Você está na página 1de 92
ee) A imagem sobrevivente Historia da arteetempo dos fantasmas segundo Aby ” 5 Oe ll Ill 1756332 Aimagem sobrevivente © Les Editions de Minuit, 2002 itulo original: ['Image survisunte. Histoire de Vart et temps des fantémes selon Aby Warburg Discitos adquitidos para o Brasil por Contraponto Editora Leda. Vedada, nos termos da lei, a reproducio total ou parcial deste livro, por quaisquer meias, sem autorizagio da Fditora, ‘Contraponto Editora Ltda, Avenida Franklin Roosevelt 23 / 1405 Centro Rio de Janeiro, RJ CEP 20021 Telefax: (21) 2544-0206 / 2215-6148 Site: wwwecontrapontoeditora.com-br pmtato@ ontrapontoeditora.com.br Emails Museu de Arte do Rio (MAR) Praga Maud Centro — Rio de Jancire, RJ - CFP 20081240 “Tela (21) 2203-1235 Site: wwuernaseudeartedorio.org.br folmuscudeartedorio.org.be Emails Coordenagio editorial ¢ preparacio de originais: Cesar Benjamin Revisio tipogrifica: Gilson Baptista Soares Capa e projeto grafico: Aline Paiva e Andréia Resende Soe nae: Recs bees Colegio dirigida por Tadeu Capistrano P edigdos abril de 2013 Tiragem: 2.000 exemplares CID ARASTTCATAT OGAGKO.NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOSEDITORFS DE LIVROS, Rf DS53i__ Didi Huberman, Georges 1253 A imagem sobrevivente: histria da arte tempo dos fantasmas se gundo Aby Warburg / Georges Didi Lluberman j tradui0 Vera Ribeiro Rio de Fancizo = Contespemto, 1013 $06 pv; 28,7em —(AeteFéssil;§) “Tradugio de: Vimage survivante: histoire de Tar et cemps des fan tomes selon Aby Warburg, Tel bibliograti ISBN 978 85 7866-079-6 1, Warbusg, Abs, 1866 1929. 2 ete efilosoia. Tima, IL. Séxie. sis op: 708 CbU7.01 Sumario: L.A imagem-fantasma: sobrevivéncia das formas ¢ impurezas do tempo Aaarte morre, a arte renasce: a histéria recomega (de Vasari a Winckelmann) Warburg, nosso fantasma As formas sobsevivem: a historia se abre Nuchleben, ou a antropologia do temps: Warburg com Tylor Destinos do evalucionismo, heterocronias Renascimento ¢ impureza do tempo: Warburg com Burckhardt Lebensfibige Reste: a sobreviveneia anaceoniza a histéria O exoreismo da Nachleber: Gombrich e Panofsky Geschichtliches Leben: formas, forgas ¢ inconsciente do tempo Noras IL. A imagem-péthos: linhas de fratura e férmulas de intensidade Sismografia dos tempos moventes Zeitlin A tragédia da cultura: Warburg com Nictzsche +: @ historiador beira os abismos Plasticidade do devir ¢ fraturas na hist6ria Dynamogramm, ow o ciclo dos contratempos Campo e veiculo dos movimentos sobreviventes: a Pathosformel ‘Em busca das formulas primitivas Gestos memorativos, deslocados, seversivos: Warburg, com Darwin “Coreogratia das intensidades: a ninfa, 0 desejo, 0 debare Rors A imagem-sintoma: fosscis em movimento e montagens de meméria ponto de vista do sintoma: Warburg em direcio a Freud sktit des Monstrioms, ou a comtorcio como modelo as imagens sofrem de reminiscéncias 105, Fepeticées, recalcamentos ¢ posterioridades J, ou a danca dos tempos cnterrados na casa de Binswanger: construgdes da loucura 105 115, 127 137 149 167 17 193 213 230 241 243 253 27 27 293 315 Nachfidblung, ov o conhecimento por incorporagio- Da empatia ao simbolo: Visches, Carlyle, Vignoli Forgas sintométicas ¢ formas simbélicas: Warburg com Cassicer? A montagem Mnemosyne: quadros, foguetes, detalhes, intervalos Epilogo do pescador de pérolas Notas Nota bibliogritica Indice bibliografico Lista de ilustragdes 337 355 369) 383 423 430 “Fall fathom: five thy father lies, Of his bones are coral made: Those are pearls that were his eyes, Nothing of hint that doth fade, But doth suffer a sea-change Into something rich and strange...” “Tee pai esté a cinco bragas. Dos ossos masceu coral, dos olhos, pérolas bagas. Tado nele é perenals mas em algo peregrino transforma-o 9 mar de continuo.” W, Shakespeare, A tempestade, Ato 1, Cena 2 * (trad. Carlos Alberto Nunes} “Vor Einfluss der Antike. Diese Geschichte is mixchenbaft to vertellen [sic] Gespenstergeschichte ffir] ganz “Da influéncia do Antigo. Esta hist6ria ¢ fabulosa para contar, Historia de fantasmas para gente grande,” A. Warburg, Mnemosyne. Grundbegriffe 1 (2 de julho de 1929), p. 3. |. Aimagem-fantasma: sobrevivéncia das formas e@impurezas do tempo Sihi/URG Aarte morre, a arte renasce: a histéria recomeca (de Vasari a Winckelmann) Podemos perguntar-nos se a hist6ria da arte ~ a ordem do discurso assim de- nominado, a Kunstgeschichte ~ realmente “nasceu” um dia. Digamos, pelo menos, que cla ruenea nasces sma vex 5d, em uma ou até duas ovasies que marcassem “datas de nascimento” ou pontos identificdveis no continuum cronolégico. Por trés do ano 77 e da epistola dedicatoria da Historia natural de Plinio, o Velho jé se perfila, como sabemos, toda uma tradigao historiogra- fica grega.t Por tras do ano 1550 ¢ da dedicatoria das Vidas de Vasari perfila- -se também, e sedimenta-sc, toda uma tradigao de crénicas ou clogios compos- tos para os uominiillustri de cidades como Florenga.” Arriscamos isto: 0 discurso histérico ndo “nasce” nunea. Sempre recomega. Constatamos isto: a historia da arte—a disciplina assim denominada ~ recome- ¢a vex apds otra. Toda vez, a0 que parece, que seu proprio objeto € vivenciado como morto... ¢ como renascendo, Foi exatamente 0 que s¢ passou no século XVI, quando Vasari baseou toda a sua empreitada histrica ¢ estética na cons tatagio de uma morte da arte antiga: voracita del tempo, escreveu ele no prot- mio de seu livro, antes de apontar a Idade Média como a grande culpada por esse processo de esquecimento. Mas, como sabemos, essa morte teria sido “salva”, milagrosamente redimida ou resgatada por um longo movimento de Tinasciti que, grosso modo, comegou com Giotto e culminou com Michelange- lo, reconhecido como o grande genio desse processo de rememoragio ou res surrei¢do.? A partir dai —a partir desse renascimento, ele proprio surgido de um Tuto - parece ter podido existir algo a que se chama “hist6ria da arte” (fig. 1). Dois séculos depois, tudo recomegou (com algumas diferengas substanciais, é claro): num contexto que jf nfo era o do Renascimento “humanista”, mas 0 da restauragio “neoclissica”, Winckelmann inventou a hist6via da arte (fig. 2). Entenda-se: a historia da arte no sentido moderno da palavea “hist6ria”. His- t6ria da arte como proveniente dessa cra das Luzes e, logo depois, da era dos grandes sistemas — em primeiro lugar o hegelianismo ~ e das cigncias “positi- vas” ¢m que Michel Foucault viu em ago dois prineipios epistémicos con- comitantes, 0 da analogia © 0 da stcessio: os fendmenos sistematicamente apreendidos conforme suas homologias, e estas, por conseguinte, interpretadas como as “formas depositadas ¢ fixas de uma sucesso que avanga de analogia Almagemzobrevivente 13 J. Giorgio Vasari, prancha do frontispicio de Le vite de” pie eccellenti piteor, cultori e arbitemori, Flotenca, 1568. Xilogravura (detalbe} em analogia”.* Winckelmann ~ que, infelizmente, Foucault ndo comenta = re~ presentaria, no campo da cultura ¢ da beleza, a virada epistemolégica de um pensamento sobre a arte para a era ~ auténtica, ja “cientifica” — da histdria A historia de que se trata j& era “moderna”, jé era “cientifica”, no sentido de ultrapassar a simples crdmiva de tipo pliniano ou vasariano. Visava a algo mais fundamental, que Quatremére de Quincy viria a descrever bem, em seu clogio a Winckelmann, como uma andlise dos tempos: © douto Winckelmann foi o primeiro a trazer verdadeiro espirito de ob servacao para este estude; foi © primeiro a se permitir decompor a Antigui dade, analisar os tempos, 0s povos, as escolas, 0s estilos, as nuances de es- tilo; foi o primeico a desbravar 03 caminhos e fixar os marcos nessa terra incégnita; foi o primeiro que, ao classificar as épocas, abordou a historia dos monumentos, comparou os monumentos entre sie descobriu caracteris- ticas seguras, principios de critica e um método que, retificando uma profu- sio de exros, preparou a descoberta de uma profusio de verdades. Regres- 14 Georges Didi Huberman 2, Johann J. Winckelmaaa, prancha do fromtispicio de Geschichte der Kuonst des Alterthams Il, Dtesden, 1764. sando enfim da analise para a sintese, conseguin formar um corpo com 0 que nao passava de um amontoado de destrogos.” A imagem € significativa: enquante os “amontoados de destrogos” conti- nuavam a se espalhar pelos solos ¢ subsolos da Itilia e da Grécia, Winckel- mann, em 1764, publicou um livro ~sua grande Historia da arte entre os ar tigos — que, segundo a expresso de Quatremére, “formou um corpo” com esse material disperso. Um corpo: uma reuniao orginica de objetos cuja ana tomia e fisiologia seriam como que a reuniio dos estilos artisticos ¢ sua lei biolégica de funcionamento, ou seja, de evolucio. E também um corpo: um corpus de conhecimentos, um organon de principios. Ou até um “corpo de doutrina”. Winekelmann teria inventado a hist6ria da arte, comegando por construir, para além da simples curfosidade dos antiquirios, algo como um método histérico.* Desse ponto em diante, o historiador da arte ja nao se con- tentou em colecionar e admirar seus objetos: como escreveu Quatremére, ele analisou e decompés, exerceu seu espirito de observacio ¢ de critica, classi cou, aproximou e comparou, “volton da andlise para a sintese”, a fim de “descobrir as caracteristicas seguras” que dariam a qualquer analogia sua lei de sucessdo. Foi assim que a historia da arte se constituiu como “corpo”, como saber metédico e como uma verdadeira “andlise dos tempos”. Almagem sobrevivert, 15 A maioria dos comentaristas mostrou-se sensivel ao aspecto metddico ou doutrinal dessa constituicdo. Winckelmann fundou uma historia da arte me- nos pelo que descobriu do que pelo que construiu. F insuficiente fazer com que se sucedam 0 Winckelmann “critico estético” das Reflexdes sobre a imitacao das obras gregas ¢ o Winckelmann “historiadar” da Histéria da arte entre os antigos:? nao ha duvida de que a “crise estética” do Tuminismo entrou em aco até na maneira como ele teve de recolher seu material arquealégico de base.” Nas exegeses dessa obra também sentimos certo incomodo teérico ligado a figura contraditéria que representaria, por um lado, o fundador de uma histé- ria e, por outro, o zelador de uma doxetrina estética. que essa contradicdo “é 56 aparente”." E preciso dizer que ela é constitutiva. Como bem mostrou Alex Pos, a Histria da arte entre os antigos fundou a perspectiva moderna do conhecimento sobre as artes visuais por meio de uma série de paradoxes em que, constantemente, a posigdo historia € tecida por postulados “eternos”, ou, inversamente, em que as concepgdes gerais so aba ladas por sua propria historicizacdo.™ Longe de deslegitimar a iniciativa his tOrica instaurada —nisso s6 um historiador positivista ou ingénuo acreditaria, imaginando uma hist6ria que extraisse seus pressupostos apenas de seus pro- prios objetas de estudo ~, essas contradigées fundaram-na, literalmente. Como compreender essa rama de paradoxos? Parece-me insuficiente ow até impossivel separar, em Winckelmann, “niveis de inteligibilidade” to dife- rentes que viessem a formas, no fim, uma grande polaridade contraditoria: de um lado, a doutrina estética, a norma intemporal; de outro, a pratica historica, a “anilise dos tempos”. Essa divisdo, tomada ao pé da letra, acabaria tornan- do incompreensivel a prépria expresso “historia da arte”. Pelo menos é sen- sivel 0 carater eminentemente problematic dessa expressiio: que concepeio da arte ela admite que se faga historia? E que concepcdo da histéria cla admi- te que apliquemos as obras de arte? Trata-se de um problema arduo, porque tudo se sustenta, porque uma tomada de posicao quanto a um tinico elemento incita a uma tomada de posigio quanto a todos os demais: ndo ha historia da arte sem uma filosofia da histéria — ainda que espontanea, impensada ~ ¢ sem uma escolha de madelos temporais; nao ha histéria da arte sem uma filosofia da arte ¢ sem uma escolha de modelos estéticos. Ha que se tentar identificar de gue modo, em Winckelmann, esses dois tipos de modelos trabalham juntos. © que talvez seja um modo de vir a compreender melhor a dedicatéria coloca- da no final do prélogo da Histéria da arte entre os antigos ~ “Esta hist6ria da arte, cua dedico a arte ¢ ao tempo” , cujo carater quase tautolégice preserva, aos olhos do leitor, uma espécie de mistério.1° ‘© convém dizer apenas 16 Georges Didt-Hubermen sae Os livros, muitas vezes, sio dedicados aos mortos. Inicialmente, Winckelmann dedicou sua Historia da arte & arte antiga, pois, a seu ver, fazia muito tempo que a arte antiga havia morrido. Do mesmo modo, dedicou seu livro ao tem- po, pois, a seu ver, o historiador era aquele que caminhava no tempo das coi- sas passadas, isto €, das coisas falecidas, Ora, 0 que acontece no outro extre- mo do livro, apés algumas centenas de paginas em que a arte antiga nos é rememorada, reconstruida ~ no sentido psiquico do termo narrativa? Uma espécie de fecho do eircuito depressive num sentimento de perda irreparavel ¢ numa suspeita terrivel: sera que isso cuja historia acaba de ser contada nao resulta, simplesmente, de uma ilusdo fantasiosa, pela qual esse sentimento ou a propria perda correm o risco de nos haver enganado? reposta numa Embora, ao refletir sobse a destruigo da arte, eu tenha sentido o mesmo cesprazer que experimentaria um homem que, ao escrever a hist6ria de seu pais, se vise obrigado a descrever ¢ panorama de sua ruina apés have la testemunhado, no pude me impedir de acompanhar o destino das obras da Antiguidade até onde minha vista pode aleangar. Assim, uma amante em prantos fica parada a beira mar e acompanha com os olhos a embarcagao -m sua ilusdo, ela cré que lhe arrebata o amante, sem esperanga de revel ainda discernir na vela que se afasta a imagem do objero amado |das Bild des Geliebten). ‘Tal como essa amante, jd no possuimos, por assim dizer, sendo a sombra do objeto de nossos anseios [Schattenriss (...) unserer Witnt- sche], mas a perda dele aumenta nossos desejos, ¢ contemplamos suas 6 pias [Kopien] com mais atencio do que fariamos com 08 originais [Urb der], se estivessem em nosso poder. Quanto a i880, muitas vezes ficamos na situagio dos que, convencidos da existéncia de fantasmas |Gespenster], imaginam ver alguma coisa onde néo ha nada [evo sichts ist]. Pagina atemorizante ~ sua beleza e sua poesia atemorizam —¢ radical. Sea historia da arte recomeca nessa pagina, ela se define como tendo por objeto um objeto decaido, desaparecido, enterrado. A arte antiga ~ a arte absolu- tamente bela ~ reluz, pois, em seu primeiro historiador modero por uma “auséncia categérica”." Os proprios gregos, ao menos na suposigio de Win ckelmann, nunca fizeram a histéria “viva” de sua arte. Essa historia comeca, revela sua primeira necessidade, no exato momento em que seu objeto é pen sado como objeto morro. Tal hist6ria serd vivida, portanto, como um trabalho do luto (Historia da arte entre os antigos, trabalho do lute da arte antiga) ¢ uma evocagao sem esperanca da coisa perdida. Insistimos desde logo neste onto: os fantasmas de que Winckelmann fala jamais sero “convocados” ou ‘Aimagem sobrevivente mesmo “invocados” como forgas — ainda atuantes. Nao serio 0 equivalente a “nada” existente on atual [nichts ist]. Representa apenas nossa ilusio de Optica, o tempo vivenciado de nosso luto. Sua existéncia (ainda que espectral), sua sobrevivéncia ou sua reaparigio simplesmente nao serio contempladas. Assim seria, pois, o historiador modemo: alguém que evoca o passado ¢ se entristece com sua perda definitiva. Nao acredita em fantasmas (em breve, no correr do século XIX, ja ndo acreditard sendio em “fatos”). E pessimista e usa com frequéncia a palavra Untergang, que significa declinio ou decadéncia, De fato, toda a sua iniciativa parece organizar-se segundo o esquema temporal de grandeza e decadéncia.” Com certeza, seria preciso ressituar a empreitada wi ckelmanniana no contexto de um “pessimismo historico” caracteristico do s¢- culo XVEIL" Qu destacar até que ponto as ideias de Winckelmann podem haver inspirado, no dominio estético, imimeros escritos nostilgicos sobre a “decadén. cia da arte” ou o “vandalismo revoluctonario” ligado as sucessivas destruigies de obras-primas da Antiguidade."* O modelo temporal grandeza e decadéncia revelou-se tio pregnante, que ainda informaria a definigdo da historia da arte tal como podemos encontri-la, por exemplo, na Real-Encyclopaidie de Brockhaus: “A historia da arte é a representacio da origem, de desenvolvimento, da grar deza ¢ da decadéncia das belas-artes.”"” Winckelmann nio dissera outta coisa: © objeto de uma histéria ponderada da arte ¢ remontar a sua origem [Ur- sprung], acompanhar seus progressos [Wuchsturn] © variagdes |Verdnde- rung| até sua perfeigao, e marear sua decadéncia [Untergang| ¢ queda [Fall] ” sua extingio (. se esquema temporal corresponde, se prestarmos atengio, a dois tipos de modelos teoricos. © primcito é um modelo natural c, mais particularmente, biolégico. Na frase de Winckelmana, a palavra Wachstu deve ser entendida como o “crescimento” vegetal ou animal, ¢ a palavra Veriinderung também assume a conotacao vitalista implicada em toda idei do, o que Winckelmann entende por histéria da arte nao est muito distante de uma historia natural: sabe-se que ele leu a de Plinio, € claro, mas também a de Buffon; assim como leu 0 tratado fisiolégico de J. G. Kriiger ¢ o manual de medicina de Allen, ¢ quis, um dia ~ é 0 que nos informa uma carta de dezem- bro de 1763 ~, passar dos “estudos sobre a Arte” para os “estudos sobre a Natureza”*! De tudo isso, Winckelmann deve ter tirado uma concepedo da ciéncia hist6rica que se articulava nao apenas com os problemas de classifica~ do tipicos da epistemologia do Tuminismo, mas também com um esquema temporal obviamente biomorfico, estendido entre progresso ¢ declinio, nasc de “mutagao". No fun- mento e decadéncia, vida e morte. 18 Georges Didl-Huberenan A outra face dessa configuragio teérica ¢ mais conhecida: € um modelo ideal ¢, mais particularmente, metafisico. Ele se entende muito hem, portanto, com a “auséncia” categérica de seu objeto: pensemos na célebre formulacdo de Solon ~o to ti en einai citado por Aristételes — que postula a morte prévia daquilo de que se quer enunciar a verdade, ou melhor, a “quididade” Nesse sentido, poderiamos dizer que o desaparecimento da arte amtiga funda o di curso histérico que fala de sua quididade ultima, Segundo Winckelmann, por- tanto, a histéria da arte nao se contenta em descrever, classificar e datar, Ali onde Quatremére de Quincy fala de um simples movimento de retorno “da anilise para a sintese” Winckelmann radicalizaria sua posicio, ele mesmo, do ponto de vista filasofico: a historia da arte [die Geschichte der Kunst] deve ser escrita a fim de que seja explicitada a esséncia da arte [das Wesen der Kunst]. A historia da arte entre os antigos, que ofereco ao publivo, ples narrativa cronoldgs vra “historia” [Geschichte] na significagao mais extensa que ha na lingua arega, sendo meu objetivo oferever o resumo de um sistema [Lebrgebaude| de arte. (...) A historia da arte [die Geschichte der Kunst], no sentido mais estrito, é a historia do destino que cla vivenciou em relacdo as diferentes circunstancias das épocas, principalmente entre os gregos ¢ os romanos. Neste livro, porém, cu me propus como objctivo sobretudo discutir a pro- pria essOncia da arte [das Wesen der Kunst] > uma sim ca das revolucées por que ela passou. Tomo a pala- Ao ler esse texto, compreende-se que a historicidade da arte, tal como con- templada por Winckelmann, nao emerja exatamente, como € comum supor-se, “de um compromisso que permitiria o historiador encontrar um campo no interior ou 4 margem da norma”. Falar dessa maneira é dar um erédito ex- cessivo ao lugar do discurso histérico como tal. F imaginar que uma historia 86 se torne normativa ao sair dela mesma, ao forgar sua neutralidade filos6 fica “natural”, ao trair, em suma, sua modéstia “natural”, diante de puros ¢ sim- ples fatos da observacio. E desconhecer que a norma é interna & propria nar- rativa, ou a mais simples descricio ou mengiio de um fendmeno que o histo- tiador considere digno de ser preseryado. A narrativa historica, nem ¢ preciso dizer, é sempre precedida, condicionada por uma norma teorica sobre a “es- sencia” de seu objeto. A historia da arte é condicionada, portanto, pela norma estética na qual se decidem os “bons objetos” de sua narrativa, esses “belos objetos” cuja reunido formard, no final, algo como uma esséncia da arte. Winckelmann tem razo, portanto, em reivindicar sua historia como um “sistema” [Lebrgebiude], no sentido filosotico ¢ doutrinal da palavra. Em graus diferentes, sua empreitada faz eco as de um Montesquieu, um Vico, um Aimagem sobrevivente 19 Gibbon ou um Condillac? fai perfeitamente reconhecida no século XVII: Herder escreveu que “Winckel- mann, com toda a certera, propés esse sistema |Lebrgebdude] grandioso, ver- dadeiro, eterno” como a empreitada quase platdnica de uma “andlise referente 20 geral, a esséncia da beleza”.** Como pensador da historicidade, Herder nao tardou a indagar: “Sera esse o objetivo da historia? O objetivo de uma historia da arte? Nao haverd outras formas possiveis de historia?” Mas cle reconheceu de bom grado a necessidade de uma histéria da arte que, além historicas de Plinio, Pausanias ou Fildstrato, tivesse fundamentacdo tebrica: 0 que ele chamou, acompanhando Winckelmana, de sistema hist6rica. Ou de “construcdo ideal” 2° Ideal no sentido de ter sido inicialmente con- cebida para se harmonizar com o principio metafisico por exceléncia, com 0 ideal de beleza, essa “esséncia da arte” que os grandes artistas da Antiguidade Essa condicdo da historia winckelmanniana, alias, colecies souberam por em pritica. O “belo ideal”, como se sabe, constitui 0 ponto cardinal de todo 0 sistema histérico winckelmanniano, bem como da estética neoclissica em gral." Ele fornece a esséncia ¢, portanto, a norma. A histéria da arte é apenas a historia de seu desenvolvimento ¢ de seu declinio, Ele pare- ce confirmar a filiagao secular do pensamento estético A corrente filoséfica do idealismo.” A palavra “ideal” sugere que a esstncia — aqui, a esséncia da arte — é um modelo: um modelo a alcancar, conforme 0 “imperativo categorico” da beleza clissica; um modelo, porém, dado como inatingivel como tal. E muito signifi cativo que © capitulo dedicado por Winckelmann a “esséncia da arte” seja mais consagrado aos desvios que nosso espirito tem que fazer para se recordar da beleza ideal das estatuas gregas: Como o primeito capitulo deste livro é apenas uma introdugio, passo ago- ra, depois destas observacies preliminarcs, a propria esséncia da arte. (..) ‘Transporto-me em espirito, portanto, para ¢ estadio de Olimpia. La as estatuas de atletas de todas as idades, carros de bronze com dois e quatro cavalos, encimados pela imagem do vencedor. [4 meus olhos so atingidos por uma multidio de obras-primas! Quantas vezes minha imaginacdo nio se entrega a esse sonho prazcrosa? (-..) Que me seja permitide fazer essa vyiagem imagindria 4 Flida, ndo como uma si iples imagem poética, mas como uma contemplagao real dos objetos. E, de fato, esta ficeio adquire uma espécie de realidade quando represento para mim mesmo, como exis tentes, as estituas ¢ 0s quadros cujas descrigGes os antigos nos deixaram."! Fis a estranheza: 0 ideal ¢ apreendido, ¢ reconhecido através de uma “con- templa (0 real dos objetos”, como escreve Winckelmann. Porém no através 20 Gaeegee Didi Huberman de uma contemplacio dos objetas reais. Estes desapareceram, foram substitu- idos por cépias mais tardias. Restam apenas as mediag6es do espirito, em busca desse ponto fora do rempo que ¢ 0 ideal. E, no cntanto, a mais necessa- ria dessas mediagies — a que € reconstituigdo textual, restauragao ideal ~ ser realmente denominada histéria da arte. Uma histéria da arte que ¢ serva da Ideia, apresentada como a descrigio das transformagées, grandezas ¢ decadén- cias da norma da arte: “natureza bela”, “contomo nobre”, *arquétipo espi- ritual” no desenho dos corpos femininos, drapejados elegantes, € por ai vai.” A Historia da arte entre os antigos se tece, evidentemente, com constantes apelos de retomo a estética proposta, uns dez anos antes, nas Reflexoes sobre a imitagdo das obras gregas. Eis que nosso inventor da histéria da arte, nosso homem enlutado por seu ‘objeto — pois que ele chora a morte das belezas antigas =, eis que nosso esteta de espirito sistematizador, nosso historiador que nao acredita em fantasmas, poe-se paradoxalmente a construir os objetos ausentes de seu relato — ov, acredita cle, de sua cigncia — “representando-os para si mesmo como se eles existissem”, com base em velhas descricdes gregas ¢ latinas a que cle se ve obrigado a dar crédito. Fi-lo, enfim, a nos assestar a “esséncia da arte”: elogio por principio do “bom gosto” [der gute Geschmack], rejcigio absoluta de “qualquer deformacio do corpo”, numa passagem espantosa das Reflexoes em que ele expressa seu horror &s “doengas venéreas ¢ [20] raquitismo decor rente delas”, esses males que ele supunha desconhecidos dos gregos antigos."* Como se essas coisas estivessem ligadas por uma obscura patologia comum, Winckelmann exprime com igual radicalismo sua rejeicio do pathos, essa doenca da alma que deforma os corpos ¢, portanto, estraga 0 ideal, que pres supe a calma da grandeza ¢ da nobreza de espitito: Quanto mais calma é a postura do corpo, mais ela é capar de exprimir 0 verdadeito carter da alma; em todas as posigdes que se afastam muito do repouso a alma no se acha no estado que Ihe € proprio, mas se encontra num estado de violencia e cocrgao. Nesses estados de paixao violenta cla se reconhece mais facilmente, mas, em contrapartida, é no estado de repouso ¢ harmonia que cla é grande ¢ nobee.* © que fora proposto nas Reflexées como um postulado geral seria recon- duzido, na Historia da arte, para o plano especifico da arte grega. Em vex de dizer “é preciso” (ponto de vista da norma), Winckelmann contenta-se desde ‘entio em escrever que os gregos “tinham 0 costume de”. O ponto de vista & “histérico”, por certo. Mas é a mesma esséncia que se exprime, ou, ¢u deveria zer, que se declara nel Aimagemsobrevivente 21 Num e noutro sentido, a expresséo muda os tragos do rosto € a disposigio do corpo; altera, por conseguinte, as formas que constituem a beleza. Ora, quanto maior € essa alteracao, mais cla é prejudicial a beleza. Segundo esta consideragio, tinha-se 0 costume de observar, como uma das maximas fun- damentais da arte, a imposigao de uma postura tranquila 3s figuras, por- que, segundo a opinio de Platao, © repouso da alma era visto como um estado intermediario entre o prazer-€ a dor, Por isso € que a tranquilidade a situagio mais conveniente & beleza, tal como 0 € a0 mar: a experiéncia mostra que os homens mais belos tém, comumente, as maneiras mais suaves, © o melhor carter. (...) Além disso, a serenidade no homem e nos animais € uum estado que nos permite examinar ¢ conhecer a natureza ¢ as qualidades deles: € por isso que 56 descobrimos 0 fando dos rios e do mar quando a gua esta calma e sem agitagio. Decorre desta observacdo, portanto, que € somente na calma que o artista pode conseguir transmitir a esséncia mesma da arte [das Wesen der Kunst]. Ree Basta esta entrada no assunto, a0 que me parece, para captarmos a natureza eminentemente problematica do momento de pensamento representado pela Historia da arte entre os antigos ¢ por sua heranga, No livro elabora-se um sistema, porém este falha constantemente na hora de se fechar: toda vez que sio afirmadas uma tese ou uma resolugdo teérica, a contradigao ndo tarda a surgi. Assim, Winckelmann reivindica a histria da arte contra os simples julgamentos calcados no gosto, mas a norma estética nao para de embasar cada passo de sna narrativa hist6rica, Assim, ele reivindica a historia como uma objetivagdo racional dos “restos” do passado, porém uma subjetivagao poderosa — “transporto-me em espirito para o estédio de Olimpia” — nao para de guiar sua escrita douta. A historia da arte promovida por Winckelmann oscila o tempo todo entre a esséncia ¢ o devin. Nela, 0 passado histérico é in ventado e descoberto na mesma medida. Que fazer com essa evidencia? Dizem, desde Quatremére de Quincy, ¢ se diz até hoje, que Winckelmann inventou a historia da arte, no sentide mo demo da expresso. Nao haverd nisso mais uma contradicio? Sera que 0 so cidlogo das imagens, @ icondlago, o arquedlogo que utiliza 0 microscopio cletrénico ou 0 conservador de museu familiarizado com anilises espectro- s ainda se embaracam com esses problemas tiloséticos? da histéria da arte como disciplina “cientifica” parece tao sélido, que ja nio vemos com clareza de que heranca seriamos devedores em tal mundo de pen- samento. Mas ¢ comum ignorarse até mesmo a heranga de que se é deposi- © estatuto 22 Georges Didi Huberman tario. Que né de problemas essa Historia da arte entre os antigos continua a nos oferecer? ‘Trata-se de um né triplice, um né trés vezes atado, que o proprio titulo de Winckelmann induz ¢ imp@e: né da historia (como podemos construt-la, escre- vé-la?), né da arte (como podemos distingui-la, olhé-la?) e né da Antiguidade (como podemos rememoré-la, restabelecé-la?). O “sistema” de Winckelmann decerto nao é filoséfico no sentido estrito e, por conseguinte, no pode iden- tificar-se com algo como uma construgdo dialética. Mas existe uma nogio capital, uma palavra que mantém unidas as trés lagadas do n6. Palayra magi- ca, de certo modo: resolve todas‘as contradigées, ou melhor, faz com que passem despercebidas. E a palavra imitagdo. Ela constitui a mola mestra, a dobradica, 0 cixo gracas a0 qual todas as diferengas se unem, todos 08 abis- mos so transpostos. Na conclusao de seu livro, citada acima,® Winckelmann pareceu cavar um abismo: abismo depressivo, ligado 4 perda da arre antiga e ao retorne impos- sivel desse “objeto amado”, abismo separando 0 luto do desejo [Wunsch], abismo separando 0s “originais” [Urbilder] da estatudria grega e suas “c6- pias” romanas [Kopier]. Mas, em outros pontos de sua obra ~ a comecar pelas Reflexées, ¢ claro ~, a imsitacao langa uma ponte sobre esses abismos. A imita~ a0 dos antigos, praticada pelo artista neoclassico, tem por virtude reanimar © desejo para além do luto. Cria um vinculo entre o original ¢ a copia, de tal sorte que o ideal, a “esséncia da arte”, pode como que reviver, atravessar 0 tempo. E gracas a imitacao que a “auséncia categérica” da arte erga, segundo a expressio de Alex Pats, torna'se capaz de um renaseimento, ou até de uma “presenga intensa”” Pois é justamente de presenga ¢ presente que se trata: o presente da imita- gao faz “reviver uma origem perdida”® e, desse modo, restabelece na origem uma presenca ativa, atual. Isso s6 se revela possivel porque o objeto da imira- ga nao € um objeto, ¢ sim © proprio ideal. Ali onde a vertente depressiva da histéria winckelmanniana fazia da arte grega um objeto de kuta, impossivel de atingir — “jd no possuimos, por assim dizer, sendo a sombra do objeto de ‘nossos anseios”” -, uma vertente maniaca, se me atrevo a dizé-lo, fard dessa arte um ideal a capturar, o imperativo categorico da “esséncia da arte”, 0 tinico capaz de permitir a imitacdo dos antigos. Imitagdo, come bem sabemos, um conceito altamente paradoxal. Mas seu paradoxo é justamente 0 que permitiu a Winckelmann a famosa pirueta: “Para nés, o unico meio de nos tomarmos grandes, e, se possivel, inimitaveis, é imitar os antigos.”* Foi uma faganha consideravel, ¢ suas consequéncias também o scriam. ‘To. caram na propria estrutura, na arquitetura temporal de toda essa iniciativa: a Aimagem sobrovivente 23 histéria da arte construida por Winckelmann acabaria reduzindo o tempo ma- tural da Verinderung ao tempo ideal da Wesen der Kunst. Foi um modo de possibilitar a coexisténcia do esquema “vida e morte”, “grandeza e decadén- cia”, com o projeto intelectual de um “renascimento” ou uma restaura “neoelassicos”. Insistimos no clemento crucial desse esforgo herctilec: a irmita- cdo 56 permitia esse renascionento imitando 0 ideal. Como nao reconhecer ai, reconfiguradas, mas renovadas, as trés “palavras magicas” fundamentais do idcalismo vasariano?' Como nao reconhecer, na redugao do tempo natural a0 tempo ideal, o que cria a prépria ambivaléncia do conceito humanista de imi tagio? Por outro lado, teria sido possivel a imitac3o moderna dos antigos ini- mitdéveis sem o meio termo que constitui, para © proprio Winckelmann, a imi tacdo renascentista — por Rafacl, om primeiro ligar — desses mesmios antigos? ‘© que era né (a solugao se atrapalha) torna-se entio fechamento (a solugio se impoe). O no da Antiguidade se desfaz ao se trazer de volta uma nogao de ideal; o né da arte se desfaz ao se resgatar uma ideia de imitaco; 0 n6 da his- t6ria se desfaz ao se resgatar uma ideia de Renascimento. Assim ja fora cons- truida a historia humanista de Vasari. Assim recomecou a histéria neoclissica de Winckelmann. Mas refacamos a pergunta de Herder: “Sera esse 0 objetivo da historia? O objetivo de uma historia da arte? Nao haverd outras formas possiveis de historia?” Precisemos os desafios atuais da pergunta, diante de uma heranga winckel- io unanimemente reivindicada. Primeiro, quanto 4 “anélise dos tempos”: nao haveria um tempo das imagens que nao fosse “vida ¢ morte” nem “grandeza ¢ decadéncia”, tampouco esse “Renascimento” ideal cujos valores de uso os historiadores ndo param de transformar para seus préprios manniana fins? Nio haveria um tempo para os fantasmas, uma reaparigio das imagens, uma “sobrevivencia” [Nuchleben| que nao estivesse submetida ao modelo de transmissio pressuposto pela “imitagio” [Nachahrmung] das obras antigas por obras mais recentes? Nao haveria um tempo para a memoria das imagens — um obscuro jogo entre o recaleado ¢ seu eterno retorno — que nao fosse © proposte por essa historia da arte, por essa narrativa? E, quanto & arte em siz no haveria um “corpo” de imagens que escapasse as classificagées instaura- das no século XVIII? Nao haveria um tipo de semelhanca que nao fosse 0 imposto pela “imitagao do ideal”, com a rejeigao do pathos que ela pressupoe em Winckelmann? Nao haveria um tempo para os sintomas na historia das imagens da arte? ‘Tera essa historia realmente “nascido” algum dia? 24 Georges Didi Huberman Warburg, nosso fantasma Um século ¢ meio depois de Winckelmann compor sta monumental Historia da arte extre os antigos, Aby Warburg publicou, ndo em Dresden, mas em Hamburgo, um texto mintisculo ~ na verdade, © resumo de uma conferéncia em cinco paginas ¢ meia ~ sobre “Diirer ¢ a Antiguidade italiana”."" A imagem que abria esse texto nao cra a de uma ressurreigao crista, como em Vasari (fig. 1), nem a de uma gloria olimpica, como em Winckelmann (fig. 2), mas a de um despedacamento humano, passional, violento, cristalizado em seu mo- mento de intensidade fisiea (fig. 3). A dissimetria entre esses momentos do pensamento sobre a historia, a arte € a Antiguidade parece bastante radical. im seu fexto curto — que ocupa menos espago que uma tinica Vida de Vasari — que ocupa menos espaco do que a simples Historia da arte -, Warburg, de- compés, desconstruiu sub-repticiamente todos os modelos epistémicos em uso na histéria da arte vasariana e winckelmanniana, Desconstruiu, por conseguin- te, o que a atual historia da arte ainda toma por seu momento inicidtico. Warburg substituiu 0 modelo natural dos ciclos de “vida e morte”, “grandeza e decadéncia”, por um modelo decididamente nao natural e simbélico, um mo- delo cultural da hist6ria, no qual os tempos ja ndo eram calcados em estagios biomérficos, mas se exprimiam por estratos, blocos hfbridos, rizomas, comple- xidades especificas, retornos frequentemente inesperados ¢ objetivos sempre frustrados. Warburg substitaiu 0 modelo ideal das “renascengas”, das “boas imitagdes” e das “serenas belezas” antigas por um modelo fantasmal da historia, no qual os tempos ja ndo se calcavam na transmissdo académica dos saberes, mas se exprimiam por obsessGes, “sobrevivéncias”, remanéncias, reaparicoes das formas. Ou seja, por nao-saberes, por irreflexdes, por inconscientes do tempo. Em tiltima andlise, o modelo fantasmal de que falo era um modelo psiguico, no sentido de que 0 ponto de vista do psiquico nao seria um retorno ao ponte de vista do ideal, mas a prépria possibilidade de sua decomposigdo tedrica. Tratava- -se, pois, de um modelo sintornal, no qual o devir das formas devia ser analisado como um conjunto de processos tensivos — tensionados, por exempla, entre vontade de identificagio ¢ imposigao de alteragio, purificagdo ¢ hibridagio, normal ¢ patolégico, ordem ¢ cas, tragos de evidéncia e tragos de irreflexao. , tal como em toda a sua obra publicada Aimagemsobrevivente 25 3. Albrecht Diirer, A morte de Orfeu, 1494, Tinta sobre pape. | lamburgo, Kunsthalle. Foto: Instituto Warhurgs Tudo isso fala de forma muito abrupta ¢ muito sucinta, admito. Serd preci- so tornar a partir do comego para construir essa hipétese de leitura. Mas uma coisa era preciso dizer de imediato: com Warburg, a ideia de arte ea ideia de historia passaram por uma reviravolta decisiva. Depois dele, j4 ndo estamos diante da imagem ¢ diante do tempo, como antes. Todavia, « historia da arte com ele nao “comega”, no sentido de uma refundacdo sistematica que talvez tivéssemos o dircito de esperar. Com ele, a histéria da arte se inquieta sem cesar, a historia da arte se perturba, o que é um modo de dizer, se nos lem- brarmos da ligdo benjaminiana, que ela toca numa origem. A histéria da arte segundo Warburg é justamente 0 contrario de um comeco absoluto, de uma tabula rasa: é, antes, um turbilhio no rio da disciplina, um turbilhdo — um momento-agitador ~ depois do qual 0 curso das coisas se havera desviado profundamente, ou até transtornado. Mas essa mesma profundidade parece dificil de transparecer ainda hoje. ‘Tentei em outro trabalho caracterizar certas linhas de tensio que, na histéria da disciplina e em sew estado atual, puderam eriar obstéculo ao reconhecimen- to dessa reviravolra. Acrescentemos a essa impressdio tenaz: Warburg é nossa obsessaa, esté para a historia da arte como estaria um fantasma nao redimido ~um dibuk* — para a casa que habitamos. E obsessao? E algo ou alguém que volta sempre, sobrevive a tudo, reaparece de tempos em tempos, enuncia uma verdade quanto a origem. F algo ou alguém que no conseguimos esquecer. Mas que nao podemos reconhecer com clareza. Warburg, nosso fantasma: em algum lugar dentro de nés, mas em nés ina- preensivel, desconhecido. Quando ele morreu, em 1929, os necrol6gios que Ihe foram dedicados ~ na pena de eruditos prestigiosos como Erwin Panofsky ou Ernst Cassirer ~ manifestaram 0 grande respeito devido aos ancestrais im- portantes.* Fle foi eeconbecido como o pai fundader de uma disciplina consi- dervel, a iconologia, mas sua obra logo s¢ apagaria por tris do trabalho to mais claro € distinto, tio mais sistematico ¢ tranquilizador de Panofsky.* Desde entdo, Warburg vagueia pela historia da arte como faria um ancestral inconfessdvel — sem que jamais se diga © que no conviria confessar ou 0 que conviria renegar nele ~, um pai fantasmatico da iconologia. Por que fantasmatico? Primeiro porque nao sabemos por onde seguré-lo. Em seu necrolégio sobre Warburg, Giorgio Pasquali escreveu, em 1930, que o historiador, durante a vida, “jd desaparecia atras da instituigao que havia cria~ do” em Hamburgo, a famosa Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg, que, depois de seu exilio, precipitado pela ameaca nazista, pade sobreviver ¢ reviver em Londres."” Para informar quem fora ou o que fora Warburg, Ernst Gombrich ~a quem teria cabido um projeto de obra inicialmente concebido por Gertrud Bing ~ decidiu redigir uma “biografia intelectual”, voluntaria- mente autocensurada quanto aos aspectos psiquicos da historia ¢ da persona- ~ Na mitologia judaica, um fantasma, ou alma penada, que se aposca do corpo de uma pessoa viva INT] Aimegemsobrevivente 27 lidade de Warburg.*8 Essa decisdo nao deixou de ter uma “elaboracio” meio desenearnada de uma obra em que a dimensio do pathos, ou até do patologi- co, revela-se essencial, tanto no plano das objetos estudados quanto no do olhar voltado para eles. Edgar Wind criticou severamente essa remontagem pudica, essa edulcoragao que Gombrich fez:"” nao se separa um homem de seu pathos — de suas empatias, suas parologias —, nao s¢ separa Nietzsche de sua loucura nem Warburg dessas perdas de si que deixaram por quase cinco anos entre os muros de um hospital psiquidtrico. O perigo simétrico existe, é claro: ode negligenciar a obra construida em prol de um fascinio duvidoso por um destino digno de um romance noir.” x Outra causa desse cardter fantasmatico prende-se a nossa impossibilidade, ainda hoje, de distinguir os limites exatos da obra warburguiana. Como um corpo espectral, essa obra continua sem contornos definiveis: ainda nao en- controu seu corpus. Ela assombra cada livro da biblioteca — e até cada imter- valo entre os livros, em razao da famosa “Iei da boa vizinhanca” que Warburg havia instituido em sua classificagao" -, mas, acima de tudo, manifesta-se no imenso labirinto dos manuscritos ainda inéditos, as anotacées, eshogos, esque- mas, didrios e correspondéncia que Warburg mantinha incansavelmente, sem jogar nada fora, ¢ que os editores até hoje no souberam reunir de maneita ponderada, a tal ponto € desnorteante o seu aspecto “caleidosc6pico”.” Na ignordncia de tal massa de textos ~ alguns dos quais tinham um propésito explicito de fundagao, como os Grundlegende Bruchstiicke zw einer monisti- sehen Kunstspsychologie, de 1888-1905, ¢ os Allgemeine Ideen de 1927 =, todas as nossas reflexdes sobre Warburg ficam presas a uma certa indecisio. screver hoje sobre essa obra é aceitar que nossas proprias hipéteses de leitura sejam um dia modificadas ou questionadas por uma parte inesperada dese corpus flutuante. Porém, isso nao é tudo. © aspecto fantasmatico desse pensamento prende- -se a uma terceira razdo, ainda mais fundamental: uma razio de estilo, ndo de época. Ler Warburg apresenta a dificuldade de ver se mesclarem ritmo da mais extenuante ou mais inesperada erudicao — como a entrada em cena, em meio a uma andlise dos afrescos renascentistas do palacio Schifanoia, em Fer- rara, de um astrélogo dtabe do século IX, Albumasar® — e 0 ritmo quase haudelairiano dos foguetes: ideias que se fundem, pensamentos inseguros, aforismos, permutagdes das palavras, experimentacao de conceitos... tudo que Gombrich considera a conta certa para aborrecer o “leitor moderno”, quando € precisamente a modernidade de Warburg que ja se assinala nesse traco.* 28 Gaorges Didi-Huberman De onde, de que lugar ¢ de que tempo nos fala esse fantasma? Seu vocabuldrio bebe alternadamente nas fontes do romantismo alemao ¢ de Carlyle, do posi- tivismo e da filosofia nietaschiana. Ele manifesta, em momentos alternados, 2 preocupacdo meticulosa com o detalhe hist6rico ¢ o sopro inseguro da inspi- ragdo profética. O proprio Warburg falava de seu estilo como sendo uma “sopa de enguias” [Aalswpenstil]:"' imaginemos uma massa de corpos serpe- antes, reprilianos, em algum lugar entre as perigosas cixcunvolugées do Lzo- coonte — que obsedaram Warburg durante a vida inteira, ndo menos que as serpentes postas na boca pelos indios que cle também estudou (fig. 37) - ¢ a massa informe, sem pé nem cabeéa, de um pensamento sempre avesso a se “cortar”, isto ¢, a definir para si mesmo um comego e um fim. ‘Acrescentemos a isso que o proprio vocabulério de Warburg parece fadado a condigao de espectro: Gombrich observou que as palavras mais importantes desse léxico - como bewegtes Leben, Pathosformel, Nachleben ~ eram dificeis de transpor para o inglés.* Seria mais conveniente dizer que a historia da arte anglo-saxnica do apos-guerra, essa histéria da arte que tinha uma enorme di- la para com os imigrantes alemies,*” exerceu sobre si mesma um trabalho de rentincia a lingua filosofica alema. Fantasma nao redimido de certa tradicao fi- lolégica e filoséfica, Warburg vagou por uma época ambigua ¢ inapreensivel: de um lado, ele nos fala w partir de sm passado que os “progressos da disciplina” parecem haver tornado obsoleto. Em especial, ¢ caracteristico que 0 vocabulario da Nachleber — a “sobrevivencia”, esse conceito crucial de toda a empreitada warburguiana ~ tenha caido completamente em desuso ¢ no tenha sido objeto, quando porventura é citado, de nenhuma critica epistemoldgica consequente. Por outro lado, a obra warburguiana pode ser lida como um texto proféti- co e, mais exatamente, como a profecia de um saber por vir. Robert Klein, em 1964, escreveu sobre Warburg: “(Ele] criou uma disciplina que, a contrario de tantas outras, existe, mas nio tem nome.”*! Retomando essa formula, Gior- gio Agamben mostrou como a “ciéncia” visada por essa obra estava “nao ainda fundada” —traco que designa menos uma falha da racionalidade que a ambicZo considerdvel ¢ o valor perturbador dessa ideia das imagens.” War- burg dizia a seu proprio respeito que ele menos fora feito para existir do que para“ sentido da palavra Nachleben, esse termo do “pés-viver”: um ser do passado que nao para de sobreviver. Num dado momento, seu retorno em nossa me- ‘mOria torna-se a prépria urgéncia, a urgéncia anacronica do que Nietzsche chamou de inatual ou intempestivo. Assim seria Warburg nos dias atuais: um sobrevivente urgente para a his- séria da arte. Nosso dibuk. fantasma da nossa disciplina, falando-nos a persistir [eu diria insistir] como uma bela lembranca”.® F, bem esse 0 Aimagemsobrevivente 29 um tempo de seu (nosso) passado e de seu (nosso) futuro. Questo passada: devemos alegrar-nos com o trabalho filoligico que, sobretado na Alemanha, prende-se ha alguns anos a obra de Warburg.® Questdo futura: as coisas sa0 mais delicadas, evidentemente = uma vez reconhecido o valor de “impulso” da obra warburguiana,” as leituras pdem-se a divergir. Ndo apenas a heran- a do “método warburguiano” tem sido questionada desde os primeiros mo- mentos de sua colocagdo em pratica,!} como também a atual multiplicagdo de referencias a esse suposto “método” proporciona uma verdadeira vertigem. Warburg toma-se superespectral no exato momento em que cada um comeca a invocé-lo como o santo protetar das mais diversas escolhas tedricas: santo protetor da histéria das mentalidades, da histéria social da arte e da micro- -hist6ria;“* santo protetor da hermentutica;®* santo protetor de um suposto antiformalismo;" santo proretor de um chamado “pés-modernismo retromo- dermo”;” santo protetor da New Art History, ou até grande aliado da critica feminista...* 30 Georgas Didi Huberman As formas sobrevivem: a histéria se abre O certo € que, como escreveu Exnst Gombrich = mas como pode ele nao se sentir visado por sua prdpria frase? -, “o [atual] fascinio exercido pela heranca pode ser visto como sintoma de certa insatisfagao” com a historia da arte tal como é praticada desde o fim da Segunda Guerra Mun- dial.® Em sua época, © proprio Warburg havia manifestado esse tipo de insa- tisfagao, outra mancira de expressar uma exigéncia ainda nao elaborada. Em 1888, quando tinha apenas 22 anos, ele ja fustigava, em seu diario intimo, a historia da arte para “pessoas cultas”, a historia da arte “estetizante” dos que se contentavam em avaliar as obras figurati convocava para uma Keusstwissenschaft, uma “ciencia da arte” especifica, ¢ escreveu que, um dia, seria tio inutil falar em imagens quanto ¢ imutil para um nao médico tecer comentarios sobre uma sintomatologia. “Yq 74/75 E foi também por “ayersio a historia da arte estetizante™ [dsHetisierende Kunstgeschichte] que Warburg se lembrou de haver partido subitamente, em 1923, para as serras do Novo Mexico.” Ao longo de toda a vida, ele exigiria do saber sobre as imagens um questionamento muito mais radical do que toda a “curiosidade voraz” dos atribuicionistas - como Morelli, Venturi, Berenson =, 08 quais qualificou de “admiradores profissionais”; do mesmo modo, exigi- ria muito mais que o vago estetisme dos discipulos (quando vulgares, isto é, burgueses} de Ruskin ou Walter Pater, ou até de Burckhardt on Nietzschi assim, evocou com sarcasmo em seus cademnos de notas o “turista super-ho- mem em ferias de Pascoa”, que vai visitar Florenga “com 0 Zaratustra no bolso do casaco”.” Para responder a essa insatisfagio, Warburg pds em pritica um constante deslocamento — deslocamento no pensar nos pontos de vista filosal campos de saber, nos periados histéricos, nas hierarquias culturais, nos lugares -gcograficos. Ora, esse proprio deslocamento continuou a fazer dele um fantas- mma; em sua época —¢ hoje mais do que nunca ~, Warburg foi o fogo-fétuo, ou melhor, 0 atravessa-paredes da historia da arte, J4 entao, seu deslocamento em rermos de beleza; ja entio ficos, nos. para a historia da arte ~ para a eradigdo ¢ as imagens em geral ~ resultara de um processo critica em relagao ao espaco familiar: um mal-estar na burguesia negociante ¢ na ortedoxia judaica.” Mas sobretudo seu deslocamento através Aimagem cobrevivente 31 da histéria da arte, em sua orla ¢ mais ulti, eriaria na prépria disciplina um violento processo critico, uma crise ¢ uma verdadeira desconstrugio das fron teiras discip linares. Esse processo jd se faz sentir nas escolhas do jovem Warburg, suas escolhas de estudante entre 1886 € 1888. Ele seguiu os ensinamentos de arquedlogos clissicos — em todos os sentidos do rermo ~, como Reinhard Kekulé von Stra- donitz (em cujas aulas descobriu a estética do Laocoomte ¢ fer, em 1887, sua primeirissima anilise de uma Pathosformel) ou Adolf Michaelis (com quem estudou os frisos do Partenon).”* Foi aluno de Carl Justi, que 0 iniciou na filo- sofia clssica e em Winckelmann, assim como em Velésquez e na pintura fla- menga. Em contrapartida, entusiasmou-se com a filologia “antropologica” de Hermann Usener, com todos os problemas filoséfices, emograficos, psicologi- cos ¢ hist6ricos que cla arrastava em sua esteira. Depois, nas conteréncias de Karl Lamprecht sobre a historia vista como uma “psicologia social”, ele en- controu alguns fundamentos de sua futura metodologia.” Do lado do Renascimento, os ensinamentos de Riehl ¢ Thode —que fizera do desenvolvimento artistico italiano uma consequéncia do espirito franc relegando ao segundo plano o retorno da Antiguidade paga — mais serviram de contraponto.” Porém, Hubert Janitschek 0 fez compreender a importincia das teorias da arte—a de Dante, a de Alberti-, bem como 0 papel das prdticas so- ciais ligadas a qualquer producdo figurariva.” Quanto a August Schmarsow, ele simplesmente inicion Warburg no terreno florentina, se assim posso dizer: foi in loco que 0 jovem historiador cursou seus estudos sobre Donatello, Botticelli ou a relagio entre 0 gético e o renascentista na Florenca do Quattrocento, te- mas que hoje reconhecemos, todos eles, como eminentemente warburguianos.* Além disso, Schmarsow defendia uma Kunstwtssenschaft decididamente aberta as questdes antropolégicas ¢ psicoldgicas. Elaborou um conceito espe- cifico da comunicacio visual ¢ da “informagao” [Verstindigung|, mas sobre tudo compeeendeu o papel fundamental do que era chamado, na época, de “linguagem dos gestos”: retomando, para além de Lessing, a problematica expressiva do Laocoonte, tentou elaborar uma teoria da empatia corporal das imagens, tudo isso enunciado a partic do binémio da “mimica” [Minik] e da “plistica” [Plastik].”” Nessas condigoes, ficaremos menos admirados de ver 0 jovem Warburg passar da antiga Psicomaquia para a leitura de Wundt, e de Botticelli para cursos de medicina, ou até para um curso sobre as probabilida~ des, no qual, em 1891, ele fez uma exposicdo sobre “Os fundamentos logicos dos jogos de azar”.*° Mais do que um saber em formagio, foi antes um saber em movintento que 205 poucos se constituiu, pela aco ~ aparentemente errdtica — de todos esses ano, Seorges Didi‘ Huberman

Você também pode gostar