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José Gil Monstros Tradugio de José Luis Luna Religio DAs dtores Rus Syivio Reto, n° 15 100-22 Lisboa ‘eh 21 ae7atS veo elgidaps t rslogilagia@reopag at ‘tor Joe Gi “Trad Jd Las Lana Revisto nit Made Ai Copa RetaioD Au ates soe gavra de Roi eigs (© Religie D’ Agu Eos, Mode 2006 1g ma Qa Er, Antropos 12 José Gil respondéncia na incompreensibilidade da unido da alma ‘com 0 corpo — unio que fundamenta a identidade do ho- ‘mem e que se forma, precisamente, num quadro de negag20 da figura de uma natureza monstruosa Do mesmo modo que a unido garante a finalidade da na- tureza humana, 0 «monstro» recuss-a, aparecendo como 0 sinal — num corpo — do seu desvio. Ora, esta ideia de uma natureza monstruosa assegura im= plicitamente, como se viu, a unidio «normal» da alma e do ‘corpo; gragas a ela «compreendemos» o incompreensivel, essa mesma unio — 2 qual permanece, contudo, funda- ‘mentalmente impossivel de aprender. irracionalidade sus- tenta, neste caso, 0s postulados da raz (que a rardo € uma, ue supde a identidade do homem, ete). ‘Apenas descobrimos, em Descartes, 0 que Santo Agosti- ‘nho e outros tinham sido levados a admitir. 0 monstro nao ppassa de uma barreira, impensével e sempre pensada, nos limbos da razdo, como as ragas monstruosas que habitavam na periferia do mundo humano. Sio os nossos guardies ¢ necessério produzi-los apenas em nimero suficiente para ‘nos ajudara pensar e a manter a nossa humanidade em nés, ‘Sob pena de jd néo sabermos muito bem o que faz de nés setes humanos, ‘VIL. Metafenomenologia da monstruosidade: devir-monstro Se é verdade que © homem procura nos monstros, por contraste, uma imagem estavel de si mesmo, no é menos certo que a monstruosidade atrai como uma espécie de pon- to de fuga do seu devir-inumano: devir-animal, devir- vegetal ou mineral. Nele se confundem duas forgas de vee totes opostos: uma tendéncia & metamorfose, € 0 horror, 0 pinico de se tornar outro. Vimos como, da Antiguidade a Descartes, a imagem do ‘monstro se compunha de elementos repulsivos, adequados 1 fungio de complemento inverso e simérico da humani- dade do homem. Porém, essa imagem também atrai; é, aliés, porque atra iresistivelmente que ela estanca 0 pro- ccesso de transformagio que indu7. © que faz do monstro um «atractor» (da imaginagio)? O facto de se situar numa fronteira indecisa entre a humani- dade e a ndo-humanidade. Melhor: 0 nascimento monstruo: $0 mostratia como potencialmente a humanidade do ho: mem, configurada no corpo normal, contém o germe da sua inumanidade, Qualquer coisa em nds, no mais imtimo de nds — no nos- 0 corpo, na nossa alma, no nosso ser — nos ameaga de di soluglo e caos. Qualquer coisa de imprevisivel e pavoroso, de certo modo pior do que uma doenga e do que a morte (pois é nio-forma, ndo-vida na vida), permanece escondido 126 José Gil mas pronto a manifestar-se. A froneira para além da qual se desintegra a nossa identidade humana esta tragada dentro de nds, € no sabemos aonde. (ra, € essencial, para essa identidade ndo se bloquear, Poder experimentar-se ultrapassando limites. As questbes de identidade — em miiiplos planos, como o politico e © cultural — levantam-se em geral com um pressuposto equ- ‘voc: que @ instincia do poder (colonizador, econémico, estatal) faz perder uma esséncia «éinica> qualquer, dada de luma vez. por todas (a identidade). Nao se vé que se ela se perde & porque jd nio tem capacidade de transformacao Propria. O pior que uma colonizagao pode fazer a uma cul ‘ura € fixé-la, «geli-la iremediavelmente nos tragos que tinha num certo momento. Por isso declina, Hi sempre pro- ‘blemas de idemtidade quando se esgota a capacidade de mu- lagi e devi “A forga ea sade de uma cultura medem-se pela sua apti- «dio a transformar-se; pela sua plasticidade, pela sua apetén- cia em devir, evoluir, provocar grandes mudangas interas. Por isso o monstro atrai:situando-se numa zona de in- desceribilidade entre o devit-outro€ 0 caos, ele pode apa~ recer ~ & maneira dessas figuras culturais aberrantes que so a «mestigagem», a «dupla (ou tipla) cultura», a «dupla identidade» — como um foco atractor de satide ¢ de vida, rodeadbo por regides mérbidas ou mortiferas. Qualguer coi- st nele se confunde e confunde a imaginaga0: nao ser a rmonstruosidade capaz de suscitar um auténtico devit-outro (para além de mim proprio)? O deviranimal esta sempre latente em nés: com menos evidéncia, mas niio com menos intensidade, o devir-vegetal eo devir-mineral. E 0 que é um devir senio a experimentagdo de todas as nossas poténcias ectivas, de pensamento, de expresso? Quem niio &x- perimentou jf o movimento de passagem a barata de Kat Monsttos oo a, ou de petrificages como contam as lendas populares? Devirinsscto, devirpedra ou devirpéssaro so. sempre actualizages do possivel em nés como wma exigéncia do devirsipréprio. $6 que 0 devir-monstro (tertolégico) € ambiguo porque parece actualizar drectamente, sem me- diagoes, um devirsi-proprio. Ora iso nega a nog do devi. E também ambiguo e perverso porque prods um exees- so que se confunde com uma intensificagdo, © um corpo super-orginico que parece assemelhar-se& um corpo-sm- érgios pronto acother intensdades. E como a monstruo- sidade é como um digrama vivo do cas, ¢ 040s é um de- sencadeaor de forgs,o compo monstruoso apela © homem aiuma secretaidenificagéo, como o sublime stra pelo ter ror latente que contém. Simplesmente, no hé devi real através da monstruosidade; hi um movimento catico de repente paralsado, como wm devi comesado que abortou, inacabado, mutilad Ficaram & mostra os tragos de um sande tumulto,geologia corporal desismos esbogaos, ca tisteofes em estado avangado e subitamente terminadss ‘Talver por isso 0s signos da monstruosdade se prestem a semvir de augirios: eles anunciam, deixando em sberto os acontecimentos que inauguraram: 0 que vier efeetuard 0 apenas em parte Tormado. Por iso também hé sempre. no exeesso do corpo monstruoso, a privagio: falta um corpo Aquela dopla cabega, ou outracaboga aqucle duplo treo, Mais profundament, © corpo tertolégico provoca em nds a vertgem da ieversbilidade, Primeino, aqui ali, aque no devia estar ali, esta Id para sempre. Nao se pode mas apagar. Eo «jams» que lise insreve abre-se des- mesuradamente como um bater do tempo para Ido tempo aguilo que nao pasa e faz pass, o acomtecimento abso to, 4 morte como ca0s impensive. 128 José Gil U. Aldrovandi, Monsroriom historia, 1642 © corpo normal oferece a visio a experiéncia de uma si- ‘metria paradoxal, uma simetria assimétrica que resume to- do 0 mistério do espaco vivido: entre a esquerda e a diel ta entre o alto € 0 baixo, entre a frente e o atrés circulam {Joz0s de espelhos explorados pelos acrobatas, ou reconhe- cidos na simetria erdtica do sexo e do rosto. E essa quase- -coincidéncia especular que vai desencadear o tempo: mas € também ela que vai criar a reversibilidade do tempo, vi- vida como crenca necessiria. A reversibilidade do tempo € uma componente da expe- riéncia da temporalidade. Sem a convicgio vivida do rever- sivel, da repetigdo, do sempre possfvel recomecar (em que se funda a reparagdo moral, juridica, existencial) ndo have- ria maneira de medir a ireversibilidade do tempo; ora, tempo mede-se porque hi uma slecha do tempor, um vec Monstros 19 tor, pontos de partida e de chegada, Mas se nio se pudesse inverter — imaginariamente ¢ na erenga técita — a marcha ‘do tempo, nio haveria nem retengo nem protensdo, nem. simultaneidade, nem imeversibilidade; mas apenas um es- coamento ininterupto ¢ sem meméria, pontual, irepetivel, inefavel — a propria imeversibilidade tomnar-se-ia impensé- vel e inexperiencivel. A reversibilidade € pois uma potencialidade da experién- cia do tempo. F ela que trava a irreversibilidade e modula 0 ‘luxo temporal; é ela que faz do presente no um ponto sem ddimens6es, mas uma sequéncia que dura, um bloco de pre= senga ubiqua. A reversbilidade 6 uma laténcia inerente & ia da irreversibilidade. cia esté inscrita no corpo: & a propria latencia (ou «iminéncia») da simettia especular da anatomia huma- ra que induz a «crenga> na reversbilidade, Porque entre a esquerda e a direita, a experiéncia sensorial do compo Jocaliza-se como diferenga e simetria; e porque essa expe- siéncia & dupla sendo una, de um mesmo corpo presente to- talmente em todas as suas partes, este adguire limites: a0 tocarse, 0 tocar vai e vem, volla ao ponto de partida no ‘mesmo instante (no mesmo tempo) em que chegou a0 pon- to de chegada; porque nunca do primeiro se desligou. «Vol- tow», € no, «percorreu irreversivelmente»: porque a es- querda & a imagem simétrica quiral (ligeiramente assimétrica) da direita, © caminho foi paradoxalmente per- corrido e o percurso apagado, Dat a reversbilidade, ineren- te & experiéncia do corpo proprio. Porque a simetria € assi- métrica, um certo tempo se escoou. E porque hé simetria potencial, esse mesmo tempo nio passou. O que ndo passa do tempo que passa define a nossa aduragiio> prépria (em sentido quase bergsoniano): ¢ essa & a dimensio da reversi- bilidade, 130 José Git Da mesma maneira, € «por extensio da reversibilidade ‘do corpo tocante-tocado» (Merleau-Ponty), por extensio da especularidade do corpo préprio na especularidade da in- ‘ercorporeidade, © corpo do outro reflecte a imagem do ‘meu como num espelho. Mais: no seio da minha imagem de ‘mim habita a imagem de mim vista pelo outro corpo, de ou- tuo ponto de vista (exterior: assim toda a visio — de toda a paisagem ¢ de todos os corpos — implica 0 espethamento da minka imagem numa coisa outra; ¢ © espelhamento da sua imagem no meu corpo). U.Aldtovandi, Monstrorum historia, 1612 Aqui reside a raz da figura do «duplo». O corpo normal 60 porque nao esta sozinho: com ele vive o seu duplo — cumno um corpo duplo subtil, um «simulacto» —, 0 qual Ihe ‘proporciona todas as experiéncias possiveis da reversibili ade: & porque estou ali estando aqui; porque, neste mo- Monstros Bh mento, vou e venho de qualquer ponto que vejo da pais gem, que tenho uma visio estivel e ubiqua. O meu duplo assegura-me a constincia e @ multiperspectivagio da per- ccepeio; com ela construo a reversibilidade do meu tempo ireversivel,e vivo um presente com extensdo que,enquan- to dura, dura para a eternidade. Por isso a morte, que me & ‘to fatima, esté sempre Bo longe e como alheia& vida. Du- plo latente que sou eu — dentro ¢ fora de mim. Eis que de repente vejo num outro corpo uma superficie indspita: ali no pode sendo dificilmente espelhar-se, mo- rar, prolongar-se o meu duplo. Aquele corpo monstruoso ¢, rng entanto, de direizo,o meu duplo, como todo corpo outro. 1 vertigem que me provoca. O que Ihe aconteceu, pe ra me rejeitar a0 ponto de suscitar angiistia e medo? Que- brou-se a proporedo delicada entre simetriae assimetria do ‘corpo; e, com cla, a relagio adequada entre reversibilidade ¢ irreversiblidade do tempo entre 0 sentimento de ser mor- tal e 0 de ser imortal em vida, © monstro abriu os diques que retinham o tempo, ¢a ireversibilidade jorrou, mum im- peto caético: o que ele anuncia & catistrofe e morte. No seu ‘corpo a assimetria acentuou-se, mesmo quando aparente> ‘mente proliferou; duas eabegas num s6 tronco rompem a si- metria do alto/baixo; mais profundamente, dao a ver o du- plo fatente, viral que nio deve estar & vista. Pois sé fenguanto virtual (¢ no real) ele permite © movimento de reversibilidade instantineo necessério & travagem do tempo vivido, Um duplo real, num corpo real, significa um movi- ‘mento real no espago perceptivo: é a morte do duplo.A cor- poralizagao dos duplos na duplicasio ou multiplicagto dos ‘rgos nos corpos monstruosos arrasta a impossibilidade de ‘operar a reversibilidade das distancias no espago e no tem= po: 0 monsteo jé ndo me «teflecte>, roubou-me 0 duplo incamando-o, Mas, como apesar de tudo € um corpo humna- 132 José Gi no, continua @ reflecti-me — daa vertigem e o faseinio. Daf o espanto inesgotavel que suscita a visio do monstro: como se a paisagem que o rodeia fosse afectada por um fac- tor ca6tico decisive que a deveria virar do avesso, desconjunté-la, arruins-la definitivamente. Que ela conti- ue estivel, eis 0 que nos maravilha, 0 surgimento de um duplo num corpo, deformando-o, abolindo a sua natureza virtual, actualizando parcialmente sua laténcia, aniguila 0 devir-outro do corpo que ve; e, 20 mesmo tempo, 0 solicit. Dai, talvez, a ambivaléncia da atracgio actual pelos :monstios: como sintoma de movimentos irreprimiveis de \devir que por todo o lado se esbogam — devir outro espa- ¢0, outro tempo, outros afectos —, ¢ como medo, painico do aos ¢ da irreversibilidade incontrolada que esses movi- mentos podem induzir. Caos que assola jé 0 nosso tempo; «nto, como para 0 esconjurar criam-se monstros como se, a0 constru-los ¢ exibi-os assim, algum efeito se produzis- s¢ no caos virtual de onde vem tudo, Anexo I Sobre a ldgica da classificagdo dos monstros Varios autores tentaram classficar as formas monstruo- sas. Os dois ensaios mais interessantes so 0 de Gilbert Lascault, Le monstre dans l'art occidental (1973), € 0 de Claude Kappler, Monstres, Démons et Merveilles (1980). mais recente. Independentemente do interesse das suas classificagdes — interesse que est longe de ser desprezivel pois qualquer tentaiva para agrupar em categorias a diver- sidade das formas monstruosas poe em evidéncia isomor- fismos — estas pecam por um defeito fundamental: a au- séncia de um critério morfogenético. S6 um tal critério poder tornar inteligivel a classiticagao e justifies-la, Propomo-nos, aqui, dar uns passos nessa direceii, espe- rando, simultaneamente, resolver algumas questies deixa- ddas em suspenso na andlise da concepedo agostiniana da monstruosidade, Partamos da tipologia estabelecida por Claude Kappler, referindo-nos unicamente aos tipos de formas, pondo de la do, asim, categorias como a do «lugar» onde os monstros se sityam (ex.:«l. Os monstros: lugar do antitético, do “to talmente outro"», ou «ll, Origem da sua monstruosidade [elima}», ete.) 16 José Gil Temos: 1.0 monstro, aquete a quem falta algo de essencial ‘A. 1. Monstros sem cabega, 2, Monstros com cabega, mas sem olhos, sem nariz, sem labios (Astomori) 3.0s que nio t8m lingua, B. 3. Monstros miticos (crianga sem cabega, com os ) Estas afungSes (a chameiea ene a biologie ings da infralingua «Fungor porque, em primero lugar, funda um sentido a patie do como; fungio «técnica», ou pragestica, depois. E a relago do rgio deslocado com um todo que nio 0 & — pois todo o compo permanece apto a vida, poss volvimento, costumes, efe: so ragas humanas —. a um todo que continua a exercer a sua «fungio» de infralingua que € consid pela decomposigao desta, levada a cabo pela malformacéo, Isto opie uma propriedade primordial da infralingua: ‘que 0 corpo eseja em todas as partes (ndo apenas no senti- sdo.em que cada rgio participa numa totaidade organica, mas sobretud no sentido em que hi uma presenga de todo ‘© corpo em cada Srgio, ou antes, em cada uma das «fun- es» intalingusticas) (Ora, oqueé um monstro sendo uma infalingua que nao cestd em toda a parte, a que falta a. uma parte do corpo? ‘A aberagio reside af eis um corpo que «funciona» (como ‘0 das ragas monstruosas) no nosso espago. Mas € 0 Seu es- pago ainda semelhante ao nosso? Nao vivem os monstros ha periferia do mundo, nos antipodas...? Podemos, agora, enunciar © principio da formagao das ragas monstnosas da Idade Média: uma. malformagio Monsteos M5 ‘monstruosa_obtém-se eliminando ou fazendo variar, na representacao do corpo prdprio, uma ou diversas funges

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