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SOCIOLOGIA - PROBLEMAS E PRATICAS. NS 19, 1996, pp. 83-107 Criangas da rua: marginalidade e sobrevivéncia! Jodo Sebastiio Resumo: O aparecimento durante a década de 80, na cidade de Lisboa, de grupos de criangas a viver na rua, veio chamar a ateng‘lo para as situagdes de exclusto ¢ marginalidade infantil existentes na sociedade portuguesa. A fuga de criangas para a rua surge como o resultado de processos estruturais, que provocam a degradacdo dos seus contextos de integracio, nomeadamen- te na familia e na escola, levando-os a procurar respostas na rua para a situagdo vivida. Confrontados com contextos fortemente agressivos desen- volvem estratégias que integram elementos da chamada cultura de pobreza ¢ processos especificos de reorientagao identitaria, tornando assim possfvel a sua sobrevivéncia na rua.. 1. Exclusio, desvio e marginalidade infantil Os processos de segregacio socioespacial, tipicos do desenvolvimen- to urbano contemporaneo, constituem mecanismos de exclusio social cujos efeitos se repercutem de forma selectiva sobre determinadas zonas da cidade. As situagdes de exclusdo fazem-se sentir af com especial incidén- cia, em particular através da existéncia de um espago fisico degradado, de extensas manchas de pobreza e processos de violéncia simbélica exercida sobre os seus habitantes, representando uma parte importante daquilo que Boaventura de Sousa Santos designa como o “terceiro mundo interno” (B. S. Santos, 1993: 17). Constituem “zonas intersticiais”, para usar a terminologia da Escola de Chicago, significando estas a retradugio espa- cial das desigualdades existentes na estrutura social, lugares em que a acumulagao de factores de exclusao e marginalizagaéo contribuem ainda mais para reforgar as caracteristicas estigmatizantes ja atribuidas aos grupos 84 Jofio Sebastifio em situagdo de pobreza. O conceito de subclasse expresso por William J. Wilson (1993) dé bem o sentido do processo de marginalizagio nesta areas. A fuga das elites locais e das camadas de classe média, conjugada com a crise no mercado de trabalho, conduzem a um progressivo isola- mento e ao enfraquecimento dos lagos e redes de relagdes com o exterior. Viver num espago desqualificado em termos urbanos representa viver num espaco com uma carga simbélica negativa muito forte, onde a di ponibilidade © possibilidade de mobilizagio de recursos materiais e relacionais é reduzida (J. Remy, e L. Voyé, 1976). Este quadro agrava-se quando falamos das criangas que af habitam. O nascimento e desenvolvimento em contextos marcados pela pobreza dei- Xa poucas alternativas, colocando-as numa situagio de vulnerabilidade, em particular quando os mecanismos de socializagio tém dificuldade em desempenhar cabalmente as suas fungOes integradoras. A reproduciio da pobreza nao se relaciona apenas com a no trans- missio de bens materiais, embora este seja 0 seu aspecto mais visfvel, ela diz também respeito a uma heranga alargada de representagGes, atitudes, valores e saberes pritticos que so fundamentais para os jovens tentarem antecipar possfveis quadros de vida. Integrando familias cujos modos de vida poderemos caracterizar como oscilando entre a destituigdo e a res- trigdo (J. F. Almeida e outros, 1992), as criangas vivem quotidianos mar- cados pelo imediatismo, a inseguranga e a imprevisiblidade. Existe entao uma press%io para a sua autonomizagio precoce, no sentido de serem capazes de alcancar (ou pelo menos ajudar a familia a conseguir) os meios do seu sustento e satisfazer progressivamente as suas necessidades de forma independente. Surgem neste caso determinadas grupos margina- lizados como os vendedores ambulantes, os ciganos (Nunes, 1981), algu- mas camadas de operarios e trabalhadores nfo qualificados com emprego precério, sendo a gestdio do quotidiano feita entre a caréncia e 0 excesso (Benavente e outros, 1987; Almeida e outros: 1992). A existéncia de experiéncias de insucesso escolar, cumuladas com o frequente abandono precoce da escolaridade, contribuem para o reforgo dos factores que levam 4 manutengdo das criangas ¢ jovens em situagdes de pobreza e marginalizagdo social. A nao aquisic&o, através da Escola ou de outro sistema de formagio, de instrumentos para competir por um lugar no mercado de trabalho, € um obstdculo significativo para o estruturar de futu- ros alternativos a situagao de precaridade em que se encontram, tendo fortes consequéncias negativas na integrago no mercado de trabalho ¢ no proprio processo de transi¢fo para a vida adulta (J. Coleman e T. Husén, 1990). Este quadro pode levar & constituigio ou integracio em redes de relagdes alternativas como tentativa de alcangar alguns dos objectivos Criangas da rua, marginalidade ¢ sobrevivéncia 85 culturalmente valorizados. A colisdo entre as restrigGes de contextos fa- miliares e locais marcados pela precaridade e uma sociedade fortemente valorizadora do sucesso individual e material constitui, sem dlvida, um forte incentivo para tal. HA em certos meios uma linha pouco definida entre o legal eo ilegal, constituindo a deriva entre ambas uma situagiio corrente e mesmo tolera- da pelas geragdes mais velhas, como constatou J. Machado Pais (J. M. Pais, 1990), A chamada de atengio para que os comportamentos desviantes pressupdem uma mudanga de estatuto, como resultado de um processo de designagao, realga a importancia da actuagao das agéncias de controlo ¢ producao de normas e do seu papel no estabelecimento dos limites entre a “normalidade” ¢ 0 “desvio”. A tentativa de normalizagdo das praticas, através da cada vez maior regulamentagio da vida privada dos cidadios, constitui um facto que pressuporia a mudanga dos seus quadros de refe- réncia, 0 que nem sempre é partilhado ou visto positivamente por estes. O processo de mobilidade espacial dos bairros periféricos em direc- ¢&o ao centro encontra-se em fntima ligagiio com as trajectérias sociais destes jovens e grupos sociais pobres, migrantes para quem as promessas de melhoria das condig6es de vida ficaram por realizar, A sua instalag’io na zona central da cidade, como que atrafdos pelo “caleidoscépio imagético” que este constitui (W. Rodrigues, 1992), utilizando para isso prédios degradados ou carros abandonados, constitui um movimento pa- ralelo e clandestino da progressiva gentrificagio. As traject6rias percorridas por estes grupos de criangas das varias zonas da cidade e periferia levantam ainda a questio de saber de que modos se produzem esses espacos que fazem periferia no centro da cidade (L. Rolleau- Berger, 1989). Estas criangas vém ocupar zonas da cidade marcadas pelo anonimato, que tém vindo a perder o seu lugar como espago de identidade, relacional ou histérico — antigas pragas transformadas em parques de esta- cionamento, ruas onde j4 ndo se péra porque as lojas se transformaram em agéncias bancdrias, etc. A apropriagao desses espagos ptiblicos traduz-se ent&o num fenémeno de privatizagiio, em que o delimitar de fronteiras cons- titui uma forma de identificar os semelhantes e gerir os recursos potenciais (trata-se aqui de recursos eventuais e incertos). Transformam, desta forma, espagos descaracterizados em “lugares antropoldgicos” (M. Augé, 1993), cuja apropriagdo é uma modalidade fundamental das praticas colectivas ¢ individuais e do processo de construgio da identidade destes grupos de criangas. E ao mesmo tempo principio de sentido pata os que o ocupam e de intelegibilidade para os que observam. Contrariamente as visdes correntes, nem sempre os grupos sao cons- tituidos por criangas em ruptura total com a famflia ou vitimas de aban- 86 Joao Sebastiio dono. Mostram os poucos estudos existentes que a estada das criangas na tua pode apresentar diferentes gradacées, sobrevivendo apenas uma mi- noria de forma totalmente independente e mantendo a grande maioria ligagdes pelo menos com um dos familiares mais directos — pai, mae, av6 (L. Aptekar, 1989a, 1989b ; R. Lucchini, 1990, 1991 ; L. Moselina, 1989, 1991; W. Myers, 1989 ; R.E. Silva, 1992), Estar na rua nao € para muitos uma situacdio nova, esta nao Ihes é estranha, podendo a permanén- cia na rua em certos grupos constituir mesmo um contexto central de socializagiio e de construgio da autonomia individual da crianga. Este aspecto € alids reforgado pela constatagao generalizada nos jos estudos de que quase 90% das criangas da rua sao rapazes, permanecendo a casa para as raparigas como espago de referéncia. Lewis Aptekar considera ser a autonomizacao precoce um dos elementos das culturas de pobreza, onde cedo as criangas so chamadas a assumir responsabilidades familiares, tomando conta dos irmfos ou sendo desde pequenas autorizadas ou in- centivadas a encontar na rua parte dos recursos inexistentes em casa (dos brinquedos 4 alimentagdo) (L. Aptekar, 1989a). E contudo de ter em ateng¢do a importancia dos efeitos situacionais, que podem ter um papel importante na ida para a rua (B. McCarthy e J. Hagan, 1992). A fuga a um conjunto de situagdes adversas (pobreza, violéncia familiar, insucesso escolar e conflitos com colegas e professores) pode simplesmente dar origem & queda noutras ainda mais graves (toxicodependéncia, explora- gio sexual, agressdes, etc.), reforgando a integracdo em redes de tipo marginal. A deriva entre a famflia ¢ a rua constitui para a crianga um processo de aproximacao progressiva & vida da rua. Comega a estruturar-se uma carreira de crianga da rua que consiste na transig&éo, nem sempre total- mente realizada, entre dois pélos: de um lado o contacto com a rua, mas integrado na famflia e com relagSes frequentes ¢ intensas com adultos significativos (pais, vizinhos, outros familiares); do outro, a ruptura quase total com a famflia e adultos, passando a viver de forma independente na rua. Entre ambos existem diversas situagdes intermédias que representam graus diversos de-integragio na vida da rua — da crianga que passa o dia na rua a angariar recursos e geralmente regressa 4 noite a casa até As que alternam pequengs perfodos de fuga na rua com outros de regresso a casa. Este processo de integragaio é fundamental para a estruturagdo da identidade da crianga da rua. O contacto progressivo com a rua exige-lhe que se ressitue face aos novos contextos de integragiio, levando-a a cons- truir uma nova imagem de si. A existéncia ou nao de relagdes estdveis com os adultos (em particular afectivas), o tipo de experiéncias feitas na rua € as competéncias sociais adquiridas, sio elementos fundamentais dos Criangas da rua, marginalidade ¢ sobrevivéncia 87 seus modos de adaptacao e do processo de reestruturagéo da sua identi- dade individual e colectiva. 2. Marginalidade e sobrevivéncia Com a ida para a rua o assegurar da sobrevivéncia quotidiana cons- titui o problema central que qualquer crianga da rua tem que enfrentar. Podemos dividir em dois grupos o tipo de praticas quotidianas ligadas ao assegurar da sobrevivéncia na rua: — As primeiras ligadas & identificagdo e angariagaio de recursos; — As segundas ligadas 4s praticas de consumo e lazer. A identificagao e angariagfo de recursos constitui para estas criangas o principal problema a resolver, pois a sua imprevisibilidade obriga a um esforgo constante, levando-as a socorrer-se de diferentes alternativas, muitas delas socialmente consideradas como nao legitimas. Para isso, precisam de desenvolver e treinar um conjunto de saberes e aptiddes individuais e sociais, que realgam um agudo sentido de observagio, au- tonomia, cooperaciio e capacidade de tomada de decisao, essenciais para aproveitar as oportunidades disponiveis ou surgidas casualmente. A apren- dizagem de tais capacidades desenrola-se tanto na rua como na comuni- dade de origem, onde muitas vezes se contacta com problemas e formas de os solucionar semelhantes. Durante o processo de transi¢&o na rua, frequentemente ainda no bairro de origem, as criangas realizam experiéncias sobre dife- rentes formas de ultrapassar os constrangimentos materiais a que estio sujeitas, como roubar roupa nos estendais, arrumar carros ou assaltar colegas na escola. Estas formas de acesso a bens de consumo que se encontram vulgarmente fora do seu alcance transformam-se em praticas que s&o vistas, se néo como “normais”, pelo menos como possfveis. A transformacio de praticas pontuais em situagdes cor- rentes foi por nds verificada em varios momentos e locais da AML, existindo criangas que “aproveitam” o intervalo da escola para pedir al- gumas moedas na bomba de gasolina situada perto ou a safda para assal- tar os colegas. A plena integragdo na rua constitui uma importante alteragio quali- tativa, pois representa a orientagio dominante para estratégias de sobre- vivéncia que se apoiam preferencialmente em redes de relagGes sociais marginais. O contacto e integragio em grupos ja existentes proporciona uma série de aprendizagens que possibilitam 0 aproveitamento das varias oportunidades, reforgando contudo 0 processo de marginalizagao. Estas 88 Jodo Sebastido aprendizagens e experiéncias sao alids importantes na orientagdo futura face aos problemas de obtengdo de recursos. Pronto, ‘tava com fome, eu ndo sabia nada, praticamente... e depois via as outros, depois... tive que fazer 0 que os outros faziam, mais ou menos... (E 6) (...) @ gente tinha facas, assim ponta e molas, tirdvamos assim estas borra- chas (das montras) aqui, ou entdo metiamos fita cola, depois partia-se (0 vidro), depois entrava-se ld dentro... P — Onde € que aprenderam esses truques? R — Foi com um mogo, tava com a gente e mais dois mogos, eram maiores, foram para uma loja... a gente fomos com eles... vimos eles a catar € eles disseram qu’era p’a gente ficar a controlar se vinha béfia, depois 4 gente avisar, s6 que néo veio béfia, a gente apanhimos... 6 depois fomos dividir... (E16) Esta orientagdo fica bem clara quando analisamos as formas utiliza- das para assegurar a sobrevivéncia, sendo nitido que o recurso a alterna- tivas marginais domina, oscilando estas entre a prestagio de pequenos servigos e a geralmente pequena delinquéncia, embora o contacto com formas mais violentas de angariagdo de recursos também exista (Quadro 1), Esta constatagdo € alids concordante com as Estatfsticas da Justiga, correspondendo a maioria das sangdes aplicadas relativas a infraccdes penais, embora com o conjunto de situagGes ligadas A desinsergio fami- liar em franco crescimento, isto para um total de casos sem grandes oscilagdes (Estatfsticas da Justiga, 1991; 1993). Paralelamente & actividade mais importante que € arrumar carros, 0 recurso a roubos (lojas, habitagdes e automdveis) e assaltos (pessoas) representa uma segunda forma importante de obter recursos. Pode-se mesmo referir a existéncia de uma forte relagio entre a permanéncia prolongada na rua e 0 contacto (mesmo que pontual) com a obtengao de meios de sobrevivéncia utilizando formas violentas. Estas podem reali- zar-se de forma planeada ou apenas de acordo com uma oportunidade surgida no momento. “Andar nas fezadas” ou “fazer raja” representam formas de codificagao de actividades que implicam a conjugag’o de uma oportunidade e a opcio pelo recurso a comportamentos jd tipicamente delinquentes. Criangas da rua, marginalidade e sobrevivéncia 89 Quadro i: Actividades desenvolvidas pelos entrevistados para angariagZo de recursos Actividade acessériab Actividade Mendicidade Pequenos Roubos | Assaltos. | Total principal & servigos Mendicidade — 2 - i 2 Pequenos servigos i 6 5 2 13, Roubos 1 = 1 I 3 ‘Assaltos T = _ 2 3 ee mas esses a gente dava-thes (..) hd outros gue sdo uns g’andas vetho surra mesmo... sempre a sexta-feira qu’eles iam Id a gente robava sempre ele... sempre fazamos a folha a eles. A gente mandava o puto ir Id, né, 0 puto vai Id... 0 velho saia do carro a gente vinhamos todos, apanhdvamos 0 velho, uma paulada dava para tirar a carteira... uma vez robamos cento e tal contos, duma vez. (E 12) (.) @ gente ia fazer rajd p'ra muitos sitios assim onde é que havia poucas pessoas, nas velhas... nas pessoas, homens, assim... a gente chegava aqueles dois putos pequenos, uma vez meti aqueles que tinham sete anos, meti eles a tirar dinheiro de um homem que estava sentado num banco... (E 17) P — 0 que € que faziam durante o dia? R — Ola... comiamos, anddvamos por ai, brincar... anddvamos por af a ver se viamos algum beto. P— Eo que é faziam se vissem algun beto? R— Olhal... faztamos-lhe a folha... robava-lhe a roupa... os ténis, dinheiro, chapéus... blusdes, camisas, tudo 0 que viesse a mao... «9 A existéncia num dado contexto de determinadas condigdes — acti- vidade, oportunidade, adversério, vitimas, bens — que proporcionam es- timulos situacionais é considerada, por Birkbeck & La Free, como um elemento fundamental para que os comportamentos designados como delinquentes se possam verificar (C, Birkbeck e G. La Free, 1993: 114- 116). A estes estfmulos situacionais poderfamos acrescentar o papel desem- 90 Joao Sebastido penhado pelos contextos socializadores em que as criangas se encontram inseridas, em que circulam sistemas de valores e representagdes que poderao favorecer ou penalizar o aparecimento desses tipos de comportamentos. Se nfo existem relatos de integrago em grupos com objectivos puramente delinquentes (que fazem da delinquéncia uma profissio) a pressao exercida pelo contacto didrio com essa realidade e as necessidades de sobrevivéncia levam a aproveitar todas as oportunidades que surjam: Uma vez s6 tavamos dois Id em (...), 6 pé da estagdo, ‘tava 1d um quiosque, ‘tava Id um gajo maior do que nds , ‘tava a roubar, nds vimos mas deixd- mos ele abrir, depois fomos Id e dissemos que se ele ndo deixasse famos dizer & policia... ele deixou-nos, tirdmos dinheiro, bué de pastilhas... depois basdmos, fomos p'6 Campo das Cebolas... depois de manhé fui & casa da minha mde, dei d minha irma p’a guardar o dinheiro, magos de tabaco e pastilhas . (E 14) Num quotidiano com estas caracterfsticas a presenga da violéncia surge de forma mais ou menos regular. As criangas so vitimas de assal- tos feitos por outros grupos, de praticas violentas de alguns policias e dos conflitos internos ao seu préprio grupo. Se os conflitos entre grupos pro- movem o imediatismo na gestio do quotidiano, a presenga da policia € vivida como uma ameaga permanente, raramente assumindo um papel positivo, antes contribuindo para o aprofundar da marginalizagao. Agres- sdes fisicas, fazer flexdes em nimero varidvel, passar a noite sem poder dormir so algumas das praticas usadas numa das esquadras de Lisboa para “enfrentar” 0 problema das criangas da rua. Se aparecer um policia, se eu tiver ali, eu ‘tou deste lado fujo logo p’rd outro lado... se ele me chamar fujo. Fui p’é esquadra s6 duas vezes ainda... foi uma em Cascais e outra foi aqui na esquadra da Praga do Comércio. Na esquadra da Praga do Comércio bateram-me, em Cascais queriam-me bater, prontos, sé que nao chegaram a bater... porque ndo tinham razdo. Muitas vezes levam-nos e gozam connosco na esquadra, levam-nos agora a esta hora, s6 satmos ds seis da manh& e n&o nos deixam dormir. Uma pessoa té com sono, né, ‘id tarde, ‘td quase a dormir acordam-nos e... ameagam bater-nos, e muitas vezes batem. «7 Também a necessidade de manter em segredo uma boa parte das actividades desenvolvidas leva, no caso dos grupos que utilizam os rou- Criangas da rua, marginalidade e sobrevivéncia 1 bos € assaltos como forma principal de angariagio de recursos, a que sejam bastante reservados nas admisses de novos membros. P — Se aparecesse um rapaz novo deixavam-no andar com vocés? R —A gente ndo conhece... podem ser chibos (da polfcia). P — Mas havia ld rapazes assim ? R — Sim, 0 (...) ia contar na esquadra, os béfias alguns dava-the bicicle- ia... 15) O contacto com diferentes praticas e ameacas sexuais (prostituigio masculina e feminina) representa um terceiro elemento potencial de vio- léncia na rua, em particular para as criangas mais pequenas. Face as ameagas de alguns pedéfilos 0 grupo representa uma forma de auto- defesa e de seguranga. P — Qual foi a pior coisa que te aconteceu na rua ? R — Foi um homem seguir-me... nao foi este da mota, foi um velho. Sempre qu'eu corria ele corria tamém (...), ‘Tava sozinho, depois eu encontrei mais amigos grandes e ele fugit... aqueles amigos tinham umas facas assim... eles $6 tiraram a faca, era de ponta e mola, o velho viu aquela faca toda assim, eu disse “BE aquele”, 0 vetho fugiu, a dar cambalho- tas, a levantar-se... ( 17) Espago, mobilidade e hierarquias sociais Um elemento fundamental na andlise das estratégias quotidianas de sobrevivéncia é constitufdo pela forma como se estruturam as suas pré- ticas espaciais. Origindrios de espagos periféricos fortemente segregados com condigées de vida bastante degradadas, a procura do centro da cida- de representa a atracgfo simbélica de uma zona que ostenta os simbolos do poder e da riqueza. Ministérios, monumentos, sedes de bancos, lojas de luxo e de design de vanguarda, bares e discotecas da moda convivem numa malha urbana de onde os restos da antiga cidade vao sendo progres- sivamente expulsos pelo processo de renovagio urbana — actividades econ6micas menos rentdveis ou em desuso desaparecem ou so empurra- das para zonas menos nobres da cidade e periferia. Desse espago fortemente estruturado fazem parte zonas que pela sua localizagio e fungio no tém sido até agora alvo de grandes intervengdes 92 Jo&o Sebastiao ou renovagées urbanas, o que hes fornece um estatuto marginal dentro da dindmica de crescimento urbano. Falamos de pragas (ou partes) ocupadas por estacionamentos durante o dia (Praga do Comércio, Largo do Corpo Santo, Terminal, Saldanha, Cais do Sodré), espagos ptiblicos com uma utilizagiio fortemente pendular. Da mesma forma certas artérias junto de zonas de diversio nocturna, que constituem diurnamente espagos de pas- sagem, com a chegada da noite transformam-se em gigantescos parques de estacionamento (caso da Av. 24 de Julho ou a zona de Alcantara). Outros locais utilizados, como os parques dos grandes supermercados da periferia (Amadora, Linda-a Velha, Cascais), relacionam-se com estes dentro de uma légica metropolitana, existindo casos de algumas criangas que circulam regularmente por eles. Representando estes espagos pontos de referéncia para as criangas, nao € de admirar que as suas praticas espaciais também se estruturem em seu redor. Impossibilitados de se afastarem durante perfodos longos pela imprevisibilidade e precaridade dos recursos, a sua mobilidade é restrita a deambulagées pela cidade, curtas idas a praia (Estoril/Costa da Caparica) ou ao bairro, Em alguns casos pontuais verificaram-se idas ao Algarve, sendo rapido 0 retorno, pela constatagado da impossibilidade de af conse- guirem assegurar a sobrevivéncia com os recursos disponiveis ou por serem alvo das atengGes policiais. P — Entéo diz Id brincadeiras que facam de vez em quando? R — Ah, andar pendurado nos comboios e nos eléctricos, até as paragens gue nos der na maluca, P — Qual foi o sitio mais longe que vocés foram? R — 0 meu foi ao Algarve. Tive ld dois dias e depois vi-me embora, Onde eu tive (Faro) nao dava para arrumar carros, niio conhecia nada daquilo. (E 2) A constatago de que o fenédmeno criangas da rua tem dificuldade em reproduzir-se fora do seu contexto social original (em todos os relatos de saidas para outras zonas se verifica essa incapacidade), realga a importan- cia da andlise dos modelos especfficos de exclusio social existentes na metr6pole lisboeta. E de referir que esta circulagdo das criangas se faz apenas em casos particulares, sendo a sua principal caracterfstica a per- manéncia, resultante da verdadeira “privatizagio” que operam dos espa- gos através do seu fechamento relativo a estranhos ou criangas provenientes de outros locais. Este fechamento € tanto maior quanto mais central € o espago e significativos so os recursos potenciais de cada um, podendo Criangas da rua, marginalidade e sobrevivéncia 93 mesmo falar-se da existéncia de uma hierarquia dos espagos apropriados pelas criangas da rua. Esta hierarquizagio esta intimamente ligada as idades e aos recursos. Nos locais centrais (Praga do Comércio, Terminal e uma parte da 24 de Julho) so grupos com idades médias mais elevadas que dominam, sendo as outras zonas apropriadas por grupos de criangas mais noyas, com menores capacidades fisicas para impor a sua presenga eo fechamento do seu espago. O delimitar de fronteiras oscila entre o quase bloqueio ao exterior, com fracas modificagSes na composigao dos grupos (Praga do Comércio e Terminal), e a maior abertura ¢ rotatividade das presengas (Largo do Corpo Santo, Santos, Campo das Cebolas). O fechamento dos espagos a outros grupos de criangas surge como um elemento importante nas estratégias de sobrevivéncia na rua. Perante a imprevisibilidade ¢ escassez dos recursos este significa uma forma de preservacio e regulac&o da sua utilizagao e, no menos importante, de auto-defesa perante ameagas exteriores (outros grupos, policias, outros adultos). Este quadro de condicionantes leva a que mesmo em algumas situagdes as amizades mais antigas estabelecidas no bairro de origem sejam dissociadas das situagdes de angariagio de recursos (arrumar car- ros, geralmente). R —Normalmente ndo deixamos arrumar porque... 0 parque é grande, entram e saem muitos carros, ‘tds a ver, aquilo dé para se orientarem todos mas é os que jd cd andam cd, ‘tds a ver (..) agora se vierem mais é que jd nao dd... 6 a mesma coisa que eu, um dia fui arrumar p’rds Amoreiras, como nao ‘tou habituado a arrumar Id houve um gajo que estrilhou comigo e eu... eu sé tive que sair, porque eu tamém fago 0 mesmo aqui na Praga do Comércio... P — E os teus amigos Id do bairro? R — Como ja te disse hé muita gente ali a’rrumar e nao convém trazer mesmo que seja amigos... Ié do meu bairro eu néo trago ninguém, venho sempre sozinho. 4) A presenga no terreno possibilitou ainda realizar observagées que forneceram informagGes relevantes para a andlise da estruturagdo interna desses espagos, Esta constitui um misto de causa e consequéncia, corres- pondendo as situagdes de elevado fechamento a existéncia uma trama de relag6es muito densa e estruturada sobre a qual se apoia, acontecendo o oposto nas situagGes pouco estruturadas. Tal situagdo ficou particular- mente ilustrada por um incidente que presencidmos na Praga do Comér- cio, que mostra como um determinado espago estrutrado institucionalmente 94 Joao Sebastiao pode ser apropriado por grupos que estabelecem sistemas de regras infor- mais, definidas e aplicadas nos seus preceitos e punigdes com quase tanta eficdcia como as normas institucionais. O incidente resultou do conflito pela prioridade de arrumar uma auto- caravana de matricula espanhola, a partida sinénimo de boa gorjeta. A definig&io de quem arruma determinado vefculo concretiza-se num singu- lar processo de negociagio & entrada do parque de estacionamento, atra- vés do gritar bem alto para os outros que carro se vai arrumar, processo de negociagdo “em continuo” que implica perspicdcia para identificar os automéveis que potencialmente poderdo proporcionar melhores gorjetas. Procura-se assim 0 consenso sobre tal pretensdo, que pode ser contestada em algumas situagGes (a mais frequente é a que modifica a ordem da fila de criangas junto 2 bilheteira, o que provocaria uma distribuigio desigual dos proventos), de modo a regular a “posse” dos veiculos, reduzindo eventuais conflitos que inviabilizariam a continuagao da actividade. De- pois de aceite a pretensio esta é cumprida de forma mais ou menos estrita, encarregando-se o grupo de a fazer cumprir. O conflito surgiu precisamente do nio cumprimento desta regra bdsica (outras existem, acerea do relacionamento com os automobilistas que nao dio gorjetas ou sobre riscar pinturas dos automéveis). J4 com a auto-caravana estaciona- da, surgiu um segundo arrumador que procurou disputar a gorjeta, geran- do assim uma discussao que levou os turistas a afastarem-se rapidamente, gorando as expectativas de varios potenciais interessados. Depressa se reuniu um “tribunal” informal constitufdo pelas duas criangas envolvidas, os restantes membros do grupo, dois jovens ciganos que pretendiam ven- der fio dourado (por ouro) e elementos do grupo da outra entrada do Pparque, que também se sentiam lesados com a discussao por esta afastar s “clientes”. O que se seguiu foi um forte reafirmar das regras de apro- priagio colectiva do parque, regras nfo escritas mas que ali possuem valor de lei, mostrando ao prevaricador (com algumas ameagas de agres- sao como suporte) as consequéncias da repetigao do seu acto. Apds muita discussao 0 individuo desviante acabou por claramente reafirmar o valor da regra, 0 que permitiu 0 regresso de todos & rotina anterior. Este incidente eritico forneceu um conjunto importante de informa- gSes acerca dos modos de apropriagdo dos espagos e das fungdes desem- penhadas pelos grupos. A primeira ideia € de que 0 espaco se encontra dividido de forma complexa e complementar, de maneira a assegurar a subsisténcia a todos. A entrada do parque s6 se encontram arrumadores, dentro do parque € territério dos vendedores (neste caso Os ciganos, mas também os que vendem pensos répidos) e a safda “pertence” a uma ra- pariga deficiente que vende lapis. Raramente este equilfbrio territorial é Criangas da rua, marginalidade e sobrevivéncia 95 quebrado por criangas a pedir as janelas dos carros na safda do parque, situagio rapidamente desencorajada. Qualquer comportamento que ponha em causa 0 equilfbrio é censurado e mesmo punido, por ser ameagador da fonte de recursos. Praticas como insultar condutores que nao do gorjeta ou riscar-Ihes os carros sao da mesma forma penalizados porque acabam por levar & intervengao da policia e provocar a interrupgao da actividade. Este tipo de regras reforgando a preocupagio de gerir 0 espago e os recursos de forma consensual, é ali4s comum a outros locais sendo causa de variados conflitos. Cada vez hé mais na praga (Largo do Corpo Santo), 86 que ‘tamos a correr todos com eles, cada vez aparecem mais s6 ressacados... um gajo quer fazer dinheiro pra comer ndo deixam... eu arrumo 0 seu carro, 0 sr... pronto, dd~ me 100800, diga pra eu tomar conta do carro, vem um ressacado ve... v8 assim um telefone, jd parte o vidro, apanha o telefone e jd vai, vem a policia leva todos pra esquadra, vao dez pra esquadra que nao fizeram nada, por esse que fez pagam todos . {E 3) Esta fungao integradora e reguladora desempenhada pelo grupo mos- tra que contrariamente as visGes correntes as criangas nao se encontram num vazio social; elas ressocializam-se dentro de redes alternativas de relagées que Ihes proporcionam apoio e reconhecimento. Uma segunda e complementar nogdio de espago é a que apresentam as criangas que no dependem directamente de um espago concreto para sobreviver. Para aqueles que angariam recursos principalmente através de assaltos @ roubos (a pessoas, lojas, residéncias, etc...) a nogdio de espago altera-se, sendo mais ampla e fluida pela necessidade de procurar opor- tunidades sem se restringirem a uma tinica zona (o que rapidamente os denunciaria). Vaguear pela cidade e arredores constitui a sua principal caracteristica, embora mantenham pontos de referéncia onde se encon- tram regularmente com outras criangas. Por oposigdo a ideia de um espago anémico, marcado pela dissolugdo dos vinculos sociais, 0 que nos surgiu foram divisdes mais ou menos claras dos espagos, em que divisdes fisicas e hierarquias sociais so con- tinuamente objecto de reafirmagiio e negociagio, constituindo os confli- tos momentos centrais de reafirmagio das regras. 96 Joao Sebastido A gest&o do quotidiano Tendo como constante a violéncia e a precaridade dos recursos, 0 quotidiano destes grupos de criangas e jovens caracteriza-se, como alids ja surge de forma parcelar nos pontos anteriores, pelo imediatismo. Esta forma de gerir o dia-a-dia constitui uma estratégia central para assegurar a sobrevivéncia, a par com as formas de apropriagao dos espagos ptiblicos e modos de angariagfio de recursos. O imediatismo surge como a adap- tagao dos modos de vida dos grupos de criangas a um contexto extrema- mente desfavoravel, pois se em certos momentos os recursos angariados até podem ser significativos isso acaba por se transformar numa desvan- tagem. Possuir bens materiais transforma a crianga em alvo potencial de outros grupos, em especial dos toxicodependentes sempre necessitados de mais meios. Esta estratégia, misto de destituigéo e convivialidade (J. F. Almeida e outros, 1992 : 106-107), leva a viver de acordo com 0 momen- to, sem qualquer estratégia a médio prazo, procurando apenas satisfazer as suas necessidades imediatas. S6 encontrémos variagdes a este padrao num grupo com um maior grau de formalizagéo (possufa nome, local regular para dormir, um Ifder incontestado, realizagio de pequenos pro- jectos). Normialmente a utilizag&o dos recursos é feita de forma imediata, limitando-se a utilizagdo da poupanga ao guardar dinheiro para a refeigao seguinte, e a alguns consumos ligados ao lazer (cinema, saldes de jogos). P — Qual é a coisa que achas melhor assim da vida na rua? R — A melhor coisa ... é a unido, (...) a gente as vezes estamos aqui ... verr os rapazes mais velhos, querem roubar... querem roubar um, a gente junta-se todos. Té at um rapaz barbudo... estes dois pisaram-lhe a cabega... porque normalmente a maioria anda a dar no cavalo... entdo depois eles ndo conseguem fazer dinheiro suficiente p’a comprar e vém-nos para ed roubar, sé qu'a gente ndo deixa 7) Eu sempre tive dinheiro, por exemplo, fago hoje dinheiro... por exemplo, é noite, fago dinheiro sempre p'a de manhé... p'a tomar 0 pequeno almogo... depois ia logo direito na Praga do Comércio, estacionava carros, qualquer dinheiro que fazia ia 6 supermercado ... 1p A nogao de tempo baseia-se na sequéncia dos dias e das noites (sem grandes divisdes) e na satisfagdo mais ou menos espontanea de algumas necessidades basicas (alimentagao, repouso, lazer), Criangas da rua, marginalidade e sobrevivéncia 97 Os momentos de lazer integram-se nesta nogiio de tempo contfnuo, no constituindo momentos distintos que impliquem a quebra das rotinas quotidianos, surgindo normalmente nos seus tempos mortos. Andar pen- durado nos eléctricos, viajar de borla nos comboios (pela excitagao de viajar em cima do comboio e da fuga ou conflito com os revisores), ir & Feira Popular e sales de jogos video, a cinemas populares de baixo prego (como o CamGes) no Inverno, ou a praia no Verdo, constituem a principais formas de ocupar os tempos livres. Por vezes pregar partidas a outros habitantes da rua (geralmente idosos sem abrigo) constitui tam- bém forma de diversao. P— Eo gue é que faziam nessas voltas, era s6 olhar? R — Néio, a gente famos né... curtiamos e depois & noite quando a gente quisesse ir p’6 cubiculo vinhamos P — Se andavam as voltas depois ndo tinham dinheiro para comer, como é que faziam? R — Prontos, a gente ndo pagdvamos no comboio, nao pagdvamos no eléc- trico, nada. (...). Uma vez ia caindo do comboio... tava a andar cd em cima né... depois 0 pica abre a porta de repente, eu tava assim dis- traido, o pica agarra-me o pé puxa-o... eu ia a cair... se ndo fosse 0 cabo de aco eu cata p’a baixo, pr’a debaixo do comboio... 9) Fundamental para a reprodugdo da vida na rua é a capacidade para manter “vivo” um registo dos locais e situagdes que poderdo aproveitar ou vir a necessitar. A realizagio aleatéria de observagdes durante as deambu- lagGes pela cidade tem um papel central na identificagdo de potenciais re- cursos, scjam estendais com roupa de marca, casas e carros abandonados para pernoitar ou locais propicios as “fezadas”. Este conjunto de informa- g6es € particularmente importante no que diz respeito 4s casas para pernoi- tar, pela necessidade de regularmente encontrar uma nova. Por exemplo, estou a dormir aqui hoje, ‘td aqui uma casa durmo aqui. prontos, posso dormir aqui dois, trés anos, hd-de ir um dia qu'hd-de vir a pollcia e fecha isto, prontos, apankamos um comboio ou qualquer coisa, ou damos uma volta... normalmente nao é preciso procurar... porque jd sabe- mos onde é que hd casas, jd passdmos por Id... jd vimos, prontos. ED Os “cubjfculos”, locais de pernoita geralmente situados em prédios abandonados nas zonas centrais da cidade ou Linha de Cascais, represen- 98 Joao Sebastiio tam uma das facetas sociologicamente mais interessantes da vida na rua. Verdadeiras comunidades auténomas de jovens, o seu espaco é mui- tas vezes partilhade por varios grupos e algumas raras por adultos sem abrigo. Descoberto o prédio e forgada a entrada, rapidamente a noticia se vai espalhando entre aqueles que partilham a vida na rua. A troca de informagées acerca da localizagio dos cubfculos deve-se a importancia que estes possuem para as actividades quotidianas, pois fornecem um ponto de apoio e protecgao, sempre postas em causa pela presenga da policia ou a instabilidade climatérica (no inverno). Dentro dos cubiculos a divisio dos espagos € em geral feita por gru- pos, embora existam situagdes menos formalizadas em que cada um uti- liza o espago disponfvel sem grandes restrigGes. A sua utilizagdo pressupoe que os moradores respeitem um conjunto de regras, que tm como objec- tivo manter o espaco longe das atengGes da vizinhanga e da polfcia pelo maximo tempo possfvel. Consegui-lo implica entrar e sair de forma dis- creta e um baixo nivel de barulho durante a permanéncia. Internamente 0 respeito pelas poucas posses dos outros é a regra fundamental, sendo 0 roubo fortemente censurado, podendo mesmo dar origem a conflitos vio- lentos. Aguilo ndo tinha Id ninguém, quem Id ia dormir, dormia... tem muitas ca- mas, tinha Id colchées. O primeiro que chegasse e visse uma cama dormia. Nao se podia fazer barulho por causa da policia... se nos apanhavam ali... hum, hum... (E 12) R — Assim cada andar tem um grupo... como por exemplo uns que fumam assim charro e outros que ndo fazem nada disso, sé cigarros. Sepa- rdvamo-nos p’a nao nos viciarmos tamém nisso... nem no xamon, eu . xamon ndo fumo, foi por acaso fumo um cigarro mas nado muit como a cola, ja snifei, snifei... que larguel P — E la dentro da casa mandava alguém? R — Mandavam todos que ‘tavam Id, aquilo ndo tem dono, quem leva as suas coisas manda nas suas coisas, sb que ndo manda nas coisas dos outros. (3) Os cubjicuios representam um ponto central da vida na rua pois cons- tituem locais de socializagio por exceléncia, contribuindo para estabele- cer relagGes de conhecimento e entreajuda entre os varios individuos e

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