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a traducao vivida JOSE OLYMPIO ORA oucos livros exibem um titulo vivida, Publicado em 1975, quan do Paulo Rénai jé era quase septuage- nirio, o livro transmite, justamente, a experiéncia de uma vida enriquecida e multiplicada pelo conhecimento pro- fando de muitas linguas estrangeiras ~ 0 que significa muitas € muitas vi das. Sempre didatico e diseiplinado, 0 teadutor reuniu aqui oito conferéncias sobre 0 set oficio, delas retirando nio apenas uma ligao de profissionalismo, mas também uma dimensao ética que se fez presente em toda a sua existéncia Ouso sugerir que o leitor come: cea ler este livro quase pelo fim, pela conferéncia intitulada “Saldos de ba: tango”. Apesar de falar de sie dos seus percalcos quando iniciou sua carreira de tradutor, o tom do depoimento de Paulo Rénai é, para maior assombro dos seus leitores, de modéstia e hum dade. No texto se aprende, por exem plo, adiferenca entre traducio e versio. ‘mas no apenas por meio de defini- ‘Ges académicas. A diferenga, no caso, se dé por meio da experiéncia provada tefletida, degustada e, por fim, com partilhada com seus leitores, que tam- bém acompanham com entusiasmo os episédios “tragicdmicos e pitorescos” de sua fase inical Paulo Rénai foi um erudito, um scholar, um douto conhecedor de lin: ‘guasc obras. Mas, nele, aexperiénciade comhecer ¢ de investigar (além de tra duzit) nunca se separa do prazer que, confessado, transmite a notavel sen- sualidade de quem o confessa. Leia-se, por exemplo, o arroubo com que o tra- dutor encerra um parégrafo no qual es- timula os mais jovens a repetirem a sua aventura paciente e dedicada: “Ora, se ha um estudo que traz consigo grandes satisfagoes fntimas é sem diivida 0 das linguas estrangeiras.” £ com a convicgio de quem nun- ca entendeu a vida sem traduzi-la de quem ganhou a vida, em mais de tum sentido, por haver traduzido que Paulo Rénai nos apresenta outras di- mensdes do seu oficio. Neste livro ele comenta as dificuldades de definic conceito mesmo de tradugéo. Aponta € denuncia os perigos da polissemia, distinguindo bem 0 ato da criagio literdria e 0 ato da sua transmissio para outro idioma, Salienta o desafio da traducio poética, possivelmente a ‘operacio mais complexa ¢ de resul tados por vezes mais frustrantes com que um profissional como Paulo Rénai pode envolver-se. Coerente-com seu percurso vital de tradutor, 0 autor traz seu testemunho sobre “A Operacéo Balzac", empreendimento monumen- tal de supervisionar a tradugio de toda A comédia humana ~ feito pouco igualado no Brasil e em outros paises Felipe Fortuna rotta tansaisra A tradugao vivida é a um so tempo livro de memdrias, de experiéncia profissional e de amor as palavras — que, uma vez presentes na vida, podem ser infinitamente traduzidas ti — paulo rénai a tradugao vivida 4 edigio JOSE OLYMPIO EDITORA Rio de Janeiro, 2012 © herdeiros Paulo Rénat Reservam-se 0 pinetTOs desta edigdo 2 EDITORA JOSE OLYMPIO LTDA. Rua ARGENTINA, 171 ~2° andar ~ Sio Crisévio ‘20021-380 ~ R10 de Janeiro, RJ ~ Repibliea Federativa do Brasil Ter: (21) 2585-2060 Printed in Brazil / Impresso no Brasil Atendimento direco 20 leitoe aidireto@record.com.br Tel: Ql) 2585-2002 ISBN 978-85-03-01106-8 Capa: Victor Burrow Foto: ARQUIVO DE Fawn ‘Texto revisado segundo o Nove Acordo Ortogrifico da Lingua Portuguesa, CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, Ry ‘Renal, Paulo, 1907-1992 [RETSt Arado vivida / Prolo Rénai 4ed.— Rio de Jani: fed. José Olympio, 2012. diem Incl bibliogeafia ISBN 978-85-05-01106-8 1, Tradugo einerpreagio. I Talo. cpp: 418.02 14886 DU: 8125, ‘Aos meus queridos amigos Dinah Silveira de Queinz e Dirio Castro Alves NOTA DO AUTOR, © presente VOLUME nasceu de uma série de conferéncias sobre tradugo, proferidas nas Aliangas Francesas do Rio de Janeiro, Sio Paulo e Porto Alegre em 1975 a convite do professor Jean Rose, delegado-geral da Alianca Francesa no Brasil, a quem agradego cordialmente pelo precioso estimul. Paulo Rénai SUMARIO (O brasileiro Poulo Rénai (Aurélio Buargue de Holanda Ferreira) 1. DEFINICOES DA TRADUCAO E DO TRADUTOR ‘Traducio interlingual, intralingual, sociolinguistica © intersemidica. Indecisio do sentido das palavras, importincia do contexto. Tradugio literal ou livre, ‘Tentativas de definir 0 que € tradugio. Quem e como: se torna tradutor. Requisitos do tradutor ideal: conhe- cimento da lingua-alvo e da lingua-fonte, bom-senso, cultura geral, eapacidade de documentagio, Frustragtes e compensagdes do tradutor. Palpites para 0 aprendizado do oficio. Bibliografia minima, 2. AS ARMADILHAS DA TRADUGAO A f na existincia auténoma das palaveas. Husdes do instinto etimol6gico, Perigos da polissemia. Emboscadas dos “falsos amigos”. Armadilhas do poliglotismo. Ci- ladas dos homénimos. Intraduzibilidade dos teocadilhos? A desatengio, outro perigo. © que sio os paronimos? A. sSinonimia, questio de estilo, Holifrases e caracteristicas nacionais, Incongruéncia das nogGes designadas pela mes- ‘ma palavea. Dessemelhanga das conoragaes. O peoblema dos nomes préprios: anttopSnimos, nomes simbélicos, hipocoristicos, adjetivos pitrios e topénimos. Metiforas vivas e congeladas; sua traduso, adaptagio e condensagio. B 9 a 3. OS LIMITES DA TRADUCAO. (Os meios complemencares da linguagem: recursos outros: que no a palavra. Utilizagio diferente dos sinais de pontuagio. Os pontos de exclamagio ¢ de interrogacio. Papéis desempenhados pelo travessio. Expressividade das aspas. Citagdes disfargadas. Maiisculas e minis clas ideol6gicas. Pontuagio individual. Reticéncias. Significado dos tipos de letras. Escolha de um alfabeto de preferéncia a outro. Valor conceptual da ordem das palavras. Quando se traduz 0 no dito ¢ se omite 0 dito. Mensagem em palavras no nocionais: artigos, pronomes, numerais, conectivos, Questbes de tratamen= to: axidaimos, verbos de cortesia. Palavras estrangeira, 4. USOS E ABUSOS DA TRADUCAO. ‘Apogen e decadéncia da tradugdo entre nés, Influénecia prejudicial do best-seller, Remuneragio inadequada e press Escolha do original. Recurso a.um texto interme= diirio, ou tradugio de tradugZo. Tradugao 2 quatro mios, ‘Tradugdes através do portugues de Portugal. Tradugio e adapcagio, Alteragbes ¢ corregGes do original. Vantagens desvantagens do copidesque. A tradugio dos titulos, ‘ou como verter textos sem contexto. 5, AS FALACIAS DA TRADUGAO Utilidade relativa dos tratados. Duas tentativas de siste= matizagio. As perguntas que o tradutor deve formulae. A tradugio preconizada por Joo Guimaries Rosa. 0 Hamlet, de Tristio da Cunha. Por que cada século volta atraduzir as obras clissicas? A tradugio como reflexo da sensibilidade e das ideias de uma época. Onze tradugtes de trés versos de Virgilio comparadas com o original Em que consiste afinal a fidelidade da tradugio? O que diria Thomas Diafoirus a Bélines e fosse brasileiro, 10 m 107 133 6. © DESAFIO DA TRADUGAO POETICA, ‘Deve-se teadusie poesia em verso ou em prosa? Divers abordagens do problema. O que se perde na traducio, ‘exemplificado num rubai de Fitzgerald, em “Repouso”” de Henriqueta Lisboa, em “Roma” de Cecilia Meireles, em "Poema de sete faces” de Carlos Drummond de ‘Andeade, € numas quadtas de Fernando Pessoa. Dois cextremos: 0 Puchkin de Nabokov e o Horicio de Ezra Pound. © problema das rimas estudado nas centa € tantastradugdes do soneto de Arvers. O laboratério de Latislas Gara e seus produtos, 7. SALDOS DE BLANCO ‘Minhas reminiscéncias de tradutor. Comego traduaindo odes de Horicio numa atmosfera saturada de influéncia latina. Mecanismo intimo da tradugo poética. Torno= ime tradutor de letras hiingaras em francés. Diferengas Intrinsecas entre tradugio e versio, Curiosidades da lingua hiingara. Experiéncias de tradutor comercial e técnico, Como descobri a poesia brasileira. Dificuldade de aprender portugués na Hungria da década de 1930. No Rio de Janeiro, encontro providencial com Aurélio, Buarque de Holanda Ferreira. O que foia versio de Mar de histrias. Traduo a quatro miose mais. A versio para francés das Memérias de um sagento de micas. © que fiz para difondir a literatura hiingara no Brasil. Outras, tradugdes minhas. Estudos sobre teoria € técnica da tra ducio e trabalhos conexos. 8. A OPERACAO BALZAC Uma experitncia de editorago: A cométia humana, de Balzac. Concepei0 ¢ extensio dessa obra. A interdepen~ déncia das partes ea volta das personagens. Um afresco da Franca do século XIX uma suma da civilizagio 158 189 213 u indi 2 docidental. Como nasceua ideia de traduzi-la em portu= gués. Minha parte no empreendimento. Problemas de editoragio: escolha do original, unificagdo das tradugSes, restabelecimento da divisto em capitulos. Para que’ estudos introdut6rios e notas de pé de pigina? Harmo- nizagio dos ensaios criticos com o texto. Dificuldades cexpecificas da tradug3o: provérbios e anexins deformados, trocadilhos, anagramas, linguagens especiais. Lapsos € falhas. Fortuna da edigao, ice de assuntos, nomes e titulos citados 239 O BRASILEIRO PAULO RONAL DE TAL MANEIRA é notivel, em Paulo Ronai, a qualidade de brasileiro, que agora me assalta uma divida: serd original ‘o titulo deste preficio? Porém, mal acabo de langar no papel esse periodo, lembro-me de correr a vista pela extraording- ria “Pequena palavra”, de Jodo Guimaries Rosa, prefacial a Antologia do conto hiingaro, ¢ logo na segunda linha encontro: “Seu augor — o brasileiro Paulo Rénai — € hingaro, de nascimento ¢ de primeira nagio.” ‘Mantenho o titulo, contudo, a despeito da falta de ori- ginalidade, Sejamos verdadeiros — até pleonasticamente verdadeiros — antes que mediocremente originais. Na capa do Como aprendi o portugués, e outras aventuras, vemos ‘Magalies jinior, Joel Pontes, Wilson Martins, a confirma~ rem essa brasilidade ronaiana, Do ‘iltimo dos trés sio estas palavras: “O sr. Paulo Rénai, intelectual biingaro, escolheu, simultaneamente, a liberdade e 0 Brasil. Eu, de minha parte, se me fosse dado escolher um compatriota, teria escolhido o st. Paulo Rénai.” Dirdo que estou citando muito. Contravirei: é pouco, 2 Jevarmos em conta a abundancia do que se tem escrito do 3 meu apresentado; ¢ cederei a0 desejo de ainda transcrever 6 que daquela obra escreveu Carlos Drummond: © portugués, como o aprendi, Paulo Rénai conta, fiygueito. (Outra faganha dele eu vi aprendeu a ser brasileiro, E aprenden bem depressa. Chegado 20 Brasil em 1941, nio tardou muito que passasse a lecionar — 0 latim e o fran~ és, sobretudo ~ em colégios particulares, contatando com alunos € professores, e com 0 povo em geral. O contato com 0 povo comegava bem cedo, nos bondes, sobretudo os que levavam ao Méier, muito matinalmente. Bondes superlotados, por vezes; e no raro devia Rénai viajar em. é, no estribo, Por inal que, certo dia, vinha no estribo do veiculo, junto ao mestre, um passageito alagoano, de verbo solto, Pés-se o meu conterraneo a conversar com © homem que viera da Europa —e nio tardou que o senso de humor, tio hungaramente vivo, de Paulo Rénai, se regalasse com esta preciosa informagio: Esti vendo aquele homem com quem eu fale? Pois € ala- goano, como eu, Eu sow alagoano, meu amigo, E tenho muitos conhecidosalagoanos. A bem-dizer, todo 0 mundo aqui é de Alagoas. ‘Mas eu iria longe se fosse falar da biografia de Paulo, Roanai, brasileiro que jé 0 era bem antes de se naturalizar, 4 ‘em 1945. Mais longe iria eu se pretendesse esmiugar-lhe a bibliografia: muitas dezenas de titulos € maior nimero de volumes. Sim, dezenas e dezenas, entre livros propriamente seus ¢ livros que traduziu ou cotraduziy, e livros — é 0 caso, por exemplo, dos 17 volumes de A comédia humana, de Balzac — que prefaciou e enriqueceu com anotagdes* Livros dos mais desvairados géneros. Porque a nin guém melhor que Paulo Rénai — “eto, discreto, sibio”, ‘como Ihe chamei, dedicando-The © Terrério Uric — cabe a designagdo de “homem de sete instrumentos”: professor, tradutor (sabe umas dez linguas, sem contar as universais), editor literirio, antologista, autor diditico (boa porgio de obras de francés ¢ latim), critico, ensaista, conferencista (que jé tem andado pelo Brasil e pelo estrangeiro) e— ji 0 sabiam? — romancista (Le mystére du camet gris) ¢ teatrdlogo (A princesinha dengosa, pega infantil). Homem dos sete instrumentos... Cumpre, aliés, no seu ‘caso mais do que noutros, no tomar ao pé da letra a locugio — nem quanto ao niimero, nem quanto aos instrumentos. Pois o niimero nio se contém no limite dos sete da frase feita nem & palava instrumentos se pode associar nenhuma ideia de misica. Nao deixemos o campo da metifora; porque o homem, senhores, é antimelmano. Masica, If isso & com ‘uma das filhas, Laura, flautista, tendo a outra, Cora, cam- biado o violino, em que no chegou a sentir-se plenamente realizada, pelo jornalismo, sobretudo literirio, em que vem pintando bem. Nem esquegamos Nora, 2 mulher de Rénai, Nine de 2 cuja vocagio musical 0 destino veio a torcer, fazendo-a arquiteta e professora, Talento, nessa gente, é mal de familia. Nas salas de aula ou de conferéncia, pelos jornais éu re~ mo, exerce Paulo Rénai um magistério vistas, no trato sereno, sem énfase. Tem a arte de ser profundo parecendo apenas deslizar sobre os assuntos. E sutil sem afetagio: eu 0 diria distraidamente arguto. Um clarificador, por exceléncia; um iluminador. E 0 que se notara nas piginas de A tradugao vivida, Nos ito capitulos deste volume — que nasceram conferéncias — nio é apenas do poliglota que o leitor teri ocasiio de aproximar-se ou reaproximar-se. E também do humanista de largas fronteiras; do homem de perfeita formagio uni- versitaria europeia; do conhecedor seguro e certo de litera~ tura; e da inteligéncia viva, vigilante, sempre a observar, a descobrir e apontar caminhos, a estabelecer ou sugerir solugdes, a descer, nao raro, ao leitor, primeiramente, para depois, aos poucos, levi-lo até si Principia definindo a tradugio e o tradutor. Fala das, tradugSes interlingual, sociolinguistica e intersemistica, dos requisitos do tradutor ideal, Com que finura trata dos “alsos amigos"! Ventila 0 problema da tradugio do tro cadilho, e lembra, citando-se, que “esse jogo do espirito, tantas vezes julgado inferior, desempenha na literatura papel ‘muito mais importante do que se pensa e aparece tanto em Platio como nos trégicos gregos, nas Escrituras como nos classicos latinos, nos moralistas e filésofos mais severos”. Nio esquece a “linguagem silenciosa”, o emprego dos sinais diacriticos e da pontuagio, 0 uso de iniciais maidsculas ou 16 2 eng miniisculas, que “nio raras vezes obedece a intengdes que 0 tradutor deve saber despistar”, ¢ a frequéncia das maitisculas na pena dos simbolistas. ‘Quanta coisa inteligente e culta sobre a quadra de Goethe maltraduzida — maltraduzida porque dois dos tradutores dela “verteram escrupulosamente as palavras constantes do texto”, sem Thes ocorrer que “o sentido de um enunciado io é a simples soma dos vocabulos que o compoem”! Anda-se livro em fora, € aprendem-se as “vantagens e desvantagens do copidesque”, e novidades acerca da tradugio dos titulos, ou de “como verter textos sem con- textos”. Que a tradugio indireta pode valer mais que a direta, Rénai o diz com referéneia 4 versio do Fausto feita pelo velho Castilho, ignorante do alemio. Nao The escapa a necessidade, ou a inconveniéncia, de notas do tradutor explicativas de certos passos do original; nem a oportuni- dade da tradugio infiel do titulo duma obra, como no caso de Vers l'armée de métier, do general De Gaulle, que em portugués veio a dar... Erudigio e sagacidade critica se rednem, por exemplo, no escdlio acerca das tradugdes — em ingles, francés, italiano, espanhol, alemio, portugués — duns versos do livro IV da Eneida. Que feliz se mostra ele ao tratar da versio de uma ea Franca teria vencido, frase do O doente imagindrio, de Moliére, interrompida por pontos de reticéncia, Rénai, adivinhando que esta impli= Cito nos pontinhos, propée uma traducio muito plausivel daquilo que Moliére deixou no tinteiro, Para que prosseguir na exposigio da exceléncia da obra? Tudo quanto Rénai pensa e diz é — além de substancial- ” mente importante — de uma textura tio sélida, tio bem concatenada, em sua pura simplicidade, que nio é facil compendis-lo, Cumpre lé-lo na integra Agrada-me particularmente encontrar, no sexto capitulo, “O desafio da tradugio poética”, um completo, segurissimo exegeta de poesia. Toca-me, de modo muito especial, a anilise de original e tradugio do “Repouso”, de Henriqueta Lisboa, belissimo poema cujos segredos € sutilezas Rénai viu de todos os Angulos, visitou sem perder 0 minimo trago, aprofundou ¢ iluminou com espantosa mestria. ‘Mestria larga e variada. Mestria em literatura, em lin~ guas, em tudo que ficou dito — e na arte da amizade. O mestre perfeito, “reto, discreto, sibio”, é também, de quebra, amigo perfeitissimo, Custa-me escrevera seu respeito. Qua- se 35 anos de amizade — plenos, inteiros, sem lacunas ou fissuras. Nao sei, dele tratando — do homem ou do escritor —, seniio louvi-lo. Mas firmemente creio que com isto nio Ihe fago favor. Grande brasileiro, o brasileiro Paulo Rénai. Rio de Janeizo, novembro de 1975 Aue Buargue de Holanda Ferreira 18 1. DEFINIGOES DA TRADUGAO EDO TRADUTOR ‘Tradugdo interlingual, intralingual, sociolinguistica e intersemidtica. Indecisio do sentido das palavras, impor- Lncia do contexto. Tradugio literal ou livre. Tentativas de definir o gue & tradugio, Quem e como se torna tradutor, Requisitos do tradutor ideal: conhecimento da lingua-alvo e da lingua-fonte, bom-senso, cultura geral, capacidade de documentagio. Frustragées ¢ compensa ‘ges do tradutor. Palpites para o aprendizado do oficio, Bibliografia minima. A TRADUGAO DE que este livro trata € a interlingual, isto & a reformulagio de uma mensagem num idioma diferente Gaguele em que foi concebida. Quer dizer que dele esta excluida qualquer outra operagio intelectual a que o termo tradusao se possa aplicar em sentido figurado. ‘Ao vazarmos em palavras um contetido que em nosso pensamento existia apenas em estado de nebulosa, fendme-~ no constante em todos 0s momentos conscientes da vida, estamos também traduzindo, mas praticamos a tradugi 9 intralingual, operagio esta que tem as suas proprias dificul- dades e cujo resultado muitas vezes nos deixa insatisfeitos. Além disto, estamos traduzindo também quando; através, das fSrmulas usadas por nosso interlocutor em obediéncia a convengdes sociais, tentamos descobrir 0 seu pensamento verdadeiro, Valendo-nos de nossa experiéncia de todos os dias, praticamos a tradugio sociolinguistica ao interpretar por “ndo” a frase tio brasileira “Est dificil”, quando a recebemos numa reparti¢io qualquer em resposta a uma pretensio nossa. Pode-se falar, enfim, de tradugio intersemistica, aquela a que nos entregamos ao procurarmos interpretar o signi cado de uma expressio fisiondmica, um gesto, um ato sim- ‘bélico, mesmo desacompanhados de palavras. E em virtude dessa tradugio que uma pessoa se ofende quando outra no Ihe aperta a mio estendida ou se sente 4 vontade quando Ihe indicam uma cadeira ou Ihe oferecem um cafezinho. Excluidas estas trés dltimas formas de tradugio, volta~ ‘mos propriamente dita, a que chamamos de interlingual, ainda um campo vasto demais para ser examinado em. sua totalidade; assim estas consideragdes visam sobretudo A tradugio literdria, acenando apenas acessoriamente as variantes cientifica, técnica, comercial, cinematogrifica ete. ‘A maioria das pessoas, quando pensa em tradugio, fiz ideia de uma atividade puramente mecinica em que um individuo conhecedor de duas linguas vai substituindo, uma por uma, as palavras de uma frase na lingua A por seus equivalentes na lingua B. 20 [ Na realidade as coisas se passam de maneira diferente. As palavras no possuem sentido isoladamente, mas dentro de um contexto, e por estarem dentro desse contexto. E frequente ver citados em obras de linguistica casos de ambiguidade curiosos como estas trés oragSes: a) She made Harry a good wife; b) She made Harry a good husband; ©) She made Harry a good cake ["Ela a) foi uma boa mulher para H.; b) fez de H. um bom marido; ¢) fez um bom bolo para H.”], Na verdade, quase todos os vocibulos estio sujeitos a ambiguidades semelhantes. Ao ouvirmos apenas a cadeia sonora formada pelos sons que compdem 4 nossa palavra “ponto” — de que mestre Aurélio consigna, ‘em seu Noww dicionério, nada menos de 44 acepges principais —, ni sabemios se se trata do pedago de linha que fica entre dois fsros de agulha ao coser; ou da intersegio de duas linhas; ‘ow de parte da matéria ensinada; ou de sinal de pontuagio; ou de parada de Snibus; ou de livro de presenga; ou de empre~ ‘gado de teatro que sopra aos atores etc.' Ela s6 adquire sentido gracas is demais palavras que Ihe sGo associadas em enunciados como “costurar um rasgio ‘com alguns pontos”; “tragar uma linha entre dois pontos”; “estudar um ponto”, “esperar o nibus no ponto”; “assinar © ponto”; “precisar de ponto para recitar um papel”, S6 pela sua experiéncia do portugués, em particular dos contextos ‘em que a palavra ponto pode figurar, o tradutor conseguiré decifrar qualquer desses enunciados, para depois, em virtude ead do wesbulo gl, explora J maneiadivertida i em sua conics "Pontos nuk no volume O popular ‘Branwkipiadade pore Fernando 2 do seu conhecimento de outra lingua, formular enunciados equivalentes nesta éiltima, © gue acabamos de dizer a respeito das palavras vale também em relagio a frases inteiras. Em alemfo Br hat es zum Minister gebracht quer dizer “Ele chegou a ministro” ou “Ble levou o assunto a0 ministro”? A duivida s6 se esclarece dentro de um contexto maior. Entendido assim, o papel do tradutor torna-se singular- ‘mente mais importante; perde o que tinha de mecinico € se transforma numa atividade seletiva e reflexiva. Candidatos a tradutor costumam perguntar a quem os, contrata se devem fazer tradugio literal, mot @ mot, ou tra- dugio livre. Na verdade nio existe tradugio literal. Uma frase latina tio simples como Puer ridet deve ser traduzida em trés palavras por “O menino ri” ou “Um menino ri”, embora nenhum dicionério do mundo dé como equivalente de puer“o menino” ou “um menino”, A Je vous en prie cor responde em portugués “por favor" a s0 long e a arrivederi, “até logo”; a Ministre des Affaires Etrang2res, “Ministério das Relagdes Exteriores”. Ora, ninguém pode qualificar essas tradugdes de livres, j4 que representam as dinicas versdes possiveis, exatas e figis das formulas originais, Daf resulta que a nogio de fidelidade implica talvez menos aderéncia as palavras da lingua-fonte do que obediéncia aos usos ¢ is, estruturas da lingua-alvo, Esses exemplos singelos mostram, em sua diversidade, por que é dificil elaborar um e6digo ou um manual da tradugio. As aplicagdes possiveis de qualquer palavra sio 2 indmeras e imprevisiveis; 0 fluir continuo da lingua passa por ondas sempre novas. De mais a mais, 0 profissional que traduz um texto em portugués para o inglés nio tem de cenfrentar problemas iguais aos do colega que o verte para © francés. © ensino da tradugio s6 pode partir de exem- plos concretos e deve ter em vista, sobretudo, flexibilizar a mente do tradutor € manté-la em estado de alerta para ‘que saiba lembrar precedentes ou, se for 0 caso, inventar novas solugdes. Essa problemitica se complica ainda mais quando 0 texto, a traduzir é de cariter literirio. Af o tradutor deve utilizar ‘0s seus conhecimentos de técnico para conseguir efeitos de arte e provocar emogdes estéticas, Em que medida pode essa atividade ser considerada arte? Quais as qualidades especiais ‘que requer? Qual é a consideragio que merece? Ao definirem “tradugio”, 0s dicionarios escamoteiam, prudentemente esse aspecto e limitam-se a dizer que “tra- duzir € passar para outra lingua”. (*Uberset2ung: die Ubertra- _gunig eines Textes aus einer Sprache in eine andere.” Der Kleine Brockhaus, 1962.) Mas 0 que a atividade do tradutor i- terdrio apresenta de ambiguo e de quimérico tem levado muita gente a tentar defini-ta pelo menos sob forma de comparagio, Autores espantados com as deformages de sua obra em versio estrangeira; leitores que assinalam com um risinho sarcistico as cincadas € os contrassensos em livros traduzidos; os préprios tradutores, sobretudo, desespera~ dos com os impasses de seu oficio, tém recortido a similes 2B ruitas vezes pitorescas e surpreendentes, as quais reuni uma pequena colegio no decorrer dos anos. ‘A comparagio mais ébvia é fornecida pela etimologia: em latim, traducere & levar alguém pela mio para o outro lado, para outro lugar. O sujeito deste verbo € 0 tradutor, 0 objeto direto, o autor do original a quem 0 tradutor intro~ duz num ambiente novo; como diz Jules Legras, “traduzir cconsiste em conduzir determinado texto para o dominio de outra lingua que no aquela em que esti escrito”, Mas a imagem pode ser entendida também de outra maneira, considerando-se que € 20 leitor que © tradutor pega pela io para levi-lo para outro meio linguistico que nio 0 seu. Conforme adotemos uma ou outra dessas maneiras de ver, a tradugio deverd corresponder a exigéncias diversas. Conduzir uma obra estrangeira para outro ambiente lin- guistico significa querer adapti-la 20 maximo aos costumes do novo meio, retirar-Ihe as caracteristicas exdticas, fazer esquecer que reflete uma realidade longingua, essencial~ mente diversa, Conduzir 0 leitor para o pafs da obra que Ié significa, a0 contririo, manter cuidadosamente © que essa tem de estranho, de genufno, e acentuar a cada instante a sua origem alienigena, Assim as duas interpretagdes da palavra tradugio abrangem até as duas variantes extremas a que ela pode ser aplicada: a tradugio naturalizadora, de que seria exemplo a versio portuguesa de Don Quijote por Aguilino Ribeiro, ¢ a tradugio identificadora, exemplificada pelas tradugdes de Virgilio por Odorico Mendes ou, mais recentemente, pela versio francesa da Bneida por Pierre Klossowski, 4 Procurando vender o seu peixe, 0s tradutores de todos os, tempos tém encarecido a utilidade de sua agio, mostrando ‘08 grandes beneficios dela resultantes. Lé-se no preficio da Versio Autorizada da Biblia (de 4611), que to grande importincia exerceu na evolugio da Tingua inglesa: a teaducio que abre a janela para deixar entrar a luz; que quebra a casca para podermos comer a améndoa; que ‘puxa a cortina de lado para podermos olhar para dentro, do lugar mais sagrado; que remove a tampa do pogo para podermos chega® 3 Agua. Porém, ji no mesmo século, Dryden, tradutor ilustre da Encida de Virgilio, queixou-se da maneira desdenhosa por aque ele e seus colegas eram tratados. ois somos escravos ¢ trabalhamos na lavoura de outrem; Javramos a vinha, mas 0 vinho pertence ao proprietirio; ses vezes o solo é maninho, podemios estar certos de ser= ‘mos castigados se éfértl eo noso trabalho dé resultado, nnio nos agradecem, pois o leitor arrogante diré: © pobre escravo cumpriu o seu dever —e para caracterizar as dificuldades da profissio dizia que “traduair era como dangar na corda bamba de pés acor~ rentados”. André Gide, tradutor ele mesmo, comparou a profissio Ade um picador que pretendesse levar o proprio cavalo a executar movimentos que nio Ihe fossem naturais. Irreverente, Goethe assimilou os tradutores a “aleo~ viteiros que nos elogiam uma beldade meio velada como altamente digna de amor ¢ que excitam em nds uma curio- sidade irresistivel para conhecermos o original”, pilhéria que s6 nfio deve ofender os tradutores por ter sido o proprio Goethe um deles, e porque, embora nao lhes reconhecesse ‘outro mérito, Ihes fazia justiga a0 admitir que despertam 0 desejo de se ler a obra original. Frequentemente o original foi comparado alma ¢ a sua versio a0 corpo; a nio ser que ele fosse identificado com 0 corpo ea versio com o traje. Para Cervantes, a tradugio seria 0 avesso de uma tape- garia. Ao nosso contemporineo Helmut Braem, por sua vvez, ela aparece como uma nova tapegaria tecida de acordo com um modelo dado. ‘Mais de uma vez 0 tradutor tem sido comparado a artistas: a0 cantor que canta uma cangio escrita por outro, ao miisico que num instrumento toca uma miisica escrita para outro instrumento (mme. de Staél), ou que decifra e “reescreve” toda a partitura; ao maestro que rege composigdes alheias; a0 escultor que tem de executar noutro material qualquer a cépia de uma estitua de mirmore (Werner Winter); a0 pintor que copia em dleo um pastel; ao ilustrador de um livro; a0 ator que encarna os mais diversos papéis (Julius Zulawski); a0 fotdgrafo que de um quadro de museu tira tuma foto colorida (Ernesto Sabato}, ou bate uma chapa de uma estitua (Michael Reck) e, fizendo entrevera dificuldade de sua tarefa, a um artista plistico que tivesse de transmudar ‘uma miisica em quadro ou em estétua (Maurice Baring). %6 Heine, galhofeiro, achou que traduzir poesia era empa- har os raios do Sol. (E fazer poesia nio € a mesma coisa? —pergunta Renato Poggioli, que pesou e comentou muitas dessas comparages.)? Chegados a um impasse depois de outro, quantos pro- fissionais no se compararam a Sisifo ou a Tintalo, duas personagens da mitologia, que encamam 0 desejo impo- tente? Usando outra imagem da mitologia, dizia o padre Olivet que um hibil tradutor devia ser um Proteu de forma mutivel, E André Mirabel considerava 0 papel em que se escrevia a tradugio como um leito de Procusto. (Inde~ pendentemente dele, 0 nosso Guimaries Rosa chamava “procustos” na correspondéncia com seu tradutor alemio, Curt Meyer-Clason, os trechos particularmente dificeis de verter para outra ingua,) ‘Outro tradutor moderno, Yehuda Amichai, achou que Jer poesia em tradugio era beijar uma mulher através de um véu. Leio num recente artigo de jornal italiano que a tradugio & como um filtro colocado entre o autor € 0 leitor Dizia John Lehmann que falar em tradugio era como conversar sobre 0 vidro de um quadro, quando 0 que devia monopolizar a nossa atengio era evidentemente a pintuta, Houve também quem assemelhasse 0 ato de tradueir a0 transvasar um liquido de uma garrafa esférica nou- tra, de forma cilindrica (Tatiana Fotitch), ao que si John Renato Poggio “The Added Ari Reuben A. Brower, Nova York, Onfocd in On Tiastion, organinad por verity Pres, 196. Denham, em 1656, com séculos de antecipacio, respondera gue a poesia era um liquido to fino que, transvasado de tum idioma para outro, se evaporava todinho. Kenneth Rexroth considera o tradutor um bom advo- gado ao servigo do autor, antes que.o bastante procurador deste; Meyer-Clason chama-lhe um advogado de dois clien~ tes, um corretor de cimbio na bolsa de dois idiomas — bem ‘mais generosos do que mme. de La Fayette, que encarava 0 ‘mau tradutor (ainda bem que s6 0 mau!) como um criado bronco que repetia ds avessas uma mensagem importante que Ihe fora confiada, ou Lope de Vega, que assemelhava 0 tradutor fout court a um contrabandista de cavalos. Em oposi¢ao aos que 0 consideram a mera sombra do autor ou um escravo obediente a seu servigo, ha quem veja nele um autor frustrado. Foi dito, ainda, que o tradutor é um plagirio que pra~ tica a tinica forma legftima do pligio, ou um artista timido aque s6 consegue vencer as suas inibigdes em tdte-d-téte com outro artista, O jf citado Renato Poggioli define-o, por seu turno, como personagem em busca de um autor com ue possa identificar-se. Ou, mais poeticamente, como uma vasilha viva saturada de um fluido que derrama no reci~ piente mais apropriado, embora nfo feito por ela nem de sua propriedade Visto 0 que seu empreendimento tem de quimérico, © tradutor foi ainda assimilado ao alquimista, aquele que sonha com a transmudagio dos metais em ouro e acaba reduzindo 0 ouro a barro; mas nio, objetam outros, aquele gue transforma um pedago de ouro noutro pedago de ouro. 8 | | Corte assim, através dos séculos, um dislogo incessante entre os que atacam o tradutor e os que Ihe tomam a defesa Nas Cartas persas de Montesquieu, uma personagem, a0 vir a saber que outra se ocupa de tradugo ha vinte anos, langa~ Ihe no rosto: “Como, cavalheiro? Entio ha vinte anos que ‘0 senhor nio pensa?” B acrescenta: “Se viver traduzindo sempre, nio 0 traduziro nunca.” D’Alembert, porém, tem opiniio oposta: “Se quiserdes ser traduzido um dia, comegai ‘vés mesmo por traduzir.” O surrado trocaditho italiano taduttori-taditor deixou a pecha da infidelidade aos cultores do oficio, Poderia con~ solar-nos o fato de ser impossivel craduzir esse anexim em qualquer outra lingua; mas, infelizmente, tem tanta graca que todo 0 mundo o aprende, ainda que nio saiba italiano. Ele é confirmado pelo chiste, de atribuigio incerta, de que as tradugSes sio como as mulheres: quando fiis, no sio bonitas; ¢ quando bonitas, nio sio figis. De todas as compa rages sio essas duas as que mais pegaram, ¢ é lembrando-se delas que o tradutor, esse modesto artista, “o nico que se comporta como se fosse artesio”, procura justificar-se, em preficios, esclarecimentos, adverténcias, notas, réplicas € posficios, tentando a apologia, encarecendo a utilidade do proprio servigo, pedindo a compreensio ¢ a paciéncia do Ieitor; ¢ as vezes, consciente de sua culpa, implorando 0 petdio do autor que vertera, como Nabokov o de Puchkin, depois de Ihe ter traduzido para o inglés © romance em versos fevgueni Onieguin 2» (© que & uma tradugdo? Numa travessa ‘A cabega do poets, pilida, de olhar fixo. Comparaison n'est pas raison, dizem os franceses, e real mente é dificil reduzir tantas imagens a um denominador comum. Mas todas essas analogias deixam entrever a com- plexidade intrinseca da atividade tradutora, de que tenta~ remos apresentar alguns problemas. Examinemos primeiro a personagem que se atreve a em preender semelhante tarefa. Em principio, seria de supor que as editoras escolhessem individuos particularmente capazes de executé-la apés haverem-Ihe verificado a idoneidade por meio de testes; e que s6 se dedicassem a traducdes literdrias, pessoas especialmente interessadas em literatura, dotadas de sensibilidade artistica, e com profundo conhecimento de ambas as linguas. © que, porém, acontece na realidade algo diferente. As editoras — salvo excegdes respeitiveis — esto interessadas em contratar tarefeiros que executem determinada tradugio dentro do menor prazo possivel e pelo menor prego possivel. Quanto aos candidatos a tradutor, em geral procuram essa espécie de ocupacio nio por uma simpatia especial, mas por se tratar de bico que pode ser executado em casa, nas horas de folga, € assegura uma ren dazinha suplementar ainda gue magra. Dai o desprestigio que envolve a profissio, Sabemos que, em caso de reedigio, 6 editor paga outra vez a0 autor, mas 6 tradator & deixado de lado. E por pedirem-Ihe um trabalho rapido, pago a um 30 tanto por linha, comumente 0 tradutor pouco se preocupa coma qualidade, tanto menos quanto o seu trabalho rara~ mente é examinado e quase nunca criticado. Entre nés, ha uns vinte anos, um intelectual mineiro de sélida cultura e notivel conhecimento de Iinguas manteve, durante algum tempo, no Didrio de Norcias, uma segio consagrada a0 exame das tradugdes:'a se¢io morreu dada a falta de interesse dos editores, que preferiam ndo mandar a Agenor Soares de ‘Moura as suas novidades traduaidas. Na maioria das vezes a tradugdo € feita por escritores, pessoas que 0s editores t8m mais i mio, quando nio pelas primas pobres, os tios invilidos ou as cunhadas desocupa~ das destes mesmos escritores. Mais de uma vez 0 escritor ‘empresta apenas 0 nome 4 tradugo sem deitar-the sequer uma olhada. Mas ainda que seja ele mesmo 0 autor do tra- balho, nem sempre a sua qualidade de escritor constitu uma garantia, O que normalmente acontece é um ficcionista, lum poeta ou um jornalista aceitarem traduzir um livro francés, inglés ou castelhano, pelo fato de estarem habitua- dos. ler obras escritas nesses idiomas. Os mais inteligentes € conscienciosos no tardam a reconhecer a sua filta de preparo ¢ tentam supri-la por meio de estudos, pesquisas, Consultas a pessoas e livros; os mais limitados nem percebem a existéncia de dificuldades e vio galhardamente matando cen tenas de paginas, seguros da impunidade. Se acaso acontece de "Reino com pair que o PEN Clube brasileito, bl alguns anos, insti © Prdmo de Teadugio Agetor Soares de Moura pra a melhor teusio do ano et Domnagean a ese grande uabalhad atletsal a alguém descobrir gafes numa de suas tradugSes, eles opdem 4s criticas 0 argumento de haverem traduzido dezenas de volumes sem nunca terem enfrentado uma reclamacio. Desviemos o olhar dessa realidade e consideremos 0 tradutor como ele devia ser. primeiro requisito que deve possuir é o conhecimento profundo da sua lingua materna, paraa qual ele traduz, Quando, ao reler a pagina que acaba de verter, ele topa com uma frase que no soa bem, terd nisso critério quase infalivel do erro cometido. Uma pessoa que nio tivesse facilidade natural na sua propria lingua nunca se deveria abalangar a fazer uma tradugio. Mesmo um punhado de erros de interpretagio no inutiliza de todo uma tradugio (j4 que é humano errar, encontramo- los as vezes em trabalhos dos melhores profissionais); em geral 0s leitores passam por eles sem percebé-los e vio prosseguindo a leitura. Mas um verniculo desajeitado, emperrado ou pedante, pesado ou incorreto dificulta a leitura e pode chegar a interrompé-a de vez. (Esse conhecimento sétido da propria lingua, critério certo de toda educagio humanistica, consegue-se — jé se vé—mediante a leitura atenta e continua dos bons autores, pela frequentacio de livros inteligentes sobre o préprio idioma, pelo estudo incessante dos meios de expressio.) Claro, o conhecimento da lingua de partida é parte indis- pensivel da bagagem do tradutor. Ai, porém, ha concessdes. ‘Muitas vezes nasceram tradugdes relativamente boas feitas de linguas que os tradutores nao falavam, Muitas vezes esses 2 tém da lingua de partida apenas um estudo livresco, sem conhecerem 0 pais onde ela é falada. Em diversos paises hd Gtimas versdes de Shakespeare devidas a poetas que nao falavam uma palavra sequer de inglés € executaram a tarefa com sangue, suor e ligrimas, e consulta constante aos dicionsrios ¢ aos léxicos, alcangando resultados notiveis; existem, em compensagio, outras, feitas por professores de inglés, que, apesar de bons, nfo sabem a lingua materna, ‘e compilaram apenas trabalhos escolares, insulsos, ilegi- veis. E no caso de obras gregas ¢ latinas, 0 conhecimento da lingua-fonte, por mais sélido que seja, € quase sempre apenas passivo. Semelhante conhecimento se adquire por anos de leitura e pela pritica da propria tradugio, se a0 profissional nio Ihe faltam as virtudes cardeais da humil- dade ¢ da curiosidade. Desconfio do tradutor que se gaba de transportar qualquer texto de uma Tingua para outra & primeira vista, com facilidade igual, sem jamais recorrer 0s dicionirios. © maximo a que ele deve aspirar nio saber de cor uma lingua estrangeira (pois nunca se chega a conhecer a fundo nem sequer a materna) e sim a adquirir tum sexto sentido, uma espécie de faro, que o advirta de estar na presenga de uma acepcio desconhecida de uma palavra, o entio de uma locugio de elementos insepariveis intraduzivel a0 pé da letra, idiomatismos que fazem parte do lastro de ouro da lingua estrangeira, S6 assim o conhecimento direto do outro idioma poders, ser suprido pelo instinto linguistico e pelo folhear inteligente dos dicionirios e demais obras de consulta. 3 Em resumo, 0 tradutor deve conhecer alingua estrangei~ ra 0 bastante para desconfiar de cada vez que a compreensio insuficiente de uma palavra ou de um trecho obscurece 0 sentido do conjunto. Ao ler, por exemplo, na descrigio de ‘um jogo de prendas, Je donne ma langue au chat, o tradutor, se no conhece a expressio, sentir que é impossivel entendé-la a0 pé da letra e tentaré localizé-la no dicionirio, até en contrar no verbete correspondente a um de seus elementos, provavelmente chat, a explicagio: “Desisto de adivinhar.” ‘Outro componente mais indispensivel de sua aparelha~ gem talvez scja 0 bom-senso, Ele devera partir da suposigio de que o texto que Ihe cabe verter tem um sentido no origi- nal; se, relendo a piigina que acaba de traduzir, encontrar um trecho que ele mesmo nio entende ou que the soa absurdo, © jeito sera recomegar. Perceber que 0 auxilio dos dicio- narios ndo resolve uma diivida, que a solugio encontrada nio corresponde ao espirito da lingua-alvo ou que poder dar lugar a ambiguidade; que 0 préprio autor cometen um erro; que 0 leitor ndo podera entender a interpretagio sem a ajuda de uma explicagio suplementar ou uma nota; que certos trechos precisam de tradugio mais livre que outros... tudo isso é Fungo do bom-senso. Ao encontrar, num didlogo em francés moderno, a locugio par exemple, acompanhada de ponto de exclamagio, nio seguido de exemplos, 0 profissional capaz de raciocinar chegari natu~ ralmente 4 conclusio de que ela ndo equivale a por exemplo, ‘mas @ alguma exclamagio do tipo de “ora essa!” &, porém, dificil dizer como se consegue esse ingrediente. Ai é que os 34 1nossos cursos de tradugio poderiam vir em auxilio de seus alunos pelo comentirio ¢ anzlise de tradugdes jé publicadas, apontando 0s casos onde a sua falta redundou em prejuizo. Mas o conhecimento étimo do proprio idioma, a posse pelo menos razoivel do idioma-fonte e uma boa dose de bom-senso sio apenas as trés primeiras condigdes. Deve © bom tradutor literdrio possuir uma cultura geral que the possbilite identificar os lugares-comuns da civilizagio, sem 0 que estes se transformam em outras tantas arma- dilhas. Uma curiosidade inteligente, uma desconfianga sempre alerta so condigdes indispensiveis: senio, 0 nosso candidato verter Mémoires de Saint-Simon por “Memérias, de Santo Simao”, pensari que les trois gloriewses eram trés mogas (sem se lembrar de que se deu esse nome aos trés dias da Revolugio de Julho de 1830), julgari que Union Jack € uma pessoa (sem que Ihe ocorra tratar-se da bandeira do Reino Unido, aliés Gri-Bretanha, coisa bem diferente da Bretanha tout court), Dever’ ele ainda saber que os france~ ses chamam Vienne nio somente a capital da Austria, mas também uma cidade francesa; que 0 Quai d’Onsay nio s6 um cais do Sena, mas também a sede do Ministério francés das Relagdes Exteriores; que a city de Londres e a Cité de Paris sio duas coisas totalmente diversas. Lembrari ainda que para os franceses Genes é Génova, a0 passo que Geneve é Genebras por outro lado, teri presente no espirito que Venus e Aftodite, Merciirio ¢ Hermes, Marte e Ares, Juno e Hera designam as mesmas personagens mitoldgicas. Tampouco deveri esquecer que, no colléye francés, antigo 35 gindsio no Brasil, o aluno, aprovado na terceira série, passa para a segunda e no para a quarta.* JA compreendemos que o tradutor que aspira a ser um. bom profissional tentar familiarizar-se, igualmente, na medida do possivel, com os costumes, a histéria, a geogra- fia, 0 folclore, as instituigdes do pais de cuja lingua traduz, além de se munir da indispensivel cultura geral. De mais a mais deverd saber adquirir uma especializagio ad hoe no caso de cada obra algo dificil que lhe confiam. Se tiver a sorte de traduzir Salambi, de Flaubert, dé-se o trabalho de ler previamente uma histéria antiga e de se informar sobre Cartago; se tiver de verter Jean Baris, de Roger Martin du Gard, enfronhe-se no caso Dreyfus; € caso 0 convidem a traduzir Jean Christophe, de Romain Rolland, tire logo 0 corpo fora, se nio possuir boas nogdes de miisica ‘Mas nio é exigéncia demais em se tratando de oficio, comumente malpago e pouco prestigiado? Em O barbeiro de Sevitha, Figaro perguntava 20 seu amo: “Aux vertus qu'on cexige d'un domestique, votre Excellence connaftelle beaucoup de amaties qui fissent dignes d’étre vales?” Parodiando esta frase, podemos perguntar: “A considerar as virtudes que se pede a.um tradutor, haverd muitos escritores que fossem dignos de ser tradutores?” Contudo, nfo obstante a remuneragio insuficiente ‘ou nula, muitos grandes escritores de todos os tempos empreenderam trabalhos de tradugio muitas vezes com prejuizo da propria obra. Evidentemente o oficio deve ‘FNosbiena edacacional anes, o lig cortesponde 20s quatro Gltmos anos de xsi fundamental brasil, (N. da B) 36 a oferecer compensagdes outras que no as financeiras. Se © trabalho nio trouxesse em si mesmo 0 seu prémio, Goethe nio teria vertido Diderot para 0 alemio, Mérimée nao se haveria empenhado em introduzir os classicos russos na Franga, Baudelaire nio se houvera debrugado meses a fio sobre as novelas de Edgar Allan Poe, Rilke nao transporia \Valéry em sua propria Iingua. Na realidade a traducio é 0 melhor €, talvez, 0 tinico exercicio realmente eficaz para nos fazer penetrar na intimidade dum grande espfrito. Ela nos obriga a ésquadrinhar atentamente o sentido de cada frase, a investigar por mito a fungio de cada palavra, em suma, a reconstituir a paisagem mental do nosso autor € a descobrir-lhe as intengdes mais veladas. Durante algumas dezenas de anos, sob a influéncia do método direto aplicado ao ensino das linguas modernas, o estudo da tradugio esteve ausente de nossas escolas. Antes disso ensinava-se com muito empenho, em especial na Franca, na Inglaterra e na Alemanha, a tradugio dos clés sicos, sobretudo dos da Antiguidade grega e latina, Apesar das criticas que se faziam ao ensino das linguas mortas, esse exercicio intelectual, quando bem-conduzido, desenvolvia sobremaneira 0 senso linguistico, A anélise sintitica, can- tas vezes ridicularizada, aplicada a um complexo periodo antigo podia levar a capacidade de interpretagio a0 mais alto grau. Haveré enigma de maior sedugio do que uma frase latina de que se identificaram todas as palavras e rela~ Ges sintiticas, mas que, apesar disso, s6 entrega 0 proprio segredo a quem se mostra capaz de extraordinitio esforgo 37 de concentragio mental? Abolido esse tipo de exercicio, nio foi substitufdo por nenhum outro. Para suprir essa capacidade perdida, estio siirgindo ‘cursos especializados de cariter pritico, a comegar pelos de tradutor e intérpretes no ensino médio, mas tampouco eles podem fornecer uma formagio completa, assim como uma faculdade de Engenharia ou Arquitetura nio langa profissionais experimentados. Por outro lado, no hi mui~ tos manuais acessiveis em portugués, destinados a ensinar como se traduz.t Eis por que a boa utilizago das tradugdes existentes e a execugio paciente de exercicios devem e poder comple- tar 0 uso desses manuais. Assim, o candidato a tradutor empreende, a titulo de exercicio, a versio de alguma obra jé traduzida em porcugués; depois, compara a prdpria tradugo com a tradugio alheia, verifica os erros que cometeu, os deslizes, as inexatiddes, as faltas de elegincia. Depois disso, €é armado com as ligdes desse confronto, poder’ proceder A tradugdo de outro capitulo, ou de outra obra, Pritica no menos til & 0 simples conftonto eritico de qualquer tradugio com o original; uma terceira, a comparagio “Eien orator Albert Aubert. De ports par fans, 2, Sto Paso, Difusio Europea do Livro, 1970; Ch. Bouscaren e A. Davoust. Oils guen0d penta qu sie, io de Jute, Educom, 1975, Jean Maile. rad cen "enue, Sbo Paulo, MeCiraw-Hil do Brasil, 195; Georges Mount, Or priberas wis da tabs, Sto Paso, Caltex, 1975; Palo Réns. Gupte dado ances, 2 ey io de Janeiro, Educom, 1975; Ex de duos, $64 Rig ‘Ue Janeiro, Educom, 1976; Agenor Soares dox Santos. Gua price de taduo ingles, Rio de Jnito, Educom, 1977; Brenno Silvers. ate de taduct, S30 Paulo, EdigSes Methoranientos, sds Erwin Theodor. Tadao: Of «are, ‘Sfo Paulo, Cale, 1976 38 ps de duas tradugdes da mesma obra; quarta, a comparagio de ‘uma versio portuguesa com uma versio numa terceira lingua que se conhece, ¢ assim por diante, ‘A tomada sistemitica de notas, a onginizagio de uma lista de equivaléncias, de um rol de termos especitficos do texto, de uma relagio de frases feitas ou locugSes figuradas constituem 0 complemento racional desse método. Seri necessirio acrescentar a exigéncia Sbvia de © tra~ dutor nio parar de estudar a lingua de sua especializagio, de aproveitar todas as ocasides de lé-la, ouvi-la, falé-la e escrevé-la? De se manter em dia com a evolugio € as no~ vidades de seu proprio idioma? De permanecer atualizado, em sintonia com a sua época? 9 a 2. AS ARMADILHAS DA TRADUGAO, A ff na existéncia auténoma das palaveas. Tlusdes do. instinto etimologico. Perigos da polissemia, Embos- ‘cadas dos “falsos amigos”. Armadilhas do poliglotismo, Ciladas dos homénimos. Intraduzibilidade dos trocadi- Thos? A desatengio, outro perigo. O que sio os parSnimos, A sinonimia, questio de estilo. Hol6frases e caracteristicas nacionais. Incongruéncia das nogtes designadas pela mes- ‘ma palavra. Dessemelhana das conotagSes. O problema dos nomes proprios: antropénimos, nomes simbélicos, hipocoristcos, adjtivos patrios, topénimos. Metiforasvi- ‘vase congeladas; sua traducio, adapeagio ¢ compensasio. (© TRABALHO DO tradutor passa por um caminho ladeado de armadilhas. Até 05 melhores profissionais guardam a lembranga de algum tremendo contrassenso que cometeram. Sio diversas as causas de tais erros. Apesar de sua diversidade, a maioria provém, em iiltima analise, da nossa f@ na existéncia auténoma das palavras e na conviegio inconsciente de que a cada palavra de uma lingua necessariamente corresponde outra noutra lingua qualquer. Confitma essa ilusio 0 recurso constante aos dicionérios, a onde, por motives de comodidade pritica, os vocébulos se acham em ordem alfabética, soltos de contexto ¢ seguidos de definici Como dissemos, a palavra existe apenas dentro da frase, € 0 seu sentido depende dos demais elementos que entram na composigio desta. Ainda que dois vocibulos de duas linguas sejam definidos de maneira igual, os enunciados de que eles podem fazer parte nio sio os mesmos, nem as conotagdes que evocam serio iguais. Isto & verdade mesmo no caso de palavras da mesma origem e de forma suficientemente préxima para revelar 0 parentesco & primeira vista. Assim 0 nosso vocibulo “c6- pia” existe em francés, italiano € inglés sob forma quase " “reprodugio”. Mas copie igual, no sentido de “imitagai em francés designa, além disto, trabalho escrito de aluno, assim como manuscrito entregue & tipografia de um jornal, acepcdes que faltam a copia em italiano e a copy em ingles; em compensagio estas duas palavras possuem o sentido de exemplar, que falta em francés € portugues. ‘Uma das prineipais culpadas das cincadas de tradugio € a etimologia. O instinto etimologizador, que existe em todos nds, se & ‘umauxiliar precioso, pode também produzir enganos, Sem diivida, tinha razio de sobra Valery Larbaud ao escrever que a etimologia era o sal das linguas literérias, pois s6 ela dava sabor e duragio a0 material verbal, acrescentando que tina pena das pessoas que, nfo sabendo latim, ignoravam as etimologias. Para elas todas as palavras devem dar a 2 init impressio de nio repousarem sobre nada, de puros € ab- surdos conglomerados convencionais de sflabas, palavras no ar; € a ortografia, com suas anomalias demasiadamente reais, deve parecer-Ihes um quebra-cabega infernal, Efeti~ vamente, no espirito de quem sabe do parentesco entre pore € paternel, mire € maternel, main e manceuvre, estas palaveas estio motivadas e, portanto, de um emprego mais ficil. Essa ‘mesma consciéncia etimolégica permite, nio raro, adivinhar asignificagio da palavra estrangeira vista pela primeira vez; ‘mas como em duas linguas da mesma familia palavras da ‘mesma origem tém quase sempre evolugio diferente, ela deve ser submetida a permanente controle, Uma pessoa francéfona de instrugio razoavel facilmente descobrira 0 parentesco dos verbos prétere “prestar”; mas s6 0 estudo € ‘o exercicio do portugués Ihe ensinario que préter de Parent no é “prestar” e sim “emprestar dinheito”, Poste ¢ “posta” sio evidentemente 0 mesmo vocibulo; mas, no seu sentido mais comum, poste é vertida em portugués por “correio” Em face da diferencia¢io nas noges, uma mesma palavra, ganha varios sentidos novos no decorrer de sua evolugio. “Respeito” guarda em portugués 0 mesmo sentido primor dial que 0 francés respect; mas a acepgi0 “ponto de vista” (aa expressio “a esse respeito”) é-Ihe peculiar. O portugues “fato” € 0 italiano ato io facilmente relaciondveis; mass6 a primeira dessas formas cabe o sentido de “terno completo” aliés de uso bem maior em Portugal que no Brasil. Essa diversificagio do sentido, a que se dé o nome de polissemia, faz com que a uma palavra possim corresponder 8 diversos equivalentes segundo 0 contexto. Ora, palavras cognatas de duas linguas quase nunca apresentam polissemia no mesmo grau. O nosso vocabulo “mio” na maioria dos casos se traduz em francés por main; mas quando se refere a direcio de transito, deve ser vertide por sens. Office em francés € 0 nosso “oficio” possuem ambos as acepgdes de “angio”, “tarefa, “cargo”. Mas 0 sentido de “escritdrio” é exclusivo do francés e o de “carta de reparticio piblica”, do portugués, Para “miserivel” o inglés tem duas palavras da mesma origem: miserble, snnimo de “digno de com- paixio” ou “desprezivel”, e miser, sindnimo de “sovina”, “una de fome"” £ claro que a polissemia no constitui perigo apenas {quando se trata de termos cognatos. Abro a0 acaso o Diciond rio inglés-portugués de Leonel ¢ Lino Vallandro, ¢ no verbete slip encontro, entre muitas outras, as acepgbes “escorrega~ dela”, “erro”, “tropeco”, “fuga”, “fronha de travesseiro”, “anigua’, “bibe de erianga”, “calcio de banho”, “trela de cio”, “cortediga”, “plano inclinado”, “tampa de langamen- to”, “patins de tren6”, “tira de papel”, “bilhete”, “Banco de igreja”, “enxerto”, E isto apenas como equivalentes do suibscantivo, pois hi também 0 verbo 10 slip e © adjetivo sip. Quantos algapdes para um sé tradutor! ‘Naturalmente, 0s bons dicionarios como esse registram em separado as diversas acepgdes de um vocibulo; mas para tirar deles o proveito possivel cumpre ter boa dose de des- confianga, que s6 se adquire no decorrer de longa pritica. Hi: ads, diferengas sutis nfo consignadas nos dicionarios. O francés vagabond traduz-se em portugues por “vagabundo”; “4 ‘mas este tem uma conotagio pejorativa que falka i variante francesa, e, portanto, se verteria para o francés, em muitos, casos, por uma palavra totalmente diversa A polissemia faz com que a uma palavra do idioma A correspondam duas palavras no idioma B. A nossa palavra “relagio” podem corresponder duas palavras em francés, relation e rapport, nem sempre substituiveis. Por outro lado, so adjetivo francés simple correspondem em portugués “sim- ples” e “singelo”, O tradutor, inclinado a usar a forma que & mais parecida, € ameagado de nunca usara mais rara, que representa uma riqueza da prépria lingua. Luis de Lima ponderou-me, com razo, que 0 equivalente exato de Un cceur simple, de Flaubert, que figura sob o titulo “Um corago simples", em Mar de histérias, estaria melhor se intitulado “Um coragio singelo”. Perigo maior representam os cognatos aparentes ou flsos ‘amigos, palaveas semelhantes em duas linguas, mas de sen~ tidos totalmente diversos. Basta um momento de distracio para o tradutor verter a expressio par hasard por “por azar” em vez de por “por acaso” ¢ éleveur, “criador de animais”, por “elevador”. Os falsos amigos muitas vezes sio palavras de origem, comum cujo sentido se distancion por efeito da evolucio semantica diferente. Um par de falsos amigos é constituido pelo latim casa € © portugués “casa”. O primero na ver~ dade significava “cabana”, “choupana”, Para designar uma residéncia, os romanos usavam a palavra domus. Com a devastagio € a decadéncia causadas pelas invasdes barbaras, 8 as residéncias ficavam cada vez mais parecidas com chou- panas e a palavra domus (em portugués “domo”) passou a ser reservada a construgdes importantes, como por éxemplo uma catedral. Outras vezes a semelhanga é mera coincidéncia, resul~ tado da evolugio convergente de duas palavras totalmente diversas na origem, como por exemplo o francés cor, “calo”, € 0 portugués “cor” (francés couleur). Nas relagdes de cada duas linguas existe certa quantidade de falsos amigos. Os do francés em relagio ao portugués’ nao so os mesmos que ele tem em confronto com o inglés. Entre eles figuram, por exemplo, abonné (que nfo & “abonado”), affimé (que mio @ “afamado”), apporter (que nio & “aportat”) € assim por diante. Poder-se-ia organizar outra relagio semelhante para quem traduz do portugués para o francés. Note-se que os falsos amigos no so os mesmos quando 0 ponto de par- tida é a outra lingua, Alguns exemplos desse grupo seriam “caixa” (no sentido de caisie), “chapéu” (no de paraplui), “Jegenda” (no de sous-tne), “precisar” (n0 de avoir besoin), “processo” (no de dossier), ¢ assim por diante. Fizeram-se varias colegdes dos falsos amigos do tradutor de inglés. Dessas armadilhas citemos algumas das mais conhecidas: actually nao € “atualmente”, mas “realmente”; to apologize no & “apologizar”, mas “desculpar-se”; casualty FRelacioundovem meu lvro Gap nad fons, la lia dios igs, oni demas madi: a vali fams, ed, Rio de Joneeo, Euucoa, 1975 Ver nota 4 46 pode ser “casualidade”, mas no plural casualties & “baixas”, “perdas”; dag days nio so “dias de cachorro”, mas “canicu- 1a’; idiom pode ser “idioma”, mas também “idiomatismo”; luxury nfo & “luxtiria”, mas “luxo”; physician niio é “fisico”, mas “médico” ete. etc. Particularmente perigosos si 0s falsos amigos do tra~ dutor de espanhol. A interlegibilidade do castelhano para lus6fonos, isto 6, a excessiva proximidade das duas linguas, nio iro ilude © tradutor a respeito da possivel facilidade da sua tarefa; daf encontrarmos indevidamente traduzides cola por “cola” em vez de “cauda’’ crianza por “crianga” ‘em ver de “educagio”; direcidn por “diregio” em vez de “enderego”; nudo por “nu” em vez de “né”; oso por “sso” ‘em vez de “urso”; polvo por “polvo” em vez de “ps”; rato pelo homénimo “rato” em vez de “momento”; zurdo por “surdo” em ver de “canhoto”” ‘Outra colegio considerivel poderia ser feita com as pos- sibilidades de deslizes oferecidas pelo italiano. Lembremos, entre dezenas ou talvez centenas, assente, que nao é “assen~ 10”, mas “ausente”; bollore, que nio & “bolor”, mas “fervor”; aldo, que nio & “caldo", mas “quente”; casamento, que nio “casamento”, mas “casario”; fiotta, que nao é “frota”, mas “multidio”; lebbra, que nfo é “lebre”, mas “lepra”; paio, que no “paio", mas “par”; seta, que nio é “seta”, mas “seda”, ‘Uma relagio de falsos amigos franceses, espanhdis e italianos encontra-se no livro de Brenno Silveira, A arte de rraduzir? 9 Muito menor a probabilidade de o tradutor de outras linguas, nio aparentadas com a nossa, encontrar desses falsos cognatos: poucos haverd entre o alemio ¢ o portugués, 01 © portuguese 0 russo. Mas a grande maioria dos textos que se traduzem pertence precisamente aos idiomas em qué a possibilidade da confusio é maior. Nese campo, 0 poliglotismo pode constituir uma arma- dilha. Gift pode ser palavra tanto alema como inglesa (salvo {que no primeiro caso principia sempre com maitiscula), mas significa “veneno” ou “didiva”, Os homénimos existentes dentro de cada lingua também, representam outras tantas ciladas. As estilisticas distinguem entre homénimos etimaldgicos, palavras de origem diferente, 3s quais 0 acaso das mutagdes fonéticas acabou conferindo proniincia e, frequentemente, sptafia idénticas ou semethantes; assim em portugués escato- legia (= coprotogia) e escatologia magio do tempo e da historia), derivados respectivamente doutrina sobre a consu- das palavras gregas skor, skatos, “excremento”, € eschatas, “Gltimo”, ou, em alemio kosten, “custar”, € kosten, “provar” (que provém respectivamente do latim constare e gustare), € homénimos semdnticos como “impressio” (correspondente a0 alemio Eindruck) e “impressio" (alemio Druck). Estes ‘iltimos, na verdade, sio apenas casos de polissemia, mas em que 0 individuo falante jé no sente as duas acepgdes de uma s6 palavra. A distin¢io importa pouco ao tradutor para quem uns e outros significam perigo, enquanto para os 8 : i i | 7 | : i i i nativos a quem 0 contexto permite evitar confusdes todos eles fornecem um estoque inesgotavel de trocadilhos. Abramos um paréntese para dizer duas palavras sobre a tradugio do trocadilho, Em outro de meus trabalhos* mos trei que esse jogo do expirito tantas vezes julgado inferior desempenha na literatura papel muito mais importante do gue se pensa € aparece tanto em Platio como nos trigicos ‘gregos, nas Escrituras como nos clissicos latinos, nos mo salistas e flésofos mais severos. Certas linguas tém para ele mais pendor que outras, as mais férveis em jogos de palavras so as que tém maior ntimero de monossilabos, entre elas o francés ¢ 0 inglés e, talve2, o chinés. Segundo Maupassa © chiste, © trocadilho & um troco muito mitido do es- pirito. E, no entanto, é ainda um lado, um eariter bem particular de nossa inteligéncia nacional. £ um de seus encantos mais vivos. Forma aalegria cética da nossa vida parisiense, a amivel displicéncia de nossos costumes. £ ‘uma parte de nossa amenidade...Palaveas, palavras, nada mais que palavras, irdnicas ou heroicas, divertidas ou brejeiras, sobrenadam na superficie da nossa historia e deixam a impressio de que ela & comparivel a uma cole- nea de calembures. Seri necessirio advertir que, nessa citagdo, “palavra”™ tanto indica frase, como vocibulo? Na verdade, todo trecho Daas Ped, Riode odo tocailbo",in Came spend o pragds,eous avenue, neta, Avenova, 1975, faceto em que a graga é produzida por um jogo de sentidos intraduzivel por exceléncia, Lembremo-nos da deliciosa cena do Candido de Voltaire, em que o rei de Eldorado diverte seus héspedes com chistes. “Cacambo expliguait les bons mots du roi di Candide, et, quoique traduits, ils paraissa toujours des bons mots, De tout ce qui étonnait Candide ce n'tait pas ce qui Péonna le moins.” ‘Muitas vezes o tradutor literirio se vé em presenga de um desses temiveis testes. E raro um trocadilho traduzido permanecer trocadilho na outra lingua, como a famosa frase de Ludwig Feuerbach, Der Mensch ist, was er isst, que eu verteria em latim por Homo est quod est; noutra lingua qual quer, porém, perde a graga: “O homem é 0 que ele come.” Para realizar semelhantes proezas € preciso, naturalmen= te, que um espirito zombeteiro se encontre num momento feli2 de inspiragio, como aquele, citado por Pierre Dani~ nos, que dew A frase francesa La Révolution que j'acepte est celle sans guillements et sans guillotines esta forma inglesa: The Revolution jaccept has a capital, but no capital punishment, ow aquele outro, lembrado por um especialista de semintica, que afrancesou Is life worth living? — It depends om the liver, por La vie vaut-elle la peine d’étre vécue? — Question de foie. Quanto 4 sobrevivéncia do calemburgo em mais de uma versio, as possibilidades sio minimas; um desses casos rarissimos é esta sentenga de Epicteto, Andi kal apéha, traduzido por Aulo Gélio como Sustine et abstine, € que mais tarde um helenista alemio soube transpor assim: Leide und meide 80 Em geral, porém, 0 trocaditho é intraduzivel por defi- nigGo ou, noutras palavras, perde todo o chiste na tradugo. © adigio esopiano Pathémata— mathémata vira este truis~ mo: “Os sofrimentos sio ensinamentos”s Last not least 06 € vilido em inglés; e o verso de Schiller Bin Schlachten war's, nicht eine Schlacht zu nennen (“Era uma carnificina, nio se podia chamar batalha”) humilha o infeliz do tradutor, que, por mais que dé tratos 3 bola, no encontra solugo adequada. Explicé-1o entre parénteses ou escamoteé-lo, expliciti-lo em notas de pé de pigina ou simplificio sio recursos igual mente pobres. Quando, porém, 0 vicio de fazer trocadi~ Ihos é caracteristico de uma personagem, em vez de tentar traduzir-lhe os chistes, o tradutor pode tentar compensi-los, colocando jogos de palavras eventualmente noutros trechos, ‘onde © espirito da sua propria lingua o ajudar.’ E este um dos casos em que ele pode aproveitar a imaginago, de que todo profissional tem de possuir uma boa dose. Eis alguns exemplos de homénimos em franc ("fogo” e “falecido”); fi (*f8"), foie (“figado”), fois ("vee"); mode (“modo" ¢ “moda"); propre (“préprio” e “limpo”), Em inglés: fall (“queda” e “outono”); left (“esquerdo” e participio passado do verbo 10 eave, “deixado”); light (“leve” “luz”; mean (“médio" e “miseravel”, e, além disso, presen= te do verbo 0 mean, “entender”); still (“quieto” e “ainda”). ‘Weems aunt, p 229

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