Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
desemprego, montar uma lojinha perto da minha casa e ser administradora do meu
próprio negócio. Só que eu sabia que não era a hora. Ainda pagava o
financiamento da faculdade, o consórcio do carro e ajudava meus pais em casa, já
que a situação não estava fácil para ninguém. Além disso, havia o meu objetivo
de fazer uma pós-graduação em gestão de negócios.
— Bete estava despachando os vendedores, Sr. Everaldo.
— Mariana! — ele trocou de alvo rapidamente. — Tu achas certo uma
pessoa tirar férias no Carnaval e outra precisar substitui-la? — Ele falava da
Bete e do pedido de férias dela que foi negado. Que idiota! Mariana deu um
sorriso amarelo, encolhendo-se sem coragem de mandá-lo à merda. — E tu,
Milena?
— Eu aceitaria tirar as férias dela de boa mesmo.
Carbela tapou a boca para não rir alto.
— De boa mesmo não é vocabulário, Milena. — Ele me repreendeu como
se eu tivesse falado um absurdo. Chato! Poderia morrer que ninguém sentiria
falta. — Tudo certo para a reunião de amanhã, Antônia?
— Tudo sim, Sr. Everaldo.
— E os slides?
— Já enviei para o senhor — ela disse com um tom enfadonho.
Antônia era a primeira secretária, a que cuidava de tudo que dizia respeito
à gerência regional, que era o cargo ocupado pelo Sr. Everaldo. Eu e as outras
meninas cuidávamos das gerências que se submetiam à Regional.
Nós duas éramos as únicas que não temiam a fera. Ela o tratava com
desdém e ironia, enquanto eu respondia com a mesma firmeza que ele. As outras
secretárias só faltavam morrer todas as vezes que ouviam seus nomes ditos
naquele sotaque.
— Não chegaram! — falou rápido e grosso. — Mande outra vez.
Fiquei olhando para o computador fazendo o que sempre fazia: jogando
cartas. Era perceptível que aquele setor não precisava de quatro secretárias. Não
havia trabalho suficiente para todas, e no final do dia ficávamos assim: sem
nenhuma atividade, organizando os arquivos, revendo contratos ou tirando
dúvidas dos vendedores, algo que duas pessoas poderiam fazer sem se sentirem
cansadas.
Aquele trabalho estava acabando com o meu psicológico. Foram quatro
anos em uma faculdade esforçando-me para ter as melhores notas, dedicando-me
e iludindo-me com um futuro promissor, para acabar em uma sala imensa com um
chefe diabólico, fazendo um trabalho que qualquer pessoa conseguiria fazer.
Eu seria muito feliz com uma pequena loja de mimos. Sabe aquelas lojas
com almofadas com frases lindas, canecas, material de escritório, porta-retratos,
tudo bem separadinho por cor, estilo, ambiente... Eu saberia fazer o livro
contábil, calcular o preço dos produtos e tudo o que uma empresa precisa para
dar certo. Mas estava ali, naquela cadeira chique de escritório, olhando o
computador novo e jogando cartas enquanto a parcial de vendas não saía.
Olhei para o celular que indicava várias mensagens da Fernanda. Ela
insistia na escolha dos vestidos para aquela festa sem cabimento. Dez anos depois
do segundo grau, ela queria comparecer a um baile de máscaras promovido pela
escola para os ex-alunos.
Nem morta eu pisaria naquele baile!
O que eu faria lá? Contaria sobre o meu trabalho animador? Falaria com
orgulho que nunca seria promovida, pois o meu chefe era um porco machista que
dizia que o cargo máximo de uma mulher era o de secretária? Ou acharia lindo
contar que continuava morando no mesmo lugar com os meus pais, dividindo o
quarto com mais três irmãs, porque meu salário não me permitia pagar um aluguel
e conquistar a minha independência?
Não. Eu jamais iria àquele baile contar às pessoas que de nada adiantou
fazer planos, estudar, sonhar... Nem mesmo um relacionamento decente eu tinha.
Cabral tinha terminado comigo há duas semanas, alegando não termos mais a
mesma disposição de antes. Mas eu sabia que era por causa do Carnaval.
Eu não tinha um marido, um bom emprego, filhos, uma casa com piscina...
estava beirando os trinta anos e sentindo-me completamente fracassada para
encontrar com meus ex-colegas, que certamente estariam melhor do que eu.
E, sinceramente, nem fazia ideia do motivo de ela querer tanto ir ao baile,
já que podíamos curtir livremente o Carnaval de rua. Quem sabe comprar um
abadá no comércio anterior ao circuito, dividir em cem vezes no cartão de
crédito, beijar muito na boca, beber sem recriminações e voltar para casa
acabadas, porém ansiosas para o dia seguinte.
O que um baile de máscaras para ex-alunos poderia ter de interessante?
Nada. Um monte de mentirosos arrotando seus sucessos ou encobrindo os
fracassos, competindo para ganhar o título de idiotas do ano.
Eu não vou!
Mesmo assim, estava curiosa para verificar os vestidos que Fernanda
tinha selecionado e quais máscaras tinha comprado. Nós até poderíamos usá-las
na rua, afinal de contas era Carnaval e a brincadeira estava liberada. Nada de ex-
colegas, ex-namorado escroto e esposa filha da puta que desfilou com ele para a
escola toda depois de roubá-lo de mim.
— O relatório saiu — Mariana falou com o entusiasmo de quem sabia que
em poucos minutos estaríamos liberadas da presença do diabo.
Levantamos para olhar a parcial, verificando qual área estava na frente e
qual vendedor tinha uma melhor posição. O Sr. Everaldo nos olhava atentamente.
Ele não gostava que interagíssemos, não gostava que fôssemos amigas, não
gostava sequer que fôssemos educadas.
— Mariana? — arrastou a voz ao chamar a minha colega, já em tom de
reprimenda. — O resultado, por favor!
— Acabei de enviar, Sr. Everaldo. — Mariana tinha tanto medo dele que
ficava pálida todas as vezes que precisava falar com o chefe diretamente.
— Cinco horas. Podemos ir, Sr. Everaldo?
Antônia já estava de pé, a bolsa na mão e o computador desligado. Ele a
olhou por cima dos óculos, endireitou a coluna, conferiu o relógio e gesticulou,
despachando-nos. Imediatamente começamos a arrumar nossas coisas, uma mais
rápido do que a outra, porque sabíamos que ele sempre dava um jeito de ser
escroto com alguém, e ninguém queria ser pego para Cristo.
Joguei a bolsa nas costas e tirei o celular de cima da mesa enquanto
desligava o computador. Segui rapidamente Antônia quando ouvi o Sr. Everaldo
dizer:
— Mariana, faça o favor!
Ainda olhei para a minha colega que ficou mais pálida do que o normal.
Ela tirou a bolsa dos ombros e foi em direção à mesa do chefe enquanto saíamos
apressadas para não sermos as próximas.
O Sr. Everaldo era mesmo o diabo.
Capítulo 2
“Ei, você aí! Me dá um dinheiro aí!
Me dá um dinheiro aí!”
Me dá um dinheiro aí - Ivan Ferreira-Homero Ferreira-Glauco Ferreira, 1959
— São seis da manhã, está chovendo e você está me acompanhando até o
ponto de ônibus só pra tentar me convencer a ir ao maldito baile? Não tem
nenhuma encomenda para hoje, não? — Segurei o guarda-chuva para proteger
melhor nós duas.
— Até parece que alguém faz festa no Carnaval — Fernanda resmungou
sem perder o passo.
Quando acordei e vi o tempo, lembrei que, na pressa, deixei meu guarda-
chuva na primeira gaveta da minha mesa na empresa. Era péssimo já acordar
odiando o chefe, mas foi como me senti. Se ele não fosse tão insuportável, eu não
precisaria bater na porta da Fê para lhe pedir o guarda-chuva emprestado.
Nós morávamos no mesmo prédio, o Condomínio 128, há tantos anos que
eu já tinha perdido as contas. Eu no sexto andar e ela no terceiro, mas só nos
tornamos amigas quando estudamos na mesma escola e na mesma sala. Depois
disso não nos desgrudamos mais.
Ela morava sozinha e vinha pensando em vender seu apartamento, pois se
sentia muito só depois que o pai morreu. Muitas e muitas vezes tinha me chamado
para dividir o apê com ela, mas minhas condições financeiras não ajudavam.
Além do mais, Fê vivia um caso de amor com o qual eu não concordava e que eu
não apoiava. Ela sofria, estava sempre só e infeliz, mas...
Fernanda tinha um buffet pequeno, mas muito bem organizado. Ela
projetava, arrumava e organizava festas lindas. Seu maior sonho era conseguir
atingir um público de classe melhor e assim ganhar mais, já que apesar das suas
festas serem lindas, as pessoas que a procuravam não podiam pagar o que valiam.
— Já está sabendo da última?
— Não. Eu não tenho contato com os nossos ex-colegas. — Revirei os
olhos e ela me empurrou com os ombros.
— É do condomínio, sua boba.
— Aquele gato ficou com o apartamento vazio do seu andar?
— Ah, não sei — ela disse, rindo como uma adolescente. — Mas é fofoca
de confusão.
— Ai, meu Deus! Conta aí.
— O dinheiro guardado para pagar a obra do rateio da água sumiu.
— Como assim? — Virei para a minha amiga e acabei me molhando. —
Ai! Não puxe o guarda-chuva!
— Eu não puxei! Deixa eu contar logo. Você sabe a confusão que ainda
persiste por causa da nova síndica, não é?
— Sim. Esse povo é muito desocupado. Coitada da Lorena! Quer dizer... o
dinheiro sumiu e ela tem alguma coisa a ver com isso? Porque se tiver, a galera
da velha-guarda vai crescer para cima da comissão da Lorena.
— Pois é. Ninguém sabe o que aconteceu. O dinheiro estava lá e agora
não está mais. A própria Lorena contou que o dinheiro estava na conta um dia
antes, quando verificou o saldo para saber quanto faltava para pagar a segunda
parcela das obras. No dia seguinte, não tinha mais nada na conta. Foi a maior
confusão no condomínio.
— Isso é sério. Meu ônibus. Mande mensagem.
— Mas nós nem decidimos sobre o baile — Fê falou fazendo biquinho, os
olhos verdes brilhantes e a bochecha rosada colaborando para tentar me
convencer.
— Eu odeio o gato de botas — resmunguei para dissuadi-la. Minha amiga
me mostrou a língua e eu entrei no ônibus lotado rumo à minha viagem infernal.
***
Apesar de ser um dia decisivo para todos nós, Antônia resolveu que
poderia chegar atrasada. Todos os documentos e o que precisávamos para
organizar as reuniões estavam trancados na gaveta dela. E ela era a única das
secretárias que tinha carro.
Todas nós enfrentamos chuva, trânsito ruim e a falta de vontade de
trabalhar para estar lá mais cedo e não deixar nada faltar para as reuniões que
receberiam todos os diretores do grupo Ferreira Martins, dono da empresa em
que eu trabalhava. O próprio Ferreira Martins participaria de algumas reuniões,
por isso o Sr. Everaldo estava mais do que nervoso.
Estava tentando secar o excesso de água da barra da minha calça e
conferindo se meu cabelo estava arrumado quando Antônia entrou na sala com
uma cara ótima, nem um fio de cabelo desarrumado, nem uma gota de água na
roupa. Ela sorriu e assumiu o seu lugar sem demonstrar que tinha feito algo de
errado.
Olhamos uma para a outra e continuamos os nossos trabalhos. Foi quando
o Sr. Everaldo andou até onde ficávamos, como se não quisesse nada. Ele
circulou a grande mesa projetada para interligar as quatro secretárias, passou o
dedo na poeira que não existia, e quando pensamos que só ficaria por ali
conferindo nossas atividades, ele soltou o veneno do dia:
— Mariana, quantos ônibus tu pegas para chegar aqui? — Mariana me
lançou um olhar cheio de medo.
— Dois para vir e dois para voltar, Sr. Everaldo.
— E nunca chegastes atrasada, não é mesmo?
— Eu... eu acho que não.
— E tu, Carbela?
— Apenas um, o restante do caminho eu venho de carona.
— Milena? — Encarei meu chefe, imaginando o tipo de confusão ele
queria arrumar. — Quantos ônibus tu pegas?
— Dois. — Ele concordou com a cabeça e deu um sorriso mínimo.
— E tu não achas que é injusto e desrespeitoso com o seu trabalho que em
um dia como o de hoje, com chuva, tenhas que pegar duas conduções para chegar
até aqui no horário, enquanto uma colega que tem carro chega atrasada?
Ele me olhou com firmeza, sabendo que eu não concordava com o
comportamento de Antônia e que ele tinha razão em usar aqueles argumentos. O
silêncio na sala chegava a ser constrangedor. Todos aguardavam a minha
resposta.
— Eu não acho nada, Sr. Everaldo. Não sou paga para conferir o horário
dos funcionários. Se o senhor que é o chefe não tem uma opinião, por que eu
deveria ter?
Desta vez o silêncio foi mais por ninguém acreditar na minha coragem do
que pelo medo do que ele pretendia fazer com aqueles argumentos. Ele me fuzilou
com olhos, suspirou e não disse mais nada. Deu um fraco soquinho na mesa e logo
em seguida voltou ao seu trono. Soltei o ar preso e sentei. Quando olhei para as
minhas colegas, elas estavam sorrindo.
Depois daquela resposta, eu sabia que seria castigada durante o dia
inteiro. E só não seria pela semana toda porque era sexta-feira, o sábado não
seria meu turno, já que nos revezávamos para trabalhar as quatro horas exigidas,
ficando um sábado para cada uma, e na segunda e terça eu estaria livre daquela
peste, pois estávamos liberadas para o Carnaval. Parecia um sonho.
***
Eu e Mariana organizamos a sala da primeira reunião para uma
apresentação do novo organograma da empresa e do novo sistema a ser
implantado em todo o grupo. Vários homens importantes passeavam pelos
corredores e só poucas mulheres, o que era lastimável.
Muitos seguiam o Sr. Everaldo, que andava na frente como um pavão,
orgulhoso, prepotente, olhando as pessoas de cima e agindo como se fosse o rei
do universo.
Todos os funcionários do administrativo foram convocados para a
primeira reunião, onde os diretores seriam apresentados e falariam sobre os
novos projetos para o grupo.
Ficamos no canto, logo na frente, prontas para atender qualquer chamado
do nosso chefe, enquanto aqueles homens se revezavam falando e falando um
monte de baboseiras, que no final significavam que eles ficariam mais ricos e nós
continuaríamos pobres.
Enquanto eles falavam eu me pegava pensando no tal baile de máscaras,
uma bobagem que até atiçava a minha curiosidade. Eu podia não ter o emprego
dos sonhos, não ter um namorado que pudesse esfregar a minha felicidade na cara
de algumas pessoas, mas ainda tinha um corpo legal, as pessoas me achavam
bonita e, vamos ser justas, eu estava em uma ótima fase com o cabelo cortado
estilosamente acima dos ombros e com uma progressiva impecável, pela qual
ainda pagaria a terceira e última prestação.
Com um pouco de esforço conseguiria desfilar na frente daqueles infelizes
e mostrar que minha vida estava muito melhor sem o Afonso, meu ex-namorado
do ensino médio, um nojento que havia me abandonado para ficar com Sabrina,
nossa colega de sala com quem tinha se casado e que eu esperava que toda a
justiça do mundo fosse feita, deixando-a gorda e cheia de celulites nestes dez
anos longe dos meus olhos.
Ah, eu não iria àquele baile! Quem eu queria enganar? Sabrina
provavelmente estaria linda, com filhos adoráveis e ao lado do belo marido que
nem lembraria que me namorou um dia, de tão feliz que estava. Eu não iria à festa
para ele esfregar na minha cara que realmente fez uma escolha melhor ficando
com ela.
No final da reunião, quando eu já não aguentava mais ficar de pé ouvindo
tudo o que nem tinha interesse de participar, já que pretendia ir embora na
primeira oportunidade e montar o meu próprio negócio, e de me torturar pensando
no quanto seria maravilhoso eu ter algo para passar na cara do Afonso, eles
chamaram o novo gerente da divisão Salvador/Lauro de Freitas.
Todos aplaudiram quando um homem alto, loiro, olhos castanhos, feições
bem desenhadas e porte atlético subiu ao palco. Ele sorriu mostrando dentes
incrivelmente perfeitos, que me levaram a pensar no quanto eu deveria ter seguido
a recomendação do dentista e ajustado os meus. Aquele cara soube investir em um
sorriso.
— Minha nossa! — Antônia sussurrou ao meu lado e riu.
Olhei para trás e duas garotas da contabilidade estavam sorrindo,
aprovando o novo gerente. Ele era mesmo muito bonito. Parecia o Capitão
América. Ficaria lindo usando aquela malha que valoriza o corpo. Chegava a ter
até o mesmo olhar gentil.
— O diabo está te olhando. É melhor parar de olhar tanto para o novo
gerente. Que sorte a da Bete! — Antônia comentou, tentando não rir.
Desviei o olhar na mesma hora, fingindo interesse na programação que
havíamos distribuído mais cedo para que todos pudessem saber em que sala seria
a reunião da qual deveriam participar. Mas ele era mesmo muito bonito naquela
calça social, demonstrando pernas trabalhadas e barriga sarada.
— Gente, acho que a sobremesa veio errada — Mariana sussurrou,
chamando a nossa atenção.
— Como assim? — Antônia virou alarmada.
— Sei lá. Ela tem um aspecto feio e cheiro de queimado.
— Cheiro de queimado? Mas é uma torta búlgara!
— E o que é isso? — Antônia revirou os olhos e foi checar a tal
sobremesa.
Todos costumávamos almoçar no refeitório, inclusive o insuportável do
meu chefe. Mas naquele dia, ele resolveu transformar a nossa sala em restaurante
e nos incumbiu da missão de deixar tudo pronto para recebê-los.
Antônia foi na frente. Quando consegui chegar, ela já tinha ajustado tudo,
inclusive conferido a sobremesa, que estava certa. Os garçons também já estavam
aguardando os convidados. Assim que os diretores chegaram, acompanhados dos
gerentes, fomos dispensadas para o nosso almoço simples no refeitório. Uma
injustiça!
— Que pedante! — Bete resmungou, sentando com seu prato ao meu lado.
— O gerente novo?
— Não! Os diretores. O Ferreira Martins. Todos eles.
— Ah! — Coloquei uma garfada de alface na boca, obrigando-me a gostar
do sabor. Era uma merda fazer regime!
— O Luiz é lindo! — Ela me cutucou rindo. — Só espero que não seja
terrível como os outros.
— O Ângelo é ótimo! — Mariana brincou, intrometendo-se na conversa, e
todas rimos, protestando.
Ângelo era tão ruim quanto o Sr. Everaldo, inclusive o chamávamos de
estagiário do diabo, porque ele seguia a mesma linha grosseira, machista e
arrogante do chefe.
— O nome dele é Luiz? — perguntei, questionando-me como não prestei
atenção quando o anunciaram. Mas eu estava tão entediada que toda hora me
perdia em pensamentos.
— Luiz — Bete confirmou, levando uma garfada de purê de aipim à boca.
Que inveja! — Ele tem uma carinha de anjo! Coitado, se for mesmo um bom
garoto vai ser engolido pelo diabo.
— Minha avó dizia que se chamarmos o tempo todo o nome do coisa ruim
ele aparece. Então vamos parar de falar do Sr. Everaldo, porque não quero aquela
cara feia aqui para me causar indigestão — Carbela falou, fazendo-nos rir.
A tarde passou voando. Era tanta gente nova andando pela empresa, que
eu mal conseguia identificar quem era quem. O tempo todo nos solicitavam
alguma coisa diferente, até mesmo servir cafezinho para os idiotas - uma forma de
o Sr. Everaldo me punir pela resposta malcriada.
Foi a pior parte daquela tarde. Caramba! Eu era formada em
Administração de Empresas e estava ali para colocar em prática tudo o que levei
anos estudando, e para quê? Para servir café a um grupo de homens que
provavelmente estudou menos do que eu.
Tive vontade de jogar tudo para o alto e pedir demissão na mesma hora.
Cheguei até a pensar em ir direto para o da empresa e sair de lá sem dar
RH
só ficava pensando se o Afonso tinha percebido que eu não perguntei nada e não
me interessava por aquilo que ele fazia da vida.
— Legal! — Virei para o bar e peguei mais uma cerveja.
— Você não bebia — Afonso falou no meu ouvido, fazendo meu corpo
ficar todo arrepiado.
— Eu cresci — rebati meio rebelde. Mas ele riu, gostando da minha
reação.
— Vamos dançar? Tem muita gente da nossa turma mais para o meio da
quadra.
Olhei para ele chocada. Foi mais fácil do que eu pensava. Afonso estava
todo derretido para o meu lado, fazendo comentários sobre coisas que ainda
lembrava de mim e me convidando para dançar? Uau!
Só de pirraça aceitei. Seria uma boa forma de mostrar que eu ainda estava
no páreo. Que ele tinha deixado a Milena menina e com isso perdido a Milena
mulher. Fui para o meio da quadra dançando o mais sensual que a música
permitia, afinal de contas era Carnaval e a canção dizia “por isso chame, chame,
chame, chame gente...”, ou seja, era pular ou pular. Mas dava para pular
sensualmente. Assim eu esperava.
Meu corpo ficou logo suado enquanto nos entregávamos à folia e nos
soltávamos cada vez mais. Muitas e muitas vezes alguém trocava a minha garrafa
de cerveja por outra mais gelada. O calor me impulsionava a beber, que me
impulsionava a fazer qualquer besteira que estivesse ao meu alcance, como beijar
o Afonso, por exemplo.
Seria só um beijo. Menti para mim mesma. Olhei para ele sorrindo, muito
próximo e suado, os olhos bem atentos a tudo o que eu fazia, encantado demais.
Segurei a gola da sua camisa e o puxei na minha direção. Afonso hesitou, mas
cedeu quando colei meus lábios nos dele.
Eu queria dizer que o beijo era exatamente como eu lembrava, mas a
verdade era que eu não lembrava mais nem de seus toques nem de nada que
pudesse me recordar dos velhos tempos quando finalmente nos beijamos.
No entanto, posso dizer que o beijo dele melhorou muito com o tempo,
pois eu nunca esqueceria de lábios tão macios e língua tão gentil.
Afonso só me tocou quando nossos lábios já estavam familiarizados. Ele
fechou aquelas mãos grandes... grandes? Eu não lembrava dele com detalhes, mas
aquelas mãos eram grandes, quentes e seguras. Então ele envolveu minha cintura e
me puxou para o seu corpo, ganhando território facilmente.
Era tão sensual beijá-lo no meio daquela quadra de esportes onde
namoramos muitas vezes na adolescência. Só que aquele homem ali, colado a
mim e que me beijava de maneira deliciosa, não se parecia em nada com o da
minha época do colegial. Ele era seguro, forte, gentil, sexy ao extremo e estava
me deixando louca no meio da pista, sem nem ter me tocado direito.
As músicas ficaram mais curtas, o ambiente mais abafado, o espaço mais
apertado e eu só conseguia pensar em seus dedos subindo e descendo pelas
minhas costas, tocando a pele nos lugares onde o vestido não cobria. Ele não se
cansava de me beijar, não parava e era lento, gostoso, constante, carinhoso,
quente, muito quente. Absurdamente quente. Então ele parou e sorriu.
— Preciso de uma bebida — anunciou, olhando-me de uma maneira
estranha. Como se estivesse muito satisfeito por ter me beijado, e ao mesmo
tempo como se não acreditasse no que tinha feito.
— Ótima ideia! — forcei a voz para não parecer tão decepcionada. Se ele
quisesse sumir eu nem me importaria.
Mentira.
Poxa, ele beijava tão bem e tinha um toque tão gostoso! E daí se tínhamos
uma mágoa do passado e se eu falei mal dele para todas as pessoas com quem
conversei depois do episódio da traição? E o que me importava se ele tinha
acabado de se separar?
Afonso segurou minha mão e me tirou do meio da confusão de corpos
dançando sem parar. Algumas pessoas nos olharam e sorriram, provavelmente
pensando: coitada, ficou esse tempo todo esperando por ele. Mas a maioria nem
se importou com a gente.
Ele parou em frente ao bar, pediu duas cervejas, entregou uma para mim e
bebeu a dele quase que de uma vez só. Tenso? Olhei para os lados procurando
pela Fê que tinha simplesmente desaparecido. Nessas horas é que eu não entendia
como algum dia consegui viver sem celular.
Aquela máscara estava começando a me incomodar, mas eu não estava
nem um pouco a fim de tirá-la e deixar que todo mundo constatasse que era eu
mesma com o Afonso, aceitando-o de volta em minha vida.
— Quer voltar a dançar? — A maneira constrangida como falou me
deixou desanimada. — É que tá calor aqui dentro. Pensei em dar uma volta lá
fora. Vamos?
Hummmmm!!!!!! Que espertinho. Mas quer saber? Eu ia sim. Faria Afonso
relembrar o quanto era bom estar comigo.
— Tudo bem. — Dei um gole em minha cerveja, disfarçando a ansiedade.
Depois comecei a rir, me sentindo uma tola.
Se Fernanda estivesse ali, me impediria de ir tão longe. Logo eu que a
bombardeava com a minha moral, censurando-a por ter um caso com um homem
casado, por ter se deixado apaixonar e iludir com a ideia de que um dia ele
largaria a esposa. Logo eu que ria das mulheres tolas e orgulhosas que colocavam
a própria felicidade em xeque só para não abrir mão de relacionamentos já
esgotados.
Eu, aquela que nunca se preocupou com sexo, desde que fosse com
respeito e confiança, desde que fosse com um cara que não quisesse apenas uma
transa casual, desde que... eu estava ali, beijando – e adorando beijar um ex-
namorado que me fez sofrer por muito tempo ao escolher outra e me deixar para
trás.
Aceitei o seu convite, adorando saber que teria a chance de mostrar que
eu cresci, que segui em frente e que ganhei experiência. Que não era mais aquela
garota apaixonada, que aceitou perder a virgindade por acreditar que o amor dele
era real e infinito.
Que tola eu fui!
Que tola continuava sendo.
— Vamos. — Ele segurou outra vez minha mão, levando-me para fora do
ginásio sem se importar se algumas pessoas nos olhavam com curiosidade.
Então comecei a me convencer de que seriam apenas uns amassos, nada
mais do que isso. Ou, quem sabe, a chance de termos uma conversa franca, de
colocarmos uma pedra naquele assunto e eu finalmente conseguir seguir em frente
sem carregar comigo o peso daquela história.
Afonso caminhou pelo estacionamento que antes era destinado aos
professores e funcionários, e seguimos para os fundos da escola, onde antes
tínhamos uma passagem para uma área reservada com muitas árvores. Alguns
carros estavam estacionados ali e ele seguiu até parar ao lado de um na cor prata,
grande e chamativo.
Assim que escolheu o local, encostou no carro e me puxou para os seus
braços. Pela primeira vez naquela noite senti receio do que estávamos fazendo,
mas ele tratava tudo com muita leveza e de certa forma eu estava confortável, o
que era estranho e contraditório.
— Acho que podemos tirar as máscaras agora, não? — sussurrou antes de
me beijar.
Busquei seus olhos, mas estava escuro. Não era um escuro tipo breu, mas
um escuro tipo penumbra, com as luzes dos prédios ao redor bloqueadas pelas
árvores - então eu conseguia enxergar a ponta do carro, contudo nunca conseguiria
dizer qual era o modelo, por exemplo.
E ele ainda tinha me puxado para a parte mais escondida e discreta. Então
não via muita diferença entre estarmos de máscara ou não, já que eu não
conseguiria enxergá-lo mesmo. No entanto, a minha máscara também estava me
incomodando, por isso desatei logo o laço e a retirei antes que ele conseguisse
retirar a dele.
— Como uma peça pequena e boba consegue pinicar tanto? — resmunguei
e ele riu, passando as mãos pelo meu rosto como se tentasse relembrar a minha
fisionomia.
— Não é mesmo uma bobagem essa brincadeira de máscaras? — ele
disse rindo.
No silêncio do lado de fora consegui perceber melhor a voz dele. Estava
diferente não apenas pela segurança e seriedade que não existiam antes, mas
estava mais rouca, mais baixa e contida, o que poderia ser justificado pelo
momento quente que estávamos nos permitindo viver, ou poderia ser algo que ele
adquiriu para compor a profissão. Um médico pediatra tinha que ser alguém que
passasse tranquilidade e segurança, não é mesmo?
— É, é sim — respondi tarde demais.
Ele continuou acariciando o meu rosto. O som da festa estava tão distante
que parecia ser em outra realidade e não mais na nossa. Afonso estava calmo,
calado, deixando que a própria noite falasse por si. Definitivamente, aquele não
era o Afonso que conheci no segundo grau, porém, verdade seja dita, aquele
Afonso era uma maravilha.
Ele se aproximou, me beijando justamente quando meus olhos começavam
a se acostumar com a escuridão. Precisei fechá-los para curtir o momento. Ainda
era aquele beijo calmo, contudo sem hesitação, confiante, sem qualquer pressa de
alcançar o objetivo.
E foi gostoso demais!
Quando nossas bocas se desconectavam ele suspirava, roçava os lábios
pela minha pele, acariciava meus braços com a ponta dos dedos e sem demonstrar
ansiedade me abraçava, me puxava para si voltando a me beijar sem esconder o
quanto estava excitado. Cada vez que recomeçávamos o processo a volta do beijo
era mais intensa, forte, cheia de vontade.
Meu corpo reagia de maneira muito natural, aceitando que existia uma
necessidade de ir até o fim, contudo sem qualquer pressa. E assim, aos poucos,
me vi tão envolvida, que qualquer ponto do passado ou cobrança do futuro não
tinha nenhum peso.
Eu queria aquela noite com o som da festa ao fundo quase inexistente, o
barulho da própria mata, os gemidos que escapuliam das nossas bocas, os toques
ousados acendendo todo o meu corpo, a maneira como ele me puxava deixando
claro o quanto me queria.
Seus dedos longos alisaram minhas coxas e sem delongas subiram por
dentro do meu vestido. Não me pareceu algo inapropriado ou avançado demais
para um reencontro tão tardio. Pelo contrário. Eu estava tão sensível que sentir
seus dedos em uma zona resguardada me fez suspirar e ansiar por mais.
Mais de seus dedos, de seus toques e dele em mim.
Afonso nos girou com um gemido que dizia tudo. Abri os olhos e levantei
o rosto percebendo algumas estrelas brilhando entre os pequenos espaços das
folhas das árvores altas. Então voltei a fechá-los, pois seus lábios desceram em
meu decote aproveitando a nossa posição, sem ir muito além do que julgava ser
apropriado para uns amassos explícitos.
Ainda assim me senti mais excitada, ciente de que, o que quer que
acontecesse ali, deveria ser da maneira mais discreta possível. Ele mordeu meu
pescoço e chupou sem pressão, para não deixar marcas, o que achei fantástico.
Suas mãos se espalmaram em minha bunda puxando-me contra seu corpo e
fazendo-me sentir a sua ereção.
Será que ainda era igual? Quer dizer... não que depois dos dezoito os
garotos tivessem muita mudança nesta parte da anatomia, mas ele estava mais
forte, mais homem então... Ah, Deus! Os dedos dele invadiram a minha calcinha
pelo fundo, tocando minha pele mais reservada e me fazendo gemer com mais
intensidade. Logo em seguida seus lábios tomaram os meus outra vez, me fazendo
esquecer qualquer regra de conduta.
Começamos a nos movimentar lentamente num leve roçar que
acompanhava a dança dos nossos lábios, anunciando que a química ainda era boa.
Se é que foi quando éramos adolescentes ou eu acreditava nisso por ser
inexperiente e estar apaixonada.
O fato era que ele se movimentava muito gostoso, e eu já começava a
entender que não havia mais escapatória. Era isso ou me satisfazer sozinha no
banheiro da Fê, o que era super constrangedor.
Pelo visto ele pensou o mesmo que eu, e quando sua mão se aventurou de
maneira mais ousada, deixando de acariciar minhas coxas para me tocar de
maneira mais íntima, Afonso entendeu que eu já estava completamente no jogo.
Seu gemido rouco só serviu para deixar claro que ele estava de acordo.
Que explodissem todos os conceitos, preconceitos, princípios e regras.
Seus beijos ficaram mais intensos, fortes, profundos e então ele
abandonou meus lábios sem me deixar em momento algum. Sua boca desceu pelo
meu corpo, pelo vestido, acompanhada de suas mãos que deslizaram pelas minhas
coxas levando junto a calcinha. Prendi a respiração, mas ele não hesitou em
momento algum, até que retirou a peça e se levantou sem tirar as mãos de mim.
Eu estava sem calcinha, de vestido, encostada em um carro nos fundos da
escola, no meio de árvores e exposta. Era para ser perturbador, contudo eu me
sentia cada vez mais excitada. Como ele podia mexer tanto comigo depois de tudo
o que vivemos?
Afonso voltou a colar o corpo dele no meu e me beijou cheio de vontade,
as pontas dos dedos circulando minhas coxas e quadris sem ir mais além, o que
me fazia perder o juízo. Minhas mãos, antes comportadas alisando suas costas,
não conseguiam mais obedecer ao protocolo e ganharam vontade própria
descendo até a sua bunda, durinha por sinal, apertando-a e aproveitando para
puxá-lo cada vez mais contra meu corpo já no limite.
Senti o exato momento em que ele perdeu o controle, deixando de querer
prolongar o momento até não haver mais como suportar. Meu ex-namorado me
puxou com força, roçando com mais vontade para logo em seguida se afastar. Na
escuridão não consegui enxergar o que fazia, mas soube imediatamente quando
ouvi o familiar barulho da embalagem da camisinha sendo rasgada.
Respirei fundo, ciente de que era o que eu queria. Então, aguardei que ele
voltasse a me buscar e me conduzisse. E assim foi feito. Completamente seguro,
Afonso abriu minhas pernas o suficiente para se encaixar entre elas, levantando-
me um pouco na lataria do carro. Seguindo o mesmo padrão, ele me preencheu
lentamente, curtindo cada avanço, cada pedacinho conquistado, completando-me
com perfeição.
Fechei os olhos, me permitindo sentir seu corpo dentro do meu, vencendo
minhas paredes, ativando meu sistema nervoso e me proporcionando um prazer
que há muito eu não sentia. Gemi deliciada demais para me conter. Ele mordeu
meu queixo, indo um pouco mais fundo com um rebolado lento e sensual.
Completamente adaptada a meu parceiro, começamos a rebolar bem
devagar. Ele investindo bem fundo e eu recebendo-o, aceitando-o e conduzindo-o
a me proporcionar o melhor prazer possível, depois aceitando sua saída mínima,
puxando-o de volta, dividindo a maravilha do momento com ele.
Foi maravilhoso! Fantástico! Delicioso como tudo que é proibido. Foi
libertador!
Quando o fogo ficou mais intenso e os movimentos não conseguiam mais
ser contidos, senti sua mão nas minhas costas me mantendo firme e a outra em meu
rosto, os lábios bem perto dos meus, mas sem me beijar, só gemendo comigo.
Eu me senti esticar, alongar, ser puxada até não haver mais espaço, para
então ser abandonada e meu corpo cair em um mar de prazer, abraçando um
orgasmo tão fabuloso que me fez sorrir, aceitando-o por completo.
Porra, o tempo era mesmo injusto, pois havia transformado Afonso no
homem perfeito. Cretino!
Ele ainda gemia entregue enquanto meu corpo se despedia da sensação
majestosa. E só então voltou a me beijar, outra vez com cuidado, sem pressa, com
gratidão, o que de verdade me desconcertou.
— Você nem imagina o quanto desejei isso — sussurrou com a voz ainda
embargada.
Ah. Meu. Deus!
O que ele estava dizendo? Que pensou em mim esses anos todos? Que
estar com a deusa master da beleza não apagou o que fomos? O universo era
mesmo maravilhoso, porque Sabrina merecia saber daquilo.
Ri, escondendo o meu contentamento, mas eu estava eufórica.
— Acho que bebi um pouco demais — anunciei, sentindo a deliciosa
letargia que se apossava de mim após um orgasmo tão gostoso. — Preciso
procurar pela Fê. — Afastei Afonso um pouco, me dando conta de que realmente
tinha bebido demais. Arrumei meu vestido e quando tentei insinuar que ia voltar,
ele me abraçou com carinho.
— Fernanda já deve ter voltado pra casa. Venha comigo.
— O quê? — Ri, sem acreditar que ele queria estender a nossa noite.
— Vem comigo. Amanhã eu te levo pra casa.
Ponderei. Merda! Eu precisava de um celular.
— Posso usar o seu celular? — Ele não hesitou e nem me perguntou nada,
só pegou o aparelho em cima do carro e o entregou para mim.
Abri sua agenda, cadastrei o número da Fê, salvei e enviei uma mensagem
rápida.
“Estou com o Afonso. Vejo você amanhã. Te detesto!”
Assim ela saberia que era eu.
Devolvi o aparelho. Ele o colocou no bolso e destravou o carro, pegando-
me de surpresa. Então ele já sabia que ali era o local ideal? Que safado!
— É melhor colocarmos as máscaras — pedi com receio.
— Por quê?
— Porque vamos passar pela frente da escola, então é melhor estarmos de
máscaras.
— Tudo bem! — Aceitou sem estar muito satisfeito.
Ele me ajudou a apertar o laço da minha máscara, os dedos brincando em
meu pescoço e os lábios arrepiando a minha pele. Uma delícia!
Entramos no carro e saímos da escola rumo a qualquer lugar que ele
quisesse me levar. Eu estava disposta a tudo, só não sabia que o sono me venceria
antes que eu me desse conta.
Acordei com sua mão acariciando meu rosto. A máscara me incomodava,
apertando e me deixando suada, apesar do ar-condicionado do carro. Eu estava
com tanto sono que mal conseguia abrir os olhos. Provavelmente, meu corpo
estava esgotado depois de dias tão desgastantes e de uma noite repleta de
emoções.
Sorri, pensando que estar ali no carro do Afonso, com ele tão dedicado e
carinhoso, era algo que eu, nem nos meus melhores sonhos, poderia imaginar.
— Chegamos! — ele disse já do lado de fora do carro com a porta aberta,
inclinado sobre mim.
Abri os olhos percebendo que a máscara estava me impedindo de
enxergar e tentei tirá-la. Ele riu baixinho e me ajudou. Toquei seu rosto,
percebendo que ele também já tinha se livrado da dele.
Nossos lábios se juntaram em um beijo carinhoso, como se ainda
fôssemos um casal. Abri os olhos ainda na escuridão do carro com seu rosto na
frente do meu, impedindo que as luzes da garagem me cegassem, mas eu estava
cansada demais para mantê-los aberto.
— Venha cá! — Ele me tirou do carro nos braços, carregando-me como
uma criança.
Encostei o rosto em seu peitoral largo. Afonso conseguiu melhorar muito o
físico dele, porque aquele corpo era tudo o que havia de bom na face da terra. E o
cheiro? Meu Deus! O cara dançou comigo, ficou suado, transou sem tirar as
roupas e ainda tinha aquele cheiro delicioso de perfume masculino caro. Inspirei,
guardando o aroma na memória e tentei abrir os olhos, mas fechei-os
imediatamente por causa da claridade.
— A luz te incomoda? — Ele me levava sem qualquer problema, e eu nem
era tão magra assim.
— Acho que estou cansada demais. — Fiz questão de me aconchegar
melhor, com a desculpa perfeita.
— Imagino que sim. — Ouvi o barulho da porta do elevador e logo nos
movimentamos outra vez. — Fique de olhos fechados, as luzes daqui são fortes.
Obedeci.
Facilitei para que ele conseguisse abrir a porta e me levar para dentro do
apartamento escuro. Foi quando me atrevi a abrir os olhos. O barulho de Carnaval
fazia com que eu imaginasse que estávamos em um dos roteiros dos trios. Afonso
me levou até o outro cômodo e me deitou na cama. Ela estava geladinha e
cheirosa.
— Vou te deixar aqui um pouco para tentar abafar o barulho.
Concordei, vendo-o fechar a varanda, a cortina e sair de volta para a sala.
Fechei os olhos novamente, me sentindo letárgica. Eu queria ficar acordada, mas
não conseguia, então cochilei e só voltei a despertar quando ele deitou ao meu
lado e me puxou para os seus braços. Senti sua pele fria, o cheiro do sabonete
indicando um banho recente, o acalento maravilhoso.
— Acordei você? — Acariciou meus cabelos suados. Eu deveria tomar
um banho também, mas estava tão gostoso e quentinho ali. — Durma. Amanhã
conversamos.
E fiz o que ele mandou, porque era muito mais fácil obedecer do que lutar
contra o próprio corpo.
***
Acordei sentindo-me ótima. Espreguicei o corpo na cama macia e adorei
o contato do lençol na minha pele. Aproveitei mais um pouco do sono que não
queria ir embora e só depois me dei conta de que o despertador não tocou. Pulei
da cama alarmada, percebendo que estava completamente nua.
Cobri meu corpo, olhando para o quarto que não era o meu. O que estava
acontecendo? Esfreguei os olhos, lembrando da noite anterior e aceitando a
deliciosa sensação de ser sábado e não precisar trabalhar.
Era Carnaval!
Sorri agradecida pelos dois fatos: pelo dia livre do Sr. Everaldo e por
estar na casa de ninguém menos do que Afonso.
Ca-ra-lho!
Puxei o lençol, cobri o corpo e me aproximei da porta de vidro que ligava
o quarto à varanda fechada por causa do ar-condicionado ligado.
— Ah, Deus! Estamos na Barra? Bem na frente do circuito do Carnaval!
— Era mais do que um desejo, era um sonho. Porra, Afonso era rico? Mordi os
lábios, relembrando a maneira deliciosa como nos encaixávamos. — O que é esse
mar todo nesse dia lindo? Morri e fui para o paraíso!
Rindo, observei detalhes do quarto com móveis planejados que deixavam
o ambiente super aconchegante em tons de madeira, branco e azul. Minhas roupas
não estavam em nenhum lugar que eu pudesse ver. O cheiro de café já me
alcançava. Prendi o lençol no corpo e tomei coragem para abrir a porta e encará-
lo.
Aquilo tudo era muito estranho e engraçado. Quem diria que um dia
estaríamos daquela forma?
Entrei na sala pequena, mas finamente arrumada. Uma mesa branca para
quatro pessoas ficava de frente para a porta do quarto e nela estavam alguns pães,
queijo, presunto e uvas, além dos pratos arrumados para dois. Sorri satisfeita.
Dei mais um passo e o vi na cozinha, ou no que deveria ser a cozinha, já
que o espaço era acoplado à sala, e tinha só uma pequena pia, uma bancada e
alguns armários. Ele estava de costas, colocando café em duas canecas idênticas,
sem perceber que eu estava ali.
Apreciei seu corpo, aproveitando o momento secreto. Afonso estava
realmente maravilhoso. Seu corpo era forte e trabalhado, e ele usava apenas uma
bermuda curta e solta. As costas eram uma beleza, mas o bumbum era um
espetáculo à parte. Subi os olhos pela nuca, olhando o cabelo claro.
Claros até demais. Percebi, estranhando, alguns pontos que na noite
anterior eu não tinha conseguido observar. Afonso não era tão alto quando
namorávamos, ou era? Não. Não era. Na festa eu estava de saltos e ainda assim
ele conseguia ser bem mais alto do que eu. Só se...
Ele virou dando de cara comigo petrificada na porta do quarto.
Puta que pariu! Aquele não era o Afonso, aquele era... o Luiz?
Ah, não!
Capítulo 5
“Eu queria que essa fantasia fosse eterna...”
Evandro Rodrigues - 1992
— O que você está fazendo aqui? — gritei, assustando-o.
Afonso... quer dizer... Luiz olhou para os lados ainda segurando as duas
canecas de café e acabou dando de ombros.
— Eu moro aqui. — Seu rosto indicava que ele não estava entendendo
nada. Mas, merda, eu não estava entendendo nada!
— Você mora aqui?
— Moro.
— Com quem mais? — Tinha que ser mentira.
— Com... — Ele me olhou como se eu fosse louca. — Ninguém. —
Avaliou-me com cuidado. — Milena você está confusa?
— Completamente.
— Ok!
Ele caminhou em minha direção fazendo com que eu me afastasse
instintivamente. Percebendo que eu ainda não estava pronta para a sua
aproximação, estendeu a xícara de café, a qual aceitei prontamente. Afon... Luiz...
ele foi até a cozinha, apoiou-se no balcão e me encarou.
— Ontem, no baile de máscaras... — ele começou, deixando que eu
pegasse o fio da meada.
— Era você? — gritei histérica. — Não, não, não! Não era você. Não
podia ser você. Não era você! Eu estava lá! — Ele arqueou uma sobrancelha,
provavelmente, constatando que eu era mesmo louca.
— Vamos por partes. Então ontem você não sabia que era eu?
— Claro que não! Por que você acha que eu ia sair e... e... você sabe...
— Transar?
— Isso! — Por instinto, me encolhi com a palavra.
Deus, eu tinha transado com um estranho acreditando ser o meu ex-
namorado da escola. Eu só podia estar drogada. Não havia outra explicação.
Quando olhei para ele, vi um sorriso descarado em seus lábios, que tentou
esconder bebendo um pouco do café.
— Não tem graça!
— Pra dizer a verdade, não tem mesmo. Pensei que você soubesse o que
estava fazendo. Isso nunca me aconteceu antes, então nem sei o que te dizer.
Talvez “me desculpe” não seja o mais apropriado depois de ter transado com
alguém.
— Ah, droga! Eu pensei que você era o... espere um pouco! O que você
fazia lá?
— Eu?
— Ai, meu Deus! Você está me seguindo? Isso é um sequestro? E como
sabe o meu nome? Não, calma, você é o novo gerente da divisão Salvador/Lauro
de Freitas, pode muito bem lembrar meu nome, apesar de nem termos sido
apresentados e tudo mais, e...
— Você está confusa — ele constatou.
— Estou! — Eu estava mesmo era histérica. — Claro que estou. Eu mal te
conheço. Quer dizer, você me salvou do ladrão e tudo mais, mas isso não lhe dá o
direito de me seguir e de... e de... de...
— Transar com você — ele completou, acompanhando as minhas
sandices.
— Isso. Isso aí mesmo. Você não tinha esse direito.
— Foi consensual — falou sério. — Mas eu não iria até o fim se tivesse
percebido que você estava me confundindo com alguém. Então, me desculpe por
isso.
— Não é adequado se desculpar depois de transar com uma mulher. Seu
olhar deixava claro que ele tinha certeza de que eu estava mesmo louca. — Ai,
merda!
Sentei no sofá enterrando o rosto na mão livre para esconder a minha
vergonha.
— Por que não toma o café, relaxa um pouco e leva tudo na esportiva? —
Levantei o rosto para olhá-lo.
— Porque isso tudo é absurdo! Eu mal te conheço, nós trabalhamos na
mesma empresa e você vai se gabar para os amigos contando que já comeu a
primeira garota do trabalho.
— Eu?
— Vai dizer que não faz isso?
— Não faço.
— Duvido! Todo homem conta para os amigos sobre a garota que
conseguiu comer na noite anterior. E é Carnaval! Todo mundo faz uma lista de
Carnaval.
— Você faz? — As sobrancelhas dele se uniram, reprovando a minha
colocação.
— Eu? Não! — Dei um gole no café, delicioso por sinal, para esconder a
mentira.
— Tá legal, Milena. Eu acho que precisamos conversar. — Puxou uma
cadeira virando-a de costas para sentar-se abraçando-a. Ele era mesmo lindo!
— Eu dormi o caminho todo?
— Dormiu.
— Quando chegamos nós...
— Não transamos. Você estava dormindo, mas deveria lembrar disso. —
Bebi mais um pouco do café, aproveitando para admirar o seu peitoral nu e
descaradamente exposto.
— Então fora aquela hora lá na escola...
— Foi a única — anunciou, sendo taxativo.
— E você não ia tentar mais nada? — Ele me olhou surpreso, mas sorriu.
— Até o momento que eu acreditava que você sabia o que estava fazendo,
sim. Mas isso muda tudo.
— Muda? — Outra vez um sorriso.
— Você não sabe quem eu sou, não é?
— É! Quer dizer, não! Você é o novo gerente da divisão...
— Milena! Olhe para mim. Você sabe quem eu sou? — Levei um tempo
me perguntando que tipo de loucura era aquela , sem saber o que responder.
— Você é... o Luiz? — Ele riu, levantando para deixar a caneca sobre a
pia. Seu corpo era um espetáculo e todas as vezes que o via se movimentar
tensionando os gominhos da barriga, me parabenizava por ter sido louca a este
ponto.
— Eu sou o Luiz... — Fez um gesto com a mão querendo puxar o meu
raciocínio.
— Sei lá! O Luiz Gonzaga? — Ri nervosa.
— Luiz Alberto, Milena! Seu colega de escola por três longos anos. Nem
dá para acreditar que você esqueceu de mim.
Luiz Alberto? Luiz... Alberto. Luiz...
— Puta que pariu!
Levantei assustada demais para ficar quieta. Aquele cara... aquele homem
lindo, maior estilo Capitão América, era o Luiz Alberto? O Luiz espinha? O Luiz
magricelo? O Luiz...
— Agora você sabe quem eu sou.
— Não! — gritei. — Você não é o Luiz Alberto. Ele tinha espinhas pelo
rosto todo! — O carinha concordou. — Usava aparelho nos dentes saindo para
fora da boca parecendo um alienígena! — Concordou outra vez, nada satisfeito
com a lembrança. — E era magricelo, estranho e...
— Sou eu.
— Não é! — rebati firme. Aquele cara devia estar louco se acreditava
que me convenceria do contrário.
— Se não sou o Luiz o que eu estava fazendo no baile de máscaras para os
alunos do segundo grau de uma escola qualquer?
— Você estava me perseguindo. — Ele riu com vontade.
— Eu sempre tive uma paixonite por você, Milena, mas nunca foi para
tanto.
— Você teve... você... — A frase que ele me disse quando terminamos de
transar martelou em minha cabeça. — “Você nem imagina o quanto desejei isso”
— sussurrei suas palavras, juntando todas as peças.
— E desejei mesmo. Durante toda a minha adolescência. — Sorriu sem
graça. — Mas eu juro que nem imaginava que fosse acontecer, Milena! Juro. Não
tive essa intenção quando me aproximei. Eu queria apenas ter certeza de que você
estava bem depois do assalto.
— Deus! — Sentei outra vez, escondendo o rosto nas mãos. — Então eu
transei com o Luiz Alberto? — Luiz não disse nada até que eu olhasse para ele
outra vez.
— Desculpe, Milena! Eu não tive essa intenção — disse sério,
incomodado com toda a minha recusa.
Imediatamente me senti culpada. Ele não tinha feito nada de errado e não
tinha culpa do meu engano. Além do mais, Luiz estava um gato!
Inacreditavelmente lindo. Quem diria? E o sexo foi... foi de fato muito bom.
— Que loucura! — Sacudi a cabeça, tentando relaxar. Depois comecei a
rir.
Quem imaginaria que aquilo poderia acontecer justamente comigo? Quem?
Fernanda pegaria tanto no meu pé que eu teria que sumir por um tempo. Minhas
irmãs nunca seriam capazes de cogitar que eu tinha sido tão leviana.
Apesar de tudo foi uma noite muito boa. No final das contas, não seria tão
legal ceder ao Afonso e acabar transando com ele do lado de fora do carro. Na
noite anterior eu estava fora de mim, com o ego inflado, sem conseguir pensar
direito em quanto não tinha nada a ver estar com o meu ex-namorado outra vez.
Sem contar que o Luiz foi bem legal. Ele não agiu como se já esperasse
aquilo de mim. Simplesmente a química foi muito boa e nos deixamos levar.
Quem poderia me culpar? É Carnaval! As pessoas se conhecem, se beijam e as
vezes transam. Eu não sou mais uma garotinha para, aos vinte e oito anos, viver
cheia de pudores.
E a química foi realmente muito boa. Eu adorei tudo, os beijos, os toques,
a maneira como ele transava... era leve, gostoso e nada, nada, nada fora do
comum. Foi natural como respirar, o que deveria ser estranho, mas não foi.
— Deixa pra lá — falei com a voz mais branda. — Você não teve culpa.
— Não tive.
— E foi... bom.
— Bom? — ele disse. Estreitei os olhos, entrando no jogo dele. Eu já
estava na chuva, então ia me molhar, ensopar e me afogar nas suas águas.
— Pra dizer a verdade, foi muito bom. — Ele abriu um sorriso
espetacular.
— Eu também achei muito bom. Pena que não sou quem você esperava. —
Passou por mim, indo até o quarto.
— Ah... mas também não precisa ser assim, né? Foi legal! — Levantei
apressada, sem saber como agir.
Meu Deus! O que eu estava fazendo? Ele era o novo gerente da empresa
onde eu trabalhava. E era gerente apenas porque o meu chefe não promovia
mulheres. Era para ser meu cargo e não dele. Luiz voltou do meio do caminho e
me encarou.
— Não?
— Não! — Tentei parecer calma. — Foi... bom.
— Você tinha dito muito bom. — Revirei os olhos e sorri.
— Espetacularmente bom.
— Advérbio de intensidade? Isso é realmente bom. — Cruzou os braços
em frente ao peito nu, que eu logo encarei, e aguardou pelo que eu diria.
— Eu preciso ir — anunciei, sabendo que não era exatamente o que eu
queria fazer.
Pode parecer loucura, mas eu queria ficar e saber um pouco mais sobre
ele. Aproveitar o que aquela confusão toda acabou me proporcionando. Se foi
bom comigo bêbada, sóbria poderia ser ainda melhor. Porém, precisava mesmo ir
embora ou corria o risco de encontrar a polícia na minha porta quando chegasse
em casa. Ele me encarou com intensidade, como se quisesse me dizer que também
queria que eu ficasse, mas o clima já estava estranho demais.
— Vou te levar pra casa — anunciou, desistindo de contra-argumentar.
— Eu preciso das minhas... — Sorri sem graça, segurando mais uma vez o
lençol para não cair. — ...minhas roupas.
— Estão no meu guarda-roupas. Vou pegá-las.
Entramos juntos no quarto. Olhei para a cama, me dando conta de que ele,
provavelmente, também tinha dormido nela. Sem querer, me peguei imaginando
como seria se eu não tivesse me enganado, se tivesse percebido estar com ele e
terminássemos nossa noite aproveitando aquela cama.
Um formigamento no meu ventre confirmava o que eu já sabia: eu queria
me dar aquela chance. Só não podia, e não era por nenhuma questão moral,
porque era bom não vacilar com a família que eu tinha.
Mordi os lábios, pensativa, até que ele passou por mim e segurou meu
queixo fazendo-me parar. Seus olhos foram dos meus para a cama, e depois um
sorriso enigmático fez sua boca ficar ainda mais atrativa.
— Suas roupas. — A voz grave lançou arrepios na minha pele ao me fazer
lembrar o quanto tinha gostado quando ele sussurrou no meu pescoço. Peguei as
peças sem sair do lugar. — Milena?
— Desculpe! — ri sem graça. — É que é tão estranho!
— É estranho ter transado comigo?
— Não! — falei rápido demais. — É estranho...
Eu queria dizer que era estranho ter transado com ele sem realmente ter
transado com ele, mas era algo muito confuso para dizer. E o mais estranho de
tudo era que, depois de eu ter transado com ele pensando estar com meu ex e de
ter adorado, queria a chance de transar com ele, Luiz Alberto, sem erros ou
confusões.
— É só estranho.
— Certo. — Ele pareceu um pouco decepcionado. — O banheiro é ali. —
Indicou a porta ao lado do guarda-roupa e saiu do quarto para me deixar mais à
vontade.
Deixei as roupas sobre a cama, fui ao banheiro e lavei o rosto. Depois
voltei para buscar a minha calcinha, mas ela não estava ali. Procurei melhor,
verifiquei se não havia caído ou se estava embolada no vestido e não a encontrei.
Abri a porta do quarto e voltei para a sala, ainda enrolada no lençol. Luiz me
olhou sem entender nada.
— Eh! Você viu a... — Ele sorriu sem graça e coçou a cabeça, me olhando
por debaixo dos cílios. Nossa! Como ele era lindo!
— Acho que a perdemos ontem — admitiu, me avaliando, esperando por
um novo surto.
— Perdemos a minha calcinha? — Ele balançou a cabeça concordando.
— Eu não... isso é... Cara, você não é um desses tarados que guardam a calcinha
das mulheres como prêmio, é? — Luiz ficou espantado com a minha acusação,
depois começou a rir.
— Eu não coleciono calcinhas, Milena. Nem sou desses que gostam da
ideia da mulher nua pela rua. Ela deve ter caído ontem, ou... sei lá. Realmente,
não sei o que fiz com ela depois que a tirei de você.
Um calafrio me atingiu quando seus olhos se conectaram aos meus e ele
disse aquilo. Lembrei a sensação gostosa de seus dedos descendo pelas minhas
coxas, puxando a calcinha para baixo e depois subindo bem devagar, sem tirar as
mãos de mim. Pigarreei para manter minha voz estável.
— Bom... nesse caso...
— Mas eu vou te levar, então não precisa ficar constrangida.
Eu já estava. Contudo assim que me dei conta do que tínhamos feito na
noite anterior, comecei a rir. Um ataque de riso que fez lágrimas descerem pelo
meu rosto. Luiz riu também. Sua gargalhada se espalhou pelo pequeno
apartamento e ganhou o mundo. E eu me senti tão leve que até estranhei.
A risada foi perdendo a força enquanto nos olhávamos com mais
camaradagem. Era fácil ficar ao lado dele, mesmo depois de uma situação tão
louca como a nossa. E, de repente, estávamos nos encarando, sentindo aquela
ligação estranha que nos mantinha ali, sem coragem para sair, de ir embora.
— Milena, eu... — O telefone dele tocou na hora em que ele parecia
querer me dizer algo importante.
Recuei, sabendo que privacidade em um apartamento tão pequeno era algo
quase impossível. Fui para o quarto, coloquei meu vestido, calcei as sandálias e
tentei arrumar o cabelo que estava uma bagunça total. Eu estava sem bolsa, sem
celular, sem dinheiro e sem calcinha. Não podia ser mais estranho. No entanto,
era hilário.
Balancei a cabeça rindo e ouvi uma batida na porta. Virei na direção dela
quando foi aberta e lá estava ele me olhando, e assim permanecemos por alguns
segundos até que seu olhar deslizou pelo meu corpo. Sorrindo com malícia,
tentando disfarçar o fato de gostar de saber que eu estava sem calcinha. Fiz uma
reverência meio que de bailarina e dei uma risada cínica.
— Não me olhe assim, Sr. Luiz — provoquei.
— É difícil, sabendo que você não tem nada aí embaixo. — Foi até o
guarda-roupas empurrando a porta para o lado.
— Pois o senhor está muito enganado. Eu tenho, sim, algo por baixo do
vestido. — Luiz virou lentamente, encarando-me com os olhos quentes e a postura
felina.
— Sei exatamente o que tem. — Sua voz arrastou um pouco, rouca, seca e
sensual.
— Não pareceu.
— Não me provoque, Milena. — Sacudiu uma camisa na minha frente
para desamassá-la, sem deixar de me olhar. — Porque estou com muita vontade
de te fazer gritar o meu nome só para ter certeza de que você sabe quem está
dentro de você.
Puta. Merda!
Meu queixo caiu, o rosto esquentou e o coração acelerou. Fiquei
envergonhada, claro, mas qualquer ofensa foi completamente ofuscada pelo tesão
quase que imediato que me atingiu. Eu até já me via gritando o nome dele sem
precisar fazer qualquer esforço.
Ele continuava me encarando com um olhar de desafio e aquele sorriso
cheio de mistérios. Pigarreei, forçando-me a continuar com a decisão de ir
embora.
— Eh... Podemos ir?
Luiz esticou um sorriso torto, irônico e ao mesmo tempo satisfeito. Porra!
Aquele Capitão América só tinha a fachada de bonzinho. No fundo, ele era o Tony
Stark.
— Claro! Damas primeiro.
Fez um gesto e me deu passagem. Só que quando passei, ele foi junto e seu
corpo esbarrou no meu. Lógico que foi proposital! Luiz queria me mostrar algo
que eu já tinha percebido, mas fingia não notar. Sua ereção. Filho de uma puta!
Descemos em um silêncio constrangedor. Fiquei procurando qualquer
lembrança da noite anterior, desde o momento em que dormi no carro. Como
cheguei ali sem me lembrar de nada? Como entrei naquele elevador? Como deitei
naquela cama? As lembranças chegavam aos poucos, de acordo com meus
questionamentos.
— Eu preciso do seu endereço — ele disse, meio constrangido.
— Brotas.
— Tá! Mas Brotas é enorme, se me lembro bem.
— Se me lembro bem? — Ri, ironizando enquanto ele destravava o carro.
Recebi um sorriu sorrateiro.
— Você não presta atenção em nada mesmo, né? No dia em que fui
apresentado na empresa, contei que estava chegando de Recife. Logo depois que
me formei, mudei para lá e só voltei agora.
Ah! Eu realmente não prestei atenção. Em parte, porque não queria que o
Sr. Everaldo imaginasse bobagens a meu respeito, e também porque eu já
imaginava bobagens a respeito do novo gerente. Do Luiz.
Mas eu também podia atribuir minha falta de interesse à mágoa que sentia
por não ter recebido a oportunidade de ocupar o cargo de gerente, já que tinha
feito o trabalho do antigo sem ganhar nada por isso.
— Vou colocar o endereço no seu . GPS
— Você disse que não queria sair hoje — minha amiga disparou,
aguardando pela resposta.
— Ela não está certa, amor. — Fernanda riu e eu fiquei furiosa.
— É sério isso? — perguntei quase sussurrando para ele não se intrometer
outra vez.
— Mi! Por favor! — Fernanda me encarou daquela maneira que eu
odiava.
— Não vou deixar você chorar no meu ombro — ameacei e ela sorriu
complacente.
— Sinto que desta vez não será necessário.
Havia tanta certeza em suas palavras que me emocionei. Fernanda estava
amando de verdade, sem medos e receios, sem a interferência de ninguém. E ela...
estava feliz.
— Ok! — falei mais para mim mesma do que para ela. — Ouça isso, ô, da
cueca! — Ele riu alto e desligou a .
TV
ligada, indicando o início dos blocos carnavalescos. — Não vai sair hoje,
Milena?
— Estou decidindo, mãe. — Continuei fingindo prestar atenção na ,TV
quando no fundo estava curtindo a maior fossa por causa da falta do celular.
— Seus irmãos vão sair. Você podia ir junto.
— Francisca não vai — Emanuel apontou, continuando com a produção
dos seus colares do Filhos de Gandhi.
— Essa menina vai ficar maluca — minha mãe resmungou. — Onde já se
viu estudar assim? É por isso que não passa. Quando seu pai chegar vou ter uma
conversa com ele. — Revirei os olhos, incomodada. Eu tinha problemas maiores
para pensar do que na compulsão da minha irmã.
O interfone tocou e me levantei completamente disposta a fazer os
trabalhos daquela casa. Qualquer coisa que me colocasse longe do Luiz e do
Afonso.
— Alô? — Atendi, impondo a minha animação.
— Milena? — Everton, o porteiro do prédio me chamou. — Luiz está aqui
embaixo querendo falar com você.
Minha cabeça girou mil vezes. Não podia ser o mesmo Luiz. Sem qualquer
chance de ser.
— Luiz?
— Sim, ele disse que é o Luiz. — Ouvi alguém falando do outro lado da
linha. — Ele disse que é seu ex-colega do colégio.
Jesus! O Luiz estava lá. Merda, o Luiz estava lá e eu estava com o cabelo
na touca, uma roupa acabada e chinelos.
— Peça para ele me esperar no Play, por favor.
— Peço sim. — Ele desligou e eu corri, já arrancando a touca e indo em
direção ao quarto.
— Onde é o incêndio? — minha mãe gritou, mas eu não estava disposta a
responder.
Abri a porta do quarto fazendo com que Sara se assustasse. Ela fechou o
livro que lia e me encarou curiosa.
— É uma longa história — falei para impedi-la de fazer perguntas e
comecei a procurar alguma roupa que não me deixasse nem muito pobre, nem
muito vulgar. Também não queria nada muito catequista como a Dona Aparecida,
moradora do quinto andar, completamente beata.
Escolhi um vestido solto, todo branco, assim não teria erro. Baguncei o
cabelo, querendo parecer casual, afinal de contas ele não poderia saber que eu
estava me arrumando apenas para ele, muito menos imaginar que eu gostava de
fazer touca quando estava em família. Seria o meu fim.
— Mãe! — gritei ainda do quarto. — Tem um colega meu aí embaixo. Vou
lá saber o que ele quer — avisei, desejando querer tudo o que ele quisesse
também.
— Que colega? — Eu sabia que minha mãe não me deixaria em paz.
— Um amigo do trabalho. — Ela compreenderia melhor do que dizer que
era um ex-colega da escola.
— Do trabalho? O que ele quer?
Sério? Se eu dissesse que era alguém com quem eu estava transando, ela
compreenderia melhor.
— Não sei mãe! Vou lá verificar e te conto quando voltar.
— Faça isso!
E eu sabia que quando subisse ela realmente cobraria uma resposta.
Aquela era a minha mãe, Dona Beatriz, que tinha cinco filhos, mas não deixava de
estar de olho em cada um deles, sempre atenta e preocupada. Quando ela
perceberia que eu já tinha vinte e oito anos eu não sabia dizer, mas começava a
acreditar que demoraria muito para isso acontecer.
Bati a porta da sala e desci correndo as escadas, mas parei no segundo
andar para recuperar o fôlego e descer devagar para não parecer tão animada. Por
que o Luiz resolveu aparecer? O que ele me diria para justificar sua frieza de
mais cedo? E... espere um pouco, o que ele pretendia, aparecendo sem mais nem
menos, correndo o risco de dar de cara com Afonso?
Foi com esses pensamentos que apareci para recebê-lo no playground e
foi com essa mesma cara que continuei ao notar seu semblante preocupado. Luiz
estava encostado ao muro, com as janelas abertas, e quando me encarou não
pareceu relaxar nem se animar. Parei à sua frente sem nada dizer e cruzei os
braços.
— Como foi com o Afonso? — indagou sem nem me cumprimentar. Ergui
uma sobrancelha, tentando descobrir o motivo da sua presença em minha casa.
— Como soube onde eu morava? — Ele me encarou e um leve sorriso
debochado brincou em seus lábios. — Quero dizer... o apartamento.
— Você não mora com a Fernanda — acusou. Surpresa, fiquei
completamente desconcertada.
— Você não respondeu a minha pergunta.
— E você mentiu. Por quê?
— Não é da sua conta. Como descobriu o meu apartamento?
— O Afonso me deu.
— Deu? Mas ele está achando que...
— Você mora com a Fernanda. Eu sei. — Continuou me olhando com
ironia, fazendo com que eu ficasse cada vez mais envergonhada. — Ele lembrava
o número do apartamento dos seus pais.
— E você simplesmente disse a ele que vinha me visitar? Achei que era
complicado — debochei da sua covardia.
— É complicado. E eu disse a ele que você esqueceu a sua identidade no
meu quarto, então achei melhor devolver do que deixá-la sem documento para
sair no Carnaval. — Ele era bom em desculpas. Preocupante, contudo continuava
sendo um covarde. — Então você não mora com a Fernanda?
— Não. Vai me dedurar? — Voltei a ficar na defensiva. Luiz riu.
— Não, não vou. Só queria entender o motivo.
— Simples. Eu tenho uma história horrível com o Afonso e não queria que
ele soubesse que aos vinte e oito anos eu ainda moro com meus pais e divido o
quarto com as minhas irmãs. — Luiz estreitou os olhos sem compreender o meu
drama.
— E o que tem de errado nisso?
— Tudo! — Quase gritei. — O Afonso tem a mesma idade que eu e já tem
o próprio consultório, entende? Eu já fui humilhada demais quando precisei
encarar a escola toda me olhando com pena por ter sido trocada pela Sabrina.
Não preciso continuar sendo a coitadinha porque trabalho em uma empresa que
não me valoriza e que me paga uma porcaria de salário, mesmo me explorando
como pode. — Explodi, deixando-o assustado.
— Quanto a isso eu...
— Eu não quero que o Afonso continue sendo superior e se você não
entende o problema é só seu. — Luiz recuou com o meu corte, mas então se
recuperou e me olhou com mágoa.
— Eu sou a pessoa que mais entende como você se sente, Milena. Pode
acreditar nisso. — Ah, droga! Olhando aquele Luiz eu esquecia completamente o
da escola.
— Mas você está bem! Você mora na Barra e em um apartamento incrível!
— Porque a empresa me deslocou, e com isso precisa pagar o meu
aluguel.
— O quê? Que sacanagem! Isso é tão injusto!
— Milena... — Ele respirou fundo, tentando manter a compostura. — Não
foi sobre isso que eu vim conversar.
— E se você não está de fato com a minha identidade, devo deduzir que
veio me explicar porque não contou ao Afonso sobre nós dois. — Luiz abriu a
boca indignado e balançou a cabeça, e desistiu de falar.
— Eu vim para isso mesmo. Para encontrar uma solução, mas já vi que
não estamos com o mesmo objetivo.
— Que objetivo?
— Você tem um motivo muito nítido para querer que o Afonso saiba sobre
nós dois.
— Ah, é mesmo? — ironizei. — E qual é?
— Vingança. — Ele me encarou, sério.
Não respondi de imediato porque fiquei chocada com a facilidade com
que ele entendeu o que eu sentia. Não que me vingar do Afonso estivesse acima
do que eu queria com ele, mas não serei falsa dizendo que não havia prazer em
poder fazê-lo entender que não tinha mais espaço na minha vida porque eu estava
com o amigo dele.
— Se vingança é o que você está buscando, estou fora. — Ele completou.
— Mas Luiz...
— Não vou ser essa pessoa outra vez, Milena! Você brincou demais
comigo na escola quando me desprezava sem qualquer dó, então não! Não estou
disponível para meter ciúmes no Afonso só porque você não consegue superar a
separação.
Fiquei horrorizada. Eu não tinha brincado com ele na escola. E sim, eu o
ignorava, mas não porque ele era desprezável, mas porque, para mim, ele não
existia. Luiz era alguém que não fazia parte do meu universo. Era como se
vivêssemos em mundos diferentes. E eu não me orgulhava disso.
— São situações diferentes, Luiz — comecei a falar, ainda acuada. —
Nós nunca fomos próximos, não andávamos com a mesma turma e se você se
sentiu desprezado por mim, me perdoe, nunca foi a minha intenção. Eu era nova,
apaixonada e boba. Mal olhava para os lados. Não gostava das brincadeiras dos
meninos com você e também não fiz nada para impedi-las. Mas nunca tive nada
contra você.
— Tudo bem! — Ele ainda estava aborrecido, porém parecia menos
raivoso com o meu pedido de desculpas. — Não estou preocupado com isso. Eu
só não quero precisar arruinar a minha amizade com o Afonso se o seu único
objetivo for se vingar dele.
— Olha só... — Eu me afastei, querendo encontrar uma maneira de
explicar sem criar mais problemas com ele. — Pra mim, você não está ligado ao
Afonso. São situações diferentes. E a verdade é que ele está passando por uma
fase complicada, está confundindo as coisas e...
— Ele quer você de volta.
— Não! — Desdenhei, mas me preocupei com sensação gostosa como
meu coração aceitou aquelas palavras. — Ele só...
— Ele me disse isso. — Luiz foi duro e direto. — Ele me disse que quer
você de volta. Que nunca deveria ter te deixado. Compreende agora? — Levei um
bom tempo sem conseguir responder. — E se você está disposta a fazê-lo sofrer,
vá em frente, mas não comigo.
— Luiz... calma! — Respirei fundo tentando clarear minhas ideias. —
Então só porque o Afonso colocou na cabeça que eu sou a solução para o
sofrimento dele, você não quer ficar comigo, é isso? E o fato de eu não querer
ficar com ele não conta? — Ficamos nos encarando enquanto ele deliberava, até
que Luiz se desarmou por completo.
— Conta, Milena! — Estendeu a mão e me puxou para os seus braços, me
apertando com saudade. — Conta e muito. Eu entendo a sua mágoa, só acho que
não vai ser saudável sustentá-la.
— Não vou fazer isso. Vou conversar com o Afonso e explicar a minha
posição.
— Tem certeza? É isso mesmo o que você quer? Ele está falando a
verdade, Milena. Eu sei quando o Afonso está só perdido e quando está decidido.
Contar a ele vai ser um problema que teremos que enfrentar juntos. — Segurou o
meu rosto, buscando a verdade em meus olhos.
Ah, Céus! Eu poderia enfrentar o mundo se tivesse aqueles braços ao meu
redor, a boca tão perto da minha, aquele olhar intenso... Ah, meu Capitão
América!
— Desculpe por hoje — sussurrou ao aproximar os lábios dos meus.
Fechei os olhos, ansiosa para sentir mais uma vez aquela língua, quando Everton,
o porteiro, chamou por mim.
— Milena? — Contrariada, olhei para trás e ele riu cínico. — Tem um
rapaz aqui querendo falar com você.
— Um rapaz? — Dei um passo atrás, saindo dos braços do Luiz.
— Afonso. — Gelei completamente. — Posso mandá-lo entrar?
Olhei apreensiva para o Luiz, que me olhou espantado. Não, nós não
estávamos preparados, mas era ali, naquela hora, ou nunca mais.
— Pode sim, Everton. Obrigada!
Capítulo 10
“Mil voltas que dei, querendo de uma vez encontrar,
alguém igual a você, Beleza Rara”
Beleza Rara - Ed Grandão/Nego John - 1996
Meu coração acelerou e as mãos suaram durante os minutos em que o
Afonso demorou para aparecer. Eu e o Luís não conversamos, não nos olhamos e
nem mesmo nos tocamos. Como se cada milímetro na nossa energia precisasse ser
guardado para o que viria em seguida.
Então Afonso apareceu, já vestido com o seu abadá, exibindo um corpo
lindo, malhado e com um sorriso de tirar o fôlego. Ele continuava fantástico!
— Vi seu carro lá fora — avisou ao apertar a mão do amigo sem qualquer
tipo de desconfiança. — O Luiz tinha razão, não seria legal sair sem documento.
A não ser que você tenha algum reserva.
— Ah... não, não tenho. — Cruzei os braços, desta vez em defesa e por
não saber o que fazer caso Afonso perguntasse pela identidade. — E você? O que
veio fazer aqui? — Era para ele ficar sem graça, se o objetivo dele fosse ficar
comigo, mas Afonso jamais se intimidaria. Ele era confiante e sabia que mexia
com as mulheres. Ele sorriu, se aproximou e alisou meu rosto.
— Consegui um abadá pra você. — Dez segundos se passaram para que
eu conseguisse entender tudo que havia naquela frase.
— Um... abadá? — perguntei atônita. Ele confirmou eufórico. — Um
abadá pra mim? Digo, no mesmo bloco que vocês dois?
— O Luiz não vai sair hoje, esqueceu? — Olhei para o Luiz, que estava
comprimindo os lábios.
— Mas eu vou — ele disse por fim. — Acordei um pouco desanimado,
nada como um banho gelado e respirar o ar festivo para voltar a me sentir
animado. Então, estou dentro!
— Legal! — Afonso não parecia muito animado com a presença do amigo,
o que indicava que ele pretendia passar a noite comigo. Só de pensar na
possibilidade, eu gelava.
— Mas eu não sei se vou. — Comecei a dar as minhas desculpas.
— É o Saulo! — Afonso falou, colocando mais animação do que deveria.
— Saulo é incrível!
Ah ele era! Assim como era mais calmo e propício para romances. Eu não
sabia se sobreviveria a uma noite com aqueles dois, ouvindo Saulo cantar “vem
cá, pode chegar, deixa de besteira, sou todo seu, todo seu...”
— Vamos, Mi! Vai ser legal. Como nos velhos tempos!
Claro, como nos tempos em que ele me fazia seguir o Camaleão na pipoca
sem nem conseguir me mexer direito. Olhei para o Luiz sem saber o que
responder. Ele abaixou a cabeça, dando-me o direito da escolha. Lindo!
— Tá! Quanto tempo eu tenho?
— Nenhum! — Afonso brincou. — E você não precisa de muito para ficar
deslumbrante.
Seria “muito legal” se ele não fosse tão galante.
— Então eu encontro vocês lá. O Luiz ainda precisa se trocar e...
— Vou te esperar. — Luiz anunciou, sem deixar margens para
questionamentos. — Assim você não precisa se preocupar com ônibus e nem com
distância. — Sorri encantada, sabendo que não poderia esperar nada de diferente
do meu Capitão América.
— Só não consegui um pra Fê. Desculpe! — Afonso nos interrompeu. —
Desculpa, Mi!
— Sem problemas. Ela não está muito a fim de sair hoje. — Então
lembrei da minha amiga com seu novo amor e da forma diferente como aquele
relacionamento se apresentava, e sorri outra vez.
— Está tudo perfeito! Já que o Luiz vai ficar, eu aproveito para ficar
também e vamos juntos.
— Não está de carro? — Luiz perguntou, e Afonso me deu uma olhada
cheia de significados.
— Não. Eu vou beber e não pretendo dormir na sua casa esta noite, então
preferi pegar um Uber.
Luiz não ficou nada animado com a confidência do amigo, mas Afonso
continuou me olhando como se estivesse me prometendo o mundo.
Seria uma noite difícil.
***
Foi uma noite difícil.
Luiz e Afonso disputaram a minha atenção durante todo o percurso.
Nenhum dos dois demonstrava perder o interesse, nem parecia aceitar perder a
batalha. Quanto mais o trio andava, mais o clima de disputa se acirrava, e a tal
amizade foi sendo deixada de lado.
Saulo era mesmo maravilhoso, só que todas as vezes que tocava algo mais
meloso, eu o amaldiçoava porque precisava fechar os olhos e aceitar quem
chegasse primeiro. Tenho que dizer que em ambos os casos passei maus bocados.
Com o Luiz era ruim, porque por mais que ele quisesse me arrancar dos
braços do Afonso, era excessivamente cuidadoso e queria que aquela história se
resolvesse sem precisar de um duelo. Por isso ele só me abraçava e as vezes,
quando o Afonso se afastava um pouco, então ele sussurrava algumas frases das
músicas em meu ouvido.
Tive vontade de beijá-lo muitas vezes, além de outras coisas, no entanto,
confesso que também senti vontade de beijar o Afonso quando ele me pegava pela
cintura com a sua alegria contagiante e me fazia dançar livre, aproveitando a noite
sem medo de nada. Era como na época em éramos namorados, e eu não posso
fingir que aquela sensação não mexia comigo.
Ela não apenas mexia, mas me abalava e confundia. Até eu olhar para o
Luiz e perceber que nele estava quase tudo o que eu queria. Além de não precisar
me preocupar com uma nova traição. Se bem que era impossível prever algo do
tipo. A diferença era apenas que com o Luiz eu me permitiria viver uma nova
história e não repetir o mesmo erro da adolescência.
E foi assim a noite toda. Quando um deles se afastava para buscar bebidas
o outro me cercava de cuidados e carinhos que me deixavam nas nuvens. Mas
quando os dois estavam juntos eu ficava louca, implorando para que acabasse
logo o percurso.
Até que Sabrina apareceu.
Por essa ninguém esperava.
Fizemos mais da metade do percurso sem que alguém sequer avisasse da
sua presença naquele bloco. E quando ela apareceu, linda, com um short branco
curto, exibindo pernas roliças e sem uma única celulite e a camisa cortada para
que o top da academia aparecesse, ficamos os três parados, sem reação, olhando
para aquela mulher incrível, sorrindo para o nosso trio.
Afonso então me abraçou pela cintura e me segurou firme para que eu não
o deixasse. Luiz me lançou um olhar estranho e Sabrina sorriu sem se abalar.
Ela olhou para o Luiz e ele sustentou seu olhar por um tempo. A maneira
como sorriu foi estranha para quem estava olhando o melhor amigo do ex-marido.
Então Luiz abaixou a cabeça, como sempre fazia comigo, e ela ficou um pouco
sem graça. Afonso ficou tenso e seu braço me puxou mais ao encontro de seu
corpo.
Era impressão minha ou Sabrina estava tentando fazer ciúmes no Afonso?
— Não sabia que ficaria em Salvador no Carnaval — ela disse mais alto
quando a banda parou, um pouco antes de entrar em outra música.
— Eu não perderia por nada! — Afonso revidou, indicando que o fim não
foi muito fácil. Sabrina sorriu educada.
— Como vai, Milena?
Pensei em dizer “Como ousa falar comigo, sua vaca imunda?”, mas sorri e
fiz um gesto com a cabeça, sendo educada.
— Conseguiu o apartamento, Luiz? — Rapidamente ela parou de se
interessar por nós dois.
— Sim. Obrigado pela indicação.
Então ela estava envolvida na procura do apartamento para o Luiz? Eles
eram amigos? Claro que sim. Se Luiz se tornou amigo do Afonso na época da
faculdade e ela era a única namorada de quem ele se lembrava, então era certo
que eles seriam amigos. E o constrangimento era por Afonso estar fingindo ficar
comigo quando acabou de sair do casamento. Luiz, como amigo, certamente
ficaria constrangido.
— Passo lá qualquer dia desses — ela anunciou e não esperou por um
consentimento, que eu tive a impressão de que não seria dado. — Falo com você
depois, Afonso.
Sabrina nos deixou quando a música voltou a tocar. Afonso imediatamente
me largou e se afastou, como se estivesse se desculpando. Ele e o Luiz se
encararam até que Afonso desistiu, um pouco atordoado.
— Vou buscar cervejas — E se afastou antes que conseguíssemos
contestar.
— O que foi isso? — gritei para ser ouvida e fui surpreendida pelos
lábios do Luiz nos meus. Então ele parou e me olhou. — Uau! O que foi isso? —
Ri da sua mudança súbita, mas ele não riu e ficou me olhando de uma forma
estranha. — O que foi?
— Vamos embora daqui?
— E o Afonso?
— Vamos embora daqui, Milena! — suplicou. Meu coração acelerou
porque eu sabia que tinha alguma coisa errada naquela história.
Eu queria ir, cheguei a colocar a mão na dele e a sentir meu coração
acelerar, mas quando dei o primeiro passo Afonso chegou, nos entregando as
latinhas de cerveja. Vi todo o desespero no rosto do Luiz e não entendi o motivo.
Ele se afastou, e sem voltar a me olhar bebeu a lata quase que de uma só vez.
— Milena, desculpe por aquilo. Quando vi a Sabrina, sabia que
acabaríamos brigando e eu não queria uma discussão no meio da rua.
— Tudo bem.
Sorri complacente e, verdade seja dita, foi um excelente tapa na cara
daquela vaca. Isso no caso de ela ainda o querer de volta, porque se ela estivesse
decidida a ficar longe dele, vê-lo comigo só serviria para que eu virasse chacota
mais uma vez.
— Vocês brigam muito?
— Sempre. Principalmente agora que nos separamos e temos assuntos
pendentes.
— Como?
— Coisas nossas, Mi. Não fique perdendo seu tempo com isso. É
Carnaval! — Sorri um pouco mais. — Tem razão, é Carnaval! — Ele brindou
com a lata na minha e sorriu bastante satisfeito.
Luiz continuava distante, bebendo e sem voltar a me olhar. Afonso
dançava comigo, pulando e me fazendo acompanhá-lo na deliciosa loucura que
era estar no meio de um bloco Carnavalesco.
— Eu amo essa música! — ele gritou quando Saulo começou a tocar
“Colombina”. Eu também amava, mas achei que a letra dela causaria bastante
embaraço para aquele momento.
Começamos a dançar animados, ele rindo e me fazendo rodar. Depois me
abraçou por trás, me deixando de frente para Luiz, que me encarou sem qualquer
receio quando Afonso começou a cantar em meu ouvido a letra da música.
— “Se você voltar para mim, juro para sempre ser arlequim...”
Era um pedido formal? Apesar do calor, senti o sangue gelar. Afonso
estava deixando evidente o que Luiz já havia antecipado: ele me queria de volta.
Quando fui avisada, estava certa de que aquilo era bobagem e de que não existia
qualquer possibilidade de acontecer. Mas aconteceu, e eu não sabia o que dizer,
nem como agir.
Luiz continuou me encarando, as pessoas passando entre nós sem
conseguir quebrar os fios que nos ligavam. Afonso me apertava contra ele, a boca
em minha orelha acariciando minha pele, as mãos na cintura, os toques com
intimidade.
— “Seja minha menina, só minha.” — Luiz gesticulou com a boca a letra
da música enviando o seu recado.
— “Quero ser seu rei, um rei momo, sem dono, sem trono...” — Afonso
continuou me atordoando sem se dar conta da minha conexão com Luiz.
Engoli com dificuldade, observando aqueles dois homens lindos se
declarando, disputando a minha atenção e meu amor e me deixando confusa como
nunca estive antes.
Eu queria que Afonso me quisesse de volta, queria que ele me amasse
outra vez e que sofresse pelo que me fez, mas em todos os meus planos, o Luiz
não existia, por isso era perfeito. Era para ser perfeito, mas não era. Não era!
— “Minha vida sem você, é uma canção de amor tão clichê...” —
Afonso cantou, beijando meu pescoço e fazendo meu corpo reagir, porque ele me
conhecia e conhecia os pontos fracos.
— “O meu bem-me-quer não quis. Fez de mim um folião infeliz” — Luiz
cantarolou, partindo o meu coração.
Não, Luiz! Eu não queria te fazer infeliz, assim como não queria mais
magoar o Afonso. Eu só queria... Deus! Eu só queria voltar para a minha casa,
deitar no colo da minha mãe e chorar. Era tudo o que eu mais desejava naquele
momento.
Tirei as mãos do Afonso de mim e dei um passo à frente, então o Luiz deu
um passo na minha direção, acreditando que eu tinha feito uma escolha. Segui
pelo outro lado mantendo os dois longe de mim. Olhei de um para o outro
enquanto eles me olhavam sem entender nada.
Eu queria poder explicar ao Afonso que senti saudade durante dez anos, e
que ele continuava sendo um príncipe, mas eu não estava mais encantada e não
queria que o relacionamento continuasse. Porém, seria muito mais justa se
confessasse que fisicamente éramos compatíveis e que meu corpo ainda reagia ao
dele.
Para o Luiz eu queria dizer que nunca me senti tão livre sexualmente com
ninguém e que isso era extraordinário, levando-se em conta que tínhamos transado
poucas vezes e, em uma delas, eu nem fazia ideia de quem era ele. Ainda assim,
foi maravilhoso!
Queria dizer que meu corpo correspondia ao dele como se aquele contato
já existisse há anos. No entanto, quando estávamos juntos não era apenas o meu
corpo que falava. O problema era que meu coração ficava completamente confuso
quando Afonso estava presente.
Então por todos esses motivos, eu precisava fazer com que os dois
ficassem longe de mim. Afonso não tinha mais espaço na minha vida, e o espaço
que meu coração exigia para o Luiz era muito maior do que ele deveria ocupar,
porque entre nós dois ainda existia uma amizade e um emprego.
Só que eu não tinha coragem de dizer adeus. Não tinha coragem de decidir
por nenhum dos dois e não tinha energia para continuar. Por isso dei as costas e
me forcei contra os foliões, passando pela corda do bloco e fui embora.
***
Minhas pernas doíam, meus dedos estavam apertados naqueles tênis
velhos. Fiz o caminho contrário ao circuito, sem saber ao certo o que deveria
fazer e para onde deveria ir. Só tinha a certeza de que não conseguiria continuar
andando por muito mais tempo.
Parei para comprar uma água, ignorei alguns rapazes, evitei as multidões e
me forcei a continuar caminhando até me dar conta de que eu estava justamente
onde não deveria. Em frente ao prédio do Luiz. Era muita sacanagem do destino.
Continuei andando, e quando decidi que não aguentava mais os dedos
apertados, parei para tirar os tênis. Era melhor cortar os pés, sujá-los, contaminá-
los com mijo e todo tipo de porcaria encontrada no chão de Salvador no circuito
do Carnaval do que deixar que meus dedos apertassem ainda mais o meu juízo.
E foi quando encostei no muro para agir que senti as mãos dele em mim.
Luiz estava lá, me olhando com atenção. Meu coração acelerou, apertou e outra
vez senti vontade de chorar.
— O que foi isso tudo, Luiz? — choraminguei, sentindo meu corpo ruir.
— Você está cansada. Vamos lá pra casa. — Ele estava decidido, o que
me irritou.
— Não! Eu não vou subir, não vou dormir com você, não vou deixar que
isso continue acontecendo! — Chorei e me amaldiçoei por ser tão fraca.
— Não fala assim, Milena! — Ele gemeu, tentando me abraçar, mas o
afastei.
— Onde está o Afonso? — Vi a mágoa em seus olhos por perceber minha
preocupação com o meu ex-namorado.
— Não sei. Ele saiu atrás de você e eu vim pra casa para dar um tempo.
Não sabia o que você queria, nem se ele a encontraria e o que você decidiria.
Olhei ao redor, procurando pelo meu ex-namorado sem encontrá-lo. Era
melhor assim. Eu não pensava direito com os dois juntos me pressionando.
— Vamos conversar. Aqui não é o melhor lugar.
— Eu vou para casa — anunciei.
— Milena, eu bebi e não posso te levar para casa. Além do mais, tenho
certeza de que o Afonso vai pra lá te procurar. A sua saída intempestiva nos
chocou. Então, a não ser que você queira realmente encontrá-lo agora, a melhor
opção é a minha casa.
Não respondi. Contudo eu sabia que ele tinha razão.
— Deixe eu cuidar de você. — Ele acariciou meu rosto, limpando as
lágrimas.
Olhei para o Luiz e me dei conta de que gostava de tê-lo por perto.
Gostava de ser cuidada por ele, de sentir sua atenção e interesse. Gostava dele e
não podia gostar.
Enquanto pensava e admirava seu rosto perfeito, a boca bem desenhada e
os olhos suplicantes, ele se aproximou segurando meu rosto entre as mãos e me
beijou. Toda a confusão dentro de mim se acalmou e as certezas voltaram.
— Deixe eu cuidar de você — repetiu, sussurrando em meus lábios.
Eu não tinha mais como negar. Concordei com a cabeça e ele me carregou
nos braços até o seu apartamento.
Ah, meu Capitão América!
Capítulo 11
“Pena que esse amor
Não possa mais ficar
Pena que esse amor
Não vai poder se eternizar.”
Diga que valeu - Fredson Romero - 1999
Luiz não disse uma palavra enquanto me conduzia pelo apartamento. Ele
abriu a porta, entrou no quarto, no banheiro e me deixou sentada sobre a pia outra
vez. Com um beijo rápido e doce ele tratou de cuidar de mim, como tinha
prometido.
Suas mãos ágeis descalçaram meus pés e depois retiraram a camisa e o
sutiã. Ele deixava claro que gostava de tudo o que via e o quanto minha nudez
mexia com ele, Então colocou meu cabelo para trás, livrando o rosto dos fios, e
me desceu da pia para terminar de me despir.
Ele beijou meu umbigo sem querer levar muito para o lado sexual, depois
o espaço entre os seios, o pescoço e, por fim, minha boca. E eu já estava excitada
com tão pouco.
Luiz se afastou minimamente, retirou a própria roupa sem expressar
qualquer pudor, nem mesmo quando deixou sua ereção à mostra. Ele me virou de
costas, me abraçou por trás, acariciou minha barriga e beijou minha nuca, mas não
deu continuidade aos afagos e me levou até o chuveiro.
Durante alguns minutos ficamos abraçados debaixo da ducha forte e fria,
sentindo apenas a água bater em nossas cabeças e ombros e descer pelo corpo.
Ele me mantinha em seus braços, a testa no meu pescoço, e não disse nenhuma
palavra que pudesse aquietar meu coração.
Após um longo momento ele se afastou, pegou uma esponja azul, passou
um pouco de sabonete e começou a esfregar as minhas costas. Fechei os olhos,
adorando o contato das fibras e, por vezes, das mãos. Ele me ensaboou quase que
completamente e me molhou para que o excesso de espuma saísse. E só depois
deste primeiro processo, passou a me ensaboar usando apenas as mãos.
Seus dedos pressionavam meus ombros em uma massagem deliciosa que
de tempos em tempos tirava alguns gemidos de mim. Ele descia e subia as mãos
espalhando a espuma, me tocando com e sem malícia, massageando, mas também
me excitando sem limite.
O silêncio já não me incomodava, eu tinha outras necessidades e saciá-las
seria muito melhor e menos complicado do que entender tudo o que estava
acontecendo entre nós dois.
Joguei a cabeça para trás quando suas mãos se fecharam em meus seios,
os lábios explorando meu pescoço e o pênis pressionando a bunda. Luiz deu uma
leve mordida no lóbulo da minha orelha e arrancou o pouco de
juízoquemerestava. Gemi mais alto em aprovação e pedindo mais. Ele massageou,
apertou e puxou o bico dos meus seios deixando que a água batesse forte bem ali.
Com as mãos para trás, acariciei seus quadris, passei as unhas em suas
coxas e o mantive pressionado ao meu corpo. Eu estava quente e nem a água fria
me acalmaria. Ele sabia disso, então desceu uma mão e, sem cerimônia, brincou
com a minha vagina com os dedos, acariciando, esfregando e apertando os pontos
mais sensíveis, descobrindo-me aos poucos, sem pressa ou exigências.
Suas mãos continuaram trabalhando em mim. Sua boca, língua e dentes se
revezavam em minha pele, pescoço e orelha, mantendo-me completamente presa a
ele, fazendo-me desejar tudo o que ele pudesse me dar.
Luiz não me penetrou com os dedos como era de se esperar e eu desejava.
Não, ele continuou aquela tortura lenta, concentrada, alisando-me com cuidado,
tocando e pressionando cada parte que merecia a sua atenção. Eu já estava
entregue, excitada e desesperada por um orgasmo, mas tinha certeza de que ele
permaneceria me enlouquecendo o tempo que fosse necessário.
Seus dedos iam e vinham, abrindo e tocando as partes mais internas,
explorando meu clitóris e me enlouquecendo. Ao mesmo tempo, sua outra mão
apertava meus seios e brincava com os mamilos; a boca explorava meu pescoço,
deixando-me tão sensível que até a água que escorria pelo meu corpo me deixava
arrepiada.
Sem conseguir me conter por mais tempo, rebolei em seus dedos, seguindo
os movimentos e me entregando ao clímax. Todo o meu corpo relaxou e expulsou
a tensão de antes. Foi maravilhoso!
Com a mão ainda entre as minhas pernas ele passou a me beijar com mais
cuidado, com certa devoção, me acalmando e me dando o tempo que eu
precisasse. Só depois ele me virou e me encostou na parede do boxe e me olhou
nos olhos, acariciando meu rosto e braços. Beijou-me diversas vezes, mas não
tentou transar comigo, o que me deixou um pouco frustrada.
Luiz estava excitado, era óbvio, já que estávamos sem roupas embaixo do
chuveiro e ele não tinha como esconder a ereção que por vezes encostava em meu
ventre. Mas ele não avançava, só me acariciava, beijava e me olhava, mantinha-
se perto, o braço ao lado da minha cabeça, apoiado na parede.
Toquei seu rosto e ele fechou os olhos, então toquei seus lábios, pescoço,
peitoral, barriga e continuei descendo os dedos para alcançá-lo, só que ele
segurou a minha mão e me impediu. Encarei-o sem entender a recusa, ele fechou
os olhos e negou com a cabeça, a mandíbula indicando seu esforço para se
controlar.
— O que foi? — sussurrei, insegura.
— Ainda não — ele disse bem baixinho.
Aguardei até que ele voltasse a me olhar e captasse a minha angústia.
Quando o fez, alisou o espaço entre as minhas sobrancelhas, me deu um beijo
casto e sorriu sem que fosse um sorriso verdadeiro.
— Eu quero muito você, mas só tenho camisinhas lá no quarto. — Percebi
quando ele engoliu com dificuldade, ponderando o que dizer.
— Não é só por isso — acusei, sem querer estar tão na defensiva.
— Não é — admitiu sem me encarar.
— O que foi, Luiz?
— Não se assuste — sussurrou.
Ele me olhou emocionado e acariciou meu rosto com o dorso da mão.
Tenho certeza de que meus olhos ficaram imensos e eu já não conseguia mais ficar
com a boca fechada pois passei a puxar o ar com mais força. Ele sorriu tentando
me confortar, porém era tarde demais, minha cabeça já dava voltas.
— Não se assuste, Milena. — Voltou a dizer, um pouco mais carinhoso e
relaxado. — É só que... estamos juntos há tão pouco tempo que é estranho como
me sinto em relação a você.
— Como assim? E por que eu ficaria assustada? — Mantive a voz baixa
apesar de estar com o coração acelerado e com medo.
— Porque eu estou... fascinado por você. — Seus olhos voltaram aos
meus cheios de carinho e admiração. — Talvez, fascinado não seja exatamente o
que eu quero dizer, ou... não seja o suficiente para descrever algo tão... intenso.
Mordi o lábio inferior tentando conter a respiração. Meu coração, antes
acelerado, parecia ter disputado uma corrida com os melhores atletas do mundo.
Luiz, percebendo minha reação, colocou a mão sobre meu coração, sentindo as
batidas.
— Você se assustou — seu tom baixo e rouco não ajudava a acalmar meu
corpo. — Não precisa, eu... — Agarrei seu pescoço e o beijei.
Desta vez não foi aquele beijo aveludado, calmo. O que eu sentia não me
permitiria agir com tanto cuidado, pois a urgência me tomava e conduzia. Beijei o
Luiz como se pudesse perdê-lo no segundo seguinte e ele me correspondeu com a
mesma intensidade.
Meu Deus, aquilo era loucura! Eram tantas barreiras, tantos problemas e
tantos empecilhos que eu deveria recuar, no entanto, estava me jogando de cabeça
naquele relacionamento sem me preocupar com a queda.
Luiz rosnou na minha boca, colando o corpo ao meu. As mãos ficaram
mais firmes, possessivas e exigentes. Ele me levantou sem qualquer esforço, abriu
minhas pernas e se encaixou em mim sem cuidados. Gemi alto e cravei as unhas
em suas costas, querendo e exigindo mais dele. E recebi.
Suas estocadas foram fortes, curtas, decididas e certeiras, me empurrando
contra o azulejo, enquanto suas mãos me mantinham segura, equilibrada em seu
corpo. Nossos gemidos ecoavam no banheiro, demonstrando nosso prazer. Ele me
beijou com fome, mordendo e falando meu nome com adoração. Eu estava tão
excitada que gozaria a qualquer momento, simples e fácil como acender um
isqueiro novinho em um candeeiro.
Eu estava quase incendiando aquela casa.
— Porra, Milena! — ele rosnou, me puxando para fora do box, sem sair
de dentro de mim. — Vamos para a cama — falou, determinado.
Pensei em descer de seu colo, mas ele não parou de me provocar enquanto
andava comigo nos braços, mordiscando o bico dos meus seios e acariciando a
minha bunda.
Entramos no quarto, ele saiu de dentro de mim e me jogou na cama, mas
rapidamente já estava em cima de mim, sem me penetrar outra vez. Luiz se
inclinou e pegou uma camisinha no criado-mudo. Antes de rasgar o pacote,
acariciou meu corpo e me devorou com os olhos como se precisasse de um tempo
para se recuperar. Eu não precisava mais de tempo nenhum.
— Você é linda, Milena! — Sorri com o elogio.
Levando a embalagem aos dentes ele a rompeu e começou a vestir o pênis
com o preservativo. Eu gostava quando um homem fazia tal ato demonstrando
prazer, e era assim que Luiz fazia. Uma delícia. Ele se ajustou entre as minhas
pernas, se equilibrou nos braços ao lado da minha cabeça e entrou em mim de
uma vez só.
Gemi e me movimentei para que ficássemos completamente encaixados.
Ele ficou imóvel enquanto eu me ajustava, depois se inclinou um pouco mais
sobre mim e me beijou, voltando a rebolar daquela forma maravilhosa que me
levava a loucura rapidinho.
— Ah, Deus! — gemeu baixinho. — Eu quero você pra mim, Milena!
Abri um pouco mais as pernas, flexionei os joelhos e acariciei suas costas
e bunda, arranhando e apertando onde eu queria, sem precisar pedir permissão.
Luiz gemia, se apertava em mim, rebolava, entrava e saía, mordia meus ombros e
braços, chupou os seios e me beijou com um fogo que ameaçava queimar tudo.
— Eu quero você para mim — repetiu, já se esforçando para não gozar
antes de mim. — Olhe para mim. — Obedeci sem medo. — Eu não quero te
perder para o Afonso — revelou, diminuindo o ritmo das estocadas. — Não
quero mais o Afonso entre nós dois.
— Então não deixe ele ficar — rebati, cobrando dele uma atitude mais
firme. Ele riu baixinho e em um único movimento entrou completamente em mim,
sendo mais impiedoso.
— Não vou deixar. Você é minha, Milena.
Meu corpo deu sinal de que estava no limite, meu ventre formigando e
queimando sem me deixar pensar com coerência, todo o prazer se espalhando,
turvando minha visão e secando a boca.
— Você é só minha — rosnou antes de se entregar ao gozo, que também
me atingiu, tirando qualquer outro pensamento da minha cabeça.
Joguei a mão para trás, buscando apoio na cabeceira, e me forcei contra
ele, gritando de prazer. Luiz enterrou o rosto no meu pescoço, falando coisas que
eu não discernia. Até que finalmente relaxamos e ele deitou o rosto entre meus
seios e eu fiz carinho em seu cabelo.
Apesar da nossa diferença de peso e tamanho, não me incomodava tê-lo
tão relaxado em cima de mim. Pelo contrário. Era como se tudo o que ele
declarou ao gozar funcionasse diferente. Ele disse que eu era dele, mas ali, com
ele tão entregue entre meus braços, a ideia de posse se revertia, e ele passava a
ser meu. E era tão bom!
— Não sabia que você era tão possessivo — brinquei. Ele beijou o
espaço entre meus seios e virou o rosto para me encarar.
— Não sou. Não como você está pensando. Mas me incomodou muito
assistir você e o Afonso hoje. Esse é um limite que precisa ser ajustado.
— Ele não faz ideia do que está acontecendo entre nós dois — defendi
Afonso porque, naquela história, era ele quem estava perdendo. Luiz me tinha e eu
só queria ele. Afonso estava sobrando.
— Ele faz ideia de que alguma coisa está acontecendo. Não pense que o
Afonso é ingênuo porque ele não é. — A maneira como ele falou chamou a minha
atenção. Não parecia ser um sentimento nascido da nossa situação, era algo mais
enraizado.
— Se pensa assim, como pode tê-lo como melhor amigo? — Luiz calou
por um tempo e deitou outra vez o rosto em meus seios, evitando olhar para mim
diretamente.
— Eu só disse que ele não é ingênuo. Faz parte da amizade ser
verdadeiro. — Respirei fundo, decidida a ignorar aquela sensação estranha.
Voltei a alisar seu cabelo e ele se aconchegou. — E eu o conheço o suficiente
para saber que ele já imagina que alguma coisa esteja acontecendo.
— Melhor que seja assim — minha voz saiu fraca, como se eu não tivesse
tanta certeza. — Se ele desconfia, vai ficar mais fácil contar. — Luiz me abraçou
e beijou minha pele outra vez.
— Eu vou contar. Amanhã faço isso.
— Certo. — Respirei fundo sem entender o que estava acontecendo dentro
de mim. — Espero que ele entenda e que isso não abale a amizade de vocês. Nós
não sacaneamos ninguém, já estávamos juntos antes de ele voltar para a minha
vida.
— Eu sei. — Senti sua mão alisando meu braço. — Mas eu sei que não
será tão fácil.
— Por quê?
— Afonso não gosta de perder. E ele tem dificuldade em competir. — Era
verdade. Luiz descrevia o Afonso que eu conhecia e que, pelo visto, não tinha
mudado em nada.
— Então ele vai precisar aceitar. — Abracei o Luiz e beijei o topo da sua
cabeça.
— Não antes de tentar te convencer do contrário.
— Ele não chegaria a tanto. — Até porque um dos problemas do Afonso
também era o orgulho.
— Alguma coisa me diz que ele iria mais longe do que isso. — Ficamos
em silêncio, pensando no assunto, até que Luiz levantou para me olhar nos olhos e
vi medo nos dele.
Outra vez a urgência nos atingiu e assustou, fazendo com que abraços
relaxados virassem a necessidade do toque. Cada toque virou a necessidade da
fusão, e com a fusão surgiu a necessidade de sermos um só. Só que sendo um só
eu pude enxergar um Luiz que não tinha visto até ali. Aquilo era exatamente o que
angustiava o meu coração.
***
O dia seguinte era segunda de Carnaval. O clima de despedida começava
a ser cantado em todos os canais da . A cidade já movimentava a sensação de
TV
saudade, de expectativa para o último dia, que deveria ser vivido com muito
proveito.
Sob fortes protestos da minha mãe, resolvi ir à praia com a Fernanda.
Apesar de estarmos sempre juntas, não tivemos tempo para falar sobre ela ou
para conversar sobre como eu me sentia em relação a tudo. Fomos no carro dela
para a praia do Flamengo que, por sinal, estava lotada. Algumas pessoas que não
curtiam Carnaval costumavam fugir para aqueles lados.
Deitamos na espreguiçadeira da barraca e relaxamos com nossa água de
coco.
— E está a maior confusão por causa disso — ela finalizou, me
explicando o problema do sumiço do dinheiro do condomínio.
Todos estavam tensos, sem encontrar o ladrão e apontando muitos
suspeitos. Esse foi o problema dela com o Carlos, mas, segundo a minha amiga,
não foi o que a levou a colocar um fim no relacionamento.
Fernanda me contou que quando entendeu que ele jamais deixaria a esposa
e que só estava se afundando naquela relação, decidiu que era hora de cair fora, e
claro, Igor surgiu no momento certo.
Ela estava feliz, apesar de toda a confusão. Fiquei feliz com o desfecho da
história e até esperançosa, apesar de tudo. Então chegou a minha vez de abrir o
meu coração.
— Eu tenho certeza de que o Luiz ainda tem mágoa do Afonso. A maneira
como ele fala é de alguém que não superou completamente o que aconteceu na
escola.
— Também, o coitado sofreu nas mãos dos meninos — Fernanda
concordou defendendo o Luiz. — Eu nem sei como ele tem equilíbrio para ser
amigo do Afonso hoje. Taí uma coisa bem estranha no seu Capitão América.
— O problema é que o Luiz é tão tranquilo que às vezes tenho medo de
estar vendo chifre na cabeça do cavalo.
— Vai ver é porque os unicórnios estão na moda. — Riu, me fazendo ter
vontade de tacar areia nela. — Olha, Mi, é normal se ele ainda tiver mágoa. Você
ainda tem! — Eu me encolhi com a acusação verdadeira. — O mais importante é
que ele é um cara legal e está super interessado em você.
— O mais importante é que eu estou superinteressada nele. Não estou
carente para aceitar quem me quer, Fernanda! — Ela se levantou, fazendo cara de
horrorizada.
— Mas será possível isso? Ela está toda se achando só porque dois gatos
maravilhosos disputaram o seu amor no meio do Carnaval. Poderosa!
Rimos e aproveitamos a praia longe dos nossos queridos... namorados?
Eu não sabia se podíamos denominá-los assim. No final do dia, voltamos para
casa bronzeadas, cheias de planos e esperançosas.
***
Eu havia combinado com o Luiz que não encontraria com o Afonso, não
sairia no bloco e evitaria qualquer contato até às dez da noite, quando iria para o
seu apartamento, saber como foi a conversa dos dois e o que ficou resolvido. Sem
celular, ficava um pouco mais complicado trocarmos informações. Contudo
depois de um dia inteiro ao lado da minha amiga, eu me sentia mais otimista,
pronta para abraçar o mundo.
Saímos juntas para o penúltimo dia do Carnaval. Desta vez o Igor a
acompanhou, e ele era muito engraçado. Demonstrava uma preocupação enorme
com a segurança da Fernanda, além de não ter qualquer receio de tocá-la em
público, deixando claro o quanto gostava dela. Minha amiga não parava de sorrir.
— Quem seria o Afonso nessa história toda? — Ele brincou enquanto
andávamos para o meu ponto de encontro com o Luiz. —Marvel ou DC?
— Amor, ela não entende nada disso. O Capitão América só é Capitão
América porque se parece com o cara, o gostoso que fez o papel.
— Gostoso? — Ele passou à frente, virando para Fernanda que abriu o
maior sorriso.
— Muito gostoso!
— Eu sou mais gostoso do que ele! — falou indignado, e minha amiga
revirou os olhos.
— Muito mais gostoso do que ele. — Igor deu um sorriso convencido.
— Ah, é? — E agarrou Fernanda em um beijo escandaloso.
— Parem com isso! Não quero ficar aqui segurando vela, tá legal? —
Eles não se importaram comigo e continuaram. — Quer saber? Vou na frente.
Encontro com vocês lá.
Andei um pouco mais rápido, sem me preocupar com os dois. Não seria a
primeira vez que Fernanda sumiria no meio de uma festa. Caminhar pela rua de
trás era mais tranquilo, apesar de encontrar uma multidão ocasionalmente. Fiz o
percurso decorado, e quando estava quase na frente da portaria improvisada do
prédio do Luiz dei de cara com o Afonso.
Ele surgiu do nada na minha frente, sério, na defensiva e sem demonstrar o
carinho de antes. Fiquei assustada na mesma hora.
— Preciso conversar com você — anunciou sem meias palavras.
— Talvez não seja uma boa ideia, Afonso.
— Milena, é uma ótima ideia! — Foi incisivo. — Você precisa saber
quem é ele. — Em um segundo, passei de assustada a indignada.
— Você vai fazer mesmo isso? Porque eu apostava que você não seria
capaz de tentar queimar o filme do Luiz comigo só por despeito.
— Não é despeito, é receio — ele rebateu. — Você não faz ideia de quem
é o Luiz.
— Eu sei que ele é o cara que me deu a opção de seguir com você sem
colocar uma vírgula na sua história, então não faça isso. Foi escolha minha ficar
com ele.
— Não, não foi! — Parei chocada com a maneira com que falou. — Ele te
manipulou, te seduziu e fez você acreditar que estava apaixonado.
— Não faça isso, Afonso!
— Luiz está brincando com você! — Havia muito mais do que raiva ou
despeito na maneira como ele falava. — Percebi que você seria a próxima
quando te vi entrando naquele apartamento, Mi.
— Do que você está falando?
— Que ele está se vingando de todos os que fizeram bullying com ele na
escola. Ele quer se vingar de você. — Meu coração disparou. Eu reconhecia
aquela ideia porque ela esteve incutida em mim também, mas não era possível
que fosse verdade. — Mi, por favor, só me escute. Luiz se aproximou de mim
como amigo e, de fato, nem imaginei que ele estava com essa ideia. O tempo
passou e ficamos muito próximos, até o dia em que comecei a desconfiar dele
com a Sabrina.
— Ai, meu Deus! — Recuei, me encostando em um carro estacionado.
— Eu não tenho como provar nada, ou não tinha até hoje.
— Como assim?
— Sabrina chegou a sair de casa num certo período. Eu me desesperei!
Fui para o Luiz acreditando que ele era meu amigo e então eu os vi na casa dele.
Sabrina estava lá, com ele, você me entende?
— Eles são amigos. — Tentei a todo custo buscar justificativas, sem
encontrá-las.
— Foi isso o que ele te disse?
— Não. Nós nem conversamos sobre a Sabrina.
— Depois de alguns dias ela voltou dizendo que eu entendi tudo errado,
que ela foi buscar apoio no Luiz e me fez acreditar que foi invenção da minha
cabeça. Mas não foi! E hoje ele me contou tudo. Hoje ele confessou que quer se
vingar de mim, que vai tirar todas as garotas com quem eu me relacionar. Ele me
disse coisas horríveis, Mi, e reafirmou que não deixaria você ficar comigo.
— É mentira sua, Afonso! — gritei. — Ele me disse que você tentaria me
jogar contra ele.
— Ele disse? — Afonso riu. — Então é pior do que eu imaginava. — Ele
andou, passando as mãos pelos cabelos. — Eu não sou a pessoa em que você
confiaria cegamente, mas nunca seria capaz de te magoar outra vez, Milena. Luiz
sabia que eu queria te encontrar naquele baile. Sabia que eu sempre me ressenti
do fim.
— Ele nem lembrava de mim. Como você pode inventar algo assim?
— Ah, ele lembrava! O Luiz foi apaixonado por você quando era apenas o
Luiz espinha. — Outro choque que me deixou emudecida. — E ele nunca superou
a rejeição. Então veio com a história de irmos iguais para a festa, assim ele
chamou a sua atenção, não foi?
— Não! — Neguei mil vezes para mim mesma. — Não é verdade,
Afonso.
— Infelizmente é. — Disse com uma tristeza verdadeira no olhar. — Se
ele mesmo não tivesse assumido, eu ainda acreditaria na amizade dele. Quando
conversamos, ele me disse que estava com você e que era para eu me afastar.
Chegamos a discutir. Eu bati nele e foi assim que ele acabou revelando toda a
farsa. Acredite em mim! Estou tão horrorizado quanto você agora. Ele dormiu
com a Sabrina! Ela era a minha esposa! Que canalha!
Quanto mais Afonso falava, mais eu aceitava suas ideias. Luiz gostou de
mim rápido demais, mesmo depois de termos transado quando acreditava que ele
era o Afonso. Ele aceitou tudo, e à medida que eu o aceitava, mais envolvida
ficava.
Não! Era perverso demais para ser verdade.
— Eu sinto muito, Mi! Sinto muito mesmo. Eu me odiei a vida toda por ter
feito você sofrer quando escolhi ficar com a Sabrina, agora me odeio mais ainda
por ser eu a te abrir os olhos.
— Não pode ser verdade!
As lágrimas desceram sem que eu tivesse chance de ter qualquer outra
reação. Doía demais pensar que aquele homem da noite anterior, apaixonado,
possessivo, era um mentiroso e que me provocava aquela dor por livre e
espontânea vontade.
— A culpa é minha! — Afonso se aproximou, segurando meu rosto. — A
culpa é minha por ter me apaixonado outra vez, por ter dito que te queria de volta,
Milena! Perdão! Eu devia ter encerrado a minha amizade com aquele canalha
quando comecei a desconfiar do jogo dele.
— Não é verdade! — Continuei lutando contra.
— Sinto muito, Mi! Sinto muito.
Afonso estava perto demais. Eu sofria como nunca imaginei ser capaz, de
novo. E quando ele me beijou, não tive reação.
Beijei Afonso sem emoção alguma, só constatando que realmente não o
queria de volta. E quando ele separou a boca da minha, não tinha mais qualquer
dúvida.
Estava pronta para colocar um fim em nós dois quando olhei para trás
dele e vi o Luiz parado, olhando para nós e horrorizado com o que via.
Oh, droga!
Capítulo 12
“Bota fogo na minha vida
Pra aquecer meu coração
Já não vejo mais saída
Não me diga não.”
Voa Voa – Alexandre Peixe - 2003
Durante os primeiros minutos, nós nos encaramos e eu fiquei imóvel, sem
reação, sem respirar, sem sequer conseguir pensar no que seria mais adequado
fazer. Uma confusão pior do que a pipoca do Carnaval se formava em minha
cabeça, fazendo meu estômago revirar.
Era estranho sentir frio estando no meio da maior folia do Brasil, repleta
de pessoas que se esbarravam constantemente trocando calor, mas era o que eu
estava sentindo tendo Afonso às minhas costas, irradiando sua ira, e Luiz à frente,
anuviando e apertando minha mente até o limite.
Eu não sabia o que pensar e em quem acreditar.
A princípio, seus olhos cobraram de mim uma explicação. Qualquer coisa
que justificasse o fato de eu estar beijando o Afonso, ou de ele ter me beijado,
mas então... ele me olhou sem fúria, sem acusação, só com uma tristeza que lhe
alcançava os olhos e me atingia com toda a sua força.
O som de um trio elétrico se aproximando na rua da frente, propagando
“Ô, ô, ô, alegria, alegria!” não condizia com a confusão dentro de mim. Alegria
era o último sentimento que poderia cogitar naquele penúltimo dia de Carnaval.
As pessoas começaram a correr em direção à rua principal ansiosas e
eufóricas, passando pelo espaço que nos separava como se não existisse ali um
muro real, erguido pelas minhas decepções, inseguranças e mágoas. Um muro que
me colocava a uma distância intransponível do Luiz.
Até que finalmente seu olhar me abandonou e foi para a figura atrás de
mim. Afonso. E nele, sim, foi descarregada toda a sua fúria. Foi naquele instante
que comecei a me questionar sobre a veracidade das palavras do meu ex-
namorado.
Luiz ainda estava vestido com o abadá do bloco em que ambos saíram
mais cedo, onde deveria acontecer toda a conversa que combinamos e que
ocasionou toda aquela confusão. De onde eu estava, conseguia ver o machucado
em sua boca, indicando que foram além de uma simples discussão mais
acalorada.
Virei para Afonso, curiosa e querendo descobrir onde ele estava
machucado, e o flagrei com um sorriso maléfico, além do olhar afiado
direcionado para nosso ex-colega. Meu olhar passou de um para o outro sem
conseguir definir quem estava sendo mais mentiroso naquela história, contudo,
sem encontrar qualquer certeza.
— Não dê ouvidos a ele, Milena — Afonso falou atrás de mim, a voz
menos sofrida e mais perversa. — Ele só veio me provar que você já está perdida
pra mim. Não deixe que ele saia ganhando.
Era como se o tempo passasse em câmera lenta, contradizendo as imagens
de pessoas festivas, dançando, rindo e pulando, atraídas pelo trio elétrico. Apesar
disso, meu coração estava acelerado. As pessoas pareciam estar em outra
dimensão enquanto eu permanecia de fora, olhando, tentando entender, tendo
todos os meus sentidos aflorados, buscando respostas.
Meu ex-namorado me olhou com a certeza de quem tinha o jogo todo nas
mãos. Afonso foi o cara que me traiu, que me trocou sem qualquer arrependimento
pela garota mais bonita da escola quando teve a primeira chance, mesmo com
todas as juras de amor que trocávamos. Afonso foi o cara que não levou em
consideração os nossos anos de relacionamento, que seguiu em frente sem nunca
olhar para trás. Era nele que eu deveria acreditar?
— Cala a boca, Afonso! — rosnei, virando em sua direção. — Eu vou
ouvir o que ele tem pra me dizer. — Ele se assustou com a minha declaração e me
olhou sem acreditar.
— Não ouviu o que eu disse? Ele está te usando! O próprio Luiz fez
questão de me dizer que você pagaria por ter sido tão permissiva, por ter
ignorado o que ele sentia. Ele me disse, sorrindo, que se vingaria mais uma vez
de mim, tirando novamente alguém que eu amo dos meus braços.
Fechei os olhos tentando me impedir de ficar tão impactada com aquelas
palavras. Afonso me amava? Não, Milena, sua burra! Ele só está com o orgulho
ferido, minha mente gritava fazendo eco, me deixando atordoada. Olhei para ele,
enxergando sua aflição e sinceridade. Havia uma imensa possibilidade de ser
verdade, mas Luiz tinha me dito que Afonso faria qualquer coisa para não perder
o jogo, e eu sabia que podia ser assim também.
— Eu vou falar com ele — anunciei, me afastando.
Eu queria olhar nos olhos do Luiz e tirar as minhas próprias conclusões,
por pior que elas pudessem ser. Não havia qualquer possibilidade de tudo ter
sido uma mentira, eu me recusava a acreditar. Então sem aguardar por mais nada,
virei buscando outra vez seus olhos e fui recebida com alívio. Os ombros dele
relaxaram, deixando-me insegura. Ainda assim eu precisava ir até o final, embora
não estivesse nos planos do Afonso que eu tomasse aquela atitude.
— Não faça isso! — Ele me segurou pelo braço, querendo me impedir de
continuar. — Milena, não seja tola!
— Pare! Deixe-me! — gritei, me debatendo enquanto mais e mais pessoas
chegavam, lotando a rua em busca de uma maior aproximação do trio. O espaço
ficou restrito, fazendo com que Afonso conseguisse enlaçar a minha cintura.
— Mi, olhe para mim. Ele vai te convencer. Não está vendo? Você está
apaixonada! Ele vai mentir e te convencer.
Parei, olhando em seus olhos com um receio que fez minhas pernas
tremerem. Sim, eu estava apaixonada e assim me tornava uma presa fácil, frágil,
capaz de aceitar todas as desculpas. No fundo, todos os meus pesadelos ainda
estavam lá. Eu continuava sendo aquela mesma garota romântica, cheia de sonhos
e planos, que esperava encontrar um grande amor e ser capaz de tudo para vivê-
lo, até encobrir as piores mentiras.
Chorei porque me odiava. Por que eu não queria simplesmente não
suportar a dor outra vez e perdoar qualquer deslize, como fiz dez anos antes
quando descobri que Afonso estava com Sabrina.
Chorei porque não queria ser outra vez aquela garota que não conseguia
seguir em frente e que remoía a mágoa e alimentava a esperança por tantos anos
que nem percebeu que se anulou, que esqueceu de viver e de se dar
oportunidades.
Eu chorei porque desejei aquela vingança com tanta força que esqueci de
empenhar energia em outros setores da minha vida. E ali estava eu, olhando para
um Afonso apaixonado, desesperado, pronta para rejeitá-lo como sempre quis e
desesperada porque não era mais nada do que eu queria.
Se o preço era me apaixonar outra vez e me ver em uma situação como
aquela, eu queria poder ter tido a oportunidade de esquecer o Afonso, muitos anos
antes. E nunca desejei tanto que ele fosse livre para seguir em frente sem qualquer
sofrimento. Eu queria que ele fosse feliz, quem sabe assim eu me perdoaria e
encontraria a minha própria felicidade.
— Tire as mãos dela. — Luiz estava logo atrás de mim, e pelo tom de voz
não seria nada bom mantê-lo ali.
— Milena pode fazer as próprias escolhas, Luiz. Ela já sabe de tudo.
— Parem, pelo amor de Deus! — Virei, ficando entre os dois e afastando-
os. — Não vamos começar uma confusão aqui.
— Ela sabe de tudo, Afonso. Sabe que você, outra vez, seria capaz de
qualquer coisa. Milena conhece o seu ego e o seu orgulho — Luiz rosnou sem nem
me olhar por um segundo. — Não se engane, ela sabe exatamente quem você é e
não merece passar outra vez por isso. — Esta última colocação fez meu coração
parar por alguns segundos e depois voltar a bater desenfreado. O que Luiz quis
dizer com aquilo?
— É isso o que você quer, não é mesmo? Criar essa insegurança na
cabeça dela, fazer com que acredite que o vilão sou eu, quando na verdade você é
esse cara doente. — Luiz avançou e eu precisei de minhas duas mãos para contê-
lo, deixando Afonso livre.
— Não, Luiz! — gritei para ser ouvida, mas a confusão fora da nossa
bolha não colaborava.
Estava apertado e Afonso ainda me segurava, impedindo-me de partir.
Luiz estava decidido a acertar aquele problema de uma forma mais violenta, e
várias pessoas começaram a prestar atenção em nós.
— Você continua sendo a mesma pessoa. Insensível, egoísta e infantil.
Sabrina tinha razão — Luiz disse com indignação.
— Não se atreva a falar da Sabrina, seu canalha! Você se fez de amigo pra
conseguir levar a minha mulher para a cama. — Luiz riu, pegando-me de surpresa.
— Você é doente! — Ele se afastou um pouco, sem deixar de sorrir. —
Não respeita ninguém, não tem consideração pelas pessoas.
— Mi, eu estou falando a verdade. Não sou o cara mais confiável da
Terra, mas jamais deixaria que qualquer pessoa brincasse com você. E é o que
ele está fazendo. Acredite em mim.
— Já chega! — gritei mais uma vez, desejando me afastar dos dois.
— Vamos sair daqui, Milena — Luiz anunciou.
— Ela não vai. — Afonso revidou com o mesmo tom autoritário.
— Eu vou! — No mesmo instante, senti a mão do Luiz em minha cintura,
me reivindicando. Afonso segurou meu pulso e me puxou de volta.
— Larga, Afonso! — pedi, me sentindo fraca. — Eu quero ouvir o que o
Luiz tem pra me dizer.
— É melhor você largá-la — Luiz ameaçou.
— E quem vai me obrigar? — meu ex-namorado provocou, empertigando-
se.
— Eu! — falei em tom mais rígido, desejando que não fosse necessário
um embate entre eles. — Eu disse que vou com o Luiz. — Afonso não escondeu a
decepção ao me ouvir, porém, soltou meu pulso. — Eu vou apenas ouvir o que
você tem para dizer, Luiz. Sou capaz de chegar às minhas próprias conclusões
sem precisar da ajuda dos dois.
Luiz concordou e, sem deixar a minha cintura, abriu caminho para que
passássemos. Eu fui sem olhar para trás, para o meu ex-namorado. Não queria
olhar para o Afonso e perceber que deixei a situação chegar até aquele ponto,
nem queria me arrepender da decisão que tomei.
Assim que ganhamos a multidão e conseguimos atravessar, tirei sua mão
de mim. Eu estava confusa demais para aprovar toques desnecessários e
precisava de toda a clareza para notar seus sinais. Não me ajudaria em nada ficar
tão vulnerável.
— Milena... — Ele tentou, assim que chagamos à rua de seu prédio,
também lotada devido à presença do trio.
— Eu vou te ouvir — falei, virando pela primeira vez em sua direção. —
Mas é só o que vou fazer.
— Certo. Só não... vamos lá para casa.
— Vamos conversar aqui. — Eu me afastei quando ele tentou me pegar
outra vez.
— Aqui? — Luiz desistiu, colocando as mãos nos bolsos da bermuda. —
Aqui é impossível!
— Eu não vou subir, então se quiser se explicar, pode começar a falar. —
Ele respirou fundo, olhou para trás e se aproximou, me deixando intimidada.
— Acredite em mim, aqui não é o melhor lugar para ouvir tudo o que eu
tenho pra te contar.
— Então... — Recuei, esbarrando num grupo que passava dançando e Luiz
precisou me enlaçar rapidamente para que eu não fosse levada junto com os
transeuntes.
Ele me encarou sério, os olhos intensos, a mandíbula tensa, o corpo
inteiro demonstrando que aquela conversa não seria nada fácil. Ainda assim, foi
impossível não sentir aquela paixão que brincava dentro de mim há dias. A
emoção que me puxava, querendo me fazer acreditar que nada daquilo era
verdade, combatia a razão, que se mantinha firme em não me tornar cega.
Se eu fechasse os olhos, ainda podia sentir a verdade em seu toque e seu
beijo. A paixão com que me pedia desesperadamente para dizer seu nome. O
medo real de estar entrando em uma situação delicada e que pudesse, mais uma
vez, machucar. Não. Não havia como ser mentira.
Ou havia?
Então seus olhos abandonaram os meus, descendo para os meus lábios, as
mãos ficando mais delicadas, a respiração mais pesada, deixando tudo em mim
mais lento e ansioso. Contudo, doía me imaginar assim. Ele notou meu sofrimento
e tão rápido quanto me segurou, soltou.
— Vamos, Milena! Você pode confiar em mim.
— Será que posso?
— Pode — falou sério, sem deixar margem para enganos. — Eu não vou
mentir nem esconder nada, então você precisa confiar em mim. Aceitar, eu já não
sei se será possível.
Com essas palavras ele me indicou o caminho que eu já estava cansada de
conhecer e me deixou seguir em frente, sem me tocar.
E eu fui, não só porque precisava ouvir o que ele tinha para me contar -
pois já estava certa de que, o que quer que fosse, me machucaria da mesma forma
-, mas porque eu queria, de uma maneira masoquista, estar ao lado dele nem que
fosse uma última vez.
Capítulo 13
“Eu não vou te procurar.
O nosso orgulho não vai dar em nada, nada, nada não.”
Eu fico - Cláudia Leite/Luciano Pinto/Sérgio Rocha - 2002
Fazer o trajeto naquele clima não foi nada interessante. Das outras vezes,
os conflitos eram passíveis de resolução, mas desta vez eu acreditava que o que
ele me contaria não poderia ser perdoado, e que quando eu deixasse aquele
apartamento, seria para sempre.
Luiz não voltou a encostar em mim. Ele nem sequer tentou ou demonstrou
querer fazê-lo. Ele ficou calado e sério no elevador e manteve uma distância
segura, porém nada confortável.
Eu queria fechar os olhos e acreditar que estava vivendo um pesadelo.
Queria acordar e ser confortada por seus braços. Só queria que fosse tudo mentira
e que pudéssemos rir quando o Carnaval acabasse. Mas eu era o tipo de covarde
que preferia fechar os olhos e culpar o mundo a abri-los e encarar a realidade. Eu
precisava mudar o que eu era.
Ele permitiu que eu fosse na frente até o apartamento. Destrancou a porta e
deixou que eu passasse, e depois fechou-a sem trancá-la. Isso me dava liberdade
para ir embora a qualquer momento.
Luiz caminhou lentamente sem me olhar, passou pela cozinha, abriu a
geladeira, pegou duas cervejas e, sem dizer uma palavra, colocou uma sobre a
mesa para que eu pudesse acompanhá-lo. Depois puxou uma cadeira e se sentou
longe de mim, com as pernas entre ela, da mesma forma que fez no meu primeiro
dia naquele apartamento.
Ele abriu a cerveja e me encarou. Eu sentia que ele também não queria
que fosse daquela forma, assim como podia jurar que ele, de fato, me contaria a
verdade mesmo que significasse me perder. Então aguardou para que eu me
acomodasse também.
Fui até a mesa e peguei a cerveja ofertada. Eu não deveria beber, seria
mais prudente, mas eu precisava de algo em que me concentrar, que me colocasse
exatamente onde eu estava, no apartamento do Luiz, tendo uma conversa decisiva.
Por isso o imitei, e no primeiro gole ele começou a falar.
— Por que estava beijando o Afonso?
Levei cinco longos segundos me perguntando porque ele estava tão
preocupado com a merda do beijo! O que precisaríamos conversar ali era
infinitamente mais importante do que eu estar ou não beijando o Afonso. Acabei
rindo, negando a resposta com a cabeça e tomando mais um gole da minha
cerveja.
— Tá bom. — Ele se mexeu desconfortável, voltando a beber. Depois
respirou fundo e me encarou outra vez. — O que ele te disse? — Permaneci em
silêncio, o que o fez perder um pouco da paciência. — Como posso me defender
se nem sei o que ele te disse? — Concordei apenas balançando a cabeça e tomei
fôlego para iniciar a conversa.
— Que você é um mentiroso.
Encarei seus olhos, querendo encontrar qualquer detalhe que demonstrasse
que Luiz estava surpreso com a atitude do Afonso, mas ele nem piscou, nem ficou
desconcertado, apenas aceitou a ofensa e aguardou.
— O Afonso fez bullying com você. Eu estava sempre presente e nada fiz
para evitar que acontecesse. Não seria novidade se fosse verdade a sua raiva por
ele. — Pela primeira vez uma reação. Luiz abriu um pouco os olhos e levantou a
cabeça, altivo.
— O que eu não podia imaginar era que, por causa disso, você se
passasse por amigo para buscar vingança — acusei, e ele não demonstrou
qualquer sinal de ofensa.
— Seria demais desejar vingança? — Devolveu a acusação, erguendo a
sobrancelha e tomando um outro gole da cerveja.
— Seria demais buscar vingança. — Sustentei seu olhar, mas eu estava
abalada demais, porque sabia que não podia cobrar dele algo que eu mesma tinha
desejado fazer.
— Não seja hipócrita, Milena! Você é muito mais do que está tentando ser.
— Imediatamente recuei, sentindo atingida.
— E você? O que estava tentando ser? Até que ponto era você mesmo,
Luiz? Você foi sincero em algum momento? — Foi a vez de ele ser atingido.
— Com você?
— Principalmente.
— Quase sempre — admitiu, me impactando finalmente, como imaginei
que seria.
Pensei em levantar e ir embora. Pensei em apenas levantar, chorar e
quebrar algumas coisas. Pensei em ignorar o que ele disse e me fazer de louca
abrindo a varanda para dar passagem ao Carnaval, afinal de contas era tudo
fantasia e finalmente, no penúltimo dia, precisaríamos tirar as máscaras. Pensei
em muitas coisas, mas fiquei ali, naquela cadeira, segurando a garrafa de cerveja
como se minha vida dependesse dela.
— Eu odeio o Afonso, essa é a verdade — continuou Luiz.
Pensei que fosse desmaiar com aquela confissão. Meu coração martelava
no ouvido e as mãos começaram a suar.
— Assim como você, eu me reservei o direito de alimentar a mágoa
durante todos esses anos.
— Eu não odeio o Afonso. — Preferi me defender do que acusá-lo. Luiz
não precisava disso já que tinha feito como prometeu e me contou a verdade.
— Mas odiou durante muito tempo — falou sem rodeios.— E não me diga
que não pensou em colocar em prática a sua vingança quando percebeu no que
tinha se metido. Não minta, Milena, porque eu sei a verdade. No dia em que eu te
trouxe aqui, querendo o confronto entre vocês dois, pude ver em seus olhos o
quanto gostou de ter a atenção dele, o quanto te deu prazer saber que poderia
desprezá-lo, que poderia humilhá-lo assim como ele fez com você.
— Não é verdade. — Mas era, e doía mais saber que eu mesma desejei
me vingar do que saber que ele tinha me usado para efetivar sua vingança. — Eu
mereço isso? Você está se vingando de mim também?
— Não! Quer dizer... — pela primeira vez vi o Luiz desconcertado,
querendo arrumar uma maneira de fazer com que não fosse daquela forma. —
Quando eu te vi na empresa e percebi que você não me reconheceu, sim. Eu quis
te envolver, e assim machucar ainda mais o Afonso, porque eu sabia o quanto
você era especial para ele, principalmente depois que a Sabrina...
— Você me usou? — Não foi uma acusação. Contudo dizer aquilo em voz
alta fez a ferida doer e as lágrimas escorrerem. Apesar do orgulho e da minha
necessidade de continuar olhando para ele, eu me senti frágil e destruída.
— Não usei. Não como você está imaginando. Acredite em mim!
— Como pode ter me usado, mas não como estou imaginando? Isso chega
a ser... inacreditável! — Solucei sem querer impedir que o choro ganhasse mais
força.
— Ah, Deus, Milena! Não chore! Eu... eu não sabia como me aproximar.
Você sofreu o assalto, acabei me envolvendo e nem assim você me olhou mais
tempo do que o necessário. Eu já não tinha mais certeza de nada.
— Lá no baile... você...
— Estávamos com a mesma fantasia — confirmou o que Afonso disse. —
Mas ele ficou bêbado logo, entrou em crise por causa da Sabrina e acabou indo
embora antes que eu tivesse te encontrado. Eu nem fazia ideia de que você nos
confundiria, até porque não sabia se vocês tinham chegado a se encontrar. Mesmo
assim, quando você começou a dançar e me provocar eu... sabia que se
imaginasse quem eu era você acabaria recuando. Não queria que fosse assim. Se
todos da escola nos víssem juntos, a informação chegaria rápido até ele e eu teria
mais uma peça da minha vingança.
— Ah, meu Deus! — gemi assustada com tudo que ele me dizia. — Você
me levou para aquele lugar, transou comigo, me deixou confusa e ainda assim
continuou?
— Não, Milena! Eu te levei para lá porque queria que você tivesse a
chance de saber com quem estava, mesmo que imaginasse ser só o novo colega do
trabalho, como aconteceu no dia seguinte.
— Você transou comigo para se vingar do Afonso! — falei mais alto.
— Não! — Ele foi firme, me calando. — Não nesse dia. Simplesmente
aconteceu, Milena. Eu não pretendia ir tão fundo, mas aconteceu porque a química
entre a gente é muito boa. Você não pode dizer o contrário.
— Eu posso dizer que você é um canalha!
— Por quê? Eu não te forcei a nada! Você quis tanto quanto eu.
— Porque sabia que eu me envolveria, porque aproveitou este fato para
me tornar a sua vingança.
— Assim como você fez comigo — rebateu sem titubear. — Não vá por
este caminho porque não vai funcionar. Eu recuei, te dei a chance de não se
envolver, inventei que ele era o meu melhor amigo, expus os problemas, e mesmo
assim você quis. Você quis, Milena! E quis porque encontrou em mim a vingança
perfeita.
— Isso é ridículo!
— Então diga que eu estou mentindo e vá embora. Diga que estou errado,
que nunca passou pela sua cabeça aceitar o Afonso, iludi-lo e assim findar o que
durante dez anos desejou. Olhe para mim e diga.
Não tive coragem. Por pior que Luiz fosse, eu não conseguia ser melhor
do que ele.
— Diga que não me usou para que o Afonso se sentisse humilhado. — O
meu silêncio lhe deu força. — Exatamente, Milena. É impossível lutar contra uma
mágoa quando está diretamente ligada ao Afonso.
Limpei as lágrimas e funguei decidida a acabar com a conversa. Era isso.
Foi realmente uma mentira e Luiz fez como prometeu, contou toda a verdade.
Coloquei a cerveja ainda pela metade sobre a mesa e me levantei.
— Espere! — disse, alarmado com a possibilidade de eu ir embora. —
Eu ainda não falei tudo.
— E o que pode ser pior do que isso? Você tem razão quando diz que eu
quis vingança. Não vou mentir e me fazer de vítima. Eu quis! Sonhei com isso
esses anos todos, mas não fui capaz de fazer. Eu não usei você. Não transei só
porque queria ferir o Afonso. Não me entreguei e te busquei porque queria dar
corpo a um plano maléfico. Eu quis ficar com você e fui sincera todas as vezes.
— Eu também. — Sua declaração me pegou de surpresa, mas sem me
dissuadir. — Naquela noite, eu quis realmente que acabasse. Eu não queria te
magoar, mas percebi a sua vontade de ir até o fim e isso acabou me estimulando.
Você não sabe como é, Milena. Não conhece o poder que tem sobre mim. Senti-la
tão necessitada de vingança alimentou os meus planos. Todas as vezes que eu
tinha você em meus braços, querendo me convencer a contar mesmo sabendo que
ele te queria de volta, que éramos amigos, me fazia desejar ir a diante. Mas
quando você não estava por perto, quando finalmente eu conseguia pensar sem os
seus feitiços, eu via que era arriscado demais e sempre voltava atrás.
— É mentira!
— Não é, não! Por isso nunca contei ao Afonso. Por isso tentei te
demover da intenção de envolvimento. Eu te dei todas as chances de cair fora e
você não quis.
— Foi por você — revelei, voltando a chorar. — Eu não pulei fora
porque queria ficar com você, e não porque queria magoar o Afonso, mesmo
sabendo que isso aconteceria e mesmo me dizendo o tempo inteiro que ele
merecia. Não foi uma vingança.
— E eu também fiquei por você. Eu seguraria a verdade até ter certeza do
que você queria. Ou até que ele sumisse outra vez com todas as loucuras que
consegue inventar.
— Você fala do seu envolvimento com a Sabrina? — Ele me olhou sério
sem nada dizer. — É verdade esta parte também?
— Não. Quando me aproximei do Afonso acabei me aproximando dela
também. Durante muito tempo convivemos e, sem que eu tivesse planejado nada,
ela acabou se apaixonando por mim. O Afonso jamais foi uma boa pessoa. Ele
traía a Sabrina, não importava com quem e nunca era o bastante. Ele vive
orgulhoso da profissão, sentindo-se superior, desejando o que não pode ter e
acabou enterrando os dois em dívidas.
— Você transou com ela?
— Sabrina acreditou que poderia ficar comigo e foi para Recife atrás de
mim. Ela queria escapar da confusão em que Afonso tinha tornado sua vida. Eu
encontrei nela uma forma de me vingar, mas desisti no último momento porque
sabia que ela também não prestava. Era por isso que ela estava com quem estava.
Sem querer perder a oportunidade, eu me vali do ciúme aflorado do marido e
deixei que ele acreditasse, mas consegui convencê-la a voltar, fazendo com que
pensasse estar confusa.
— Você é uma pessoa horrível!
— Eu não transei com ela, mas se serve como ponto para ganhar tal título,
sim, eu sou. Contudo ainda não consegui ser uma pessoa mais horrível do que o
próprio Afonso, e quanto a isso você nunca terá argumentos.
Fiquei em silêncio outra vez, encarando-o e tentando entendê-lo sem
conseguir.
— Eu dei ao Afonso o que ele merecia. E merecia até mais, mas vou
continuar afirmando que tentei muitas e muitas vezes te tirar desse jogo, até que
senti que não poderia te perder. Até perceber que eu estava envolvido demais e
foi aí que senti medo das coisas que fiz. Quando eu disse que não queria te perder
para ele, não menti, porque sabia que havia uma grande chance de te perder de
fato caso Afonso colocasse as cartas na mesa.
— O que você disse a ele?
— Pouca coisa. O restante ele deduziu.
— O que você disse? — refiz a pergunta, querendo ouvir a resposta
correta.
— Basicamente o que ele deve ter te dito. Sinto muito, Milena, mas não
foi uma conversa fácil. Foi difícil e mexeu com os nossos orgulhos. Nem tudo o
que falei foi verdade. Eu não me envolvi com Sabrina, só o deixei acreditar que
sim. No final das contas, os dois merecem este castigo.
— Deus!
— E quanto a você... eu disse coisas ruins, porque queria feri-lo.
Principalmente depois que não aceitou o nosso envolvimento e me ameaçou para
que eu me afastasse. Acabei extravasando.
— E você quer que eu acredite?
— Não — disse sem deixar dúvidas, o que fez minhas pernas tremerem.
— Eu quis te dizer a verdade. Quis te colocar a par dos meus sentimentos, mas
não sou um menino, Milena. Sei que contar a verdade te afastaria de mim para
sempre. Mereço o preço. Eu me apaixonei. Não quis te magoar e nem desejei que
chegasse a este ponto, só que perdi o controle quando te envolvi nesta história e,
apesar de ter conseguido me vingar do Afonso, consegui também tirar de minha
vida alguém com quem seria maravilhoso conviver, fazer planos, me entregar...
— Não faça isso! — Eu o impedi de continuar.
As palavras dele poderiam amenizar o meu sofrimento, porém não foi
assim que aconteceu. Senti raiva de tudo, de mim, dele e do Afonso. Senti raiva
dos meus desejos, de não ter sido esperta o suficiente para ter caído fora quando
pude. Senti muita raiva e não conseguia lutar contra ela.
— Você nunca vai me perdoar e isso é uma merda!
— Eu nunca vou te perdoar — reafirmei. Ele levantou, fazendo-me recuar.
— Tudo bem — disse por fim. — Se vai valer de consolo, também dói em
mim saber que amanhã não vou te ter mais aqui. Dói saber que perdi alguém tão
singular. Que me apaixonei e que agora nem sei o que fazer com todo este
sentimento.
— Consola sim — precisei pigarrear para conseguir falar sem chorar. —
Consola saber que, de certa forma, Afonso também foi vingado. Nós três
merecemos esta dor. Boa noite, Luiz.
Passei por ele sem conseguir ficar nem mais um minuto naquele
apartamento e fui em direção à porta.
— Milena? — ele chamou antes que eu conseguisse sair. Não olhei para
trás, mas aguardei. — Eu sinto muito.
— Não. Não sente, não. — Bati a porta atrás de mim e ganhei o corredor,
decidida a não passar mais dez anos remoendo aquela mágoa.
De uma maneira estranha, a vingança do Luiz encerrou um ciclo que
precisava ser findado há anos. Agora não existiriam mais mágoas, raivas e nem
desejos. Era o fim, e eu precisava renascer e recomeçar.
Capítulo 14
“Ah! imagina só que loucura essa mistura.
Alegria, alegria é o estado que chamamos Bahia.
De Todos os Santos, encantos e Axé,
sagrado e profano, o Baiano é Carnaval.”
Chame Gente – Moraes Moreira - 1986
Coloquei mais um acarajé na boca e gemi deliciada como uma criança.
Fernanda odiava quando eu fazia aquilo, mas eu amava colocar o mini bolinho
todo na boca e depois tentar mastigar, precisando mantê-la aberta. Ri da sua cara
de nojo.
— Tem certeza de que está bem? — ela perguntou pela milionésima vez,
sempre me lançando olhares desconfiados.
— Estou ótima! Sol, sombra, praia, areia, cerveja e... — Levantei mais
um bolinho levando-o direto a boca. — Acarajé. — Tentei falar sem conseguir
deixar de ser bem mal-educada.
— Que horror, Milena!
Estávamos na Praia do Forte, lugar escolhido pela minha amiga depois de
eu lhe contar tudo o que aconteceu. Desde então, não voltamos a tocar no assunto,
e na madrugada mesmo rumamos para o lugar turístico e refúgio dos que não
curtiam a festa carnavalesca. Por sorte, ela tinha uma tia que morava lá e sempre
gostava de recebê-la, mesmo que fosse no meio da madrugada.
E ela deixou o Igor para trás. Tão fofa essa minha amiga!
— É tão ruim saber que amanhã a vida volta ao normal.
Espreguicei o corpo, desejando nunca mais ir embora. Eu bem que
poderia recomeçar ali, com um pequeno quiosque, vendendo qualquer coisa que
me impedisse de colocar os pés naquela empresa outra vez.
— É... — Ela tentou ser cautelosa, sem conseguir. Chegava a ser
engraçado. — Vida normal. O que quer dizer: voltar ao trabalho.
— Sim, para o Sr. Everaldo renascido do inferno. — Fernanda riu.
— Pois é. Só que agora você tem mais um diabo para te atentar.
— Não. Não tenho. — Revelei, me sentindo leve. — Luiz não trabalha no
mesmo setor que eu, somos de prédios diferentes e já decidi que não vou me
abalar. Eu bem sei o que remoer mágoa é capaz de fazer com uma pessoa.
— Verdade, Mi. — Mais uma pausa que já deixava claro que ela
continuaria no assunto. — E o Afonso? O que será que aconteceu com ele?
— Não sei. Nem vou me esforçar para saber. Afonso faz parte do meu
passado e eu quero mantê-lo lá.
— Tem certeza de que é você mesma? Essa não é a Milena que eu
conheço — troçou rindo.
— Não sou, mas gosto muito mais desta Milena de agora.
— Eu também, apesar de saber que vou sentir falta do drama mexicano.
— Eu? Dramática? — Rimos juntas, depois voltamos a ficar caladas,
contemplando o mar até que não conseguíssemos mais nenhuma desculpa.
Era terça-feira, o último dia de Carnaval, e eu tinha me afastado. Escolhi
ficar distante e só voltar para casa à noite, bem tarde, quando nenhum dos dois
pudesse mais me alcançar. Ter o celular roubado foi providencial. Eu até cogitava
não tentar recuperar o número e guardar o novo a sete chaves.
Como determinei, não chorei a noite toda nem fiquei me questionando ou
sofrendo com o ocorrido. No final das contas, o Luiz tinha razão: eu quis me
vingar também, assim como quis ficar com ele, deixando-me envolver e forçando
a barra para que o Afonso soubesse de toda a verdade.
Mesmo indiretamente, provoquei aquela situação, então o que eu podia
fazer era pegar a minha parcela de culpa, aprender e seguir em frente. Não dava
para ficar mais dez anos me lamentando pelo desfecho.
Chegamos em casa antes das dez da noite, nos despedimos no elevador
mesmo e eu segui em direção ao meu apartamento, sentindo uma saudade estranha
da bagunça e da conversa sem fim, mas a casa estava em silêncio quando encostei
o ouvido na porta para verificar o clima antes de entrar.
Girei a chave acreditando que meus irmãos estavam curtindo o último dia
do Carnaval e entrei sem qualquer medo. Mas fiquei parada na porta quando vi
que meus pais estavam na sala, sentados rígidos com meus irmãos ao redor, e no
meio deles havia um homem que eu nem fazia ideia de quem fosse.
Não precisava ouvir nada para ter certeza de que alguma coisa tinha dado
merda. Eles me olharam com cautela, tentando manter a naturalidade que com
certeza só seria aceita por um desconhecido mesmo, porque eu sabia que aqueles
não eram os meus pais em dias normais.
— Você demorou, filha — minha mãe disse um pouco receosa.
— Eu avisei que demoraria. — Tentei não ficar olhando para aquela
figura sentada entre os meus pais, segurando uma xícara de café e completamente
sem graça. — Aconteceu alguma coisa? — Deixei a mochila no chão e me
aproximei.
— Bem... — minha mãe começou, mas meu pai a interrompeu enquanto
meus irmãos se olhavam com interesse.
— Esse é o Dr. Ismael. Ele é advogado e quer conversar com você —
meu pai falou, levantando-se para que eu me sentasse.
O rapaz, o Dr. Ismael, também se levantou oferecendo a mão em um
cumprimento, que respondi sem questionar. Contudo mantive a desconfiança.
— Advogado? — Ele concordou, indicando o sofá para que eu me
sentasse. Era nítido que ele também estava sem jeito com toda aquela atenção. —
Do que se trata?
— Bom... — ajeitou-se melhor no sofá, como se estivesse aliviado por
finalmente conseguir falar comigo.
— Ele disse que é importante e que foi instruído a não deixar de falar com
você ainda hoje, mas não quis nos contar o motivo da visita — minha mãe o
interrompeu, como sempre fazia.
— Eu vim a pedido do Sr. Luiz Alberto. — Gelei na mesma hora.
O que o Luiz pretendia, me processar por bullying?
— Do Luiz? — perguntei arredia. — E por que o Luiz quis que você
montasse guarda na minha casa?
— Quem é Luiz? — minha mãe nos interrompeu mais uma vez.
— Um colega de trabalho, mãe.
— Um colega de trabalho que manda um advogado te procurar? Que
história é essa, Milena?
— Beatriz, vamos deixar que eles conversem — meu pai interferiu.
— Mas que é estranho um advogado ficar aguardando tanto tempo assim a
mando de outra pessoa, isso é — Emanuel, meu irmão, se intrometeu.
— E porque um colega de trabalho enviaria um advogado? — Judite
colaborou.
— Se vocês pararem de falar, logo saberemos — Sara falou impaciente.
— Eu já posso voltar para o quarto? — Francisca perguntou enfadonha.
— E eu acho que esse assunto deve ser tratado comigo e só. — Levantei
decidida a não deixar que aquela conversa virasse um baile de Carnaval. —
Vamos conversar lá embaixo, Dr. Ismael. — O rapaz levantou imediatamente,
aliviado.
— Milena? — Minha mãe protestou, porém meu pai a impediu de
continuar.
— Eu volto logo. — Saí de casa e fui para o playground, ansiosa para
saber que tipo de merda o Luiz estava aprontando.
Sentamos nas cadeiras que ficavam dispostas em uma das áreas. Não
consegui aguardar até que ele resolvesse me explicar o que significava aquilo
tudo.
— O que o Luiz quer desta vez? — O rapaz pareceu surpreso com a minha
maneira rude de falar.
— Na verdade, antes eu devo lhe dizer que sou advogado trabalhista,
trabalho no escritório que presta serviços para a família do Sr. Luiz Alberto e fui
incumbido de esclarecer alguns pontos para a senhora.
— Era só o que me faltava — resmunguei. Então o Luiz estava criando
mais problemas do que imaginei.
— O Sr. Luiz Alberto me instruiu a conversar com a senhora para explicar
como proceder em relação ao assalto sofrido na sexta-feira última.
— Como proceder?
— Sim, permita-me que eu lhe explique.
E assim, durante quase duas horas conversamos sobre o assalto, o
acidente com o carro quando Luiz precisou me defender e tudo o que perdi. No
dia seguinte, quarta-feira de cinzas, entrei na empresa com o espírito renovado e
com a certeza de que seria demitida, mesmo sendo contra a lei.
***
Quando aceitei que o Dr. Ismael me representasse, levando a minha
situação à empresa, estava certa de que era o melhor a ser feito. Durante muito
tempo fui humilhada e subjugada pelo Sr. Everaldo. Eu e minhas colegas fomos
obrigadas a fazer o que não era da nossa alçada, ultrapassando os limites das
horas acordadas, colocando-nos constantemente em risco, até que finalmente
acontecesse o que todos já esperavam. E aconteceu justamente comigo.
Eu sabia que provavelmente perderia meu emprego. Se não de imediato,
caso eles conseguissem derrubar o meu pedido de afastamento por acidente de
trabalho, certamente aconteceria quando minha licença vencesse.
O Sr. Everaldo era um homem desequilibrado e vingativo. Ele jamais
aceitaria que eu culpasse a empesa por nada, como já tinha deixado claro muitas
vezes quando cobrávamos coisas como feriados e ele dizia que deveríamos
agradecer a Deus por termos um emprego.
O que eu queria era deixar claro que os abusos dele deveriam ter um fim,
e se isso custaria o meu emprego, que assim fosse. Já estava mais do que na hora
de eu fazer algo por mim e deixar um emprego que detestava. Ao menos poderia
ser o primeiro passo.
Mesmo assim, quando ultrapassei os portões da empresa senti o corpo
vacilar. Eu estava certa do que fazia e não voltaria atrás, nem com todas as
ameaças do Sr. Everaldo. Contudo não sabia quanto tempo aguentaria em silêncio
sem perder a razão.
Entrei em minha sala depois de recusar os poucos minutos que me
restavam na sala do café, como sempre fazia para conversar um pouco com os
colegas e dar risada dos comentários que faziam do meu chefe, todos merecidos.
Mas eu não estava em clima para rir, nem para comentar sobre o
Carnaval, muito menos para falar sobre o comportamento de alguém como o Sr.
Everaldo. Eu queria sentar, fazer o meu papel e esperar a bomba estourar.
Passar pelo setor do foi ainda mais difícil. Eles me olharam, e mesmo
RH
ciente de que não havia como eles saberem o que eu iria fazer, já que ainda era
muito cedo, eu me senti observada, analisada e julgada.
Entrei em minha sala e notei que tanto Mariana quanto Carbela já estavam
lá, cumprindo suas atividades, apesar de ainda ser cedo. No canto, mantendo-se
acima de todas nós, estava o Sr. Everaldo. Ele sequer levantou os olhos para me
receber.
Sentindo-me ignorada, cheguei a agradecer. No entanto eu sabia que ele
não se manteria distante por muito tempo. Com nós três na sala e sem a presença
da Antônia, era certo de que ele se voltaria contra ela tão logo aparecesse. Mas
isso não aconteceu.
Vinte minutos após o horário estabelecido para os funcionários naquela
quarta-feira de cinzas, Antônia ligou avisando que não trabalharia, pois o filho
mais novo estava doente e ela precisaria levá-lo ao médico. Quem recebeu a
ligação foi Mariana, que ficou tensa fazendo com que tanto eu quanto Carbela
antevíssemos o que aconteceria.
Era de conhecimento de todos que Antônia abusava no trabalho. Ela não
se comprometia com nada, chegava atrasada e sempre arrumava uma desculpa
para não comparecer- principalmente em situações como aquela, uma quarta-feira
de cinzas em que poderíamos ter sido dispensadas por não haver trabalho para
todas.
Ela queria ser demitida, apesar de nunca expressar tal desejo. Eu
acreditava que o Sr. Everaldo não a demitia por pura pirraça, tentando fazer com
que ela mesma chegasse ao limite e se demitisse por livre e espontânea vontade.
Afinal de contas ele sempre praguejava quando precisava demitir alguém,
afirmando que esses “infelizes” abusavam do direito trabalhista que colocava
“vagabundos” no mercado de trabalho. Como se o dinheiro da rescisão estivesse
saindo do bolso dele e não do nosso trabalho e dedicação.
Mariana levantou, já tremendo, e foi até a mesa dele, sob o nosso olhar
atento. Era mesmo uma piada que Antônia resolvesse faltar justamente quando o
meu pedido de afastamento seria entregue.
Uma batida na mesa fez com que eu voltasse a prestar atenção em
Mariana, percebendo que a falta da Antônia havia realmente tirado o Sr. Everaldo
do sério. Minha colega se afastou assustada quando ele levantou decidido a fazer
todos pagarem pelo erro da sua secretária.
— Vejam só vocês... — falou alto e com raiva. — Queres igualdade de
salários, igualdade de cargos, mas também queres parir e fazer com que a
empresa pague por esta escolha. Nosso trabalho aqui não pode parar porque
Antônia tem filhos e a empresa não pode deixar de funcionar porque o filho dela
ficou doente. Se alguém precisa assumir os riscos, esse alguém é ela e não nós.
Agora vocês vão trabalhar por ela, achas certo?
Ficamos caladas observando todas as besteiras que ele falava. Como não
falamos nada a sua ira aumentou.
— É por isso que as mulheres não podem ocupar um cargo maior do que o
de secretária, já pensou se ela fosse gerente? — seu olhar em minha direção me
alfinetou com precisão. — O melhor seria se quem escolhesse parir não
escolhesse trabalhar, atrapalhando o andamento de quem realmente está
comprometido com o emprego.
Segurei minha língua. Na verdade, mordi a língua, obrigando-me a sentir
dor para não sentir raiva, assim eu permaneceria calada. O pior ainda estava por
vir e eu precisava me manter a plena razão ou colocaria tudo a perder.
Como se o destino estivesse aprontando a sua última brincadeira de
Carnaval, o telefone tocou quando ele se preparava para se aprofundar no
discurso machista, e eu sabia que era a vez daquela raiva se virar contra mim.
O Sr. Everaldo atendeu, fez uma cara horrível, desligou com raiva e
colocou o rosto entre as mãos, respirando fundo. Foram cinco minutos tão tensos
que senti todos os meus músculos ficarem rígidos. Mantive os olhos fixos na tela
do computador, em uma planilha escolhida aleatoriamente, até que ele me
chamou.
— Milena? — Sua voz aparentemente calma não me enganava.
— Pois não? — respondi da minha mesa mesmo.
— Faça o favor! — Levantei e fui até a mesa dele já sabendo do que se
tratava. — O acabou de me avisar sobre o seu pedido de afastamento alegando
RH
o assalto que ocorreu fora da empresa, logo, não temos nada a ver com isso, devo
ressaltar. — Ele aguardou que eu rebatesse, mas, como combinado, não disse
nada. — Além disso, estás alegando que trabalhou além do horário, se colocando
em risco, como se este detalhe fosse algo de extraordinário. Todas as pessoas
trabalham além do horário quando é necessário, então não vejo motivo para tal
afastamento. Pedi para encaminhar para o jurídico, pois não há acidente de
trabalho neste caso, minha cara. — Ele sorriu como se tivesse ganhado a guerra.
— É um direito da empresa, Sr. Everaldo. Eu, como parte interessada,
manterei o meu pedido, mesmo que seja através da justiça. — Ele estreitou os
olhos e eu não consegui evitar o sorriso, mínimo, é bem verdade, de quem sabe
que não precisa se abalar para conseguir nada.
— Estás me ameaçando?
— Assim como o senhor nos ameaça todos os dias — falei muito baixo,
esperando que as minhas colegas não conseguissem ouvir. — Mais alguma coisa,
Sr. Everaldo?
Eu sabia que o homem explodiria e estava preparada para o que ele faria.
Aliás, eu achava que estava, quando na verdade sequer fui capaz de prever. Dei
as costas e voltei a me afastar, querendo dar andamento ao meu trabalho e assim
não deixar margem para reclamações. As meninas me olhavam assustadas e
curiosas, até que vi em seus olhos o espanto.
A porrada chegou um segundo depois de seu grito enraivecido.
— Não vire as costas para mim, sua cretina! — Ele gritou, mas nem tive
chance de entender o que estava acontecendo.
No auge da raiva o Sr. Everaldo pegou um peso de papel que ficava sobre
sua mesa e o atirou contra mim, atingindo em cheio as minhas costas. Doeu e me
assustou, mas não o suficiente para me impedir de entender que ali, sim, estava
tudo o que eu precisava para fazê-lo pagar.
Eu me amaldiçoaria eternamente, porém algumas vinganças são
necessárias. Por isso me joguei no chão gritando o mais alto que pude.
Assustadas, as meninas começaram a gritar também e logo a confusão estava
armada.
Os funcionários entraram na sala, evitando que um gerente enlouquecido
conseguisse me alcançar, outros me defenderam como se aquela fosse a sua
própria vingança. Eu fui retirada, levada ao e depois ao jurídico, que tentou me
RH