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AU AEE TINS) SU NaH) aH Alvaro Vieira Pinto Em 2004, tivemos a auspiciosa noticia de que a mais extensa obra de Alvaro Vieira Pinto (1909-1987) havia sido, fi- nalmente, encontrada. Sabia-se da exis- téncia dela, mas se temia que estivesse irremediavelmente perdida. De posse dos originais, na forma de 1.410 laudas datilografadas em méquina de escrever, minuciosamente corrigidas 4 mao, a Contraponto langou O conceito de tec- nologia em marco de 2005, em dois grandes volumes. Acreditamos, entao, que a obra do filésofo ficara, finalmente, completa. O que, para nés, parecia ser um pon- to de chegada tornou-se um ponto de partida para José Ernesto de Faveri, es- tudioso de Vieira Pinto, a quem dedicou sua tese de doutoramento em 2006. De- ‘vemos a um exaustivo esforco de Paveri, narrado na Apresentacao deste volume, a localizacao de mais um grande inédito — A sociologia dos paises subdesenvolvi- dos —, deixado em forma manuscrita. Os originais em letra mitida exigiram longo trabalho de decifracio, realizado com a ajuda de lupas e diciondrios por uma equipe reunida por Faveri. Na primeira pagina, podemos ler: “Comecei a escrever este caderno em 13 de agosto de 1974.” Na pagina final do ultimo caderno, aparece: “Terminada a revisdo deste original no dia 13 de feve- reiro de 1977.” Dois anos e sete meses dedicou, pois, Vieira Pinto ao texto que ora publicamos pela primeira vez, mais de trinta anos depois. Tera ficado com- pleta, agora, a obra do filésofo? Alvaro Vieira Pinto foi um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros de to- dos os tempos. Catedratico da Facul- dade de Filosofia da entdo Universidade do Brasil (hoje UFRJ), com tese defen- dida na Franca sobre a cosmologia em Platao, unia rigorosissima formacao classica 4 condigao de excelente mate- matico. Ganhou projecao a partir de 1956, quando se juntou ao grupo de fundadores do Instituto Superior de Es- tudos Brasileiros (Iseb), cujo Departa- mento de Filosofia passou a chefiar. Ali, instalado no centro dos debates do ciclo desenvolvimentista, dedicou-se a com- preender os varios modos de pensar 0 Ser Nacional a partir da periferia do sis- tema-mundo. Incursionou pela sociolo- gia, a pedagogia, a historia, a lingiiistica € a demografia. Foi o mestre de uma ge- ragdo que teve em Paulo Freire e em Darcy Ribeiro dois expoentes. Nagao, povo, trabalho, cultura, cién- cia, técnica, dependéncia, desenvolvi- mento, construgao de identidades fo- ram temas que permearam a fecunda reflexao de Vieira Pinto, que sempre pensou a partir da condicao de filésofo. Dafa singularidade de sua obra, quando observada hoje. Neste livro, mais do que tratar do subdesenvolvimento como fa- to econdmico, ele destaca 0 que chama- va de “deformacao semantica’, ou seja, 0s processos que interferem na comuni- cago para ocultar a percepgao do real. Daf o curioso subtitulo: “Introdugdo metodoldgica ou pratica metodicamen- te desenvolvida da ocultagao dos funda- mentos sociais do ‘vale de légrimas”. ‘Numa época em que os economistas venceram, calando a voz dos filésofos, precisamos reler Vieira Pinto para rea- prender a enxergar de forma muito mais profvnda a nossa condicao atual e 0 nosso futuro. César Benjamin A SOCIOLOGIA DOS PAISES SUBDESENVOLVIDOS a rac es see ry Alvaro Vieira Pinto A SOCIOLOGIA DOS PAISES SUBDESENVOLVIDOS Introdugao metodolégica ou pratica metodicamente desenvolvida da ocultagao dos fundamentos sociais do “vale de lagrimas” ORGANIZAGAO José Ernesto de Faveri CONTRAPONTO © desta edigao, Contraponto Editora Ltda., 2008 Vedada, nos termos da lei, a reprodugdo total ou parcial desta obra, em qualquer meio, sem autorizagio da Editora. Contraponto Editora Ltda Caixa Postal 56066 — CEP 2292-970 Rio de Janeiro, RJ ~ Brasil ‘Telefax: (21) 2544-0206 / 2215-6148 Site: www.contrapontoeditora.com.br E-mail: contato@contrapontoeditora.com.br 1 edigao: setembro de 2008 ‘Tiragem: 1,000 exemplares Revisio tipogrifica: Teresa Rocha Projeto grifico: Regina Ferraz CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI P726s Pinto, Alvaro Vieira, 1909-1987 {A sociologia dos paises desenvolvidos : introdugao metolégica (ou pritica metodicamente desenvolvida da ocultagao dos funda- ‘mentos sociais do “vale de Ligrimas” | Alvaro Vieira Pinto 5 organi zagiio José Ernesto de Péveri. — Rio de Janeiro : Contraponto, 2008. ISBN 978-85-85910-99-0 1, Areas subdesenvolvidas ~ Aspectos socioligicos. 2. Sociolo- gia. I. De Faveri, José Emesto, 1957-11. Titulo, DD 301 08-2070 cou 316 ‘Sumario Apresentagio A SOCIOLOGIA DOS PAISES SUBDESENVOLVIDOS 1. Razoes de nosso interesse por este assunto. Por que usamos a imagem do “vale de lagrimas” xv . A“geologia” do vale de lagrimas e as questées sociolégicas fundamentais que sugere . As possibilidades da libertagao das massas... . A compreensao do carater social do “vale de kigrimas” aw pw . O papel do filsofo no “vale de ligrimas” e sob a pressio dos poderes dominantes 7. A recusa a consideragao direta da realidade no pais subdesenvolvido......... + a As categorias de doutrinas explicativas do “vale de lagrimas” 2 As premissas de toda “sociologia” alienada 10. A translagao da sociologia para outros campos do saber, com 0 propésito de encobrir as finalidades de suas doutrinas 11. A propésito da confusao entre sociologia e psicologia 12. A necessidade da cura dos transviados por meio da adaptacao social 13. Importancia da ocultagao dos fundamentos sociais do “vale de lagrimas” 14, A necessidade da constituicao da auténtica sociologia do “yale de lagrimas” 15. O segundo caminho do desvio da sociologia: a transferéncia para o terreno da ética 16. A maliciosa interpretagio ética da sociologia. : A teoria do “direito” 2 . Condigées para a construcao da sociologia do “vale de lagrimas” 21 22 24 25 28 30 33 36 38 Al 43 48 54 59 o 64 70 20. 2b 2 8 a 24, 2. 2 s 27. 2 & 29, 30. 31 32; 3. 3 34, 35. 36. Si. 38. 39, 40. 41. 42. . A interpretacao biolégica da sociologia do “vale de lagrimas” ...... 76 18. 19. O “darwinismo social” 81 A biologia como base para a exaltacao da classe dominante 85 . Trés escapatrias utilizadas pela sociologia comprometida com o poder econémico 87 O conceito ideolégico de “poluigao” 99 . Sociologia e ecologia s 101 A matemitica como forma de ocultagao da sociologia 106 A sociologia de “grupos” 109 A sociologética como apologética da sociedade capitalista 113 . Estratagemas de ocultagao da dialética social; a sociometria; a cibernética 115 Retorno a “dinamica dos grupos” 118 . Dificuldades da teoria da “dinamica dos grupos” 126 O recurso & nogao de “estrutura” 130 O recurso a cibernética t 131 . Uma digressao: a esséncia do capitalismo i 137 Volta a cibernética sch tt ee ane! 139. . A ocultagio econémica 141 Conceitos utilizados pela ocultagao econdmica. O capital .......0... 143 Outras nogoes: 0 dinheiro e o lucro 146 Dupla operagao. Primeira operacao: os “modelos” cme ‘A segunda operacao: a descoberta de solugées salvadoras 153 A falsa “mudanga de pessoa”. A crenca mistica no poder do “modelo” 155 A ocultacao politica As mistificadoras explicagdes do subdesenvolvimento cine 164, As medidas destinadas a conter 0 surgimento da consciéncia de si no pais subdesenvolvido 168 A suposta superago da questdo do subdesenvolvimento 170 43. 44. 45. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 3 ge 5 s tH 60. 6. 62. 63. 64, Necessidade da compreensiio dialética do processo de desenvolvimento Entendimento da relagao entre povos de niveis diferentes de desenvolvimento Outra deficiéncia da economia metropolitana importada: a incompreensao da nogao de classes sociais A negacao do subdesenvolvimento O recurso & “ecologia social” . Outros recursos para entorpecer a consciéncia do pais submisso: 0s “encontros” de especialistas ‘A formagao de novas teorias por invengao A ocultacao pelas crengas . Adialética do Senhor e do escravo na relacao entre a divindade eohomem O declinio das forgas confessionais O recurso ao ecumenismo . A ocultagao hidica do subdesenvolvimento. 55: A ocultacao semantica ou lingiiistica . Significado e efeitos das palavras de contetido ideolégico 57. 58. O encobrimento léxico do termo “subdesenvolvimento” A formula final da ocultagao semantica do subdesenvolvimento: 0 recurso ao conceito de “metalinguagem” Importancia da compreensio da yerdadeira natureza da ciéncia sociolégica. O conceito de violéncia Distingao entre formas abstratas e concretas da sociologia . As idéias gerais da ciéncia social devem originar-se da realidade objetivamente vivida pelo estudioso O esforco do centro de dominacao para obter a alienacao cultural das areas subdesenvolvidas A sociologia que o pais subdesenvolvido tem de elaborar As tentativas metropolitanas de subjugacao do perietnenta do mundo subdesenvolvido 17 179 182 185 187 191 194 198 205 209 212 218 225 229 233 » 259 265 268 272 274 277 . 280 65. 66. 67. 68. 69. 70. 7) 7: 7: 3 w a 77. 78. 79. 80. 81. 82. 83. 84. 85. 86. y . A sociedade perdularia 76. A economia, ancila da sociologia na obra de ofuscagio da consciéncia do pats dependente.. ‘As nogées de “economia” e de “finangas” O conceito de “produto nacional bruto” O conceito de “tenda per capita” O conceito de “consumo” A exigéncia de rigorosa definigao dos conceitos . Os conceitos de “bem” e de “valor” O correto significado do conceito dialético de consumo, .A dialética da produgio 74, Economia e ética. O bem e o bom... A impossibilidade de continuagao das sociedades espoliadoras. A nocao de “perfeicio” do bem. O sofisma dos “indices” de grandeza dos paises poderosos O consumo na perspectiva do consumidor e na do nao-consumidor A uniao do poder politico com 0 econdmico. As nogdes de “capital” e de “balango” A contradi¢ao entre producao e consumo. O consumidor privado A superacao da contradigao do estado social vigente A falsificagao da esséncia do homem, fundamento do “vale de lagrimas” e da correspondente sociologia A resposta dada pela consciéncia critica do pais subjugado Algumas consideragdes mais sobre 0 conceito de “desenvolvimento”. O verdadeiro indice de medida do desenvolvimento A ilusdo do desenvolvimento nacional O trabalho assalariado como endividamento do povo Os perigos do recebimento do capital estrangeiro 283 286 287 291 298 302 304 306 310 311 314 319 321 323 324 329 331 332 334 339 » 347 348 Caderno 2° Adendo: reflexées sobre o significado dos nomes ea ocultacao semantica do “vale de lagrimas” Observagées preliminares Reflexes sobre o significado dos nomes e a ocultagao semantica do “vale de lagrimas” Teoria da origem e formagao da significagao Posfacio — José Ernesto de Faveri 355 360 388 413 APRESENTACGAO José Ernesto de Faveri* A profissdo de professor fez-me interlocutor de Paulo Freire. Quanto mais me aproximava do saudoso pedagogo, mais a minha curiosidade ficava agu- ada: por quais caminhos de interacao caminhara a genial intuigao do mes- tre da pedagogia dialogica, que surpreendeu o mundo da educagao com a Pedagogia do oprimido? A trajetéria de Paulo Freire fez-me encontrar Alvaro Vieira Pinto. Du- rante 0 exilio, na jé distante década de 1960, 0 maior pedagogo brasileiro, tomando pisco em torno de uma mesa na capital chilena, com certeza se reunia para dialogar com brasileiros, entre eles o também pedagogo e fild- sofo Vieira Pinto. Disposto a encontrar as bases do pensamento filosdfico freireano, nao ‘me satisfiz com 0 pouco que fora publicado no Brasil ou no exterior da vas- ta obra filoséfica de Vieira Pinto. Por isso, fui em busca de suas obras iné- ditas, entre as quais A sociologia dos paises subdesenvolvidos, 0 derradeiro manuscrito, elaborado no isolamento e no anonimato em 1975, no Rio de Janeiro. Como professor de filosofia da educagao, sinto-me honrado por conse- guir trazer a publico o ultimo escrito daquele que, sem divida, foi o maior fildsofo brasileiro, que também deu grandes contribuicées a filosofia da educagao, a sociologia e a critica epistemoldgica. Como foi o percurso para resgatar a obra manuscrita de Alvaro Vieira Pinto? O encontro com os seus escritos foi a origem do projeto e da pesquisa de doutorado, que resultou na elaboracao e defesa da tese.** Encerrada a etapa do mestrado, continuei pesquisando freireanamente, enquanto exer- * Graduado em filosofia e pedagogia, mestre em educagao, doutor pela Universidade Fede- ral de Sao Carlos na area de fundamentos da educacao. Professor e pesquisador em edu- cagio brasileira. Escritos no prelo: O legado de Alvaro Vieira Pinto a partir dos seus con- temporineos ¢ Alvaro Vieira Pinto versus Paulo Freire: categorias filoséficas e contribuigoes 4 educagao libertadora. ** O texto que se segue é um extrato da tese de doutorado que defendi em 27 de outubro de 2006, sob a orientacao de Paolo Nosella, O titulo é Alvaro Vieira Pinto: trajetéria, filosofia e contribuigdes @ educagao libertadora (Centro de Educagio, Programa de Pés-Graduacio em Educagao, Universidade Federal de Sao Carlos, Sao Paulo, 2006, 583 p.). JOSE ERNESTO DE FAVERI cia a atividade de docente na universidade. Fortalecido pelas palavras de incentivo de amigos, comecei a luta para ingressar no curso de doutorado. Somente em 2002 logrei aprovacdo para ingressar no Programa de Pés- Graduago em Educacao na Area de Fundamentos da Educagao, na Uni- versidade Federal de Sao Carlos. Depois de encerradas as disciplinas previstas no programa e com o pro- jeto aprovado pelo orientador, dr. Paolo Nosella, comecei uma longa e ar- dua caminhada para coletar os dados necessérios para a elaboracao da tese sobre Vieira Pinto. Iniciei pela leitura de textos sobre 0 pensamento do fi- 16sofo, observando notas de rodapé e referéncias bibliograficas, na pers- pectiva de preparar-me para ler as producées do filésofo. Por meio dessas leituras, comecei a mapear intelectuais que haviam se envolvido direta ou indiretamente com estudos semelhantes, a fim de buscar pistas para resga- tar periddicos e obras (publicadas ou nao) dele mesmo ou de pesquisado- res que investigaram o seu pensamento. Em seguida, jé sabendo do bito de Alvaro Vieira Pinto, entrei em con- tato com uma editora paulista para localizar 0 endereco e o telefone de sua esposa, a sa. Maria Aparecida Fernandes Vieira Pinto. Descobri que ela também havia falecido. E entao? Por onde comecar? Num primeiro mo- mento, veio 0 desanimo. Interrompi as buscas por varias semanas. Em se- guida, porém, decidi retomar os contatos. Telefonei de novo para a editora, pois presumi que o apartamento onde a vitiva do filésofo morava tivesse sido inventariado. Por intermédio de algum herdeiro ou locatario, eu espe- rava chegar a alguém da familia que pudesse dar informages sobre a vida ea obra de Vieira Pinto. Imaginei que, pelo cadastro da editora, poderia chegar aos antigos en- dereco e telefone dele. Porém, tudo 0 que consegui foi o endereco e 0 te- lefone da atual locatiria do apartamento em que o filésofo e sua com- panheira viveram. Por meio dela, localizei o telefone e o endereco da irma da esposa de Vieira Pinto, a sra. Lourdes Fernandes, a qual, como soube mais tarde, também trabalhara no Instituto Superior de Estudos Brasilei- ros (Iseb). Estabeleci um breve contato com o filho dela. Marcamos um en- contro para debater 0 paradeiro de toda a produgao do filésofo, publicada ou nao. Nessa altura, eu sabia que os textos haviam ficado com a esposa. Restava, entao, saber que rumo tinha tomado essa produgao intelectual, apés a morte dela. O proprio Alvaro, em entrevista ao professor Demerval Saviani, afirmara que a produgao era vasta. 12 APRESENTAGAO Com muita dificuldade, depois de intimeros contatos e tendo obtido alguns enderecos, comecei a marcar visitas a pessoas ligadas a familia e a outras instituig6es para garimpar periddicos, livros e outros escritos de Vieira Pinto. No banco de teses da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao contrério do que imaginava, nao encontrei nenhum escrito sobre o fil6- sofo, 0 que me pareceu significativo. Finalmente, fui a Biblioteca Nacional com a esperanca de encontrar mais material, principalmente as obras inéditas — Filosofia primeira, Edu- cago para um pais oprimido, Consideragoes éticas para um povo oprimido, A sociologia do povo subdesenvolvido ¢ Critica da existéncia — citadas na entrevista que 0 filésofo concedera ao professor Demerval Saviani, trans- crita na obra Sete ligdes de educagao de adultos. A busca foi frustrante. Nao encontrei novidade além do material que ja havia conseguido. Imerso em um clima de frustracao, mas ainda esperangoso de encon- trar as obras inéditas, comecei a investir em duas dire¢goes: a) Localizar a sobrinha do filésofo, de quem, naquele momento, eu ti- nha apenas o nome incompleto: Mariza. A obsessao em localizé-la devia-se ao fato de que ela detinha informages necessérias para que eu me intei- rasse do paradeiro dos escritos inéditos, que, segundo a cunhada, estariam na Biblioteca Nacional. b) Junto com Maria Oly Pey, minha interlocutora, desenvolver a estru- tura da tese, o que fosse possivel, com o material ja resgatado. Quando estava comegando a escrever 0 quarto capitulo da tese, em uma das muitas visitas que fiz ao professor Jorge Roux,* encontrei em sua mesa um dos inéditos que estava procurando: O conceito de tecnologia, com 1.400 paginas, em dois volumes, publicado pela Editora Contraponto. Reagi com um misto de contentamento e tristeza: eu estava certo de que iria encon- trar esses inéditos. A alegria foi ter acesso, naquele momento, a um material desconhecido, que me obrigaria a realizar um estudo profundo (no de- poimento a Demerval Saviani, o proprio Vieira Pinto afirmara que esse inédito era muito importante para se analisar a questéo educacional). Ali mesmo, com meu amigo Jorge Roux, comecei a folhear o primeiro volume e, numa nota do editor, encontrei informagées sobre as pessoas que esta- vam com o material antes da publicagao. * Amigo e interlocutor de Alvaro Vieira Pinto na década de 1960. Aceitou gentilmente pre- faciar minha obra intitulada Filosofia da educagao: o ensino da filosofia na perspectiva frei- reana (Petropolis: Vozes, 2006). 13 JOSE ERNESTO DE FAVERI Marilia Barroso e Orsely Guimaraes Ferreira de Brito haviam sido res- ponsiveis pelo resgate do inédito, encaminhando em seguida o texto para publicagao. Em um contato com o editor, soube que ambas tinham sido alunas do filésofo, no inicio da sua carreira. Comuniquei-me com elas. Conversamos sobre a possibilidade de elas darem depoimentos sobre essa fase de sua atividade docente na entao Universidade do Brasil. Marcamos 0 encontro e realizei uma entrevista que revelou o perfil didatico de um bri- Ihante professor de hist6ria da filosofia, disciplina que ele entdo lecionava. Por sugestao de Roux, fomos ao apartamento onde Alvaro Vieira Pinto residira, para conversar com o zelador do prédio. Se fosse 0 mesmo, pode- ria ter alguma informagao ou mesmo uma chance de saber o paradeiro de Mariza. O zelador, Manoel, informou-nos que trabalhava no prédio havia mais de quarenta anos e conhecera 0 fildsofo. A esposa de Manoel, Maria das Dores, trabalhara como faxineira no seu apartamento. Depois de uma longa conversa, gentilmente, deu-me o seu telefone para que eu fizesse con- tato com sua esposa, pois acreditava que ela saberia dar informacoes mai precisas sobre o paradeiro da sobrinha do filésofo. Encerrei minha busca naquele dia. Nessa altura dos acontecimentos, eu j4 tinha o nome completo da so- brinha do filésofo: Mariza Urban. Quando se casou, Mariza trocou 0 so- brenome, dificultando assim a sua localizacao. A partir dai, tudo ficou mais facil. Por meio de contatos diversos, descobri o endere¢o residencial da so- brinha. Liguei para seu apartamento e constatei que as informagoes esta- vam certas. Ela morava no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro, mas na- quele momento estava em tratamento de satide nos Estados Unidos. Fui orientado por pessoas da casa a fazer contato alguns dias depois. O encontro com Mariza tinha uma dupla finalidade. Por um lado, eu teria a oportunidade de colher o seu depoimento para agregd-lo ao corpo da tese. Por outro, tentaria conhecer o destino dos escritos inéditos de Viei- ra Pinto. Quando explicitei 0 motivo do contato, Mariza atendeu pronta- mente 0 telefone e marcamos um encontro no seu apartamento. No dia 2 de maio de 2004, viajei para o Rio com um unico objetivo: en- contrar Mariza. A expectativa era grande. Além da preocupagao de saber 0 destino dos escritos inéditos, havia a esperanga de conseguir um bom de- poimento sobre o pensador. Quando cheguei, considerei que alcangara uma grande vitéria, pois, se ainda nao havia encontrado os inéditos, poderia especular sobre seu paradeiro. Logo que a encontrei, entreguei-Ihe uma c6pia da tese de Vieira Pinto sobre Platao. i APRESENTAGAO Nosso didlogo prosseguiu no dia seguinte. Entre outras coisas, Mariza prometera que faria uma busca para encontrar algum trabalho do tio. Para aquecer a conversa, mostrou-me fotos de Vieira Pinto e pediu licenga para buscar algum material que encontrara. Dirigiu-se a uma estante e retirou alguns livros. Trouxe-os e colocou em cima da mesinha da sala. Pediu que eu analisasse e verificasse se eram do meu interesse, ou se j4 os conhecia. Olhei um por um. Quando peguei o tiltimo, encontrei dois cadernos, um maior, outro menor, escritos a mao. Olhando para a capa, li o titulo Socio- logia dos paises subdesenvolvidos. Nao tive mais dtividas de que estava diante de um dos manuscritos de Vieira Pinto, uma obra rara. Meu coragao dis- parou: tudo o que eu queria era encontrar esse material para agregé-lo 4 minha pesquisa. Tive que controlar a emogao e o entusiasmo. Ocorreu-me, naquele momento, que muitos pesquisadores procuravam por aquele material. Eu estava tao perto que nao poderia colocar tudo a perder. Era preciso que Mariza confiasse em mim. Por isso, minha atitude inicial foi quase de desprezo pela obra inédita. Comecei a falar de mim, mas © entusiasmo de Mariza era maior do que 0 meu. Gravei o seu depoimen- to. Quando tive oportunidade, perguntei sobre os demais inéditos ¢ ela falou que tudo havia ficado com Lourdes, cunhada de Alvaro. Ela s6 con- seguira obter, com muito custo, aquela obra. Continuamos a entrevista, que ficou incompleta. Acertamos mais um encontro. De volta ao hotel, eu estava transbordando de alegria e felicidade, porém, ao mesmo tempo, muito preocupado em convencer Mariza de que meu interesse era exclu- sivamente académico e nao tinha nada a ver com ganhos financeiros. Era preciso fazé-la acreditar nisso. No dia seguinte, depois de realizada a entrevista, combinamos que eu traria para casa uma copia do inédito e providenciaria a digitagao do seu contetido, tendo em vista a publicagao. Nessas idas e vindas ao apartamen- to de Mariza, criamos um laco de amizade e confianga. Isso foi fundamen- tal para que ela decidisse tirar uma c6pia e confiar-me a tarefa de publicar 0 texto. Esse contato foi o mais produtivo que tive: depois de cinco dias, eu estava com 0 depoimento de Mariza gravado e com uma cépia do inédito, autorizado a providenciar a publicagao. De volta para casa, a preocupacao era encontrar alguém de confianca ¢ com capacidade intelectual para transcrever 0 manuscrito de contetido do inédito. Teria de ser ndo uma s6 pessoa, mas uma equipe, para manter fi- delidade ao original. Essa equipe foi formada por trés pessoas: eu mesmo, autor da pesquisa, a doutora em educagao Maria Oly Pey e'a professora Ana 15 JOSE ERNESTO DE FAVERI Maria Bacca, profunda conhecedora da lingua portuguesa. O texto fora es- crito de préprio punho por Vieira Pinto, com uma letra extremamente pe- quena. Precisamos adquirir uma lupa potente para realizar a leitura. Varias vezes a equipe admirava-se, observando a espantosa erudicao do fildsofo. Também aprendemos “outra lingua portuguesa’, tamanha era a freqiiéncia com que recorriamos a bons diciondrios, de nossa lingua e de outras, como 0 dicionario de grego. Também recorremos a enciclopédias € até a estudos de etimologia das palavras que inspiravam alguma dtvi- da. Tudo isso para manter a coeréncia e a autenticidade dos argumentos e das idéias. Enquanto realizavamos essa tarefa ardua, eu mantinha contatos quin- zenais com Mariza para informé-la sobre o trato e o andamento dos traba- lhos com a obra manuscrita. Depois de trés meses de dedicagao intensa, precisei voltar ao Rio para consultar os originais, pois em algumas paginas a primeira linha e, as vezes, a ultima nao estavam suficientemente claras. Levei comigo algumas paginas que j4 estavam prontas para que Mariza pudesse ver 0 nosso trabalho. Foi quando me confidenciou que havia pro- metido ao tio que faria todo o possivel para publicar as suas obras ainda inéditas. Em outubro de 2005, junto aos parentes mais proximos do fildsofo, con- segui uma autorizacao para a publicagao, e ao mesmo tempo também fui autorizado a prefaciar 0 manuscrito A sociologia dos paises subdesenvolvidos. Trata-se da ultima obra escrita por Vieira Pinto, segundo o depoimento da sobrinha Mariza. Quando Alvaro encerrou esse texto, declarou ter comple- tado seu pensamento. Um ano depois da defesa da tese, comuniquei a Marilia Barroso que es- tava de posse do manuscrito. Gentilmente, ela se prontificou a fazer um contato com a Editora Contraponto na pessoa de César Benjamin. O edi- tor marcou um encontro comigo para viabilizar a publicacao. Agradego sobretudo a familia do autor, particularmente a sua sobrinha, Mariza Urban, cuja preciosa colaboragao foi decisiva para que, afinal, co- nhecéssemos as apaixonadas linhas escritas pelo ultimo diretor do Iseb, instituigao de vanguarda do pensamento brasileiro que foi calada pela di tadura militar instalada no pais em 1964. ‘A paixéo com que Alvaro mostra ao leitor as suas reflexdes sobre a gé- nese e a manutencao do estado de subdesenvolvimento social, politico, cultural e econémico do Brasil e do seu povo, bem como as possibilidades de superacao dessa situagao, revela a angustia do intelectual sincero, ainda 16 APRESENTAGAO vivendo sob formas explicitas de dominagao em todos os setores da vida brasileira. Passadas tantas décadas, ainda nao vivemos a tao sonhada conscientiza- 40. Ao contrario, hoje, ao lado da dominacio, j4 considerada natural, mul- tiplica-se a apatia e até mesmo a ilusdo de que a nagdo pensa independente e livremente. O que torna o escritor atual nao é a racionalidade dialética hegeliana de suas argumentagoes, algumas até discutiveis a partir de outras referéncias metodol6gicas, mas sim a sua ilimitada capacidade de indignar-se e escan- carar a hipocrisia ¢ a torpeza do mundo intelectual, cujo funcionamento descortina de forma radical as limitagées disciplinares do conhecimento cientifico académico, cheio de malabarismos morais, sociais, politicos e eco- némicos. Mesmo limitando-o a uma estrutura de classes sociais, a andlise que Vieira Pinto faz do funcionamento do poder desafia o leitor a envol- ver-se profundamente com 0 texto. As ligées para os professores, técnicos e outros profissionais sao imperdiveis. Se Paulo Freire nao estd mais conosco para acenar com uma pedagogia do didlogo e da esperanca, se também 0 mestre Alvaro Vieira Pinto esta au- sente para afirmar uma idealizada superacao do subdesenvolvimento para ‘0s povos oprimidos, as palavras deste texto nos convidam a sentar 4 mesa para dialogar sobre a tragica realidade de um mundo 6rfao de consciéncia. Rio do Sul, Santa Catarina, dezembro de 2007 7 sere abel 1 er art to lu (eine nis gaieta eel ~ ea CAB STE sare Done 4 oe WH entveticessa: sitdepexcicinic® fi ie anh: it ayes 2} "e aagwatad (ie penpaeentt att A SOCIOLOGIA DOS PAISES SUBDESENVOLVIDOS* Introducao metodolégica ou pratica metodicamente desenvolvida da ocultagao dos fundamentos sociais do “vale de lagrimas” * Comecei a escrever este caderno em 13 de agosto de 1974. [N.A.] hg ee ee ee ee ees pa sien Laver cond ad aye tees bins daplatnalads be His Tike g ‘een epee] para SS (leo bolrovsnhaie cached 6 deving des 4a neeRaande viplidie.g maswe io neq, “ara (leo tie eanadeeaties arn encores & ‘a _ india de aside 20+ Vinjosspllg-o Piet nneetaaianarabpetinie st rah Maria A eafieltar va ere gtande: Xi oe de epepnapente I entoe ‘WSs excites NSS, avis 4 especie cn cian eerie oe parauder Quand ch Fact, Ceniilengimta caso ee vitOtia, poi ge finial ‘ne avis

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