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5 A PESQUISA SOBRE AS PRISOES: UM BALANCO PRELIMINAR FERNANDO SALLA Mestre e doutor em sociologia (FFLCH/USP). Pesquisador sénior do Nicleo de Estudos da Violéncia (NEV/USP). Publicou As prisdes em Sao Paulo: 1822-1940 (Annablume-Fapesp, 1999). SUMARIO: 1. Introdugdo - 2. Os primeiros estudos - 3. Da ditadura 4 redemocratizagao - 4. A produgo académica mais recente — 5. Sete desafios — 6. Observagées finais — 7. Referéncias bibliograficas. 1. INTRODUCAO presente texto faz um balango preliminar dos estudos acadé- micos sobre as prisdes, na 4rea das Ciéncias Sociais, no Brasil. Nao se trata de um levantamento exaustivo da literatura ja elabo- rada, mas apenas de uma reflexdo sobre o perfil dessa produgao, discutindo os avangos e obstaculos na conformagao da area prisio- nal como foco de interesse no meio académico. O texto sustenta que as questées relacionadas as prisées, desde o século XIX, pouco interesse despertaram junto aos estudiosos de outras dreas além do Direito e em parte da Medicina associada 4 Criminologia. Mesmo com a formagao de cursos de Ciéncias Politicas e Sociais a partir dos anos 1930, as questdes relativas as prisées ndo motivaram estudos académicos. Os primeiros estudos especificos sobre essas 108 HISTORIA DA JUSTICA PENAL NO BRASIL questOes surgiram apenas nos anos 1970, mas é no curso da redemocratizagao do Pais, na década seguinte, que se avolumaram as preocupagoes da universidade com as prisdes. A manutengao de uma situagdo de crénica crise na area de seguranga pUblica, incluido © sistema prisional, fez com que os estudos sobre este, embora numericamente baixos, se consolidassem na esfera das ciéncias sociais. No infcio dos anos 2000, h4 um verdadeiro boom de dissertagGes e teses sobre temas relacionados a priséo em compa- ragao com a modesta mas regular produgao da década anterior. O texto ainda discute as principais caracterfsticas dos estudos prisio- nais mais recentes, suas tendéncias e os maiores desafios para 0 préprio campo da pesquisa nessa drea. 2. OS PRIMEIROS ESTUDOS Dz boa parte do século XIX a reflexdo sobre o mundo das pris6es no Brasil foi bastante modesta e fortemente marcada pela produgio oriunda do campo juridico. Um exemplo importante dessa reflexdo é o'trabalho de Antonio Herculano Bandeira Filho (1881), que debateu as limitagdes das penas adotadas no Cédigo Criminal de 1830 e colocou como questdo central para o seu aperfeigoamento a ampliagdo do uso da pena de prisio. Muito do que se conhece sobre as prisdes no Brasil naquele periodo foi elaborado por comissées de inspecdo aqueles estabelecimentos ou pelos relatorios governamentais, especialmente os do Ministério da Justiga. No final do século XIX essa drea de reflexao comegou a ser objeto de interesse também dos médicos, sobretudo os que transitavam pelas novas disciplinas compostas pela Antropologia e Criminologia.(A Criminologia teve papel importante na articu® laco de diferentes campos do saber, como o Direito, a Antropo- logia, a Medicina, a Sociologia. Em boa medida, é ela que propor- ciona 0 aparecimento de diversos trabalhos de juristas e médicos como Tobias Barreto, Candido Motta, Paulo Egydio de Oliveira Carvalho, Evaristo de Moraes, Lemos Brito, Aurelino Leal, Vivei- ros de Castro, Nina Rodrigues, Leonfdio Ribeiro, Oscar Freire, Franco da Rocha, Heitor Carrilho (Souza, 2005; Alvarez, 2003). ‘A PESQUISA SOBRE AS PRISOES: UM BALANGO PRELIMINAR 109 E necessdrio lembrar que essa producdo de reflexdo sobre as questGes penais e mesmo prisionais nao estava sendo gerada no préprio territério académico, ou sé em alguns casos. Consistia muito mais numa producao voltada para o debate politico, para a polemizagdo de questées doutrindrias no sentido legal, do que um amadurecimento de um campo reflexivo e claramente delimi- tado no dmbito dos cursos superiores. (Exemplos marcantes desse perfil séo as obras de Evaristo de Moraes (1923), Paulo Egydio (1896) e Candido Motta (1895 e 1910) e sobretudo a de Lemos Brito (1924, 1933 e 1943). Lemos Brito (1924) fez um dos mais completos balangos da situagao prisional no Brasil no inicio dos anos 1920) Seu trabalho foi_apresentado para_o Ministério da Justiga como um relatério{Em certa medida dava continuidade aos documentos produzidos no século XIX sobre a situago das pris6es reunidos nos relatérios oficiais do Ministério da Justiga. De qualquer forma, a produgao desse periodo sobre as prisGes nao estruturava uma reflexdo especifica no acanhadfssimo meio aca- démico que existia no Brasil até os anos 1930. Talvez se possa dizer, também, que muito da produgdo sobre as questées prisionais nas primeiras décadas do século XX fosse a expressdo das inquietagdes dos agentes diretamente envolvidos com a gestao do aparato de controle social, em particular a policia e as prisdes. Muitos dos operadores (diretores de instituigdes, delegados, membros do staff administrativo e técnico) séo ao mesmo tempo os intelectuais que procuravam sistematizar e publicizar suas idéias. E 0 caso da reuniao deles em torno da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia, criada em 1921 em Sao Paulo, que publica a revista Archivos da Sociedade de Me- dicina Legal e Criminologia de Sdéo Paulo. Da mesma forma, na Penitencidria do Estado, por exemplo, em Sao Paulo, € criada a Revista Penal e Penitencidria para servir de veiculo aos estudos realizados pelo Instituto de Biotipologia Criminal (1941). Ou ainda da produgao presente nos artigos da revista Arquivos da Policia Civil de Sao Paulo (Ferla, 2005). A criagéo ou expansao de cursos superiores depois dos anos 30 (além dos existentes na drea do direito e medicina) fomentou a especializagao dos campos de conhecimento, mas mesmo assim nao foi suficiente no curto e médio prazos para despertar uma 110 HISTORIA DA JUSTIGA PENAL NO BRASIL produgao propriamente académica (calcada em pesquisa que segue procedimentos tedrico-metodolégicos), significativa, qualitativa e quantitativamente, sobre temas prisionais. Em Sao Paulo, por exemplo, as primeiras geragdes que se formam na Escola de Sociologia e Politica de Sao Paulo ou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas, da Universidade de Sao Paulo, pou- qufssimo interesse tiveram com as questes relacionadas ao mundo do crime, 4s questées penais e especificamente ao ambiente prisional. Continuavam os juristas, por dever de oficio, assim como os médicos e criminologistas, a se debrugar sobre aquelas questdes. Nesse sentido, é interessante notar que nos EUA desde a década de 30 diversos autores (Clemmer, 1940; Weinberg, 1942; Hayner e Ash, 1939) vinham se interessando por essas quest6es, e espe- cialmente nos anos 50, quando ocorre um forte movimento de rebelides nas prisGes norte-americanas, surgem trabalhos classicos, como o de Gresham Sykes (1958) e o de Erving Goffman (1961). No Brasil, no entanto, a agenda da produgao académica nas ciéncias sociais vai permanecer quase que exclusivamente ligada as questdes da dissolugao das comunidades rurais, da industrializag4o e desen- volvimento urbano, das relagGes raciais (Miceli, 1989). 3. DA DITADURA A REDEMOCRATIZACAO ma intensificagdo na reflexdo sobre as questdes penais e sobre © mundo das prisdes veio a tona na década de 1970 em meio a uma crise crénica que vinham apresentando as instituigdes de controle social e também em meio ao debate voltado para a reforma do Cédigo Penal de 1940 e dos preparativos para a elaboracgdo da Lei de Execucao Penal.(Livros que marcaram época foram os de Augusto Thompson (1976), Percival de Souza (1977), Manoel Pedro Pimentel (1978), Marina Marigo Cardoso de Oliveira (1978), entre outros) Todos esses trabalhos foram relevantes para o debate e para pautar a agenda de reflexao sobre as questées prisionais naquele periodo. No campo propriamente académico, no inicio dos anos 1970, na esfera das ciéncias sociais, apareceu um trabalho pioneiro, voltado para a presenga das forgas policiais em Sado Paulo no século A PESQUISA SOBRE AS PRISOES: UM BALANCO PRELIMINAR 111 XIX e comeco do XX, realizado por Helofsa Fernandes (1973). Pouco tempo depois, sobre a teméatica prisional, era publicado o igualmente pioneiro trabalho sobre a Casa de Detengaio de Sao Paulo, produzido no ambito da Antropologia, que é 0 de José Ricardo Ramalho (1979): Foi defendido como dissertagio de mestrado em Antropologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de Sao Paulo e inaugurava um campo de pesquisa que vai muito lentamente se constituir. Seu trabalho permaneceré uma referéncia importante, mas durante um bom tempo isolado. Um pouco depois, dambém no campo da Antropologia, Ricardo Cusinato (1982) analisou a penitencidria de Araraquara no interior de Sao Paulo. No Rio de Janeiro, Julita Lemgruber apresentou em 1976 seu trabalho sobre a Penitencidria Talavera Bruce, que foi publicado em 1983. Essa obra, também produzida como dissertagéo de mestrado, além de se colocar ao lado de Ramalho como uma das pioneiras no meio académico, inha ainda a novidade de analisar uma penitencidria feminina. Também no Rio de Janeiro, El¢a Mendonga Lima (1983) fez um estudo sobre as origens daquele mesmo presidio. Talvez este seja um dos raros trabalhos que se debrugaram sobre a administragao de presidios femininos por ordens religiosas, numa experiéncia “proto-hist6rica” de_privati- zac4o no gerenciamento das prises no Brasil! Em Sao Paulo, Vitor Garcia-Toro (1982), também na drea da Antropologia, produziu um estudo pioneiro sobre as mulheres presas na Penitencidria Femi- nina da Capital. E, ainda no campo da reflexao inovadora sobre as mulheres, foi (publicado em 1983 (mas apresentado como dissertagao de mestrado em Direito em 1980)(@ texto de Maud Fragoso Perruci (1983) sobre a condigéo das mulheres encarce- radas em Pernambuco. Houve, portanto, no inicio da década de 1980, certa ampliagao dos estudos sobre as prisdes. A razio desse movimento esta associada, ao que parece, a dois aspectos. Ao lado de todo o debate sobre a reforma do Cédigo Penal e a elaboragao da Lei de Execugao Penal (Leis 7.209 e 7.210, de 1984), o Pais vivia o processo de redemocratizacao, e as instituigdes de controle social passaram a ser alvo de interesse para o debate publico. O conhecimento sobre o sistema policial, o sistema penitencidrio e

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