Você está na página 1de 5
massimomontanari comidacomocultura traduco Letica Martins de Andrade natureza e cultura “Lal @ © homem criou suas plantas e seus animals: assim se intitla um fia de Edward Hyams dedicado& invengio da agrcutura e das préticas de domestcacio. Se 3s primeiras sociedades de cacadorese caletores bastava 0 aprowitamento dos re cursos natura, 0 crescimento da populagio ea necess- ‘dade de consequir maior quantidade de comida pouco a pouco originaram sociedades diversas, dedicadas & ag cultura e a0 pastreio, que produiam a propria comida selecionando 05 recursos dsponivese intervindo de ma- fneira mais ativa nos equilrios ambientais, Essa passa- gem da economia de predacio para a economia de pro- ‘ducio representau uma mudanca decva na aco entre homens teeritério ena cultura doshomens. sso, contu- do, no exclu, por longo tempo, formas "mistas* de aprovisionamentoalimentar que duraram milénios, mes mo depois da introducéo das praticas agricolas a idade neoltica,Além dso, o§ dois modelos cntinuaram a cons tit, também em época histérica, dois mods dversos de entender a relagao entre homem © meio ambiente, ‘los extremos de uma dialética de miltiplasimplicagbes mmateraise simbslicas que, de alguma forma, chegou até (© ponte de vista do qual partimos hoje pode induzi a erro: o homem da civlizacéo industrial e pés-industial tentou reconhecer a “naturalidade” fundamental das at vidades agrcolas, que consideramos “tradicional” em relagdo & nossa experincia por iso somos levados a interpretar como “origindrias" e“arcaicas". Em relaglo 8 reyolucio produtva induzida pelo advento da indistia ia era contempordines, so pode ser em parte jusifia- do: todavia, ainvengao da agrcultura foi perce pelas culturas antigas de modo exatamente contrério. A pers pectiva mental dos antigas colocou a agrcultura como 0 momento de rupturae inovacao, como © salto decisivo que consti hamem "cil", separando-o da natureza, ‘u sea, do mundo dos animals edos "homens sevagens” (eersonagens enigmaticos que voltarso freqdentemente nas lendas © nas tradigbes populares, a0 longo de toda poca historca até 08 n9ss0s dias). O fato é que a domesticagao das plantas e dos animals de certo modo permite a0 homem tornarse dono do mundo natural, declarar-se fra da relagio de dependéncia total em que sempre vveu (ou melhor, imaginava ter sempre vido: porque também o aproveitamento do teritério por mio das atidades de cacae coletaexige um saber fazer, um conhecimento, uma cultura). Essa ruptura &representada ‘de modo exemplar pela mitologiade muitos povos que se tornaram agriultores sedentivos. Nas lendas, nos con- ts, nos mitos de fundacio, eles representaram a inven- (io da agricutura como um gesto de volncia feito & mae tera, frida pelo arado, perturbada pelas obras de irtgacio pels trabalhos de organizacio agra: da os fituais de fecundidade, que tinham ainda a fnalidade, implita ou exoiita, de expiar uma sensagio de culpa ‘A agressvdade fundamental do gesto aparece con firmada no plano histrico pelo carter fortemente ox- pansivo das sociedades agricola, que tendem ainstaurar ‘mecanismos de crescimento demografico desconhecidos dos powos de cagadorese coletores: enquanto ests t= ‘mos (como demonstram os estudos de etnégrafos reali- zados sobre grupos remanescentes dese tipo, por exem- lo, os pigmeus afrcanos)observam um rigoroso controle de nataldade para manterestivel a densidade da popu- lagio, que, em caso decrescimento, no podera sobre ver com aquee tipo de economia, 0s poves agrcultores, a0 contro, desenvolvem, com o sedentaismo, uma tr dncia a0 cescimenta e 3 conquista de novos espacos para cultivar. Por sso, os ests mais recentes conse ‘am prove que a ifusdoda agricutura no tena acon tecido em mais higares contemparaneamente, mas sj, ‘emer disso, fruto (como demonstram indcios arqueold- ‘cos, lingisticos e genéticos) da expansso de grupos hhumanos a partir de um nicl tettorial bem definido, situado nos planaltos do Oriente Préximo e Médlo,o cha ‘mado “Crescente Fertil". AV nasceu a agrcultura, WS cerca {de 10 mil anas, conquistando pouco a pouco os teitri ‘sda Asia centro-oiental (hi 9 mil anos) e da Amética, tna entio Asia no ponte do atva estreto de Boring (8 mil anos atrs). Na dreco oposta, fi colonizada a Euro: 1a (entre &e 6 mil anos atés). Sobre as razdes pata tudo iso, a dias dos estudiosos sto bastantaconcordantes: _ainvengo da agricultura deve ter so fundamentalmen te uma questio de necessdade,ligada a0 crescimento Ldemografico © a0 fato de que a economia de caca ecole tani fosse mais suficente,talvez por causa das mudan- {as diméticas e ambientais que tinham esgotado as 2o- nas florstas. Depos, 0 mecanismo demografico comegou Entre as plantas, foram selecionadas as mais produt: vas e nutitas, e sabretudo 05 cereals receberam ater ‘Bo pvilegiada. Cada regio da mundo elegeu seu cereal preferido: 0 trigo se difundiu na regiao mediterrinea, 0 sorge no continente african, 0 atroz na Asia, 0 milho na ‘América, Em tomo dessas plantas ~verdadeitas “plantas de civiizagSo", coma as defini de modo feliz o historia dor francés Fernand Braudel -,organizou-se toda a vida daquelas sociedades: relagbes econdmicas, formas de poder politico, imaginaro cultural, rituals religiosos (des tinados a assagurar a fertilidade da terra ea abundncia de alimento). A prbpriainvengio da cidade, percebida pelos antigos coma lugar por excelncia da evolu cil (como mostra a coincdéncia semantica, em latin, entre cits chilitas, cidade" "cvilizacio"), no seria poss vel sem o dasenvolimento da agrcultura, sja sobre o plano material (o acimulo de bens rquezas, tecnologia), seja sobre o plano mental (a idéia de que o homem se torna senhor de sie se separa da natureza,construindo tum espaco seu para habitar). Nesse processo de evo lo, as sociedades humanas no se adequaram simples- mente &s condigoesimpostas pelo ambiente. Modifica ram-nas vez ou outta, também de modo profundo, intvoduaindo cuturas fora das dreas origindtias e trans- formando a paisagem em funcio disso, Basta pensar na cultura do arree no nardeste da Asia ou na viticultura na Europa centro-setentrional ~ um verdadeiro desatio ‘tecnolégico diante das candicoes ambientas,niciado na dade Média e que continuou na dade Moderna. E nessecontexto cultural que as primeiras sociedades agricola, também enraizadas nos ttmos naturals © no co das estagbes, laboram aidéia de um “homem civil” ‘que consti artifcaimente a propria comida: uma comi- dando exstente na natureza que, justamente, serve para assnalar a diferenga entre naturezae cultura, seeve para dlstinguir a identidade das bestas daquela dos homens Na regido mediterranea ~ 2 area do tiga, 60 p30 que desenvolve essa fundamental fungio simbelia,além de rutrcionak: © p30 néo existe na natureza, e somente os homens sabem faxélo, tendo elaborado uma sofisticada tecnologia que prev (desde 0 cultivo do gro até a pre- paragao do produto final) uma série de operacbes com pleas, frto delongas experinciasereflexdes, Por isso, 0 pio simboliza a saida do estado bestial e a conguista da ‘ivlizagio". Nos poemas haméricos, a lloda ea Odi sti a expresso "comedores de pao" ésindimo de “ho- mens", Analagamente, na epopéia de Gilgamesh —0 pri rmeito text literatio conhecido, escrito na Mesopotémia hi cerca de 4 mil anos -,conta-se que o homem "selva gem” sau de seu estado de minoria somente na momen to-em que soube da existéncia do pio. Quem o mostra 0s homens uma mulher, lis, uma prosituta; asim se atribui figura feminina 0 papel de quardi do saber a ‘mentar,além da sensualidade, o que, por outro lado, pa rece corresponder a realdade histérica: os estudiosos $80 Lninimes ao admitiaprimazia feminina na abseragio © selagio das plantas que acompanhou osurgimenta da _agricltura a0 redor das primelrasaldeias. Paps simboli 0s idéntcos revestem 0 vinho e a cerveja, bebidas fer rmentadas que, como o ‘mas representam o resultado de um saber e de uma tecnologia complexa: 0 homem aprendea a dominar os rocessos naturas,uiizando-os em benefiio préprio (© que chamamos de cultura coloca-se no ponta de Iterseccio entre tradicao e inovaco, Etradigao porque constituida plossaberes, pela tcnicas, pelos valores que ro ester na natureza, nos si tansmitides € inovago porque aqueles saberes, aquelas técnicas e aqueles valores mocificam a posigao do homem no cantexto ambiental, tornando-o capaz de ‘experimentar novas realidades,Inovacio bem-sucedida: assim poderiamos defnia tradi. A cultura éainterface entre as duas perspectvas.

Você também pode gostar