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gee!" ee ig CONCEITOS DA PSICANALISE Perversao CLAIRE PAJAZCKOWSKA Editor da série Ivan Ward Ideas in Psychoanalysis - Perversion foi publicado no Reino Unido em 2000 por Icon Books Lta., The Old Dairy, Brock Rd, Thriplow, Cambridge SG8 7RG Copyright do texto © 2000 Claire Pajazckowska Conceitos da Psicanalise — Perversao € uma co-edigdo da Ediouro, Segmento- Duetto Editorial Ltda. com a Relume Dumara Editora. Ediouro, Segmento-Duetto Editorial Ltda: Rua Cunha Gago, 412, 3° andar, Sao Paulo, SP, CEP 05421-001, telefone (1 1) 3039-5633, Relume Dumara Editora: Rua Nova Jerusalém, 345, Bonsucesso, Rio de Ja- neiro, CEP 21042-235, telefone (21) 2564-6869. Copyright da edigao brasileira © 2005 Duetto Editorial Indicagao editorial Alberto Schprejer (Relume Dumara Editora) Coordenagao editorial da série brasileira Ana Claudia Ferrari e Ana Luisa Astiz (Duetto Editorial} Tradugao e edigao Carios Mendes Rosa Revisao técnica Paulo Schiller Revisao Biel Silveira Cunha: Capa Acervo do Museu de Budapeste Diagramagao Ana Maria Onofri CIP-Brasil, Catalogacao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Ru. P173p. Pajazckowska, Claire Perversao / Claire Pajazckowska : tradugao Carlos Mendes Rosa. - Rio de Janeiro : Relume Dumara : Ediouro ; $20 Paulo : Seg- mento-Duetto, 2005 {Conceitos da psicanalise : v.18) Tradugdo de: Ideas in psychoanalysis ; perversion ISBN 85-7316-450-6 1. Freud, Sigmund, 1856-1939. 2. Klein, Melanie, 1882-1960. 3. Per- versao sexual. 4. Sexo (Psicologia). 5. Psicanalise. |. Titulo. Il. Série. 05-3144, CDD 616.8583 COU 616.89-008.442 Todos os direitos reservados. A reprodugae nao autorizada desta publicacao, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitul violagdo da Lei n* 5.988 PERVERSAO As conotacées da palavra sao desagraddveis e tém um sa- bor de moralidade e, portanto, de livre-arbitrio, antiquado nestes tempos de ciéncia e determinismo.! Assim comega a introducao do livro Perversion: the Erotic Form of Hatred [Perversao: a Forma Erotica do Odio] — uma das investigacdes mais esclarecedoras e humanas do conceito de perversdo. Se a palavra tem conotacées tao incdmedas e antiquadas, por que con- tinua a ser usada? A perversdo é uma atitude sexual? Todas as atitudes sexuais pedem uma resposta moral? Todos os atos agressivos sao desagradaveis? O que de- termina a mistura particular de sexualidade e agressivi- dade caracteristica da perversio? a PERERA O conceito psicanalitico de perversao a define como uma atitude sexual, mas nao necessariamente uma atitude genital. Mesmo que os genitais sejam usados, como, por exemplo, no exibicionismo, eles nao estado presentes na funcdo de orgao sexual adulto. Para en- tender a natureza paradoxal do sexo na perversdo, € preciso investigar o desenvolvimento da sexualidade humana e a correlacao entre a infancia e a maturidade nesse desenvolvimento. Existem também atos perver- tidos, como 0 roubo ou o vicio, em que o individuo sente prazer erdtico conscientemente, e entende-se que esses atos tém um significado sexual para ele. Como um conceito referente aos prazeres erdticos intensos e instigantes da sexualidade também € usado em referén- cia a crimes, violéncia e assassinato? Como um mesmo conceito explica os prazeres da sexualidade comum (se é que a sexualidade pode ser menos que fora do comum) e alguns dos atos mais estranhos, bizarros e radicais de destruicao, degradacao e tortura? Como a perversao esta ligada aos conceitos de neurose e psico- se € também aos acontecimentos da vida cotidiana? Existe uma controvérsia consideravel sobre a defi- nicdo de perversao. Segundo alguns, ela diz respeito a formas variantes da sexualidade humana; outros a PeRwersaa acham uma forma “andmala” (veja “Conceitos funda- mentais”, na pagina 77). S6 na psicanalise o conceito tem um sentido diagnéstico e descritivo: nao é uma variante nem uma aberracdo, mas tem causas inerentes especificas e caracteristicas recorrentes. Os historiadores contemporaneos da sexualida- de tém interpretado 0 conceito de acordo com o que ele era originalmente no discurso médico do século XIX. Por exemplo, no primeiro volume de A Histdria da Sexualidade, o historiador estruturalista francés Mi- chel Foucault identifica varias categorias de sexuali- dade criadas na medicina em meados do século XIX, quando ela se separou da biologia. Essas categorias, ou “objetos” discursivos, foram produtos de uma preocu- pacdo com quatro modalidades de sexo que Foucault designou de “histericizacéo do corpo das mulheres”, “pedagogizacao do sexo das criancas”, “socializacdo do comportamento procriativo” e “psiquiatrizacao dos prazeres pervertidos”. Escreve Foucault: Quatro figuras surgiram dessa preocupagdo com o sexo, que se firmou ao longo do século XIX: quatro objetos de conhecimento privilegiados, os quais eram também obje- fivos ¢ ancoradouros para as aventuras do conhecimento: Pepwtnsao a mulher histérica, a crianca que se masturbava, o casal malthusiano e 0 adulto pervertido.* Acompanhando as mudangas ocorridas a medi- da que a ciéncia médica assumiu a responsabilidade pela elaboracdo de conhecimento sobre a sexualida- de humana, Foucault apresentou a hipétese util de que os conceitos pertencentes a um discurso devem ser entendidos como produtos do poder, ligados por fim ao direito e ao Estado. E compreensivel que essa obra tenha exercido tanta influéncia nos histo- tiadores sociais contemporaneos. Ela foi usada para corroborar muitas obras com material de arquivo e politicas que documentaram a criminalizagao da homossexualidade ou a caracterizagao da mulher como “histérica”. Quando se pensa na guerra 4 masturbacaéo empre- endida nas escolas publicas britanicas, pergunta-se qual a relagao dela com a producao social de um tipo particular de “homem” capaz de administrar a maqui- na politica do Reino Unido. Por questionar a condigao de pseudociéncia da psiquiatria, a historia da sexuali- dade apresenta implicitamente uma critica social deter- minista da psicanilise. Mais recentemente, ela tem promovido a Teoria das Bichas, que louva a prerrogativa das perspectivas con- tra-indicadas do ponto de vista que as ideologias defi- nem como normal. Segundo a Teoria das Bichas, a pa- lavra “perversdo” nao € nada mais que um anacronismo desagradavel e moralizador que deveria ser analisado segundo a sua histéria ou entéo deveria ser usado iro- nicamente como simbolo do estigma da desaprovacdo social. Assim, o termo desdenhoso “pervertido” torna- se um emblema de orgulho em vez de um estigma, e a homossexualidade passa a ser simplesmente uma va- tiante de uma gama de sexualidades polimorfas, que diferem da heterossexualidade s6 no que diz respeito ao reconhecimento, a aprovacao e a definicao sociais. A Teoria das Bichas também reconhece o bode ex- piatorio das “sexualidades andmalas”, que permite as “pessoas normais e de boa indole” sentir-se diferentes dos (superiores aos) “pervertidos” repugnantes. Os bo- des expiatorios recebem os medos projetados e renega- dos pelo lado negro da “normalidade” e sao levados a se sentir envergonhados, sujos e pecadores. Porém, o enaltecimento da “bichice” pode ser inadequado (polli- tica e pessoalmente) se usado para rejeitar a dificulda- de real de uma subjetividade pervertida — por exemplo, PrsversAo- que a “solucdo” criada na perversao para a angustia da sexualidade é a melhor situacao possivel, melhor que a sexualidade branda, “normal” e insipida. © determinismo social faz supor que a repressdo seja um produto da censura exercida pelas instituicdes juridico-discursivas, ou sociedade, sem envolvimento psicolégico. No que a Teoria das Bichas festeja as co- notacdes de repugnancia, depravacao e critica moral implacavel, ela o faz insinuando que tais conotagdes servem aos acusadores. A pratica liberal associada a politica “gay” procura substituir o conceito de perver- sao pelo de “neo-sexualidades”, menos desagradavel Os tedricos bichas e os liberais estariam certos quanto ao seu objetivo e as suas estratégias? Qual é a diferenca entre aberracoes, perversdo e variantes sexuais? Continuam intensos os debates sobre o papel que o Estado desempenha, ou deveria desempenhar, ao determinar, controlar e influenciar as sexualidades. Os debates sobre a descriminalizacdo da homossexua- lidade sao bem documentados. O fascinio dos meios de comunicacao pelas historias de estrelas da musica popular, clérigos e assistentes sociais que sao pedofi- los, pelas noticias dle bestialismo, necrofilia, transexua- lidade e sadomasoquismo faz parte de uma tradicao 10 Praversao antiqttissima, quando nao nobre, de fascinacao publica com 0 grotesco. Uma teoria social determinista da sexualidade nao pode tencionar dar conta do comportamento, das acdes e da experiéncia emocional de tantos “adultos pervertidos”. O que ocorreu na casa do homicida Fred West, na rua Cromwell, em Gloucester (Inglaterra) — em que as refor- mas tinham como fim 0 voyeurismo, 0 incesto, a tortura sadica, o lesbianismo, estupros ¢ assassinatos —, sé pode ser entendido reconhecendo-se 0 conceito psicanalitico do papel que a fantasia sexual inconsciente € as necessi- dades “reparadoras” desempenham na perversao. E menos desagradavel o debate na area da critica artistica sobre a censura ao retrato da infanticida Myra Hindley feito com impressdes de maos de criancas, exibido na Academia Real de Arte na exposigao “Sen- sacdes”, da nova arte britanica. Teria sido um uso gra- tuito da reacao visceral do publico a idéia da violéncia contra criangas, a qual, por sua vez, era violentada pelo artista? Qual € a relacao entre criatividade e perversio? Existe uma ligacdo entre o sublime e o pervertido? Outro exemplo, que examinamos em mais detalhe neste livro, é a teoria do cinema usar da psicanalise para entender o prazer e a fascinacao em “ir ao cinema” e 0 Prrwer fato de a conformacao do fetichismo ser indispensavel para acompanhar uma narrativa cornum. Nesse caso, os prazeres pervertidos do cinema estao bem distantes da analise e do tratamento do assassinato e da tortura sadica, mas mesmo assim integram uma estrutura psi- cologica que é compartilhada. Na psicanilise de todos esses exemplos, utiliza-se o conceito de perversao, e as conotagdes desagradaveis sdo associadas aos atos e nao a palavra em si. A palavra merece certa reflexao, pois o seu significado difere con- sideravelmente quando substantivo, adjetivo, advérbio ou verbo. Como substantivo, ela transforma uma pratica ou uma pessoa em objeto de conhecimento, enquanto o conhecimento do sujeito é a condigao da liberda- de. Assim, classificar um individuo de “pervertido” é reproduzir a objetificagdo e a desumanizacao carac- teristicas da propria perversdo. Robert Stoller, por exemplo, ndo consegue usar esse termo por causa da violéncia e da acusac4o que ele conota. A libertacdo da condi¢do de pervertido s6 pode vir da conscién- cia subjetiva. A denominacao nos revela tanto sobre o sujeito da ciéncia quanto sobre o seu objeto de estudo, e a psica- 12 Povereexy nalise mantém a sua relacao paradoxal com a ciéncia médica tradicional redefinindo a relacdo entre objeto e sujeito. Ao contrario de outras ciéncias médicas, a psicandlise diz que nao pode existir conhecimento do outro que nao seja em principio um conhecimento do eu, sem o que as técnicas de interpretacao seriam jogos intelectuais sem sentido. O verbo, “perverter”, costuma ser associado co- loquialmente a algo que altera o “curso normal das coisas” e é um crime previsto em lei, mas, no terreno terapéutico, “perverter” € mais comumente sinénimo de “violentar”, “abusar” — donde “abuso de drogas”, “abuso infantil”, “abuso sexual de criancas”, “violén- cia sexual” etc. O verbo tem sentidos de metaéforas hidraulicas de energia, o que o coloca ao lado de desviar, reverter, afastar e inverter. (As metaforas de Freud para a libido, ou energia psiquica, variaram no decorrer do seu trabalho e se voltaram para os modelos mecanicos da tecnologia e da engenharia que representaram muito bem o progresso do ultimo quarto do século XIX.) Como verbo, é preciso esclarecer a que tipo de ati- vidade se refere e de onde vém a energia e a motiva- cdo para ela. Um verbo, como uma pulsao ou um im- pulso, requer a especificacdo de um sujeito, de uma meta e de um objeto, e é menos “objetificante” do que um substantivo. O adjetivo “pervertido” nado contém tanto a re- provacao moralista do substantivo, porque nao car- rega o peso da nomeacdo do atributo do outro, nao separa 0 sujeito do objeto, mas qualifica o objeto, e pode qualificar uma forma de pensamento, uma crenga, uma resposta emocional a vida, um ato sexu- al, um ato violento ou um assassinato. Embora o ad- jetivo possa ser usado para designar varios prazeres e sensacdes sexuais que a maioria das pessoas sente quando excitada, existe uma diferenca significativa entre esse uso e a definicdo de perversiéo como uma caracteristica do individuo que se tornou uma parte permanente e indivisivel do eu.” A psicanalise mostra por que existe essa diferen¢a € como essa ultima acepcao pode ser vertida para o sentido positivo. E 0 proposito da psicandlise é tornar a diferenga clara e significativa. Por exemplo, o psica- Nem todos os usos de perverse em inglés aplicam-se ao portugues, que tem conotagses diferentes para “pervertido”, “perverso” e termos relati- vos. Além disso, conforme 0 contexto, perverse pode significar “irracio- nal”, “anormal” e até “obstinado” ¢ “teimoso”, extensdes inglesas que "per vertido” nao tem, (N. do T.) nalista Heinz Kohut, que se radicou nos Estados Uni- dos, refere-se a essa estrutura permanente e integral do individuo como uma “falha estrutural”, que liga esse aspecto a outros do desenvolvimento defensivo do ego. Explico esse particular mais a fundo na se- cao “Quais sao as definicdes de perversdo aps Freud” (paginas 56-69). A PRIMEIRA TEORIA FREUDIANA DA PERVERSAO Falando a uma platéia na Universidade Clark de Worscester, Massachusetts, na sua primeira viagem ao que ele chamava de “o Novo Mundo”, 0 psicanalista Sigmund Freud contou a historia da psicanalise, come- cando pelas investigacées da histeria nos anos 1890 e continuando pelos desdobramentos da disciplina até o ano em que ele falava, 1909. As Cinco Conferéncias so- bre Psicandlise® constituiram um relato conciso da sur- preendente revolucao no conhecimento que ocorrera nas décadas anteriores e apresentaram um tesumo dos progressos alcancados. Freud descreveu as suas primeiras tentativas de elu- cidar a importancia psicoldgica do sofrimento fisico na histeria, os efeitos do trauma psicoldgico e o significa- do dos sonhos. Ele concluiu: 46 ter 3u- Os desejos impereciveis ¢ reprimidos da infane prido sozinhos o poder de formar sintomas, ¢ sem eles a reacdo a traumas recentes teria tido uma trajetoria diferente.* Pelo estudo da histeria e dos sonhos, Freud conse- guiu intuir a existéncia do que se tornaria 0 conceito mais polémico e dificil da sexualidade infantil. Seus Trés Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade® transforma- ram em definitivo a psicandlise de um tratamento da histeria e uma nova forma de interpretar sonhos na re- volucao cientifica mais significativa do século XX. Ao apresentar o seu trabalho para uma platéia ame- ricana, Freud reconheceu a dificuldade de se entender a sua hipotese, afirmando: E agora, enfim, estou bem certo de que os surpreendi. Exis- te essa coisa de sexualidade infantil? — perguntariam os senhores. Ndo seria a infancia, ao contrdrio, 0 periodo da vida marcado pela auséncia de pulsées sexuais? Nao, se- nhores, sem dtivida ndo é verdade que as pulsdes sexuais entrem nas criancas na idade da puberdade do mesmo modo que, nos Evangelhos, 0 deménio entrou no porco. A crianca tem instintos ¢ atividades sexuais desde o princtpio; 16 ois de um percursd iwo de desenvolvimento, que atravessa muitas fases, se dirigem para o que se conhece por sexualidade nor- ual de adulto.* Freud chama de difasica a ontogenia da sexualidade humana — ou seja, ela tem duas ondas de desenvolvi- mento: uma fase infantil, a primeira, seguida de um pe- riodo de recesso e inatividade sexual por ele denomi- ado laténcia, que dura até o desenvolvimento hormo- nal e fisico da puberdade e da adolescéncia. Quando a crianca entra no periodo de laténcia, que precede a adolescéncia, ela se torna mais predisposta a aprender com a realidade do que com a sua experiéncia corpo- ral e as suas fantasias sexuais. As experiéncias infantis que constituem a primeira das duas fases do desenvol- vimento difasico sdo reprimidas e formam a base da mente inconsciente do adulto, da fantasia e das subli- macées das pulsdes em praticas culturais e sociais. Ao definir as pulsdes sexuais de impulsos psico- logicos expressos numa energia que ele chamou de “libido”, Freud compreendeu que o desenvolvimento sexual humano nao se limita a atividade genital para a reproducao da espécie, mas é uma atividade instin- 7 Penversio, tiva concentrada em diversos orgaos e zonas erogenas. As principais delas estao associadas as atividades orais, anais e uretrais do corpo do bebe. Tais atividades sao as fases do desenvolvimento libinal e relacionam-se com sensacoes corporais e também com 0 desenvolvimento do ego ou desenvolvimento cognitivo. Embora sejam descritas como sucessivas, as fases podem sobrepor-se, ocorrer concomitantemente, ser interrompidas ou completadas mais adiante. Para simplificar, elas serao apresentadas como se fossem sucessivas, com cada fase terminando antes que a se- guinte comece. A fase oral é a primeira de todas, porque se funda no instinto de suceado observavel tanto no feto quan- to no recém-nascido. Esse instinto, por servir para dar prazer e também para garantir a sobrevivencia, pode ser chamado de libidinal ou sexual. A atividade libidi- nal mais precoce, portanto, organiza-se em torno dos Orgaos orais, cujas zonas erogenas sao a boca, os labios, a lingua e a garganta, que sentem os prazeres sensoriais da succao, da alimentacao, do toque com a boca, do engolir e, mais tarde, do morder e do cuspir. A fase oral do desenvolvimento € acompanhada de um desenvolvimento das concepcées de ingerir, incor- A Pantens Teoria Feet 1 Penvensio porar, fundir-se, e durante ela o ego forma as primeiras representacdes da delimitacao do eu e do nao-eu. A experiéncia repetida da catexia (“investimento”) prazerosa da libido na zona erégena deixa resquicios de memoria neural, que formam a representacao men- tal de um objeto. Esse objeto mental é uma representa- cdo do eu e € também uma representacao de algo que era um nao-eu. E um componente do que acabara por se tornar uma representacao de um objeto externo, ou outra pessoa, A formacao das representagées intrapsi- quicas, ou objetos, é a base da capacidade de perceber como real o mundo exterior. Na fase oral, o mundo exterior consiste primor- dialmente na relacéo do bebé com a mae, ou o que as vezes se chama de “objeto que satisfaz necessidades”. Nessa idade, a dependéncia que o bebé tem da mae é completa e, assim, a catexia libidinal de um auto- erotismo prazeroso liga-se as necessidades intensas de sobrevivéncia. As experiéncias de prazer excitado sao inseparaveis das experiéncias de dependéncia de vida e morte. A defesa do bebé contra essa realidade € em parte a confiabilidade da devogdo materna, que man- tém um ambiente propicio, e em parte uma defesa psi- colégica de cisao. PERVERSAO Quando o ego, ou mundo das representacoes, emprega a defesa da clivagem, as representacoes do prazer separam-se mentalmente dos medos de ani- quilacdo ou extingao. Mais adiante, quando o mundo das representagdes se torna mais aprimorado e mais capaz de distinguir os tipos diferentes de percepcao, a capacidade do ego de dividir a percep¢ao tanto dos impulsos internos quanto da realidade externa fica mais complexa — essa defesa pode ser encontrada em muitas variedades em todas as fases, a falica inclusive, em que ela vem a ser um componente da estrutura pervertida do fetichismo. DESMAME COM DINOSSAUROS Freud mudou a teoria dos instintos no decorrer da vida, de modo que o seu entendimento da sexualidade também mudou. Mais adiante (pagina 73) falaremos de algumas das reformulacoes da teoria dos instintos, e agora daremos um breve panorama do que Freud considerava serem os componentes clos instintos e das pulsoes na época em que ele formulou a teoria da per- versao, nos Trés Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Toda pulsao tem quatro componentes: uma fonte, uma pressao, um alvo e um objeto. Deshame com Dingssauncs A fonte é somatica, um érgéo ou um conjunto de érgaos dos quais emerge a pulsdo. Na fase oral, a fonte é uma mistura das sensacoes de fome, do instinto de mamar e das zonas erogenas da boca. A pressao é senti- da na forma da intensidade da preméncia de satisfagao que a pulsao exerce no estado de equilibrio homeosta- tico da psique, ou ego. A representacéo mental da pressao do estimulo é feita nas fantasias ca intensidade do apetite, de uma cessidade, de uma ansia ou da sede. Ela pode ser intensa, avassaladora ou passageira. A emergéncia da pressdo de uma pulsao na psique € em geral sen- tida como uma espécie de intrusao violenta do des- prazer na paz gostosa do repouso, e quase sempre se imagina que essa violéncia venha “de fora”. Entre as defesas precoces contra as perturbacdes desagra- daveis da homeostasia, ou unidade narcisica, esta o mecanismo da projecao, que reforcga a tendéncia do ego de perceber que as exigéncias a ele provém do mundo exterior. Essa tendéncia é também reforcada pelo alvo de uma pulsdo, que pode ser passivo ou ativo. O objeti- vo fundamental ¢€ restituir o equilibrio homeostatico da psique e auxiliar as atividades do ego a escolher o 24 objeto € a agdo que atinjam tal resultado com maior probabilidade e rapidez. O alvo relaciona a pulsio com o seu objeto. O objeto € uma coisa, um acontecimento, uma fanta- sia, uma pessoa ou parte dela, uma acdo. No caso da pulsdo oral, o objeto pode ser mamar no seio, a sensacao do mamilo na boca, a habilidade do bebé de por o proprio dedo na boca, a oralizagao da ne- cessidade, 0 balbucio, a exploracao de um brinque- do ou de um novo objeto “abocanhando-o", talvez seja o desejo de morder por frustracdo ou beijar por afeto. O alvo ativo em direcdo do objeto “um beijo” € 0 desejo de dar um beijo. o alvo passivo ¢ 0 desejo de ser beijado. A interacao dos alvos ativo e passivo continua ao longo do desenvolvimento das pulses e assume sig- nificados diferentes em fases diferentes. O poeta brita- nico W. H. Auden cita o poeta alemao Bertolt Brecht: “Q ema do Inferno: Comer ou ser comido. O lema do Paraiso: Comer e ser comido”’. Voltaremos adiante a falar dos instintos e das pul- s6es no que Freud chama de aspecto “econdmico” da sexualidade, que é crucial para entender a perversao (paginas 66-70). 22 A capacidade do ego de reprimir as pulses e trans- forma-las numa dinamica inconsciente é particular- mente importante no decorrer do desenvolvimento. Como Freud disse: Antes mesmo da puberdade ja se efetuaram repressoes ex- tremamente enérgicas de certas pulsées, sob a influéncia da educacéo, e se estabeleceram forcas mentais como o pudor, a aversdo ¢ a moral, as quais, como vigias, conservam aquelas repressoes. Assim, quando se chega & maré alta das pressdes sexuais na puberdade, ela depara com essas estruturas men- tais reativas ou resistentes como diques, que dirigem o fluxo dela para os chamados canais normais ¢ lhe impossibilitam reavivar as pulsdes submetidas a repressdo. Particularmen- te os impulsos coprofilos da infancia — ou seja, os desejos relativos aos excrementos — sdo submetidos a mais rigorosa repressdo, € 0 mesmo se aplica, ademais, ds figuras a que a escolha de objeto original da crianca se ligava.* Isso quer dizer que, no desenvolvimento normal, precisamos abrir mao de certas experiéncias prazerosas e dos objetos associados a elas. A fase anal sucede a fase oral. Mas, enquanto a an- terior é enterrada, como as fundagdes que sustentam o 23 Perversio, edificio do ego adulto, as experiéncias e as fantasias da fase anal sao reprimidas com mais vigor — emputrradas para 0 subsolo, por assim dizer. Como se sabe, Freud encontrou as evidéncias da fase anal e da sua repressdo nas formacoes reativas de limpeza, ordem, rigor € controle. Constrangimento in- tenso, humor agressive ou segredo envolvem os fend- menos anais no mundo adulto, apontando para a sua influéncia persistente no comportamento. Embora as criancas se divirtam muito contando as outras historias com cocé, bumbum, pipi, periquita e vagina — todos na forma de personagens em narrati- vas com dramatizacao —, a maioria dos pais acha essas historias cansativas, enfadonhas e até embaracosas (rea- cao que costuma aumentar a diversao das criancas). Para os adultos, a manta protetora da amnésia infan- til significa nao sé que os pais nao voltam a infancia e participam, mas que 0 comportamento das criangas parece estranho e irritante. Ainda que cada fase tenha um aspecto agressi- vo, em que os impulsos libidinais se misturam com os destrutivos e se tornam sadicos, Freud obser- vou que a agressividade € 0 sadismo eram espe- cialmente fortes na fase anal, 0 que talvez explique 24 De rARAE COM Dvd o aparecimento de uma repressao téo intensa para domina-los. O apego positivo a coprofilia esta liga- do aos prazeres do tato, da consisténcia e do olfato; e também se acha que a sublimagao dos impulsos anais tenha um papel significativo em grande parte da criatividade artistica. A capacidade da crianca de controlar o esfincter € os intestinos acarreta a sensacdo do poder de dar e de reter e forma outro conjunto de representagdes mentais por meio do qual se constroi a delimitacao do eu e do nao- eu. Os tedricos da cultura notaram também que as fan- tasias reprimidas na fase anal tém grande evidéncia nas ideologias do anti-semitismo e do racismo, nas quais um grupo preserva a idealizacdo da “limpeza” do seu eu projetando no “outro” os atributos depreciados e te- midos de contagio, sujeira e obscuridade. As formas de controlar o mecanismo de separacao da idealizacdo da depreciacao envolvem em geral uma dominacio fisica, como a imobilizacdo ou a segregacdo, o encarceramen- to e as técnicas sadicas de “limpeza”. Dai os campos de exterminio do Holocausto da Segunda Guerra Mundial terem sido chamados de anus mundi”, * © “anus do mundo”, denominacao dada pelos préprios nazistas. (N do T.) PERWeRSAO Outras espécies de intolerancia e crueldade também foram relacionadas a angtistias e medos da fase anal O EXCRETORIO E O SUBLIME O psicanalista britanico Emest Jones escreveu: A criacdo artistica serve a expressdo de muitas emocoes e idéias, do amor pelo poder, da solidariedade diante do sofrimento, do desejo da beleza ideal e assim por diante, mas — a menos que © termo seja ampliado para abranger a admiracao por qualquer forma de perfeig¢ao — € com o uiltimos deles, a beleza, que a estética se preocupa mais. Tanto que o sentimento estético pode muito bem ser de- finido como aquele que é evocado pela contemplagao da beleza. Porém, a andlise dessa aspiracdo revela que a origem principal dos seus estimulos nao é tanto um im- pulso primdrio quanto uma reacdo, uma rebelido contra os aspectos EG grosseiros € mais repelentes da existén- cia material, que deriva psicogeneticamente da reagdo da crianca pequena contraria ao seu apego primordial aos excrementos. Quando nos lembramos da enorme contri- buicdo dessas tendéncias copréfilas reprimidas, nas suas formas sublimadas, para toda € qualquer atividade ar- tistica — para a pintura, @ escultura ¢ a arquitetura, de 26 O E.orerono £0 Sueuime um lado, e para a mtisica € a poesia, do outro —, torna-se evidente que, no empenho do artista pela beleza, ndo se deve ignorar o papel fundamental desempenhado pelos interesses infantis primitivos.” Hoje em dia, as professoras das escolas maternais sabem muito bem da necessidade das criancas pe- quenas de brincar com areia, agua, argila, massa de modelar, e do seu prazer manifesto de se sujar. Lem- bro-me de que, quando pequena, sai para o jardim, procurei barro, modelei uma cabeca, decorei-a com uma tiara de margaridas e a dei 4 minha mae, que estava na cozinha lavando a loug¢a e ficou bastante surpresa. No seu ensaio “The Madonna’ Conception through the Ear — A Contribution to the Relation be- tween Aesthetics and Religion” [A Concepcdo da Vir- gem pela Orelha — Uma Contribuicao para a Relacdo entre a Estética e a Religido], Jones analisa o tema das pinturas renascentistas da Anunciagao que retratam o arcanjo Gabriel com lirios e a Virgem Maria receben- do a palavra de Deus. Ele observa que a respiracdo e a fala sdo tratados no inconsciente como equivalentes da passagem de gases intestinais, e o desloca- hr SI Pemversho mento correspondente do afeto € realizado dos ultimos para os primeiros.'° Discorrendo sobre as associagées do sopro, do som, da invisibilidade e da fluidez, da umidade, do calor e do odor na representacao pictorica da iconografia religiosa e da teologia, Jones conclui que a narrativa crista da imaculada conceicao é construida com base numa teo- ria sexual infantil caracteristica da fase anal — ou seja, de que os bebés nascem pelas nadegas, como fezes. Es- sas idéias e crencas sao entao reprimidas e tornam-se componentes do inconsciente dos adultos, vivendo na fantasia a vida de adultos. Afirma o psiquiatra e psica- nalista americano Robert Stoller: A fantasia, esse veiculo de esperanca que cura o trauma, que protege da realidade, que oculta a verdade, que ajus- ta a identidade, que restitui a trangiiilidade, que ¢ inimiga do medo e da tristeza, que limpa a alma. E que cria per versdes, Desde que Freud mostrou isso pela primeira vez, sabemos que nos humanos a fantasia faz parte da etiologia das perversdes — sobretudo de toda excitacdo sexual — tanto quanto os fatores fisiolégicos € ambientais que os estudiosos do sexo nos ajudam a entender" 28 A FASE DA OSTENTACAO E DA BAZOFIA Depois da repressao da fase anal e das suas fanta- sias, a crianga entra num periodo dominado pelo ero- tismo uretral, falico e clitoridiano. O pénis do menino, por ser um orgao de miccao, de prazer sensorial mas sobretudo um elemento visivel, torna-se especialmente significativo. Por isso Freud batizou essa fase de falica. A catexia narcisica do pénis também ocorre num mento em que a pulsao epistemofilica se organiza em torno do uso da visdo pelo ego, e a viséo é im- portante para o desenvolvimento e o controle dele. O psicanalista britanico Donald Winnicott chamou essa fase de “ostentacao e baz6fia”, porque a signifi- cacao do pénis liga-se aos objetivos de ver e ser vis- to. Nela, esse impulso escopofilico, com um objetivo ativo, voyeuristico, e outro passivo, exibicionista, é inteiramente associado a fase falica. A distingdo entre os sexos masculino e feminino é€ feita por meio da existéncia ou inexisténcia visivel do pénis, de modo que o limite entre o eu e 0 nao-eu é simbolizado pela oposicao entre falico e castrado. Na fase falica, o menino nao associa o prazer dado pelo pénis com o pénis como 6rgdo reprodutor; tra- ta-se tao-s6 de um pénis, que desconhece a existéncia 2a PrRVERSAG da vagina. E nessa fase que 0 “complexo nuclear”, ou complexo de Edipo, esta no auge, momento em que, segundo Freud, o desenvolvimento psicoldgico dos meninos e o das meninas diferenciam-se bastante. De acordo com Winnicott, as meninas as vezes tém “um pouquinho de incomodo” nessa fase, pois os impulsos falicos sao fortes e as meninas sao apegadas emocionalmente 4 mae como objeto de desejo, mas nao tém, como afirmou a psicanalista Anna Freud (fi- Iha de Sigmund), “nenhum 6rgao executor do com- plexo de Edipo”. Na verdade, ambos os sexos viver um fracasso do- loroso das suas aspiracdes sexuais, nao tanto em virtu- de do proprio sexo, nem da intensidade social do tabu do incesto, mas em raz4o da realidade da incapacidade biolégica. Seus drgaos nao sao reprodutores (nao sao genitais, no sentido preciso), e existe uma diferenca real entre as geracdes que nao se pode ignorar, negar nem rter. A diferenca entre as geracdes, na qual se funda o complexo de Edipo da crianga, € “castrado- ra”, por implicar a conscientizacao da crianca da sua impoténcia relativa na escala humana das coisas. Esse complexo de castracao pode manifestar-se por uma sé- rie de representacdes. E sentido na forma de um golpe A Fase 04 Qerenta;Ao £ pa BaAzoRa no narcisismo ou no sentimento de poder da crianca e representa um tipo de perda que recapitula as angus- tias suportadas em todas as experiéncias de separacdo precedentes. Se a “tragédia benéfica” (assim chamada porque sentida pela crianca como uma tragédia, mas com um efeito benéfico para a sociedade) do complexo de cas- tracdo € aceita e assimilada pelo ego da crianga, ela ] ray 4 repressdo primordial da sexualidade infantil e a aquisigao de uma subjetividade mais “madura”. O me- nino reprime a sua aspiracao edipiana de que a mae seja o seu parceiro sexual e forma uma identificacdo com o pai como modelo de objetivo adulto. Ao fazé-lo, ele interioriza o malogro do complexo de Edipo como proibicdo, que constitui a base da aceitagado do fato so- cial das leis, das regras e das relacées de troca. E nes- se periodo que a crianca aprende as normas sociais e também as normas da lingua, do didlogo, da razao e o adiamento da satisfagao (e a experiéncia desnorteante de topar com esse mundo de regras, trocas, reciproci- dade e “selvageria” domesticada fica evidente no fas- cinio dos meninos pelo jogo Pokémon e suas regras igualmente desnorteantes). As energias dos impulsos libidinais que impeliram a crianca através do curso de 31 PERYEASAC senvolyimento da sexualidade infantil sao reprimi- cf e tornam-se passiveis de sublimacdo por meio da educacdo, da cultura, das brincadeiras, dos esportes € das atividades sociais. A trajetoria da menina é diferente, pois, de acordo com Freud, 0 complexo de castracao € que a leva ao complexo de Edipo. Ela deixa de buscar o objeto ma- terno, distancia-se da mae e se lorna a “garotinha do ai”, eslorcando-se para que © pai lhe de atencao e para satisfazé-lo. Isso € igualmente reprimido, e tam- bém a menina aceita a idéia de uma lei social e de um codigo moral na forma de um superego ot cria uma série de equivalentes do amor do pai, que precisam ser conquistados por meio da sedugao. Ja perto do firn da vida, Freud observou que as suas explanacdes sobre 2 feminilidade estavam incomple- tas. Muitas analistas propuseram correcoes € aprimo- ramentos da teoria freudiana da sexualidade feminina. Embora as diferencas entre 0s sexos continuem sen- do um tema muito controvertido, existe ainda entre os psicanalistas 0 consenso de que o padrao de uma sexualidade infantil ativa que sucumbe a repressao € mais tarde ressurge na puberdade é uma caracteristica fundamental da sexualidade e que esse carter difasico 32 A OF USTEN IAA EBA DACA, da sexualidade humana é crucial para o entendimento das neuroses e das perversoes. E o que dizer da significacao da erotogénese de ou- tras fungdes somaticas na primeira infancia? A catexia libidinal do corpo inteiro, da coordenacao motora do sistema muscular mabilizado ao engatinhar, ao apren- der a ficar ereto e ao andar, do controle motor fino exigido na escrita, do ouvido como orgao de recepcao, todos sao experiéncias somaticas e do ego importantes na primeira infancia, Em 1938, Freud concluiu que o corpo inteiro era de fato uma zona erogena.” No entanto, talvez seja mais significativo o fato de que o desenvolvimento ao longo das fases pré-genitais seja ndo apenas somatico mas psicologico, no sen- tido de que as representagdes e as fantasias de cada fase organizam-se em torno da pulsao epistemofilica e da sua curiosidade pelas “teorias” ou “investigacoes sexuais infantis”. Essas sao as solucdes conceituais das criancas para a duvida imatura quanto 4 origem dos bebés e ao carater do relacionamento dos seus pais, e trata-se de hipoteses fundadas na experiéncia do seu auto-erotismo. E impressionante como essas investiga Ges intensas da infancia, freqtientemente comprova- das pelos pais ou responsaveis, sao esquecidas na ado- PERVERSAD lescéncia. Um ponto sustentado pela psicanalise € que essas idéias e solugdes arcaicas permanecem ativas no subconsciente e, alias, podem formar a base das per- versoes adultas. SABER E NAO SABER: AS TEORIAS SEXUAIS DAS CRIANCAS As “teorias” ou hipoteses sexuais das criancas sao os equivalentes conceituais das experiéncias fisicas in- tensas relativas as zonas erdgenas. Nao se pode separar © pensar do sentir, e na infancia as sensagdes carnais sdo muito parecidas com as sensacdes emocionais. Na primeira infancia, a fusao do ego e do id (pulsdes) cria representacoes em que as impressdes semsoriais sao permutaveis — sinestesia. O ego em desenvolvimento é que separa o som da visao, o sofrimento emocional da dor fisica, a angtstia do desconforto no corpo e assim por diante, 4 medida que ele se separa do id e separa o eu do nao-eu. O papel desempenhado pelas situacoes cognatas, ou fantasias, das teorias sexuais infantis é es- sencial nessa “selecdo” do eu e da realidade externa. Mais uma vez, encontramos essas fantasias nas nar- rativas, nos quadros € nas situacdes da vida adulta e na cultura. Embora as fantasias cedam, como a sexualida- 34 £ Nio Gras BAS Grisncas As Teor de infantil, a repressdo e 4 amnésia infantil, elas conti- nuam ativas no inconsciente. O ensaio de Ernest Jones sobre as pinturas da Anunciacdo renascentista exem- plifica uma das teorias sexuais vigentes na fase anal: a concepcao através do ouvido por um pum, o que soa como um absurdo gritante para a mente adulta.? Exis- tem muitas outras historias ligadas a postura de ovos (teoria cloacal), ao barro (Génesis) e as nadegas (sodo- mia) que gravitam ao redor da fase anal, As fantasias relativas a oralidade sao onipresentes tanto na cultura como nas brincadeiras infantis. Freud observou que a angustia de castracao pode provocar uma regresséo a uma fase anterior e, ao descrever 0 caso de um menino que adquiriu o medo de ser comi- do pelo seu pai, afirmou: Neste momento € imposstvel esquecer uma passagem antiga da mitologia grega que conta que Crones, o Velho Deus-Pai, engoliu os filhos e tentou engolir o filho mais novo, Zeus, como todos os outros, e que Zeus foi salvo pela astucia da sud mde & depois castrou o pai. Numa versao mais recente dessa fantasia, percebe- mos no filme Tubardo o frisson e a vibracdo por cau- sa da nossa identificacao com o tubardo assassino e an PeRVERSAO com os corpos humanos sedutores que ele devora. Do mesmo modo, o homicida canibal do filme O Siléncio dos Inocentes € uma figura ambigua de apetite e refina- mento. Ele devora as vitimas e também se oferece para ser incorporado pela detetive jovem que esta “no caso dele”. O pai edipiano pervertido do filme Veludo Azul, do cineasta David Lynch, € associado, na trilha sonora e na pelicula, com a avidez infantil, com comida de bebé e com necessidades fisicas excessivas. O cinema tem um jeito especial de representar fantasias perverti- das ou pré-genitais, especialmente as da oralidade e da angustia de castracao. Voltaremos a abordar esse aspec- to em mais detalhe (paginas 43-53). A exposicao do psicanalista anglo-paquistanés Ma- sud Khan sobre as fantasias orais existentes na perversao faz mencao a teoria de Sandor Ferenczi em “Confusion of Tongues between the Adult and the Child” [Confu- sao de Linguas entre o Adulto e a Crianca} (1919), na qual ele revela a diferenca entre a sexualidade infantil, que fala a lingua da ternura, e a genitalidade adulta, que fala a lingua da paixao. As fantasias da [ase falica séo confundidas facilmen- te com as da genitalidade, porque em geral se referem ao genital (masculino), mas é importante diferenciar a 36 ideghnfantil de um falo “sozinho e poderoso” da expe- riéncia adulta do pénis como 6rgao reprodutor capaz de transformar 0 homem em pai Os filmes e as historias para criancas sao uma fonte fértil de representagoes das fantasias falicas, e uma bus- ca rapida resulta numa lista farta de exemplos. Harry Potter, com sua vassoura Firebolt, salvando Griffindor (a casa em que ele estava no internato) ao vencer uma partida de “quidditch”, é uma historia de triunfo falico sem ambigiiidades.'’ Os episddios de vdo em Peter Pan, Aladim, Dumbo, Mary Poppins, Se a Minha Cama Voasse, O Calhambeque Magico ou até em Biggles sao fantasias semelhantes. Embora as fantasias com v6o possam ter muitos significados, nao ha duvida de que o aspecto falico, sexual, é um dos componentes do prazer excitado da ascensao. No seu ensaio “The Manic Defence”!® [A De- fesa Maniaca], Winnicott conjetura que a idéia do “as- censional” pode ser usada, na defesa maniaca, numa série simplificada de oposigdes diddicas em que ela se contrapde aos sentimentos intensos do luto e aos pensamentos depressivos. Ele também afirma que a representacao crista da crucificacdo da forma ao afeto doloroso dos pensamentos depressivos, ao passo que o 37 PrRVERSAD movimento “ascensional” da Ressurreicaéo tem um sig- nificado falico inconfundivel. A VISAO COMO CONHECIMENTO Como a fase falica é também o periodo em que o instinto escopofilico esta no apogeu, € interessante analisar por esse prisma © carater sexual das historias de detetive, cinematograficas ou literarias. Os detetives do sexo masculino, como os de Emil and the Detectives’, Tintim — 0 reporter-detetive —, os escoteiros de Baden- Powell aprendendo a identificar as pistas visuais dos mistérios da natureza, garotos com lupas 4 procura de mistérios para solucionar ou o detetive particular do film noir, cujos mondlogos em off indicam que ele de- tém © ponto de vista onisciente da camara, sio todos belos exemplos da curiosidade intensa, ou epistemofi- lia, da fase falica. O fato de nao haver nenhum objeto visivel para o garoto edipiano investigar na sua tentativa de conhecer 0 outro sexual faz a rotina escopica um tanto mais frus- trante, excitante e significativa. A escopofilia torna-se o = Bymil e os Detetives foi uma refilmagem americana de 1935 do filme alemao Emil und die Detehtive. Emil é um garoto que reune “detetives” mirins para cacat o homem que 0 roubou no tem para Berlim. A Disney lancou a sua versio em 1964, ¢ os alemaes mais uma, em 2001. (N. do T.) intermediario da curiosidade e a rotina visual passa a ser perseguida como se fosse um campo de provas e ou de conhecimento. A fase falica, pode-se dizer, abomina enigmas. O mistério deve ceder lugar a mestria. Eas fantasias das meninas? Na fase falica existe uma predisposicao para a inveja do pénis, em que as meni- nas se perguntam se nao prefeririam ser meninos — ou melhor, séo dominadas temporariamente pela convic- cdo de que prefeririam ser do sexo masculino ou ter 0 que os meninos tém. A curiosidade sexual da menina edipiana encontra um objeto bem visivel no pénis do pai, o que pode permanecer no inconsciente da mulher adulta hete- rossexual como uma sensacéo de que os homens saéo indescritivelmente magnificos. A inveja do pénis dimi- nui a medida que o complexo de Edipo se instala e as meninas podem redescobrir 0 “encanto” das mulheres, da sua mae e da idéia de ter um bebé. O lado exibicio- nista da pulsdo escopofilica é quase sempre t4o forte quanto o voyeuristico, as vezes ainda mais, e as meni- nas podem ficar preocupadas com a aparéncia, com a questao de serem ou nao bonitas ou sensuais, embora a definicdo da menina dessas particularidades raramente seja a mesma que a do adulto. wo Oo PERWERSAO. A teoria de Freud do monismo falico levou-o a acreditar que as meninas € os meninos seguissem cursos de desenvolvimento idénticos na fases pré- edipianas € que ambos os sexos entrassem na fase falica com a crenca de que todos os humanos sao dotados de pénis. Segundo Freud, foi a descoberta na infancia de que as meninas, as mulheres ou as maes nao tém pénis ~ descoberta feita com os olhos — que precipitou o complexo de castracao ¢ criou a anguistia de castragao. Nas meninas, a anguistia foi uma reacdo a descober- ta de que elas eram castradas, € nos meninos a angus- tia poderia oscilar entre “prestes a ser castrado”, uma ameaca, ou ser castrado, a transigao para o interesse pela realidade externa. Essa teoria do monismo falico foi interpretada de maneiras diferentes por analistas posteriores a Freud, e alguns, como a filésofa feminista francesa Luce Lriga- ray, declararam que a teoria € em si a expressao de uma “teoria infantil” masculina, que reafirma a inexisténcia em lugar da diferenca. Das muitas fantasias que gravitam ao redor da fase falica, algumas das mais interessantes, do pon- to de vista cultural, sao as que se manifestam pelo 40 fetichismo da perversdo. No fetichismo existe uma inter-relacao complexa entre um sistema de pensa- mento conhecido por negacao — baseado numa for- ma de clivagem defensiva do ego entre a percepcao sensorial e a crenca, uma atividade erotica ou pra- tica sexual que associa a presenca de um fetiche a uma fantasia particular imprescindivel para o orgas- mo —e uma estrutura aletiva que dita a experiéncia emocional do fetichista diante do objeto de fetiche e outras pessoas. Existem muitos textos psicanaliticos sobre a anali- se ¢ 0 tratamento do fetichismo, embora em geral se acredite que o fetichismo, sendo uma solucao imagina- ria para uma dificuldade humana universal, raramente seja visto pelos fetichistas como um problema. Se os exemplos de Freud da preferéncia sexual fe- tichista acarretavam uma explanacdo sobre os homens que cortavam o cabelo de mulheres (“coupeur de nat- tes") e os homens que consideravam certos tipos de “nariz lustroso” indispensaveis para a excitacao sexu- al, hoje temos sex shops nas ruas chiques, vestudrio de bondage na moda convencional ¢ fetichismo como Em francés no original: “cortador de wangas”. (N. do T.) Perversac ingrediente indispensavel de fim de noite na TV. O in- dividuo fetichista costuma recorrer ao alamento ana- litico por algum outro “problema do momento”, e se descobre o fetichismo no decorrer da terapia. Além de considerar 0 fetichismo, nos seus Ensaios sobre a Sexualidade, uma forma de perverséo, Freud voltou ao tema em 1927 num ensaio curto intitulado “Fetichismo”!” e em 1938, no artigo inacabado “A Divisao do Ego no Processo de Defesa”'*, publicado postumamente. No ensaio de 1927, Freud enfatiza o papel da negacio, mostrando que a escolha do objeto de fetiche € comumente ditada por alguma percepcao sensorial anterior a visdo dos genitais fe- mininos que motivaram oO pavor da castracdo. O fe- tichifhega essa percepeao dos genitais femininos, “agarra” (para usar a metafora de Freud) outra parte do corpo e atribui a ela o papel do pénis. “Em geral é algo que ele de fato viu no momento em que viu os genitais femininos, ou algo que sirva convenien- "9 afirma Freud, e temente de substituto do pénis” assinala que o fetiche indica a intencao do sujeito de destruir a evidéncia que possibilitaria a castracao. O ironico é que o fetiche simboliza a uniao genital que ele proprio também tenta negar. UM EXEMPLO CULTURAL: O FETICHISMO E O PUBLICO DE CINEMA, O TEATRO DAS SOMBRAS Por que usar um exemplo cultural do cotidiano para ilustrar a sexualidade “anormal”? Esse exemplo pode ajudar a perceber a universalidade da sexualidade per- vertida e a compreender a sexualidade no sentido mais amplo de uma atividade libidinal que esta presente no dia-a-dia e em formas de pensamento bastante comuns e “normais” Quando examinamos bem um filme, a sexualidade infantil nado € nem uma inyencao cientifica esquisita do século XIX nem algo que precisemos observar no comportamento dos nossos filhos. A sexualidade in- fantil esta em evidéncia de formas variadas, sublimada na cultura ou nao sublimada no comportamento dos amigos, da familia, dos comparsas (no crime ou nao) e também no nosso. O inconsciente, conforme Freud o descreveu, esta ativo em qualquer parte, e a psicandlise, afirmou ele, é apenas uma técnica especial de observa-lo em acao e as vezes pode até influenciar o andamento da sua atividade. A platéia do cinema é€ outro lugar para observar a atividade da mente, embora seja menos PERVERSICS provavel que ela tenha um efeito tao grande quanto a psicanilise. Nao precisamos sair a procura de uma arte “refinada” ou uma cultura “superior” para encontrar a grandiosida- de do id. Nem precisamos procurar filmes com um tema erotico evidente para constatar a atividade libidinal. Na verdade, é muito mais revelador pegar formas bem po- pulares, como musicais, comédias, filmes de terror, fic- cdo cientifica ou suspenses, para encontrar os melhores exemplos da psique em acao. O filme de terror, a forma cultural predileta dos surrealistas, tem monstros do id que mexem conosco tanto quanto os da mitologia grega e sdo to significativos quanto os sonhos lembrados num ambiente analitico. Algumas pessoas aplicaram de varios modos as idéias psicanaliticas a critica cinematografica, e nao é dificil achar os livros delas. Existe nessa area um debate em torno do uso do conceito de fetichismo que vale a pena investigar, pois demonstra a onipresenga da perversao na vida cotidiana. O conceito de fetichismo foi amplamente usado na teoria cinematografica para entender o carater prazero- so e persuasivo da identificagao dos espectadores com o cinema. Christian Metz, estruturalista francés que criou a teoria moderna do cinema, trocou a semidtica 44 Uni Beeneco Cur Lt © Fencuéwo € O Puriicg oF Qivens, 4 Tearko ong Gomapas pela psicandlise e se inspirou muito nos psicanalistas iranceses Octave Mannoni e Jacques Lacan. Ele apre- sentou uma teoria analitica do cinema no seu livro The Imaginary Signifier: Psychoanalysis and Cinema*® [O Sig- nificante Imaginario: Psicanalise e Cinema]. Metz no- tou que nao se encontrava um uso apropriado da teoria psicanalitica na “andlise” dos “autores” de cinema (di- retores, produtores, cinegrafistas etc.) nem na analise das personagens da ficcéo, nem mesmo nas historias contadas pelo cinema (as narrativas ou os roteiros), mas que essa teoria ajudaria a entender os mecanismos de identificacdo que “ligam” o espectador ao espetaculo —a interacao das identificagdes primarias e secundarias no aparelho psiquico e no aparato cinematografico. Depois de uma descrigao do conceito de Freud da construcdo onirica e de uma comparacao entre o sonho e o cinema, Metz volta-se para a metapsicologia para entender o [etichismo e a negacao, e escreve: Desde o famoso artigo de Freud que apresentou o proble- md, a psicandlise tem ligado intimamente o fetiche e 0 fetichismo a castracdo e ao medo que ela inspira. A cas- tracdo, para Freud ¢ até, com mais clareza, para Lacan, é acima de tudo a castragdo da mae, e € por isso que as i a PERVERSAC, figuras principais que ela inspira sao em certa medida comuns para criancas de ambos os sexos. A crianca que vé o corpo da mae é compelida pela percepcao — pela “eyidéncia dos sentidos” — a aceitar que existem seres humanos sem pénis, Mas por muito tempo —e em algum lugar dela, para sempre — a crianca ndo interpreta essa observacdo inevitavel como uma diferenca anatomica entre os sexos (= penis/vagina). Ela acredita que todos os seres humanos tém pénis e, portanto, entende o que ela viu como resultado de uma mutilacdo, 0 que redo- bra o seu medo de ser submetida a um destino parecido (ou entdo, no caso da garotinha depois de certa idade, o medo de ja ter sido submetida a ela). Por outro lado, exatamente esse terror é projetado para o espetdculo do corpo da mae e¢ insliga a interpretacao de uma auséncia no local em que a anatomia vé uma diferenca. A situa- cao da racdo, em linhas gerais, ndo € diferente se alguém a entender, como Lacan, como um drama essen- cialmente simbélico em que a castragdo assume, huMa metdfora definitiva, todas as perdas, tanto reais quanto imagindrias, que a crianca Ja sofreu (0 trauma do parto, o seio mateo, os excrementos etc.), ou se, do contrario, alguém tiver a propensdo, como Freud, de interpretar aquela situacao um pouco mais literalmente.** 46 Un B 0 DE Cuca, @ TEATRO DAS De acordo com Metz (e outros), a estrutura cogna- ta da negacao que consiste na oscilagéo entre as duas partes divididas do ego se expressaria, caso se pudesse verbaliza-lo, na forma de “eu sei, mas”, que é a carac- teristica da “representacao” na perversdo. A negacao €, assim, outra defesa que surge para manter separados os dois componentes cindidos da conexao cortada. No comportamento pervertido, um drama hostil pode ser realizado enquanto o protagonista permanece “alheio” ao sentido do que ele esta fazendo ou “representando”. Por exemplo, uma pessoa que seja promiscua pode afir- mar que essa é uma forma de liberdade sexual que nao é da conta de ninguém, mas pode também reconhecer tacitamente que a mdgoa ou a decepcao provocada nos outros € uma condicao indispensavel do prazer. O pa- pel do inocente sexual que esta apenas se desinibindo ese “libertando” € uma representacao de um drama de hostilidade e vinganca. O processo de negacao que possibilita a suspensao da descrenca é indissociavel da nossa participacao na cultura em geral. Ao ler romances, © leitor “desconsi- dera” a materialidade do texto e da sua producao a fim de mergulhar na ficcao apresentada — assim como num teatro o arco do proscénio forma uma moldura que sim- PraveRSaO. boliza a separacao da realidade fisica dos espectadores do espaco destinado a pega, que € encenada diante deles metaforicamente, dentro deles. Nessas duas formas Eli a materialidade do significante — sejam as pa- lavras impressas, sejam os atores no palco ~ € palpavel e compartilhada pela presenca concreta do espectador. Em todas essas formas, o fetichismo atua como uma moldura que divide as duas realidades — a da percepcao sensorial e a da crenca ficticia — € exterio- riza a cisio do ego. Outras formas de enquadramento, como a peca dentro da peca (por exemplo, Hamlet, de Shakespeare) ou o sonho dentro do filme (Quando Fala 0 Coracdo, de Hitchcock}, servem para reforcar a “realidade” da narrativa que compde a moldura em comparacao com a ficcéo que ela emoldura. O cinema se diferencia das outras artes dramaticas por ser menos material e mais imaginario. A experiéncia do espectador de cinema é mais proxima da experiencia subjetiva do sonho ou da alucinacao, pois os limites en- tre a realidade interior e a exterior se misturam. Foi isso que fez Metz chamar o filme de “significante imaginario” e classificar o modo de representar no cinema de analo- go ao modo de nega¢ao do aparelho psiquico. 48 Lo GucTurac: O Fer opeGnewn © TeaTRe DAS. Quando vamos ao cinema, adotamos dois tipos de olhar, que podem ser chamados de identificagao pri- maria e secundaria. A identificacao primaria diz respeito ao puro prazer de olhar para uma tela de brilho intenso ao mesmo tempo que, como numa regressao, se esta aninhado scuro, num ambiente aconchegante e num assento a Isso faz brotar a pulsao escopofilica, com o seu objeto inconsciente do corpo da mae e o seu potencial de plenitude imaginaria. A tela é um seio, que se ofe- rece 4 contemplacao de uma platéia transformada em “bisbilhoteira”, mantendo a excitagéo com 0 préprio ato de olhar. A identificacdo secundaria compreende a identifica- cao feita pelo ego de partes suas com as personagens retratadas na historia. Ela abrange nao so os herdis da historia, como seria de esperar, mas também os vildes, e se efetiva pelo modo como a narrativa se constroi convencionalmente, com uma gama variada de angu- los de camara, cada qual atribuido ao ponto de vista de uma personage ou dle outra. Existem inumeras iden- tificagdes secundarias, que podem ser inconscientes, mas sao representadas de acordo com a forma humana e consideradas narcisicas. PERvERSAO As feministas, seguindo Laura Mulvey”, desven- daram o modo como 0 cinema patriarcal do realismo classico de Hollywood reproduz a oposicao entre ati- vo/masculino/voyeuristico/sadico e passivo/feminino/ exibicionista/masoquista. O desenrolar da narrativa depende do objetivo ativo do impulso sadico “de fazer algo acontecer”, de controlar e de encenar, e também EJ olhar estatico, oscilante, fetichista, que suspende a acao e apresenta um mero espetaculo. A proporcao dos dois tipos de identificagdo varia conforme o cddigo de cada género. Notamos isso nos musicais, por exemplo, quando os didlogos sao interrompidos de repente por uma canca4o ou um numero curto de dan¢a e sao reto- mados em seguida. Mulvey desce a detalhes especialmente quando mostra como a representacao cinematografica das mu- lheres na narrativa classica depende da nogao de mu- lher como, significante da castracao. A mulher, observa a autora, nsformada em fetiche e dotada dos atri- butos falicos inexistentes, que a tornam a imagem da confianca em vez da imagem da ansiedade (ou seja, lin- da e nao assustadora) ou é punida simbolicamente por ndo té-los (isto é, subjugada na narrativa), o que resulta na preservacdo de um mundo ficticio em que a neces- GE Casa, o Teatro ons Senne sidade do voyeur de dominar é contida pela “lagica” mer" fase falica.”? O bisbilhoteiro que olha pela Janela imagina que a pessoa que esta tirando a roupa o faz para ele e se encontra magicamente sob o seu con- trole. O cinema possibilita isso a todos. O espectador fetichista esta ciente ao mesmo lempo do poder da ficedo e da técnica, do estilo do filme, da cinematografia, da cenografia, da iluminacao, do uso do som, da montagem, da intertextualidade, “pois o seu prazer se aloja no espaco entre as duas”. Embora esse prazer seja caracteristico do cinéfilo, do conhece- dor ou do critico de cinema, também é o de pessoas que simplesmente gostam de “ir ao cinema”, porque vao com 0 proposito de ser arrebatadas pelo filme e também para apreciar a técnica (os efeitos especiais etc.) que produz esse resultado, e, desde que ambas as experiéncias coexistam, elas classificam o filme de “bom” ou “bem-feito”. O fetichismo também se manifesta no cinema por meio do enquadramento. O proprio movimento da camara pode ser considerado uma série de enquadra- Mentos sucessivos, sentido em que o enquadramento é fundamental para o cinema, e nao apenas uma técnica especifica. Metz afirma: PERVERSAO O cinema de tema erético tira proveito propositalmen- te dos cantos do quadro e das revelagées paulatinas, se necessdrio incompletas, feitas pela camara a@ medida que se movimenta, o que ndo é acidental. A censura tem parte nisso, a censura ao filme e a censura no sentido freudiano. Sendo a forma estatica (enquadramento) ou dindémica (movimento da camara), 0 princtpio € 0 mes- do de outra e mesmo assim a produz), por meio de variacdes mo: a 5" é mexer simultaneamente com a excitagdo a sua ndo-realizacao (que € 0 contrdrio da infindaveis possibilitadas pela técnica da produtora na colocacao precisa da linha divisoria que impede 0 olhar, que impoe um fim ao “visto”, limita-o, que inicia o mer- gulho para cima ou para baixo na escuriddo, na direcdo do ndo-visto, do adivinhado.** O desejo e a sua irrealizacdo € uma das caracteris- ticas essenciais da perversdo. O pervertido, pode-se dizer, é um perito do desejo e da protelagao. O mo- vimento metonimico dos deslocamentos de enqua- dramento criam suspense, que é inseparavel da nar- rativa do cinema, mas também é usado como técnica especifica da cinegrafia nos filmes de suspense. O jogo de revelacdo parcial e contengao, ou protelacdo, 52 Qusis Sau as Qausas DA PERVERSEO? é analogo a estrutura metonimica do proprio desejo e, assim, € sexual, mesmo que o contetido dessas sequéncias nado seja erdtico. A nica diferenga é a pressdo ou o quantum de libido sublimado e nao su- blimado. Metz afirma: O modo como o cinema, com enquadramentos irrequietos lirrequietos como o olhar e irrequietos como a caricia), en- contra um meio de revelar 0 espaco tem alguma relagdo com uma espécie de despir-se permanente, um striptease genéri- m striptease menos direto mas mais perfeito, uma vez ta também permite voltar a vestir 0 espaco, retirar de vista o que ja se mostrou, reaver, assim como reter (como a crianga no momento do nascimento do fetiche, a crianga que Jd viu, mas cujo olhar bate em rdpida retirada): um suriptea- se pontilhado de flashbacks, seqiiéncias invertidas que dao entdo novo impeto ao movimento para a frente.°° QUAIS SAO AS CAUSAS DA PERVERSAO? Freud observou com relacdo aos impulsos pré-geni- tais e as leorias sexuais: Posso citar como os representantes mais importantes desse gru- poo desejo de provocar dor (sadismo) com a sua contrapartida 83 Penwencad passiva (masoquismo) e 0 desejo ativo e passivo de olhar, do primeiro dos quais se ramifica mais tarde a curiosidade ¢ do segundo, a impulsdo para a exibicdo artistica e teatral.?° As pulsoes pré-genital e pré-edipiana sao entao reprimidas e sublimadas ou passam a constituir a genitalidade adulta. Se algum aspecto da sexualida- de infantil, dos seus alvos e dos seus objetos torna- se fixo, as pulsoes perdem a mobilidade, nao conse- guem voltar-se para novos objetos e ficam empacadas. O mes specto do infantil continua ativo ¢ talvez ae funcao sexual do adulto, atuando junta- mente com ela, ou talvez até a substitua inteiramente. Portanto, algumas pulsdes pré-genitais podem nao se integrar a sexualidade genital e substituir os alvos da zona genital pelos seus alvos sexuais, o que Freud de- signa de perversao: Essas classes de disturbio constituem entraves diretos no desenvolvimento da funcdo sexual. Elas abrangem as per- versoes € 0 nada raro infantilismo geral na vida sexual.” Freud nunca esclareceu qual seria a causa da per- versao. Fle estava convencido de que a fixacao contri- 64 Sto 08 © eMUERSAD? buia para a perverséo, mas nao tinha certeza de que se devesse a uma zona erégena excessivamente ativa, a seducao (abuso sexual) na infancia ou a uma “degene- ragao” constitucional inata. Ao tentar determinar as causas da perversao, Freud comparou-as a neuroses e concluiu que, embora as perversdes e as neuroses tenham uma origem comum na sexualidadgeip fantil, as neuroses resultam da repres- sao malsuce: desses impulsos, ao passo que as per- vers6es, por assim dizer, ignoraram a repressdo e foram resultado de uma integracdo falha. As neuroses, achava ele, eram o “negativo” das perversées. O destino das pulsdes pré-genitais é ser reprimidas e sublimadas ou se subordinarem, apos a puberdade, a ‘on voltada para a unido sexual e a intimida- de ponentes das caricias preliminares, da seducéo e do a pessoa amada, depois do que se Llornam com- galanteio que leva a sexualidade propriamente dita. Sobre a relacdo entre a sexualidade infantil e a adul- ta, Freud declarou: Parece que nenhuma pessoa sadia deixa de fazer um acrés- cimo ao alyo sexual normal que se possa chamar de per verso; € a universalidade dessa descoberta é em si suficiente PerveRséa para mostrar qudo inadequado €¢ 0 uso da palavra perver- sdo como um termo de reprovacao.”* Do mesmo modo, talvez a homossexualidade e 0 lesbianismo facam parte da heterossexualidade e se diferenciem apenas na forma latente e explicita que assumem, no sentido de definirem ou ndo uma sexua- lidade. QUAIS SAO AS DEFINICOES DE PERVERSAO APOS FREUD? * Oensaio de Freud de 1938 intitulado “A Divisao do Ego no Processo de Defesa””? mostrou-se um ponto de partida para outros psicanalistas. Melanie Klein tomou a idéia de cisao defensiva e achou que ela se originasse num periodo bem anterior, logo depois do nascimento. Essa interven¢ao redefiniu a cronologia das fases libidi- nais, do complexo de Edlipo, do superego e das origens da anguistia de castracao. £ fundamental para a teoria de Klein o preceito de que a infancia nao s6 € auto-erotica e narcisica, mas também comprova a existéncia de um “mundo inter- no” mental complexo, que existe desde o nascimento e pode ser descrito como “relacdes de objeto”, uma vez 56 Quaus S10 as Drre $ De Penversag Aros Freus? que o bebé tem representacées internas das suas rela- ces Com pessoas e coisas significativas. O objeto central da mente do bebé € a mae (ou par- tes dela), que tanto é fonte de um objeto bom como esta sob ameaga constante de ser destruida pelos ata- ques sadicos primitivos do bebé. O ataque a mae, que ocorre na vida fantasiosa do “mundo interno”, € um ataque ao eu e cria uma angustia imensa. As anguistias mais precoces sao andlogas aos estados mentais presentes nas psicoses. Klein chamou-as de esquizoparandides € as comparou com o estado mais desenvolvido em que o bebé reconhece as conseqiién- cias da sua agressdo e as lamenta, numa tentativa de repara-las — posicao depressiva. A alternancia entre as posicdes esquizoparandide e depressiva foi sempre uma caracteristica da vida men- tal. A ciséo e a projecao foram consideradas defesas primarias da posicao esquizoparandide, ao passo que a posicao depressiva possibilitava a criatividade. Embora Klein nunca tenha elaborado uma teoria da perverséo propriamente dita em sua obra, ela in- vestigou, por meio da analise infantil, o campo que Freud chamara de teorias sexuais das criangas e se interessou particularmente pelo desencadeamento SF PrAvERSACG precoce do sadismo na forma de exteriorizacao da pulsdo de morte. O psicanalista Robert Hinshelwood assinala: Klein descobriu que os componentes sddicos bastante real- ¢ados nas criancas pareciam-se com as modalidades de sa- dismo encontradas na criminalidade adulta. Mais adiante, os kleinianos tenderam a considerar todas as perversdes manifestacdes da pulsao de morte — impulsos que distorcem a sexualidade.® A obra de Klein foi polémica e também influente, € os analistas que trabalham nessa linha tém usado os conceitos dela para explicar certos tipos de negativida- de persistente, como a sexualizacdo autodestrutiva da pulsao de morte. Arthur Hyatt-Williams, na sua obra monumental e comovente Cruelty, Violence and Mur- der*! [Crueldade, Violéncia e Assassinato], que enfoca o seu trabalho de vida inteira com detentos como as- sassinos seriais, homicidas, estupradores, sedutores de criangas e viciados, aplica a andlise da criminalidade a teoria kleiniana da pulsao de morte e sua exterioriza- cao na forma de agressao. Ele descobriu no homicidio sadico evidéncias de uma fantasia pervertida em que o 58 be Penversio Apas Freuo? Quss Sic s orgasmo é equiparado a destruicdo ou aniquilagao da idéia de um bebé ou de uma crianca. Nesse caso existe um sentido de geracao no sexo, idéia tao intoleravel fie atacada de maneira excitada e sexualizada. = que a maioria das pessoas “normais” tem dificuldade er aceitar a idéia da sexualidade dos pais. Hyatt-Williams observa também que uma expe- riéncia traumatica de desumanizacao brutal em geral faz parte da patologia do assassinato e da violencia se- xual. Ele revela ter fundamentado o seu trabalho nas pris6es nos mesmos principios que os tratamentos mais convencionais de pessoas menos dificeis. A controvérsia com relacdo a obra de Klein resu- me-se 4 sua idéia de que os bebés, desde o nascimen- to e até antes, tem um “mundo interno” complexo que interage com as influéncias externas para criar um sujeito humano. Varios psicanalistas, como Win- nicolt, sao contrarios a essa idéia, que em sua opi- nido atribuiria aos bebés uma organizacdo psicologi- ca muito complexa em tao pouca idade. Para eles, a psique evolui gradualmente, 4 medida que o bebé se relaciona com o ambiente, A principio, o bebé é o objeto da mae e depende totalmente do amor dela, que forma o meio ambiente a a Pemvensé dele. Por causa da sua necessidade de participar desse meio, o bebé desenvolve um mundo de representacées complexo. Essa linha de pensamento originou uma ex- plicacao diferente das origens e da génese da perver- sao, como a de Masud Khan, a qual faz parte de um en- tendimento mais amplo existente na cultura britanica desde a Segunda Guerra Mundial, o da significacdo da dependéncia inicial dos bebés em relacao as maes. A obra do psicanalista e psiquiatra infantil John Bowlby sobre 0 apego, a separacao e a perda, ba- seada na primatologia e nos estudos com bebés e maes, também se concentrou no desenvolvimento da subjetividade apds uma dependéncia inicial. O trabalho de Bowlby resultou na sua teoria do apego, que parte de uma fundamentacao do entendimento da natureza da infancia bem diferente da utilizada por Klein. Bowlby nao deixou uma teoria da perver- $40 propriamente dita, mas notou que quase sempre existia um comportamento sexual improprio quan- do as relagées de apego nao se haviam desenvolvido a 7 ou tinham sido interrompidas ou co s. Assim, a sexualidade pervertida passou a ser vista como sintoma de um abalo inerente as rela- cées de confianca e seguranca. 60 Quis Sao 48 Devin te RErveRsAo Apts Frevn? Nesse caso, a perversao é tida como um modo distorcido de ter contato com os outros. Entende- se 0 apego como uma necessidade tao intrinseca quanto qualquer pulsao, necessidade que, embora instintiva na origem, torna o bebé dependente do ambiente externo para desenvolver um “mundo in- terno”, ou psique. A teoria das relacdes de objeto e a teoria do ape- go influenciaram bastante a psicandlise nos ultimos 50 anos, é certos analistas, como Winnicott, beberam nas duas fontes. Para os analistas mais contemporaneos, nao se pode explicar as perversdes apenas pela teoria das pulsdes, como uma regressao ou uma fixagao em impulsos pré-genitals e zonas erogenas especificos ou fantasias — embora esses desempenhem um papel sig- nificativo —, mas é preciso reconhecer o seu importante aspecto dinamico, que se relaciona com a estrutura do ego de modo mais amplo. Para Robert Stoller, a perversdo é uma “modalida- de erdtica da agressividade”, peculiaridade que, afir- a ele, é comum a todas as perversdes. Os sintomas da perversao sao resultado de angustia e uma resposta a um ataque a identidade sexual do individuo, a sua masculinidade ou feminilidade. 61 Penvraso, Ainda que a aquisigao da sexualidade acarrete frus- tracao e angustia, ndo se trata de uma frustracdo e uma angustia iguais as que estao por tras dos sintomas da perversao. Se a agressividade € a reacao a uma disfuncao determinada do ego (voltada para dentro, como o ma- soquismo, ou para fora, como a agressao ou o sadismo), ela se torna pervertida quando essa defesa é investida pelos impulsos sexuais, sobretudo os impulsos regres- sivos parciais infantis. Portanto, o estupro ¢ um ato de controle e de violéncia que usa os drgaos sexuais, e nao apenas um ato sexual particularmente agressivo. Nos seus estudos minuciosos de transexuais, traves- tis e pornografia, Stoller localiza as origens do com- portamento pervertido no trauma que fez surgir a hos- tilidade e a necessidade de vinganca. A perversao é a iniciativa para controlar o trauma original ou vingar-se dele. Stoller também analisa o componente sexual dos atos criminosos, mesmo que os sintomas nao sejam explicitamente erdticos, ao descrever 0 tratamento de uma mulher para quem o roubo tornou-se uma ativi- dade constante e habitual, sem prazer erotico, embora 0 “arrombamento e a invasdo” livessem no seu incons- ciente uma conotacao de relagao sexual, a qual ela nao percebia conscientemente. 62 Qua Sad as Deringtes ne Peaversio Apos Fre io? Stoller concentra-se no carater precario da mascu- linidade, como se ela precisasse de protecao. Talvez se trate de uma peculiaridade das perversdes masculinas, tal qual ocorre no caso do exibicionista que ¢ preso vezes seguidas pela policia. Stoller afirma: Mesmo que seja preso, [0 exibicionista] sente uma tran- qiiilidade peculiar porque a detencdo indica que ele tem de fato um pénis otimo, suficientemente potente para criar essa perturbacao na sociedade, Nao admira que o indice de prisdes de exibicionistas seja mais alto que o de qualquer outra perversdo. Nao deveria ser dificil entender que 0 exi- bicionista faz as coisas de tal mado que a sua probabilidade de ser pego seja maior que a de qualquer outro pervertido. Ele procura estar a salvo ndo da policia, mas do pavor in- terno de ser um homem desprezivel.” Embora tenham existido culturas em que a homos- sexualidade era disseminada, aceita e “de regra”, essa nao é a norma psicologica, E, ainda que existam tri- bos que, para conservar a tradicdo da cultura guerrei- ra, atribuem uma agressividade extrema a identidade masculina, fazendo-o por meio de ritos de passagem homossexuais € sadicos, Stoller afirma que a norma 63 Prrvensaa psicoldgica nao é essa. A aceitacao oua proibicao social de configuragdes psiquicas especificas nao governam o mecanismo psicoldgico de repressao e desenvolvimen- lo, mas apenas permitem essa manifestacdo ou expres- sao particular. A explanacao de Stoller sobre as racionalizagdes an- tropoldgicas e pseudocientificas em favor da tolerancia com a sexualidade pervertida ou “variante” € muito es- clarecedora e ressalta que elas invariavelmente supri- mem o significado da fantasia, reduzindo a sexualidade a biologia ou a comportamento social. Existem muitos textos sobre o tratamento psicana- litico do fetichismo, entre os quais o ensaio de Masud Khan intitulado “Fetish as Negation of the Self”? [Feti- che como Negacao do Eul é elucidativo e mostra o seu enfoque mais amplo da perversao. Ao situar o fetichismo na sua teoria geral da per- versdo, Khan identifica as caracteristicas fundamentais da perversao associando o conceito winnicottiano de desenvolvimento do ego e as atividades reparadoras do bebé em relacdo ao ambiente a uma série de teorias pos-freudianas. Kahn relaciona o fetiche com o que Winnicott designa de “fendmenos transicionais”. O objeto transicional é a primeira tentativa do bebe de 64 Quas Sao.as Dennigoes De Penvers § Freuo? criar um simbolo de um nao-eu e ganha sentido coma percepcao subjetiva que o bebé tem desse objeto ina- nimado, por meio do tato ou do olfato. O objeto nao € nem destruido nem rejeitado, mas simplesmente perde ofshificado quando nao é mais necessdrio ou quan- do 0 apego precisa ser transformado em relagdes com outros. A possibilidade de o fetiche receber de objetos transicionais parte do seu sentido permite-nos aceitar a existéncia de uma relacdo continua entre as estrutu- ras pré-edipianas e edipianas ¢ interpretar a angustia de castrac¢éo como uma recapitulacdo de angustias de separacao anteriores. Khan investiga a perversao na sua funcdo de tati- ca de intimidade, uma alienacao do eu, uma forma de representacdo e uma forma de idealizacao e idolatria do eu. A idealizacao é uma interiorizacdo da percepcao que a crianca tem de si mesma como 0 “objeto subje- tivo” idealizado da mae na sua relacao inicial com ela. Ele entende que um fator comum a todas as perversoes € uma relacao patogénica com a mae e define a per- versdo como uma tentativa do ego de encontrar uma solucdo reparadora para a falha ambiental no desenvol- vimento inicial do ego, Ele descreve o sexo pervertido como “trepar por intento, nao por desejo” e o relaciona om Perverisacs com a necessidade do pervertido de interpor entre ele e€ 0 outro uma tatica de intimidade e também com a vivéncia de uma submissaéo emocional. O pervertido relaciona-se nao com outra pessoa num encontz}ntersubjetivo, mas com um cumpli- ce tratado como objeto subjetivo e coagido a repre- sentar a situacao fantasiosa do pervertido. A neces- sidade de coagao é uma manifestacdo da necessida- de do pervertido de controlar e desagradar 0 outro, o que levou Khan a chamar o relacionamento da perversao de “contrato” e nao intersubjetividade. Ele é repetitivo e imutavel e propicia a reapresenta- cao sem fim de uma narrattva fantasiosa especifica (pré-genital). Os pervertidos interpdem um objeto, uma fantasia, um drama ou um fetiche entre eles e o seu objeto de desejo. Heinz Kohut € outro psicanalista que adapta a teo- ria econdmica freudiana da perversao a um conceilo mais amplo de desenvolvimento do ego. Ele assinala que um dos pontos interessantes citados pelas pes- soas que gostam de atividades pervertidas é a intensi- dade do prazer sentido por elas, muito maior do que a mera sexualidade genital e 0 orgasmo, Ele conjetura © motivo disso. 66 Quss Sao as D: ate PERVERSAD Anos FREUD? Estou insinuando que as perversdes precisam de uma ex- plicagao que leve em conta os aspectos latos da persona- lidade total. Existem fendmenos psicologicos mais amplos que talvez possam ser definidos mediante a andlise do desenvolvimento do impulso, da fixagao do impulso e da regressdo do impulso, mesmo que consideremos a intensi- dade da experiéncia edipiana e da regressdo em relacao a ela em resultado de uma angustia de castracao intensa ou conflitos de ambivaléncia [...] nao acredito que o de- samparo do ego em face da ansia pré-genital viciadora ou 0 cardter intenso e irresistivel da experiéncia Prazerosa possam explicar tudo isso.>* Kohut esclarece que se refere a uma sindrome psi- cologica estruturada e nao ao deleite com os prazeres pré-genitais e que tais sindromes em geral fazem parte de uma série de sintomas, nao existindo isoladamente, Afirma ele: Cheguei & conclusdo de que certos complexos, sindromes, de sintomas pervertidos podem ser explicados [...] como varies sexualizadas de falhas estruturais. Em outras palavras, a fatha estrutural (@) explica a fraqueza singular diante da dnsia e () explica, menos significativamente, a Gr PERYERSAO intensidade da necessidade. E me parece que, num vicio ou numa perversdo, a intensidade da ansia néo se explica nem pela falha estrutural em si nem pela fixacto ¢ regressado pré- genitais em si, mas sim pela convergencia de ambas. E a con- vergencia do acréscimo de prazer sexual da pulsdo parcial pré-genital e da necessidade irresistivel de suprir uma falha estrutural que torna a dnsia tao intensd e tao irvesistivel.” Aexplicacdo de Kohut tem muitos pontos em comum com o enfoque winnicottiano encontrado na obra de Khan, na medida em que ambos atribuem uma fungao reparadora a acao pervertida. Onde Khan vé a ternura ca- racteristica da necess infantil, Kohut vé a fraqueza do ego imaturo, que Toren satisfazer os requisitos da realidade nem encontrar a sua funcao de reprimir ou sublimar a pulsao pré-genital que emerge dele. A definicdo de Kohut de “falha estrutural” lembra a hipotese de Stoller de que o trauma é um compo- nente inerente da perversao. Kohut da o exemplo do homem que nao consegulu identificar-se positiva- mente com 0 pai, o que o deixou com uma vulnera- bilidade no “equilibrio narcisico” e uma necessidade de substituir a intersubjetividade por uma relacao amalgamada. 68 be Penvensao Aros Freun? Stoller também identifica no trauma a causa da BE vingan¢a, da hostilidade e do risco caracteristicos de todas as perversdes. Para ele, sobretudo os ataques a identidade sexual do sujeito ~ a sua masculinidade ou ferinilidade ~ podem ocasionar o aparecimento mais freqtiente da perversao nos adultos. Tanto Stoller quanto Kohut notam que as per- verses sao praticadas predominantemente por ho- mens, e Stoller faz especulacées sobre a vulnerabili- dade da identificagao sexual masculina, perguntan- do-se se os meninos teriam probabilidade maior de sofrer ataques traumaticos a sua masculinidade na primeira infancia. Mais recentemente, Estella Welldon, especialista no tratamento de perversdes na Clinica Portman, de Londres, lancou um livro sobre a génese de perversdes especificas de mulheres.** Como muitas teorias psica- aliticas concorrem para identificar a causa da perver- CT. na criacdo do filho pela mae, é cabivel descobrir as causas da maternidade patogénica. Welldon argumenta que a maternidade é uma fungao que pode propiciar as mulheres a oportunidade de materializar fantasias de poder, o que faria os bebés serem usados como objetos maternos. Welldon analisa também perversoes femini- 6e PERVERSAD nas como a prostituigao (perversao das relacoes sociais) e 0 possivel tratamento e reabilitacao das prostitutas. TRATAMENTO A questao do tratamento e da cura da perversao € dificil. Sabe-se que muitas pessoas nao “sofrem” de per- versio, mas acham que, a0 contrario, Os seus atos, pen- samentos € sentimentos é que impedem que elas sofram. Outras nao se dao conta de forma alguma de que o que fazem nao é “normal” ou natural ou ndo percebem a re- peticao de padroes e habitos de pensamento ou acao. Como as praticas pervertidas sao em geral realizadas numa situacaéo que conta com o que Khan chama de “cumplice”, os pervertidos acham que sao perdoados pela outra pessoa e, portanto, estado a altura da inter- subjetividade. Alguns entendem que as suas aces sao permitidas mediante uma autorizacdo especial, como se fossem membros de um grupo de elite seleto, ou que a sua sexualidade ¢ superior a sexualidade comum e “entediante”, o que lhes faz ter orgulho da sua técnica e singularidade. Essa afirmacao de superioridade pode ser um elemento da onipoténcia infantil que permeia as fantasias pré-genitais ou parte do mecanismo de ne- gacdo que implica conscientizar-se da inferioridade da 70 TRaTaNeNTS sexualidade infantil diante da poténcia heterossexual plena do adulto. Assim, muito poucas pessoas procuram tratamento psiquiatrico ou psicanalitico para as perversdes, que para elas sao uma solugdo € nao um problema. No en- tanto, diversos individuos sentem-se envergonhados por ter “um segredo” e sempre sujos e pecadores ou amedrontados sem saber por qué. A teoria tem comprovado que isso tem certa ve- racidade psicoldgica, uma vez que o sintoma perver- tido pode muito bem set uma defesa contra o medo de algo mais doloroso ou mais pavoroso, como topar conscientemente com as fantasias, as emogdes e€ as recordacées de traumas reprimidos e inconscientes. Stoller supde que a perversao seja uma defesa contra a depressao psicotica. As pessoas que procuram a psicandlise invariavel- mente deparam com as suas perversées durante o tra- tamento. Visto que a sexualidade infantil é universal, como 0 inconsciente, sempre emerge uma fantasia per- vertida com a descoberta do proprio complexo de Edi- po e outros marcos do desenvolvimento. A psicanalista franco-bulgara Julia Kristeva afirmou que a perversao é a contrapartida da universalidade.*’ A jornada € “rica e Péaversicy estranha”, mas é a melhor maneira de saber mais sobre a perversao. As vezes se é preso pela policia em razao de ati- vidades pervertidas que sao anti-sociais, criminosas ou foram testemunhadas e denunciadas. Se for esse 0 caso, os presos talvez recebam tratamento psiquia- trico e psicanalitico na penitenciaria ou sejam enca- minhados a hospitais psiquiatricos; podem receber orientacdo de agentes de liberdade condicional, as- sistentes sociais e psicoterapeutas. Arthur Hyatt-Wil- liams e Robert Stoller tém textos esclarecedores sobre o trabalho nessas situacdes. Certas particularidades determinam o modo de tra- tamento, os graus € a ocasiao propicia das interpreta- cdes, o ritmo de integracao dos pensamentos e sen- timentos inconscientes a consciéncia. Kohut diz que uma alusdo muito rapida as questées sexuais pode desencadear uma resposta sexualizada no tratamento, que mascara e retarda a conscientizagao do trauma, cujo sintoma talvez seja a sexualizacao. Em Londres, ha um tratamento especializado de perversdes nas clinicas Portman e Tavistock, que faz parte dos servicos publicos de satide. Os pacientes podem também ser encaminhados a hospitais que te- 72 ConcuusAD nham psiquiatras e psicoterapeutas. Existe atualmente uma necessidade muito maior de tratamento que de servicos satisfatorios, mas esse € um problema dos apa- relhos juridico-discursivo e estatal e da situagao dificil da psicanalise na ciéncia médica, CONCLUSAO Em 1938, em “Um Esboco da Psicandlise”*®, Freud ja havia alterado substancialmente a sua teoria das pulsdes. Embora ele considerasse Eros e Tanatos — as pulsdes de amor e de destruicdo — as forcas primor- diais atuantes no id, ele passou a nao achar que fossem separadas. Na funcao bioldgica, as duas pulsdes fundamentais atuam uma contra a outra ou se juntam. Assim, o ato de comer é uma destruicdo do objeto com o objetivo final de incorpora- lo, € 0 ato sexual é€ um ato de agressdo com o propdsito da mais intima unido.* Se a sexualidade e o apetite sao uma fusao de Eros e de Tanatos, se a seducdo € uma agressdo, entao o que éo0 amor?” PERVERSAG NOTAS [Veja adiante, em “Bibliografia selecionada”, as edigoes brasilei- ras de obras também citadas aqui.] Robert Stoller, Perversion: the Erotic Form of Hatred, Londres: Karnac Books, 1986, p. ix. Michel Foucault, History of Sexuality, Harmondsworth: Penguin Books, 1981, p. 105. Sigmund Freud, Five Lectures on Psycho-Analysis (1910), in Stan- dard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, (doravante, SE), vol. XI, Londres: Hogarth Press, 1978. Ibid., p. 41. S. Freud, Three Essays on the Theory of Sexuality (1905), in SE, vol. VIL, pp. 125-248, 6. S. Freud, Five Lectures, op. cit., p. 42. 9 10. ll. 12. 13 14. 15. W. H. Auden, “A Certain World”, in A Commonplace Book, Lon- dres: Faber and Faber, 1970, p. 134. S. Freud, Five Lectures, op. cit., p. 45. Ernest Jones, “The Madonna’s Conception through the Ear — A Contribution to the Relation between Aesthetics and Religion” (1914), in Essays in Applied Psycho-Analysis, Nova York: Hill- stone, 1974, p. 267 Ibid., p. 292. R. Stoller, op. cil., p. 55. S. Freud, “An Outline of Psycho-Analysis” (1938), in SE, vol XXIII, p. 146 E, Jones, op. cit. S. Freud, “An Outline of Psycho-Analysis”, op. cit., p. 278. De Harry Potter and the Philosopher's Stone, o primeito de uma série bem-sucedida de livros infantis escritos por J. K. Rowling, editados por Bloomsbury Publishing. [Edicao brasileira: Harry Potter ¢ a Pedra Filosofal, trad. Lia Wyler, Rio de Janeiro: Rocco, 2000.] 16 19. 20, 21, 22, 23 24+ 25. 26. 27. 28. 29 30. 31. 32. 33, 34. Donald Winnicott, “The Manic Defence”, ensaio lido na Sociedade Psicanalitica Britanica em 4 de dezembro de 1935 e depois pu- blicado em From Paediatrics to Psycho-Analysis, Londres: Hogarth Press, 1987, [Edicao brasileira: Da Pediatria a Psicandlise — Obras Escothidas, trad. Davy Bogomoletz, Rio de Janeiro: Imago, 2000.] 7. S, Freud, “Fetishism’ (1927), in SE, vol. XX1, pp. 149-58. . S. Freud, “The Splitting of the Ego in the Processes of Defence” (1938), in SE, vol. XXUL Ibid. Christian Metz, The Imaginary Significr: Psychoanalysis and Ci- nema, Londres: Macmillan, 1982. Ibid., p. 69. Laura Mulvey, “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, in Screen, vol. 16, n. 3, Londres: Society for Education in Film and Televi- sion, autumn 1975, pp. 6-18. Ibid C. Metz, op. cit., p. 77. Ibid. S. Freud, Five Lectures, op. cit., p. 44. Ibid., p. 46 S. Freud, Three Essays, op. cit., p. 191. S. Freud, “The Splitting of the Ego”, op. cit. Robert D. Hinshelwood, A Dictionary of Kleinian Thought, Lon- dres: Free Association Books, 1991, p. 389 Arthur Hyatt-Williams, Cruelty, Violence and Murder, Londres: Karnac Books, 1998. R. Stoller, op. cit., p. 131. Masud Khan, “Fetish as Negation of the Self”, in Alienation in Perversions, Londres: Hogarth Press, 1979, pp. 139-76 Heiz Kohut, Lecture 1: Perversions (7 de janeiro de 1972), Chica- go Institute Lectures Forum Preface, organizado por Paul Tolpin e Marian Tolpin (cortesia da Analytic Press), obtido na pagina de Sel{-Psychology em wwwselfpsychology.org/. 75 PERVERSAD 35. Ibid. 36. Estella Welldon, Mother; Madonna, Whore: The Idealisation and Denigration of Motherhood, Londres: Free Association Books, 1988. 37. Julia Kristeva, Strangers to Ourselves, Nova York: Columbia Uni- versity Press, 1991, p. 191 38. S. Freud, “An Outline of Psycho-Analysis”, op. cit, p. 149 39. Ibid. 40. “As menos repelentes das chamadas perversdes sexuais estao muito disseminadas por toda a populagdo, como todos sabem, menos 05 médicos que escrevem sobre o assunto. Ou, deveria eu dizer, eles também sabem, s6 que tomam o cuidado de esquecé- lo no momento que pegam a caneta para escrever sobre isso.” De S. Freud, “Fragment of An Analysis of a Case of Hysteria”, in SE, vol. VII, p. 51 {edigao brasileira: “Fragmento da Analise de um Caso de Histeria", in ES, vol. VII}. BIBLIOGRAFIA SELECIONADA Foucault, Michel, History of Sexuality, Harmondsworth: Penguin Books, 1981. [Fdicao brasileira: Historia da Sexualidade, 3 vols., Rio de Janeiro: Graal, 2002-2003.) Freud, Sigmund, Three Essays on the Theory of Sexuality (1905), in Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, Londres: Hogarth Press, 1978 (doravante, SE), vol. VU. [Edicdo brasileira: Trés Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, in Edigéio Standard Brasileira das Obras Psicologicas Completas de Sig- mund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1986 (doravante, ES), vol. VIL] ——, Five Lectures on Psycho-Analysis (1910), in SE, vol. XL. [Edigao brasileira: Cinco Conferéncias sobre Psicandlise, in ES, vol. X1.] ——, “Fetishism” (1927), in SE, vol. XX1. [Edicao brasileira: “Feti- chismo”, in ES, vol. XX1.] 76 —, “An Outline of Psycho-Analysis” (1938), in SE, vol. XXIII, Londres: Hogarth Press, 1978. [Edicdo brasileira: “Um Esboco da Psicanalise”, in ES, vol.XXIIL.] ——,, “The Splitting of the Ego in the Processes of Defence” (1938), in SE, vol. XXUL. [Edi¢ao brasileira: “A Ciséo do Eu nos Proces- sos de Defesa”, in FS, vol. NXIIL] Hinshelwood, Robert D., A Dictionary of Kleinian Thought, Londres: Free Association Books, 1991. [Edicao brasileira: Diciondrio do Pensamento Kleiniano. Porto Alegre: Armed, 1992.] Hyatt-Williams, Arthur, Cruelty, Violence and Murder, Londres: Kar- nae Books, 1998 Jones, Ernest, “The Madonnas Conception Through the Ear - A Contribution to the Relation between Aesthetics and Religion” (1914), in Essays in Applied Psycho-Analysis, Nova York: Hill- stone, 197+. Khan, Masud, “Fetish as Negation of the Self”, in Alienation in Perver- sions, Londres: Hogarth Press, 1979. Kristeva, Julia, Strangers to Ourselves, Nova York: Columbia Univer- sity Press, 1991, [Edigao brasileira: Estrangeiros para Nos Mes- mos, trad. Maria Carlota Carvalho Gomes, Rio de Janeiro: Rocco, 1994.) Metz, Christian, The Imaginary Signifier: Psychoanalysis and Cinema, Londres: Macmillan, 1982 Stoller, Robert, Perversion: the Erotic Form of Hatred, Londres: Karnac Books, 1986. Welldon, Estella, Mother, Madonna, Whore: The Idealisation and Deni- gration of Motherhood, Londres: Free Association Books, 1988. CONCEITOS FUNDAMENTAIS Aberrante — Os conceitos de sexualidade “aberrante” e “variante”, provenientes da sexologia, tém conotagdes de uma questao neu- ura de diferencga da norma, sem que essa sexualidade seja moti- 7 PeRvERsic vada psicologicamenie para tanto. Essas descricdes omitem (ou talvez cortem) a dimensao crucial da fantasia como fator moti- vador da sexualidade Teoria do apego — Praposta por John Bowlby, afirma que os bebés, como os filhotes de muitos outros primatas, tém necessidades instintivas e psicolégicas de uma relacao de dependéncia para com um responsdvel primordial. Sexualidade difasica — Observacao de que os seres humanos, como especie, sao incomuns por terem uma sexualidade que se desen- volve em duas etapas: o desenvolvimento libidinal infantil e a maturidade biologica Oposicées diacicas - Uma simplificacéo conceitual imposta a vivén- cia de uma realidade emocional complexa. O uso defensivo da cisao contrapde dois termos que os separam ao substituir “cone- xao” par “oposicao” Pulsao epistemofilica — A necessidade de conhecer e sua expressao no desejo de descobrir, ou curiosidade. Genitalidade — O desenvolvimento final da sexualidade humana de- pois da puberdade e da adolescencia, em que os objetos parciais infantis tornam-se componentes das caricias preliminares e do prazer sexual do amor. Idealizacdo — Processo mental de defesa em que uma pessoa é redu- zida a uma representagdo mental simplificada, a fim de o sujeito se defender da angustia da ambivaléncia Sexualidade infantil — Teoria do inicio do desenvolvimento libidinal centrade nos drgaos nao reprodutores do corpo do bebe. Essa sexualidade é reprimida com a dissolucao do complexo de Edi- po € existe na forma inconsciente na vida adulta. Instituigdes juridico-discursivas - Conceito elaborado pelo estru- turalista francés Miche] Foucault para descrever a correlacao en- ire a ideologia, a politica ¢ 0 direito. Libido - Conceito de Sigmund Freud da representacao mental da energia dos impulsos sexuais. Unidade narcisica - Estrutura psicolégica correlata as relacdes de apego bem-sucedidas na infancia. Um vestigio dela continua existindo posteriormente no inconsciente Objeto — Um dos quatro componentes das pulsoes (fonte, pressao € alvo s4o os outros tés). Na sexualidade infantil, o objeto é em geral um aspecto de uma pessoa (do eu ou de um genitor), uma coisa ou uma fantasia. Na genitalidade adulta, 0 objeto equivale auma pessoa Teoria das relagdes de objeto - Teoria de Sigmund Freud de que todas as pulsdes tem um objeto. Foi aprimorada por Fairbairn, Klein e outros, que a achavam © aspecto mais importante da psicologia. Complexo de Edipo — ‘Teoria de Sigmund Freud da relacao de obje- to da sexualidade infantil. Ontogénese ~ O processo de desenvolvimento do individuo, ligado ao desenvolvimento flogenstico da especie. Monismo falico — Teoria de que a sexualidade infantil abrange uma crenga de que todos os humanos tém um penis como Orgao exe- cutor do complexo de Edipo. Projecdo ~ Defesa contra o conflito ou a dor psiquica que implica a negacao da consciéncia de um aspecto inaceitavel da propria mente ¢ a atribuicao desse aspecto a outra pessoa ou objeto. Necessidade reparadora — Necessicade psicolagica de reparar a re- presentacao mental de uma pessoa que [oi objeto de alaque de desejos sexuais hostis. Encontra-se uma explicacéo maior das necessidades reparadoras nas secoes “Quais sao as causas da per- versdo?” (paginas 53-56) e "Quais sdo as definicoes de perversaa apos Freud?” (paginas 56~70). Somatico - Do soma, ou corpo, eM contraposigao com a psique, ou mente, Cisao — Defesa psicologica que implica a supressao das ligacdes mentais entre duas representacdes. Se a ligacao cria muita an- guistia ou dor, a cisdo talvez propicie um alivio temporario. Essa PErrvcrsan defesa geralmente acarreta outras, como projegao, negacao e re- pressao. Sublimagao — Transformagao da energia das pulsdes infantis perver- tidas dirigindo-as para um objeto diferente e socialmente util, E um elemento fundamental da arte e da cultura Variante — Veja aberrante. AGRADECIMENTOS Sou grata a Ivan Ward ¢ a Icon Books pelo convite para escrever sobre perversco e pela generosidade de Ivan, com sua capa- cidade extraordindria de raciocinio. Obrigada a Barry, Aldo e Theo, que me deram tempo para trabathar, ¢ obrigada a Rose Edgcumbe, que me deu espaco para pensar 80

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