidade, molda-se em peculiaridades individuais, fazendo ecoar, aqui e além, vozes antecessoras, condensadas nas_-—_cadéncias ritimicas, na vibragao erética ou no distanciamento enunciativo que atraem as mais recentes geragdes de poctas. (MENDONCA, 2011) CADERNOS CERU V. 27, n. 2, dez Tomado como paradigma desta forma de escrita pela autora, Maputo blues (2006), de Nelson Saiite, evidencia que mesmo 0 mais inovador dos projetos literérios ampara-se também na_histéria construida por um poeta da estatura de Craveirinha, reafirmando a importéncia, no campo literério, de sempre caminhar para frente sem, no entanto, esquecer as lutas que consolidaram as raizes sobre as quais é possivel erescer. Referéncias Bibliograficas BALANDIER, Georges. “A Nogio de Situagio Colonial”. In: Cadernos de Campo, ano Ill, n° 3. 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