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NTS MSE CHU Tn satin racismo, etnicidade, género, sexualidades e corpos | dade e C ft hs a on SSC (er Mae) ta) i i ransversali ‘ FLAVIA CRISTINA SILVEIRA LEMOS - DOLORES GALINDO UOTE OBS aca any SONU Taare 03) GIANNA AZEVEDO NOBRE _ MARIALUIZA LEMOS AZEVEDO - ANTONIO SOARES JUNIOR JOSE AUGUSTO LOPES DA SILVA- ALANNA CAROLINE GADELHA ALVES HELENA CAROLLYNE DA SILVA SOUZA - ANDERSON REIS DE OLIVEIRA MELINA NAVEGANTES ALVES - ATAUALPA UNSTRUNG Hat eae al OBERDAN DA SILVA MEDEIROS - LARISSA AZEVEDO MENDES PATRICIA DO SOCORRO MAGALHAES UNH OL) Urry (cawy wy WS Copyright © da Editora CRV Ltda. Editor-chefe: Railson Moura Diagramagio e Capa: Designers da Editora CRV Imagem da Capa: Pixabay Revisdo: Analista de Escrita e Artes DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAGAO NA PUBLICACAO (CIP) CATALOGACAO NA FONTE Bibliotecaria responsavel: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506 Po74 Psicologia, historia cultural e govemamentalidades: racismo, etnicidade, género, sexualidades e corpos / Flavia Cristina Silveira Lemos, Dolores Galindo, Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, Aluisio Ferreira de Lima, Joao Paulo Pereira Barros, Aurea Gianna Azevedo Nobre, Maria Luiza Lemos Azevedo, Anténio Soares Jinior, José Augusto Lopes da Silva, Alanna Caroline Gadelha Alves, Helena Carollyne da Silva Souza, Anderson Reis de Oliveira, Melina Navegantes Alves, Ataualpa Maciel Sampaio, Marcelo Moraes Moreira, Oberdan da Silva Medeiros, Larissa Azevedo Mendes, Patricia do Socorro Magalhaes Franco do Espirito Santo (organizadores) ~ Curitiba : CRY, 2020, 790 p. (Coleco: Transversalidade e Criagdo - Etica, Estética e Politica. v. 11) Bibliografia ISBN Colegio 978-85-444-1750-8 ISBN Volume Digital 978-65-5868-739-9 ISBN Volume Fisico 978-65-5868-734-4 DOI 10.24824/978655868734.4 1. Psicologia 2. Psicologia social 3. Psicologia politica 4. Ciéncias sociais 1. Lemos, Flavia C. S. org, I. indo, Dolores. org. III. Bicalho, Pedro P. G. de. org. IV. Lima, Aluisio F. de. org. V. Barros, Joio P. P. org. VL Nobre, Aurea G. A. org. VIL. Azevedo, Matia L. L. org. VIL Jimnior, Anténio S. org. IX. Silva, José A. L. da. org. X. Alves, Alanna C. G. org. XI. Souza, Helena C. da S. org. XI. Oliveira, Anderson R. de. org. XII. Alves, Melina N. ong. XIV. Sampaio, Ataualpa M. org, XV. Moreira, Marcelo M, org. XVI. Medeiros, Oberdan da S. org. XVI. Mendes, Larissa A. org. XVIII. Santo, Patricia do S. M. F. do E. org, XIX. Titulo XX. Transversalidade e Criagio - Etica, Estética e Politica. v. LL CDU 316.6 CDD 150 316.4 304.8 indice para catdlogo sistematico 1. Psicologia social 316.4 2. Racismo 304.8 ESTA OBRA TAMBEM ENCONTRA-SE DISPONIVEL EM FORMATO DIGITAL. CONHEGA E BAIXE NOSSO APLICATIVO! App Store 2020 Foi feito o depésito legal conf, Lei 10.994 de 14/12/2004 Proibida a reprodugdo parcial ou total desta obra sem autorizago da Editora CRV Todos 0s direitos desta edigdo reservados pela: Editora CRV Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracry.com.br Conhega os nossos langamentos: www.editoracrv.com.br VOZES QUE DENUNCIAM OPRESSOES: estudos de género, satide mental e alucinagao auditiva Henrique Campagnolo Davila Fernandes Valeska Zanello Género é uma categoria analitica que nos fornece uma perspectiva trans- versal para a area da satide, especialmente a satide mental, campo que carrega em seu bojo a psicopatologia tradicional. Esta ciéncia foi estruturada a partir de fundamentos de uma medicina organicista, na passagem dos tempos medievais aos modernos, e foi ganhando contornos positivistas que permitiram localizar e explicar as disposig6es afetivas humanas com base em questdes bioldgicas. Porém, quando pensamos que problemas de satide podem ser ocasionados por determi- nantes sociais, ou seja, por condigdes sociais em que os individuos trabalham e vivem™, torna-se necessario avaliarmos o softimento humano considerando seus contextos existenciais, em meio aos quais se destacam os valores de género. Pesquisas no campo da satide mental (PHILLIPS; FIRST, 2008; ZANELLO; FIUZA; COSTA, 2015; CAMPOS; ZANELLO, 2016; ZANELLO, 2018) apontam a participagao de valores e esteredtipos de género na configuragao de diversos sintomas descritos nos transtornos mentais, nos manuais classi- ficatorios. Isso ocorre tanto nas diferentes formas de expressao (diferentes sintomas), quanto no contetido que se manifesta 4s vezes na mesma forma (mesmo tipo de sintoma). Como exemplo do primeiro caso, pode-se citar 0 comportamento do choro, aceitavel, em sociedades sexistas como a brasi- leira, para mulheres, mas vista como um elemento que fere o ideal de mas- culinidade, para os homens. Nesse sentido, o modo de expressio da tristeza, no universo masculino, ocorre, muitas vezes, pela agressividade e violéncia (ZANELLO, 2018) e nao pelo choro, como é comum entre mulheres. No segundo caso, temos a discussio sobre os delirios e as alucinagdes. Zanello ¢ Bukowitz (2011) apontaram em seu estudo em um hospital psiquid- trico brasileiro, 0 quanto os temas das queixas e dos delirios eram diferentes entre homens e mulheres. No caso dos homens, prevaleceram temas como tra- balho, dinheiro, fama e sexualidade ativa. JA no caso das mulheres, destacaram- ~Se as queixas relacionais, que tiveram como objeto a vida amorosa ea familia. Como podemos entender a patoplastia no caso das alucinagées, sobretudo no que diz respeito ao género? Este é 0 tema de estudo do presente capitulo. 130 Segundo a Organizagao Mundial da Satide, envolvem fatores econdmicos, étnicos/raciais, culturais, psico- l6gicos e comportamentais (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). 242 Porém, mais do que fixarmo-nos no escrutinio exclusivo dos sintomas, iS necessario compreendermos sua relago como 0 pathos e os modos de vida, bem como com os eventos desencadeadores da “quebra” psiquica. Ou seja, 0 quanto os sintomas nao apenas refletem valores e ideais culturais, mas modos de sofrimento especificos, marcados por advires particulares. Nesse sentido, Zanello (2018) ressalta, no caso de sociedades sexistas como a brasileira, a necessidade de se pensar em caminhos privilegiados de subjetivagiio distintos, os quais foram configurados historicamente e que constréem pontos identita- tios de maior vulnerabilizagdio: os dispositivos amoroso e materno, no caso das mulheres, e 0 dispositivo da eficacia, para os homens. “Dispositivo” foi definido como 0 “conjunto decididamente heterogéneo que engloba discursos, instituigées [...] leis, medidas administrativas, enun- ciados cientificos, proposigées morais, filantropicas” (FOUCAULT, 2010, p. 244). O dispositivo amoroso, segundo Zanello (2018), significa que o “ser” mulher se dé em uma relacao afetiva com um homem que a escolha: “em nossa cultura, os homens aprendem a amar muitas coisas e as mulheres aprendem a amar, sobretudo, e principalmente, os homens” (p. 84). Ou seja, o amor, ou certa forma de amar, se constitui em fator identitario para as mulheres. O dispositivo amoroso é marcado por uma metafora que Zanello (2018) nomeou como “prateleira do amor” (p. 84). Quanto mais préxima do ideal estético!®! — que é jovem, louro, branco e magro -, maior a possibilidade de a mulher ser escolhida; quanto mais afastada dele, maiores os riscos de ficar com baixa autoestima, e sentir-se abandonada ou “encalhada”. JA o dispositivo materno diz respeito ao ideal da mulher como reprodutora e cuidadora (ZANELLO, 2018). Esse ideal se fortaleceu no século XVII, quando se passou a naturalizar nas mulheres a capacidade de maternagem (BADIN- TER, 1985; DEL PRIORE, 2009). As mulheres passaram a priorizar 0 cuidado dos outros (filhos, maridos, ambiente doméstico) em detrimento de si mesmas, subjetivando-se, assim, em um heterocentramento (ZANELLO, 2018). O princi- pal sintoma da efetividade desse dispositivo é 0 sentimento de culpa, que surge frente a ndo consecugio de deveres socialmente prescritos, tais como 0 ideal de cuidar e estar inteiramente disponivel para os outros (ZANELLO, 2018). O dispositivo da eficacia, por sua vez, diz respeito a exigéncia de virilidade laborativa e sexual para os homens. Ou seja, o verdadeiro homem seria um trabalhador e um “pegador” de mulheres (ZANELLO, 2018). O “ser homem”, em nossa cultura, deve atender a uma performance que se afaste da passividade (como na homossexualidade, segundo o imaginario popular) ou de esteredtipos associados ao “mundo” feminino. Além disso, 0 trabalho se apresenta como 131 Segundo Del Priore (2000), esse padréo é decorrente de uma ideologia burguesa de higiene moral surgida no sséculo XX, que consiste em associar a juventude e a magreza como fatores indispensveis é sade. Uma das categorias de andlse referetes 8s ouvdoras de vozes que partciparam deste estudotratara dessa questi. PSICOLOGIA, HISTORIA CULTURAL E GOVERNAMENTALIDADES: racismo, etnicidade, género, sexualidades corpos v. 11 243 pilar da virilidade (e, portanto, da identidade) masculina, e serve para subjugar outros homens e prover as necessidades familiares (ZANELLO, 2018). Nos servigos de satide mental é comum mulheres homens apresenta- rem demandas relacionadas aos dispositivos (ZANELLO; SOUSA, 2009; ZANELLO; BUKOWITZ, 2011; ZANELLO ef al., 2015), e seus contetidos e temas pervadem varios dos sintomas que comparecem no dia a dia dos servigos, como é 0 caso da alucinagao auditiva'*? — que se caracteriza pela percepgio de vozes e/ou outros sons, por somente uma pessoa, sem que um estimulo externo tenha 0s eliciado. A cultura exerce papel crucial em sua estruturagdo (FERNANDES; ZANELLO, 2018a) e alguns estudos procuraram correlacionar acontecimentos que infligiram grande sofrimento e o surgimento desse sintoma (LONGDEN; WATERMAN, 2012; KRAKVIK et al., 2015). Nesse sentido, ha que se destacar 0 movimento da Rede Internacional de Audigao de Vozes (em inglés, Hearing Voices Network), considerando que 0 mesmo nao compreende esse fendmeno como sintoma de doenga mental, mas como uma forma de linguagem — que denuncia questées relacionadas a sexismo, racismo e outras formas de opressfio (BLACKMAN, 2015). Assim, alucinar é uma solugio psicolégica vantajosa, j4 que as vozes agem como uma defesa contra emogées e memérias dolorosas, enquanto que, ao mesmo tempo, clamam a necessidade de que elas sejam ressignificadas (ROMME; ESCHER, 2000). Cabe também ressaltar que, em razdo da importancia da exploragao de varidveis topograficas — caracteristicas das vozes como identidade e contetdo — para a compreensao do fenémeno e para o cuidado clinico (FERNANDES; ZANELLO, 2018b), é necessario que o cuidador esteja atento a questdes de género para conduzir 0 seu manejo, principalmente em paises como 0 nosso, caracterizado pelo sexismo e misoginia (WAISELFIS, 2015; CERQUEIRA et al., 2019). Do contrario, ha possibilidade de que as pessoas sofram por nao compreenderem suas vivéncias, e sejam medicadas ou conduzidas a caminhos terapéuticos que nao tenham muita resolutividade — 0 que teria como efeito a permanéncia ou o agravamento da condig4o clinica. Assim, em fungdo da necessidade de uma escuta e de um manejo clinico da audigdo de vozes que privilegie elementos que fazem parte do contexto cultural e relacional do ouvidor, como possibilidade de maior abertura para a compreensaio do fenémeno, este artigo teve como objetivo analisar de que forma questdes de género contribuem para estruturar estas experiéncias (tanto na configurago do evento desencadeador, como no contetido do que as vozes dizem). Para tal, foram analisadas narrativas de ouvidoras e ouvidores de vozes que faziam parte de um grupo destinado ao manejo da alucinac&o auditiva em um Centro de Atengaio Psicossocial (CAPS), conforme os procedimentos descritos a seguir. 132 Neste estudo também utilizaremos 0 termo “audigao de vozes" em referéncia as alucinagdes, termo que se adequa mais a forma como o fendmeno é sentido. 244 Método Este artigo se estruturou a partir de uma proposta de estudo de casos mil- tiplos (Yin, 2005), de ouvidoras e ouvidores de vozes que frequentavam um grupo destinado ao cuidado do fenémeno da alucinagiio auditiva em um CAPS Il, de uma capital brasileira. Os dados utilizados neste trabalho foram coletados a partir de duas fontes: a) um roteiro de entrevista semiestruturado, o qual foi empregado para obtermos informagées sobre a trajetoria biografica, as primeiras experiéncias de audigdo de vozes, situagdes que poderiam ter contribuido para 0 surgimento e a permanéncia das vozes, as estratégias que eram utilizadas para lidar com as manifestag6es, as varidveis topograficas, e a rela¢do com familiares; eb) 62 registros em audio, feitos pelo pesquisador apés 0 término das sess6es do grupo de ouvidores de vozes, os quais foram transcritos posteriormente em formato de diario de campo. Nesses registros foram relatados diversos aspectos dos encontros, tais como temas dialogados, demandas, narrativas dos ouvidores de vozes — sob a forma literal e do ponto de vista do pesquisador - e trocas de experiéncias entre os participantes, dentre outros acontecimentos. Participaram da entrevista 10 ouvidores de vozes (seis mulheres e quatro homens), e os diarios de campo envolveram um total de 44 pessoas. Desse quantitativo, apenas 20 (11 mulheres e nove homens, incluindo os que partici- param da entrevista) tiveram seus relatos analisados, por terem frequentado o grupo por pelo menos um més. Quanto ao perfil desses 20 ouvidores, fatores como condiga&o socioeconémica, etnia/raga, escolaridade, religido, e diagndsti- cos psiquiatricos foram heterogéneos, e as idades variaram entre 23 e 65 anos. Os dados foram analisados por meio da Andlise de Conteido (BAR- DIN, 2016), ja que tal método permite a apreensdo dos sentidos das expe- riéncias dos sujeitos de pesquisa. Considerando 0 eixo de referéncia deste estudo — satide mental e dispositivos de género (ZANELLO, 2018) -, 0 cri- tério de categorizacao escolhido foi 0 semantico, com os dados tendo sido classificados dentro de categorias tematicas, como sera visto no proximo topico. Informagdes que pudessem levar a identificagdo dos participantes foram omitidas e/ou trocadas, a fim de resguardar o sigilo. Este estudo foi aprovado pelos comités de ética em pesquisa da Instituigao de Ensino Superior e da Secretaria de Estado de Satide responsaveis através dos cédigos CAAE: 52032315.6.0000.5540 e 52032315.6.3001.5553. Resultados e discussio Os dados foram organizados segundo cinco categorias. Trés delas so rela- tivas as mulheres, e foram nomeadas como: a) “mal-estar silenciado”; b) “ideal estético”; c) “maternar”. As outras duas sAo relativas aos homens: “d) ser homem PSICOLOGIA, HISTORIA CULTURAL E GOVERNAMENTALIDADES. tacismo, etnicidade, género, sexualidades @ corpos v.11 245 (querer) foder mulheres”; “e) ser homem é ser trabalhador e provedor”. Serio apresentados a seguir cada uma das categorias e alguns recortes dos didrios e das entrevistas. Antes ou ao final de cada recorte, e dentro de paréntesis, foi especi- ficada a forma de participagaio (“entrevista”, ou “sesso” — seguida do numero). a) Mal-estar silenciado Onome desta categoria se deve as performances que as ouvidoras adotavam frente as situagdes de sofrimento. O siléncio, performance prescrita para as mulhe- res, constitutiva do dispositivo amoroso (ZANELLO, 2018), é uma estratégia de enfrentamento e sobrevivéncia adotada com o objetivo de manter as relagdes —principalmente com a familia e o companheiro/marido, as custas dos préprios afetos e pensamentos (ja que so suprimidos). Catia deixou essa questo bem clara: “minha bisavé falou que nés temos que ficar caladas, que a maior sabedoria que existe é nao fazer nada, ficar calada e ter calma’” (sessio 61). E assim ela procedia com seu ex-marido, nas situagdes em que se sentia incomodada por ele. Mas ainda assim, o siléncio gerou crises (com a escuta de vozes e visdes) que fizeram com que seu ex-marido intensificasse as violéncias domésticas: “Eu ja tinha tido trés surtos, violentos e agressivos. Meu marido me ameacou que, se tivesse mais um, ele se separaria de mim” (sessao 4). A separa¢iio veio com outro surto e com isso ela ficou internada em um hospital psiquiatrico publico, foi torturada e amarrada. A narrativa de Catia traz 4 tona um pensa- mento de Showalter (1987) acerca do manicémio: “a casa do desespero’ [...] se tornou o simbolo de todas as instituig6es criadas por homens, do casamento a lei, que confinam as mulheres e as levam a loucura” (traducao nossa, p. 1). Ou seja, além das violéncias cometidas pelo ex-marido, “insuficientes” para conter seu siléncio, a ela foi compelido um mecanismo mais opressor, que a silenciou por meio de “amarras” fisicas (cordas) e psiquicas (medicagao). Outras oito participantes da pesquisa que tiveram a experiéncia de uniao estdvel ou casamento também relataram ter sofrido violéncia psicolégica por parte dos companheiros/maridos, e, assim como Catia, respondiam com o siléncio. A violéncia era praticada mais comumente pela desqualificagao dos relatos de sofrimento e, também, por meio de xingamentos que se referiam a audigao de vozes ou a condigao clinica, como relatou Hélen: “Meu ex-marido me chamava de doida e achava que eu era doida mesmo” (sesso 58). Janete, por seu turno, afirmou que 0 marido nao acreditava que ela ouvia vozes, e que chegou a achar que estava louca. Ela sentia tristeza, e também muita raiva pela desqualificagdo de suas experiéncias alucinatérias— senti- mento que se materializou através das vozes que ouviu: “wm dia tava fazendo café pro meu marido. Eu tinha acabado de colocar agucar, a voz veio e orde- nou assim: “coloque sal”. Ai coloquei sal, ele reclamou que estava salgado, 246 ea voz comegou a rir” (sessio 2). Como na relagao com o marido nao havia espago para falar sobre seus conflitos emocionais (decorrentes, por exemplo, da saudade da filha que morava em outra cidade), ou sobre as vozes, ela preferia ficar calada, ja que, do contrario, sofreria violéncias psicoldgicas. Janete sentia solidao, e as vozes de comando, agressivas, se manifestavam diante dessas violéncias; ainda assim, ela se continha, e sofria em siléncio. A performance de Janete corresponde a um tipo de agressividade permi- tido as mulheres: a autoagressividade. Esse modo de ser que retém sentimen- tos, em vez de expressa-los, faz com que as mulheres implodam psiquicamente (SHOWALTER, 1987; ZANELLO, 2018), como aconteceu com as ouvidoras do grupo. E em razio de as emogGes e sentimentos (como raiva e culpa) serem um dos principais gatilhos para a audigdo de vozes (CORSTENS; LONGDEN, 2013), 0 silenciamento frente as situagdes de violéncia foi um fator que as levou a ouvir vozes ou a sofrer uma intensificagao delas. Cabe destacar que o siléncio foi uma performance adotada por alguns homens'*; porém, no caso das ouvidoras, ele teve 0 intuito de renunciar a si, visando 0 cuidado de outrem — motivo frequente entre as mulheres (ZANELLO, 2018). O siléncio também foi adotado pelas ouvidoras diante de experiéncias de violéncia sexual. Das 11 mulheres que tiveram seus relatos analisados, duas haviam sofrido tentativa de violéncia sexual (uma na infancia e a outra na fase adulta), e seis (54,5%) declararam que haviam sido estupradas (trés delas na infancia). Tal quantitativo é superior aos indices levantados pela Organizagaio Mundial da Satide, que constatou um percentual de 33% em mulheres adultas (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2013), ¢ 20% no periodo da infancia (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2014). Segundo Virginia: “Na época conheci o Cris e comegamos a namorar. A gente nem beijava na boca, sé andava de mao dada. Um dia ele me chamou na casa dele pra conhecer sua irmd, mas nao tinha ninguém, ele tentou me estuprar” (entrevista). Virginia contou nas sessées do grupo sobre outras violéncias, perpetradas pelo ex-marido, e acreditava que elas estivessem relacionadas ao surgimento das vozes. Os relatos de Virginia e das outras sete ouvidoras corroboram achados de pesquisas que atestaram uma alta correlagao entre abuso sexual e alucinagdes (SHEVLIN et al., 2007; LONGDEN; WATERMAN, 2012), tanto no tocante ao surgimento desse sintoma, quanto no seu agravamento. As vozes atuavam também em decorréncia de lembrangas ou pensamentos sobre os estupros, como no caso de Raissa: “Com o meu pai, com cinco anos de idade ele me abusou, e teve um primo meu também [...] e quando t6 sozinha em casa é que as lembrangas vém, as vozes, e fico desesperada” (sessio 31). 133 _ Isso se deu para que mantivessem sua autossuficiéncia. A maloria deles ouvia vozes que questionavam as Virlidades laborativa e sexual, como veremos neste estudo, ¢ 0 siéncio era adotado para néo serem julgados como fracas" ou “vados"(dentre outros significant presentes na nossa cultura, que “desonram’o ser home). PSICOLOGIA, HISTORIA CULTURAL E GOVERNAMENTALIDADES: racismo, etnicidade, género, sexualidades e corpos v. 11 247 Outro fator gerador de siléncio foi a religido, elemento mencionado por sete participantes, que servia tanto para dar sentido e conforto a algumas experiéncias de sofrimento - no caso das ouvidoras ligadas ao espiritismo — quanto para apagar ou reforgar situagdes de opressfo — em se tratando das evangélicas -, como Bruna relatou na entrevista: A ivmé teve revelagdo que eu comi algo que me fez mal, que quando eu comecei eu senti muito enjoo, era como se algo tivesse dentro de mim e qui- sesse sair, e ai ela falou “olha Bruna, o processo da sua vida é, vai ser um negécio continuo, porque é uma doenga, o espirito que veio sobre tua vida e te afrontava pra vocé se sentir oprimida, espirito da tristeza, da depressdo, e vocé tem que procurar se libertar disso, com louvor, na palavra. Bruna sublinhou na entrevista que sua tristeza come¢ou ja na infancia, por nao ter tido afeto do pai (que tem diagndstico psiquiatrico), tampouco da mae (que se separou do marido em fungiio de violéncia doméstica e preferiu deixar Bruna com uma irméa para que ela no sofresse diante desse cenario), e que, apds o término do segundo relacionamento abusivo, esse sentimento se intensificou. A primeira crise com audigao de vozes veio em uma festa, quando ingeriu muita bebida alcodlica, e trouxe a tona o sentimento de ddio pelos ex-companheiros — a ponto de ela se desfazer de tudo o que estava associado ao primeiro relaciona- mento (roupas e outros pertences) ao chegar em casa. O discurso religioso (do pastor e da irma da igreja) desconsiderou a trajetéria biografica de Bruna. Foi comum no grupo a utilizacao de alguns significantes, como “carma”, “castigo”, e “culpa”, por exemplo, independentemente da religiado da ouvidora, para justificar situagdes de opressdo ou de vulnerabilidade social: era uma puni¢do de Deus pelo mal cometido em outras vidas, ou o destino que ele havia tragado para elas. A religido, bem como a religiosidade e a espiritualidade, por- tanto, sao elementos que podem contribuir para o silenciamento de contextos de vida opressores, e dai a necessidade de um trabalho cuidadoso por parte do profissional de satide — se necessario inclusive junto aos lideres religiosos, a fim de prestar suporte técnico acerca dos condicionantes das violéncias, e evitar que eles atuem como um dispositivo de silenciamento das mulheres. O siléncio sobre o proprio mal-estar, portanto, é uma atitude que pode colocar as mulheres em situacio de vulnerabilidade. Ele participou tanto da configuragao do contetido de algumas experiéncias alucinatérias como, sobretudo, se constituiu como gatilho emocional para que as vozes surgissem ou se intensificassem. E mister sublinhar que, além de um numero maior de ouvidoras que frequentavam o grupo em relacao aos homens, as mulheres foram mais assiduas e tiveram um tempo de fala mais longo, dados esses que apontam para uma demanda de espagos de acolhimento e suporte para as inumeras experiéncias de opressio que sofreram. 248 b) Ideal estético Outra questo que se fez presente nos relatos das ouvidoras do grupo foi a de se estar fora do ideal estético apregoado pela cultura, em funcao da ade, As quatro mulheres do grupo que afirmaram estar com sobrepeso reclamaram ter sofrido pressio de familiares, amigos, conhecidos ou mesmo o olhar desqualificador de outras pessoas quanto a essa condigao, e, em trés delas, as vozes estavam associadas com 0 stress que sentiam em decorréncia das press6es. Foi em raziio da lipofobia que Ursula decidiu fazer cirurgia baria- trica, como declarou na entrevista: “Fui obesa mérbida na adolescéncia, sofria iminacao, tinha dificuldade de me relacionar com as pessoas [...] Eu obesid muita dis tinha pavor de ser obesa. E hoje se eu fosse obesa, acho que seria mais feliz. Ursula nao sofre mais pelo fato de estar acima do peso. Mas a discriminagao sofrida por ela (e pelas outras ouvidoras que se julgavam “gordas”) se enquadra na ideologia de higiene moral que associa magreza e juventude a satide (DEL PRIORE, 2000). Na tentativa de adequar-se ao ideal estético, Ursula passou por varias dietas, fez uso de muitas medicagées e veio a sofrer consequéncias deletérias para sua satide: “Uma coisa que influenciou muito nessas vozes foi as medicagées da época, que eram anfetaminas, eu tenho certeza disso” (entrevista). Ursula teve dificuldades para estabelecer relacionamentos amorosos, primeiro pela questao da obesidade (pela lipofobia e pelo lugar desfavoravel que ocupava na prateleira do amor), e depois por ter se tornado paciente psi- quiatrica (psicofobia). Com isso, sentia-se sozinha — assim como as outras ouvidoras participantes da pesquisa que estavam com sobrepeso. A solidao era um fator eliciador e mantenedor das vozes. Outro problema relatado pelas participantes com sobrepeso foi o da compul- sao alimentar ou da quantidade de comida ingerida, relacionadas tanto ao efeito das medicagdes (passaram a sentir mais vontade de comer), quanto a ansiedade gerada pelo sentimento de solidao e pelas cobrancas externas. As vozes tinham uma importante atuagao nessa problematica, pois costumavam surgir para ordenar que elas comessem mais, ou apés a ingestiio dos alimentos (para culpé-las), e ainda para menospreza-las. Bruna, que tinha as vozes eliciadas por observagdes que ouvia de pessoas proximas acerca de seu peso, afirmou na entrevista: “Entéo éuma crise constante, E quando as vozes vém, eu tento nao afrontar elas, porque elas ficam Jogando pensamentos pra me deixar frustrada. Porque a sociedade te joga um padrdo de beleza e vocé tem que estar daquele jeito,” 7 Cabe destacar que as participantes que se sentiam obesas, Ursula, nao tiveram a oportunidade de serem acolhidas cionadas ao sobrepeso, tampouco a elas foi oferecido u profissional qualificado nos servicos de satide em que (CAPS e postos da comunidade). além de nas questdes rela- im acompanhamento €ram acompanhadas

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