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Psa< gl UNIVERSIDADE DE SAO PAULO FACULDADE DE ECONOMIA, ADMINISTRACAO E CONTABILIDADE DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DEDALUS - Acervo - FEA 20600002362 DO CONCEITO DE DINHEIRO E DO DINHEIRO COMO ConcEITo LEDA MARIA PAULANI Orientador: Prof. Dr. Eleutério Fernando da Silva Prado Tese apresentada a Faculdade de Economia, Administragao e Contabilidade da Universidade de Sao Paulo para obtencdo do titulo de Doutor em economia SAO PAULO 1991 Qos —T7eS 2 RESUMO dinheiro €, sem diivida, um dos objetos mais caracteristicos daquilo que se costuma denominar ciéncia econdmica. Defini-lo, explicd-lo e entendé-lo constitui uma des principais tarefas deste ramo do conhecimento. Este trabalho tem entio dois objetivos. O primeiro é mostrar que 0 dinheiro é um objeto contraditério, obscuro, Em fungio disso, a cigncia convencional, ancorada na I6gica formal ou axiomética, se debate com muitas dificuldades para cumprir essa tarefa, qual seja, conceituar o dinheiro. Se utilizado com o rigor analitico necessério, esse discurso nao encontra lugar para ele: € 0 caso da Teoria do Equilibrio Geral. Quando, por outro lado, insiste em falar dele, inevitavelmente se contradiz, e esta marca pouco lisonjeira acompanha quase toda a ciéncia, desde o paradigma cléssico até a concepgdo keynesiana. Desta forma, parece legitimo tentar dizer o dinheiro tomando por base outra I6gica. Trata-se da I6gica dialética, de origem hegeliana, que, trabalhando a contradicio, 20 invés de fugir dela, pareve por isso mais adequada que a l6gica formal para dizer um objeto que € contraditério. Evidentemente tal legitimidade depende também da demonstracio de uma certa relagdo entre Idgica e ovitologia, ov seja, da demonstragio rigorosa, em termos filos6ficos, de tal adequagio. O objetivo nimero dois deste trabalho é, portanto, o de realizar essa empreitada: depois de demonstrada a legitimidade de tal operacdo, tanto em termos pragméticos quanto em termos metodolégicos, trata-se, afinal, de desenvolvé-ia; do conceito de dinheiro, ou seja, da contradigao do discurso convencional, passamos entio para a compreensio do dinheiro ‘como um objeto que tem a dimensio do Conceito, no sentido hegeliano do termo, Nesse momeiito, 0 ponto de partida, a inspiracdo, encontra-se nas especulagées por Marx desenvolvidas a esse respeito e de alguma forma condensadas no capftulo 3 do livro I de O Capital. Tomando por base essas consideracdes, as categorias da I6gica hegeliana entram finalmente em cena para a construgéo de um discurso adequado a0 dinheiro, Esse referencial te6rico, novo em certa medida, permite algumas exploragées de cardter tentativo acerca do dinheiro no capitalismo de hoje. No mais, a tese traz trés apéndices. O primeiro (na parte I) refere-se a0 debate em tomo do capitulo 17 de A Teoria Geral de Keynes; 0 segundo (na parte M1) faz uma apreciagdo critica da obra de S. Brunhoff sobre o dinheiro em Mark, e 0 tereeiro (também na parte II) analisa os discursos sobre 0 dinheiro que constroem G. Simmel, ¢ Aglietta & Orléan, vi] ABSTRACT Money is undoubtedly the most typical subject of Economics. Defining, explaining and understanding it constitute one of the most important tasks of this branch of knowledge. This work has two purposes. First, we intend to demonstrate that money is a contradictory thing, ie, that it is obscure. Thereby, the conventional science, based on formal or axiomatic logic, faces many difficulties to accomplish the ‘mentioned task: it is not easy to define money, to find its precise notion, If used with the necessary analytical rigour, this scientific discourse doesn't find a place for money: wwe are speaking here of the General Equilibrium Theory; on the other hand, if it insists to speak of money, contradictions inevitably emerge, and this discomfort comes along with the science, from the neoclassical paradigm through the keynesian conception. Consequently, it looks reasonable to intend to express money taking another Kind of logic. The dialetic logic, in its hegelian form, deals with contradiction instead of scaping from it, and hence appears more adequate to a contradictory thing. It goes without saying that the legitimacy of this operation depends on the exhibition of a certain relation between logic and ontology, i e, it depends on the rigourous philosophic demonstration of that adequacy. The second purpose of this work is, therefore, to accomplish the taskwork: subsequent to the demontration of the legitimacy of the operation in pragmatical in so far as in methodological terms, we need to develop it. From the notion of money from the contradiction of thé conventional discourse __ we go to the apprehension of money as a thing that has the dimension of the Notion, in the hegelian sense. The starting-point __ the inspiration __ is here the speculations from Marx on this matter which are summaried in chapter 3 of the first book of The Capital. The figures of the hegelian dialetic enter thereafter the stage, to construct an adequate discourse about money. This new theoretical framework allow us some tentative explorations about money in contemporaneous capitalism, Finally, this work has three appendices. The first one (in part one) deais with the debate on chapter 17 of Keynes's General Theory; the second one’ (in part two) makes a critical appreciation of the work of S, Brunhoff on money in Marx, and the third analyses the discourses about money of G. Simmel and of Aglietta & Orléan, ) ) : ee SUMARIO PARTE I - SOBRE O METODO: EM DEFESA DA DIALETICA... 1 INTRODUCAO CAP. 1- ARGUMENTO PRAGMATICO GERAL.. 1.1. As Dificuldades do Positivismo.... » Problemas nao resolvidos para a obtenco de uma "ciéncia ndo metafisica* . 1.1.2. A complicagao trazida pelo fato social.. 1.2. As Altemativas nos Marcos do Saber Empirico Analitico ... 1.2.1, Weber, o Verstehen ¢ 0s tipos ideais 1.2.2. Popper e a "objetividade inter-subjetiva* 1.3, _ As Limitacdes do Historicismo... 1.4. O Lugar da Dialética .. CAP. 2-. ARGUMENTO PRAGMATICO ESPECIFICO: AS PECULIARIDADES DE UMA CIENCIA CHAMADA ECONOMIA E DE UM OBJETO CHAMADO DINHEIRO... o 2.1. A Economia Nasce como Ciéncia.. 2.2. Da Economia Politica 4 Economia 2.3. A Apreensio do Fendmeno Econémico.. 2.4. A Racionalidade “do que € 0 caso* 2.5. O Conceito de Dinheiro... ‘2.5.1. Dinheiro, objeto "do que nio € 0 caso": o equilibrio geral. 2.5.2. O dinheiro € 0 caso" e "no € 0 caso": a economia cléssica e neocldssica .. 74 2.5.3. O dinheiro "€ 0 caso* e por isso & preciso dizé-lo: a economia de Keynes... 83 CAP. 3- ARGUMENTO RACIONAL: Q DINHEIRO "EO CASO" E POR ISSO E PRECISO DIZE-LO SEM O DIZER.. 3.1." Por Que o Dinheiro € Obscuro... 3.2. A Dialética enquanto "Discurso da Sombra”. 3.3. 0 Problema da Adequagao ¢ 0 Método APENDICE A PARTE I - A Controvérsia sobre o Capitulo 17 a Teoria Geral de Keynes .... Ms. + Tobin: a taxa de juros da moeda é exogenamente fixada. 118 121 124 - Kaldor: o dinheiro nao é um ativo como outro qualquer = Joan Robinson: Keynes fez a pergunta errada .. - O pbs-keynesianismo recente ¢ a questio da incerteza, + Acontribui¢go de Dillard. PARTE II - 0 DINHEIRO COMO CONCEITO.. INTRODUCAO ... CAP. 4- O DINHEIRO EM MARX 4.1, Enquanto Meio de Troca: Resolugdo de uma Contradigao. 4.2. Enquanto Meio de Pagamento: Criagdo de uma Contradigao. 4.3. Enquanto Predicado Légico do Capital: para dizé-lo & preciso ignorar 0 Principio do Terceiro Excluido "4.4. — Enquanto Capital Financeiro: Predicado cujo Devir é Sujeito. CAP. 5- A DIALETICA DO DINHEIRO .. 5.1. Na Imediatidade de seu Ser: Mercadoria Geral. 5.2. Na sua Esséncia: Forma Descarnada... 5.3. Na Realidade Efetiva: Fendmeno que nio se pie por si. 5.4. O Dinheiro, esse Obscuro. CAP. 6- O DINHEIRO NO CAPITALISMO DE HOBIE .. 6.1, Antecedentes: o Dinheiro sob o Padrio-Ouro.. 6.2. Depois da Grande Crise: 0 Dinheiro sob 0 Padrao-Délar.. 6.3. _O Dinheiro depois da Crise do Sistema Financeiro Internacional. APENDICE 1 A PARTE I- Os Equivocos da Andlise de Brunhoff sobre 0 Dinheiro em Marx. APENDICE 2 A PARTE Il - Uma Nota sobre a Filosofia do Dinheiro de Georg Simmel e sobre A Violéncia da Moeda de Michel Aglietta & Andre Orléan .. BIBLIOGRAFIA .. A} \ PARTE I - SOBRE O METODO: EM DEFESA DA DIALETICA INTRODUGAO Quem olha a estrutura desta tese seguramente se pergunta por que razio a discussdo metodolégica __ que deveria ser apenas o elucidar de pressupostos inerente a qualquer trabalho que se reivindique cientifico __ nela ocupa um espaco tio Significativo. As respostas no sio dificeis de adivinhar. Em primeiro lugar, como _ sabem todos os que militam nesta nossa conturbada ciéncfa econémica, é, esta iltima, uma ciéncia "positiva" (precisio maior sobre o termo em aspas vird ao longo dos capftulos desta primeira parte, em especial no capitulo 2), de modo que a tentativa, ainda que-tentativa apenas.seja, de um exercicio tedrico ancorado na légica dialética Parece ousadia suficiente para justificar quantas péginas forem necessérias de argumentagio, Em segundo lugar, é possivel dizer, parafraseando Fausto), que a dialética envelheceu, ou pior, foi condenada (porque brindada por uma “compreensio* que Tecorrentemente a vulgariza e a torna sindnimo de confusdo). sem chegar a ter sido conhecida € que trata-se, entdo, de resgaté-la enquanto caminho vidvel para pensar determinados objetos, enquanto discurso adequado, portanto(); a tarefa é, pois, bastarite complexa (principalmente se se leva em conta o "mundo dos economistas", aos quais se destina afinal este trabalho), ¢ exige enquanto tal um esforgo considerével@), (1) Na introdugio do Tomo I de seu Marz, Légica Politica (1983), Fausto diz que o marxismo ‘avelheceu mas 20 mesmo tempo é desconhecido, afirmasio que, diga-se de passagem, niio é de modo algum estranba & discussio da incompreensio da dialética, sendo que é dela parte constinitiva. Reproduzo sits palavras: "A anlise dos limites do marxismo é assim, 20 mesmo tempo, investigasio dos seus ‘fundamentos'. O que significa: 0 marxismo envelheceu mas, so mesmo tempo, ele é desconhecido. E ele E desconhecido (...) porque a dialética & desconhecida: ela se perdeu nas dialéicas vulgares antes de softer 0 contrachoque da ‘crise do markismo’* (pp. 17/18). @A questio da adequagio ¢ um problema intrincado e sobre ele nos explicaremos melhor frente, notadameate no capitulo 3. @) Cumpre ressaltar que ndo estou, de forma nenhuma, sozinha nesta empreitada (de resgate da ialtica). © esforgo em questio ¢ minimizado pelo trabalho de alguns fildsofos brasileiros, em Particular .o de Fausto (1983, 1987 e outros); cuja influéncia, als, é visivel ao longo de quase todo o estuda. No imbito especifico dos economistas destaca-se 0 trabalho de Prado (1989, 1990), que, « Finalmente, a conjuntura histérica atual parece exibir, no nivel prético, uma espécie de “vitdria" das premissas implicitas na visio de mundo que impregha a ciéncia Positiva; assim, ainda que, no nivel tedrico, a situacdo seja muito mais complicada, a preméncia nao casual do pragmatismo obriga uma discussio, 0 mais possfvel completa, Para que a defesa em questéo encontre o espago pretendido sem parecer algo esotérico (ou pior, exotérico)(4), A conjungao de todos esses elementos fez com que este estudo, cujo objetivo é tedrico, tivesse que enfrentar um longo calvario metodolégico antes de se efetivar. De toda forma, como esses domfnios néo séo estanques nem independentes, sendo muito a0 contrério, 0 martirio infligido aos economistas (para quem tais discussdes so, regra geral, bastante penosas) ndo € tio insuportével assim, visto que parte significativa da defesa em tela se faz por meio da critica a diversas escolas do pensamento econdmico. E isto nos leva a uma outra observagio. Trata-se de um esclarecimento, que se afigura necessério, quanto a natureza dos argumentos arrolados em defesa da dialética. So eles de ordem distinta: 0 do primeiro e segundo capitulos tem um caréter ragmético, ao passo que o do tetceiro € “racional". Isto merece uma explicagdo mais detalhada e, para tanto, socorro-me de uma analogia, que me parece ilustrativa, com a questio, ainda por resolver‘), da justificago da indugéo: Em artigo bastante despeito de advogar uma postura habermasiana, remete suas consideragées 3 dialética, sempre que ) Apesar de que o assunto seré melhor discutido no item 1.4 desta primeira parte, cabe antecipar um ceselrecimento quanto & distngio aqui estabelecida care pritico e tedrico. A “vitérit", no nivel prético, des premissas implicitas a visio de mundo que imprgna a ciéacia positiva diz respeito fundameatalmente 3s transformagées econdmicas © politicas em curso no Brasil e no mundo. Tis ‘ransformagées parecem ratificar uma espécie de tirania da razio. proveniente de uma supostatirania.do objeto que faz com que, infelizmente, & “prisio de ferro” de Weber esteja mais préxima de n6s do que +. gostarfamos. Mas a situacdo € muito mais complicada no nivel tedrico porque, se em fungio mesmo dessa Pragmatizacio ¢ “tccnizasio” crescentes, a visbilidade do projeto de modemnidade que nasceu com 0 Tuminismo __ confianca na razio como fator por exceléacia do progresso huinano __ tem sido Gurameate questionads, temgerado umbéim, em contraparida, vigorosas reacdes de seus adeptos, as ‘quais passam necessariamente pela rediscussio do conceito de razio inerente a cigncia positiva. (8) Segundo Newton da Costa (1980), a concepcio dialética da Idgica, em virtude de seu fetio relativista no dogmitico, traz consigo a solucio desse problema clissico: tratase de demonstrar que a indugio informal __que néo se deixa catalogar por nenhum sistema Iégico __ s6 se justifica pragmaticameate, ou sj, os princpios assim derivados justificam-se por si mesmos porque "sem eles nio hi racionalidade* (©. 221). Mas observa o autor logo a seguir que “a indugéo informal nio consiste em mecanismo puro simples de generalizacio; assemelba-se, isto sim, a uma forma de criagio, de inspiragio, sublinhando se sugestivo, Black (1971) resume as tentativas de tal justficagdo de acordo com o tipo de argumento levantado. A justificativa de cardter pragmético advoga a legitimidade dos procedimentos indutivos (a despeito de quanta raz4o possa ter Hume em’ seu ceticismo), visto ser imprescindivel ao homem antecipar um conhecimento que extravase as observacdes, € visto que nada h4 a perder em assim proceder. O argumento desenvolvido no primeiro capitulo tem esta natureza: dados os problemas encontrados pelo positivismo (mesmo em sua versio mais madura e mais dificil de questionar) para fornecer uma fundamentago epistemol6gica e metodolégica robusta da fungdo, da natureza e da estrutura da ciéncia, dada a fragilidade de sua argumentagao em prol da possibilidade de uma ciéncia social objetiva e isenta, dadas, por fim, as limitagdes de outras posturas, parcial ou totalmente alternativas ao positivismo, parece haver algum espago, ¢ espaco legitimo, portanto, para tentar um conhecimento outro. Este argumento pragmético geral se particulariza no segundo capitulo e pode ser assim resumido: se a ciéncia econémica, tal como foi positivamente posta pelo capitalismo, encontrou e encontra dificuldades tio patentes para lidar com seu objeto mais caracteristico __ 0 dinheiro __ entio hé indiscutfvel legitimidade em buscar um meio de capturé-lo que fuja dos paradigmas até entio utilizados; mas fazer isso implica, de pronto, negar a concepgio de ciéncia que os embasa, negar a Idgica que os estrutura, 0 que nos remete a0 argumento desenvolvido no terceiro capitulo. _ Tal argumento deve ser considerado "racional", mas néo apenas na medida em {que se distingue’ do tipo de argumento deseavolvido nos dois capftulos anteriores. Voltando & analogia com 0 problema da justificacio da indugio tal como se encontra sumariado no artigo de Black, cabe lembrar que: ali so "racionais” as tentativas de justifcagio da indugdo que, via fortalecimento das premissas ou enfraquecimento das cconclusdes, buscam transformé-la numa explicagdo de carter dedutivo, vale dizer, numa explicagdo passivel de ser exposta por meio do discurso “rigoroso ¢ claro” do {deal cartesiano, banindo assim de cena 0 incémodo salto indutivo. ‘a proximidade existente entre cigneia e arte” (p. 222, grifo meu). Ao que parece, pois, nfo se trata aqui Ga inducio que tanto angustiou Hume, mas do processo mesmo de riagio tebrica (que cra problemas de ‘utra espécie & concepcio positvista de cizncia como se verd no item 1.1.1.), 0 que justificaafirmar que © problema ainda esti por resolver.

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