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e @ @ Poesia depois do verso Na histéria e no programa da poesia concreta, a critica mobilizou todas as suas forcas conceituais com o fim de explicar 0 encerramento do ciclo histérico e formal do verso. As consideracdes que conflufram nesta critica negativa proce- diam tanto de uma concepgao da histéria da poesia do ponto de vista da técnica, como da apropriagao de uma série de conceitos e elementos tomados da critica literdria e dos discursos inovadores que as Bienais de Arte e Arquitetura traziam consigo. Porém, em um nivel mais medular, comprometendo a fundamenta- go basica da técnica como critério, o que os textos programaticos discutiam nao era s6 uma questo de procedimentos, mas sim em que consistia a especi- ficidade do poético e que aparéncia formal era a mais eficaz para apresenté-la. Aqui, passa-se de uma critica negativa do verso a uma considera¢ao positiva da produgio postica, e é forjada ou reformulada uma série de termos que — em dife- rentes niveis e nem sempre de um modo rigoroso — da conta dos resultados das experimentagées: “ideograma’, “verbivocovisual’ “estrutura dinamica’, “escritura icénica” so os mais usados, mas nao os tinicos. Nesse ponto, a dificuldade para descrever as propostas reside no éxito dessa terminologia e na dificuldade para tracar uma denominagao alternativa que nao acrescente mais confusao ou con- tradicoes. Por isso, em vez de propor novos termos, prefiro manter as denomina- des e trabalhar com o que considero as duas operagées basicas que dao conta das inovagdes produzidas pela poesia concreta: 0 espaco como agenciamento e 175 ‘© signo como né material de relagdes, Nenhuma dessas operagées ¢ alheia A poe- sia de escritura convencional, mas, sem diivida, o concretismo explorou-as de maneira mais sistematica e radical. O verso, tanto com relagao ao metro — que 6 inerente a sua forma — como em suas rimas ou paronomasias — que propoem similitudes fonicas -, também opera com o espago ¢ as semelhangas materiais. Porém, em meados dos anos 1950, os poetas concretos afirmaram que essas ope- ragdes nem se produziam de acordo com a experiéncia contemporanea, nem conseguiam expressar 0 especificamente poético. Para demonstra-lo, levaram adiante, pela primeira vez, uma critica integral e total do verso’. Histéria (evolutiva) do verso Uma histéria da poesia serviria para mostrar como o elemento estrutural basico, 0 verso, foi perdendo seu predominio e seu poder significante e distintivo. Em- bora os esquemas métricos tradicionais tenham funcionado, a princfpio, como regra mneménica, rapidamente tiveram uma justificacao estética e filosdfica e, com 0 romantismo, chegaram a ser um dos exemplos mais contundentes e efica- zes das semelhangas e correspondéncias. A partir da estrutura varidvel dos versos e das relagdes entre estes por meio da rima, do metro e do tipo de compasigio, 0 poema constrédi uma linguagem regida pelo ritmo. Porém, além de ser uma uni- dade ritmico-estrutural, o verso também implica um elemento mimético com relacdo a uma ordem superior, que € definida de varias maneiras, de acordo com cada poética: pode ser o equivalente da natureza, da idéia ou de algum outro tipo de instancia transcendente. O verso —e por essa raz%o me refiro a ele como cate- goria ideolégico-formal — nao sé é uma técnica de escritura, como supée algum tipo de vinculagao estrutural e valorativa entre texto e mundo. A modernidade singular e fundacional de Charles Baudelaire consistiu, en- tre outras coisas, no conflito entre a experiéncia da modernidade e as formas herdadas, assim como em todas as decis6es estéticas e ideolégicas que sua re- solugado comportava. Em As Flores do Mal (1857), esta incluséo dos elementos modernos se produz sob a categoria ideolégico-formal do verso, que entra em 1.A tentativa mais audaz havia sido empreendida por Mallarmé em seus textos sobre a “crise do verso" As vanguardas repudiaram 0 verso, mas ndo fizeram uma critica integral a ele: em todo caso, 0 verso livre nao deixa de ser verso. 176 Poesia concreta brasileira crise, anos depois, com os Pequenos Poemas em Prosa (1864). Tal como afirma 0 proprio Baudelaire em seu prefacio a esse livro, a ruptura se vincula com a ex- periéncia de alienagao da metrépole moderna: Lidge mest venue de tenter quelque chose d’analogue [a Gaspard de la Nuit de Aloysius Bertrand] et /appliquer & la description de la vie moderne, ou plutot d'une vie moderne et plus abstraite [..] une prose poétique, musicale sans rhytme et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s'adapter aux mouvements Iyriques de lame, aux on- dulations de la réverie, aux sobresauts de la conscience? Cest surtout de la fréquentation des villes énormes, c'est du croisement de leurs in- nombrables rapports que nait cet idéal obsédant, A harmonia entre poeta, palavra e mundo — da qual o verso seria um agente — entra em uma crise irreversivel: 0 lugar social do poeta j ndio é 0 mesmo, nem tampouco 0 é a nova paisagem que enfrenta. As reflexes dos poetas fran- ceses da segunda metade do século x1x sobre a persisténcia do verso como forma giram, freqiientemente, em torno desse problema, e varios deles abando- nam © verso metrificado pelo verso livre, pelo poema em prosa ou — como no caso de Un Coup de Dés, de Stéphane Mallarmé, em 1897 — por novas formas que quebram e disseminam o verso no espago da pagina. Jacques Ranciére, a partir do comentario do texto “Solennité’, de Mallarmé, explica com estas palavras a “crise do verso”, que se havia iniciado com os Peque- nos Poemas ern Prosa: A crise anedética do veneravel alexandrino remete ao desvanecimento mais sério desse céu das Idéias, Nao existe mais “molde supremo”, “objeto algum que exista”, nem “numerador divino de nossa apoteose”, O poeta nao possui mais modelo, celeste ou hu- mano, para imitar. A partir de agora, pela “exclusiva dialética do verso” ele poderé ani- mar a marca da idéia, agrupando segundo um ritmo essencial "todos os restos do nau- fragio, dispersos, ignorados e flutuantes”’. 2. Petits Poémes en Prose, 1969, pp. 7-8. 3. Jacques Rancitre, Mallarmé. La Politique de ta Siréne, p. 30. As frases entre aspas pértencem a Mallarmé, Como se pode ver, a idéia de que o verso cumpre seu préprio proceso dialético, desin- tegrando-se, jd esté em Mallarmé. Crise do verso 177 A forma j4 nao antecede o poeta, que nao tem onde depositar seu desejo mi- mético. O verso nao pode mais apoiar-se em um modelo idealista e tradicional; resta somente a dialética imanente de um verso novo que possa reconstituir 0 “ritmo essencial”, razao tiltima do trabalho poético. “Ritmo: forma relacional’, como definiu Décio Pignatari, recuperando para ele um espaco da imanéncia’. Para ler ou analisar os poemas das vanguardas, a categoria tradicional do verso ¢ insuficiente, e sua aplicacio relativiza e normaliza as conseqiiéncias que podem originar-se das novas formas experimentais. Em Trilce (1922), de César Vallejo, as violéncias praticadas sobre 0 verso significam, para a poesia escrita em espanhol, uma passagem semelhante a que se produz, em miisica, da conso- nancia a dissondncia: 999 calorias. Rumbbb... Treraprre rrach... chaz Serpentinica «del bizcochero Trilee, xxxin Mediante essa escritura poética, Vallejo desfaz a articulacao entre harmonia enatureza que caracterizava a poética modernista de Rubén Dario. Como apon- tou Arnold Schoenberg em seu Tratado de Harmonia, a oposicio entre conso- nancia ¢ dissonancia nao é uma questo de esséncia (natural/antinatural), mas de grau, e“depende apenas da capacidade do ouvido para familiarizar-se”®. Essa motivaco distancia Vallejo de outras tentativas de vanguarda voltadas para 0 verso livre e insere seu livro de poemas em uma tentativa paragramdtica de or- ganizagao do material’. Como conelusio: certos poemas de Trilce nio podem ser lidos a partir da categoria ideoldgico-formal do verso. 4. "Poesia Concreta: Organizagao’, em Teoria da Poesia Concreta, op. cit., p88 5.Amold Schonberg, Tratado de Armonta, 1974 p.16. 6.A analogia com Schoenberg, misico que Vallejo nao conhecia, tem como objetivo marcar a substituiggo de um modelo de consonéncia ¢ harmonia, por outro, de dissondincia e atonalidade. Uma analogia ainda mais surpreendente 6a que se pode fazer entre estes versos do poema xxxtt de Trilce e as teorias musicais do futurista italiano Luigi Russolo: “so0 km. por hora TRRARRRRR (Empurrar com pé direito acelerador distancias + 1000 profundidade + 300.000 resisténcias da terra As velocidades esfregantes)" (em Luigi Russolo, El Arte de los Ruidos, 1998, p. 51). Durante a aécada de 1970, Haroldo de Campos fez varias tradugdes de Trilee que, até onde sei, ndo foram incluidas em nenhum de seus livros. 178 Poesia concreta brasileira A impossibilidade de utilizar 0 verso como chave de leitura para as poéticas vanguardistas explica por que estas se situaram frente ao material da perspectiva donovo e da impugnagdo dos esquemas tradicionais herdados, Nestes, 0 verso de- sempenhava um papel-chave e supunha uma idéia de ordem e harmonia que a/ex- periéncia moderna excedia ou nao reconhecia como propria’. Nesse sentido, Alia- zor (1931), de Vicente Huidobro, pode ser lido como a impossibilidade de constituir a verso como lugar do poeta, ¢ Espantapdjares (1931), de Oliverio Girondo, como um abandono da preceptiva métrica, para dar lugar ao livre fluxo das experiéncias e associagdes. Para a poesia contemporanea, depois da intervengao vanguardista, aversificagao, a métrica, a rima e outros procedimentos estao no campo do possi- vel ¢ j& nao tém um sentido obrigatério: sio um repertdrio de formas & disposi¢ao do trabalho poético, O retorno a esquemas regulares limita esse inventario e ex- clui as resolucdes mais extremas, mas nao por isso reinstala sua necessidade. A recuperacio das formas regulares teve lugar no pés-guerra € encontrou seu correlato ideolégico na aspiragdo de reconstruir ou recuperar um mundo perdido de harmonia. No Brasil, a reinstalagao do verso tradicional teve repre- sentantes nos poetas da Geragio de 45, mas também em quase todos os poetas modernistas que adotaram, com uma organicidade muito propria do campo postico brasileiro, esta nova orientagéo. Os poetas que se juntaram a esse re- torno ao verso regular selecionaram seus procedimentos do repertério de for- mas, segundo um critério de homogeneidade (0 “decorum” e o “clima” que apontou Haroldo de Campos), mas deixando de lado o de evolugao (que era as- sociedade desuma- sociado ao progresso, a tecnologia e, em tltima instincia, nizada da guerra). Daf que os poetas do grupo Noigandres tenham acentuado 0 critério de evolugao, que servia para excluir seus antecessores imediatos ¢ que recolocava um conceito tipicamente moderne: o de técnica Se os poetas da Gerac&o de 45 haviam repudiado as experiéncias de van- guarda com base em uma série de clichés, os poetas concretos reintroduziram © modernismo no cenitio, fascinados com a seguranga discriminatéria ofere- cida pelo conceito de técnica como evolucao’, Com esses conceitos, os poetas 4.Em Primera Residencia en la Tierra (1925-1931), de Pablo Neruda, por exemplo, as imagens que jé nao podem fluir nesse esquema cognoscitivo que é o verso regular transbordam os pri versos dos poemas (de metro endecassilabo ou alexandrinos) 8, Para muitos poctas vanguardistas, como Vladimir Maiakévski, Guillaume Apollinaire ou Ezra Pound, 2 consideragao técnica também era parte central de s tos trabalho. No entanto, e em opo- Crise do verso 179 concretos mergulharam no mundo dos textos ¢ estabeleceram uma linha evolu- tiva que convertia os poetas da geragao anterior em “regressivos”. Nesse desloca- mento, foi muito importante, como demonstra 0 prefacio a Poetamenos, de Au- gusto de Campos, de 1953, o modelo da miisica e das artes plasticas, para o qual esta “evolucio de formas” era bastante mais organica. No caso do serialismo ou da pintura abstrata, essa evolugio prescindia do sujeito (isso era o que enfa- tizavam as teorizagdes) como agente das rupturas e transformagoes. Nessa su- pressao do sujeito, a evolucao arrasta a histéria, e a forma do verso, como escre- veu Décio Pignatari, “destruiu-se na dialética da necessidade e uso histéricos”®. Existe, aqui, um fetichismo da técnica, que é uma caracteristica permanente na concepgio literéria dos concretos e, ao mesmo tempo, a chave de seu poder (seus ensaios literarios esto sempre organizados em torno de uma revisio das técnicas e dos procedimentos). ‘A técnica formal surge, entéo, como um critério apropriado ¢ relativamente seguro para estabelecer uma linha evolutiva dos materiais, uma homogenei- zacio do corpus e um desenvolvimento auténomo das formas. No entanto, a prova da dissolugao progressiva do verso como estrutura distintiva cai no vazio se nao é oferecida uma critica coerente dos fundamentos que fazem sua distin- ¢a0. No se trata de um problema meramente técnico, mas sim comporta uma experiencia e um posicionamento que evidenciam a insuficiéncia do verso, nao s6 como unidade ritmica, mas também como categoria ideolégica ‘Assim como a vivéncia da cidade moderna levara Baudelaire a se questio- nar sobre a viabilidade do verso, também a experiéncia metropolitana da Sao Paulo dos anos 1950 foi central para os poetas de Noigandres. A paisagem tec- nolégica moderna, em pleno crescimento, repercute nas posturas artisticas das vanguardas e em sua aposta em inserit-se e incidir nessa realidade tecnolégica que se apresenta a eles, Dai que os poetas concretos recusem 9 sublime do neo- classicismo e o substituam pela linguagem de um mundo tecnificado, em que a poesia também quer ter seu lugar. Em uma paisagem despojada de todo élan sigfo a sua preocupagio aparente (sobretudo em Pound) em recuperar diversos momentos do pascado da poesia, essa consideragio quase sempre se produzia em termos de atualidade ou de anti-historicismo e, raramente, em termos dfacrénicos, tal como as vanguardas de meados do sé~ culo xx haviarn feito (0 exemplo é muito mais contundente se pensermos nas experiéncias do da- daismo e do surrealismo). 9. Décio Pignatari, “Nova Poesia: Concreta’ em Teoria da Poesia Conereta, op. cit, p. 41. 180 Poesia concreta brasileira transcendental, mas ante a qual os poetas nao desviam seu olhar em direco a mundos ideais irremediavelmente perdidos, o problema apresenta-se para eles estritamente em termos de. , funcionalidade, integracao e experiéncia modernas. *Renunciando & disputa do ‘absoluto, a poesia concreta permanece no campo magnético do relative perene’, lé-se no “plano-piloto para poesia concreta’™. Nesta afirmacio da contingéncia ¢ da necessidade de legitimar uma forma a partir da imanéncia, os poetas coneretos negam uma harmonia do poema que, por mais avalizada que esteja pela tradigao, nao corresponde as novas condi- gdes de produgdo e circulagao dos poemas. Essa experiéncia do moderno confronta-se com as possibilidades do poema em verso, No manifesto de 1956, Décio Pignatari escreve: verso: crise. obriga © leitor de manchetes (simultaneidade) a uma atitude postiga- nao consegue libertar-se dos liames légicos da linguagem: ao tentar fazé-lo, discursa adjeti- ‘vos. nao dé mais conta do espago como condigao de nova realidade ritmica". ‘A libertagao do poema reside em sua independéncia dos “lacos logicos da linguagem’. A proposta, aparentemente simples, complica-se quando se trata de estabelecer a razio pela qual esses lacos ldgicos obscurecem as relacdes entre as coisas e por que exigem que uma nova sensibilidade poética deva de- sembaragar-se deles. As buscas por autoridades criticas que empreenderam 08 poetas concretos dependiam mais de suas necessidades programéticas do jo, Teoria da Poesia Concreta, op. cit, p. 157. Em um de seus textos mais polémicos, “Poesia ¢ Paratgo Perdido” (396s), Haroldo de Campos escreve: “O lirismo anénimo ¢ anddino, © amor as formas fias do vego, que explica, em muitos casos, a ‘redescoberta’ do soneto guisa de ‘dernier cr: do manifestagbes sobejamente conhecidas desse preguigoso anseio em prol do domingo das artes, remanso onde a poesta, perfeitamente codificada em pequeninas repras métricas ¢ sus nada a ui sereno bom tom formal, aparelhada de tm patriménio de metéforas prucentements ontrolado em sua abastanca pequeno-burguesa por um curloso poder morigerador ~ 0 ‘clima’ do poema ~ pudesseficar & margem do processo cultural garantids por um SeBuso de vida fidu- siado a eternidade, Ese novo arcadismo, convencionado’ sombra de clichés, sancionando a pre” sguica ea omissio como atituce frente aos problemas estéticos, autolimitado por um senso autit- Gqico-soipsista de “nétir’ que excomunga a permeabilidade entre as solueses poéticas, musicais su das artes visuals (por uma ignoréncia aprioristica ¢ nfo poucas vezes agressiva), tem como palavra-senha entre nds o conceito de human” (Idem, p.27) qwiTeoria da Poesia Concreta, op. clt, p. 4 Crise do verso. 181 que do desenvolvimento de uma pesquisa filos6fica coerente: as contribuigdes sdo miultiplas e, as vezes, contraditdrias. Este uso das obras critico-tedricas para fundamentar decis6es de escritura poética foi uma constante na maneira como os poetas concretos leram ¢ incorporaram a teoria a suas posigdes. Tra- tava-se, no caso da critica do verso, de fundamentar as duas intuigdes basi- cas que estio no fundamento de sua poética e que serio os leitmotiv jamais abandonados, independentemente dos diferentes dispositivos tedricos que vio sendo incorporados'. A primeira intuicdo é que o ideograma oferecia uma safda a insuficiéncia do verso como unidade minima de sentido e estrutura ritmico-formal. Nesse aspecto, a leitura do Finnegans Wake, de James Joyce, foi fundamental nao sé Porque esse autor, jé a partir de Lilisses, propunha-se a escapar a légica diurna, & percep¢io automatizada, mas também porque a prosa de seu work in pro- gress possuia uma alta densidade poética e se propunha a gerar um novo signo, produto do amilgama de palavras e de sua dimensao “verbivocovisual”” Esse Porteranteau, que tomaram de sua obra, complementava-se com a nogao de ideograma, & qual se acrescentava a dimensao sonora®, “Ideograma’ e signo “verbivocovisual" so as portas de entrada para as buscas posteriores por estru- turas alternativas ao verso e aos "lagos Iégicos da linguagem’, 12.Eu as denomino “intuigdes" no sentido de que so como linhas que se abrem e que depois con- tinuam com mais rigor (isto 6 a intuicdo no permanece como tal, mas sim se transforma em uma série bastante ampla de conceitos). 13, Esta consideracao espacial e visual do signa também poderia ser deslocada ao campo da sono: ridade, mas aqui a contribuicao dos poetas concretos, apesar de sua peculiaridade, nfo tem sido 40 importante como fol em termos de espacialidade. Na leitura oral, Poetamenos fol a proposte que chegou mais longe, ao propor uma leitura a virias vozes e “cores” e com cortes abruptos dissondncias que escapavam a toda preceptiva poética. A homogeneidade dos poemas da fase ortodoxa interrompeu esses experimentos, embora nao tenha deixado de oferecer algumas con- tribuigdes, como a repeticao quase automatizada da leitura, que exclufa as inflexdes enfiticas ¢ expressivas. Foram os integrantes do grupo Muisi¢a Nova que se encartegatam, em suas adapta- sbes, das possibilidades que esses poemas abriam no campo sonoro (como, por exemplo, as que Gilberto Mendes fez de "beba coca-cola’, de Décio Pignatari, “cidade’ de Augusto de Campos, ¢ “nascemorre’, de Harold de Campos). As dificuldades de produgio, sem divide, atrasaram as Virtualidades sonoras desses textos que, tempos depois, algumas gravag6es poriam em destaque, sobretudo os espeticulos multimidia de Augusto de Campos e seu cp Poesia E Risca. Por wma ‘questao de espago, deixo de lado as inovacées sonoras ¢ ritmico-auiditivas da poesia concreta 182 Poesia conereta brasileira A segunda intuigdo se vinculava mais com a organiza¢ao do material e con- sistia na idéia de que um pensamento poético podia ser estruturado a partir da distincdo proposta por Guillaume Apollinaire em um de seus textos criticos: Nada de narragio, dificilmente poema. Se quiserem: poema ideografico. Revolugso: porque € preciso que nossa inteligéncia se habitue a compreender sintético-ideografica- mente em lugar de analitico-discursivamente™. Essa distingao comporta dois tipos de organizagées lingitisticas: a linear (da qual o verso participa) ¢ a constelar, que langa os signos simultaneamente no espaco. Esta tiltima ¢ a adequada a “nova realidade ritmica, que um mundo tecnologizado impée e no qual a comunicagéo visual deixa a cultura livresca e discursiva em segundo plano. A organizagao linear, ao contrario, participa dos “lacos légicos da linguagem’ definidos como as relagdes que surgem da orga- nizacdo sintatica da lingua. S. I. Hayakawa, em um ensaio muito citado pelos coneretistas, defende que “a estrutura tradicional da linguagem (e as concomi- tantes reagdes semanticas) divide o indivisivel em ‘entidades’ distintas (discre- tas) — muitas vezes obscurecendo ou ocultando por completo os relacionamen- tos funcionais”’. Hayakawa define esse tipo de linguagem como “ocidental” ou “aristotélica” ¢ a opde ao chinés"®. A sintaxe linear e a vinculagdo intransitiva 14, Teoria da Poesia Concreta, op. cit, p. 21. Sobre esta oposicio analttico-sintética, ver Apolli- naire, Oetevre Compléte, 1965, vol. 1, p. 616 (Sim do segundo pardgrafo). 45:"O Que Signilica a Estrutura Aristotélica da Linguagem?, em Haroldo de Campos, Ideograra (Légica, Poesia, Linguager), 1986, p. 273. Esse ensaio de 1948 foi bastante citado por Haroldo de Campos em seus escritos da década de 2950 ¢ incluido em sua antologia Jdeograma, de 19775 2 po- siggo de Korzybski que se apresenta nele também foi central na idéia de uma "fase matemética da composicao’, Hayakawa se refere, indiferentemente, a estes “lacos légicos” como linguagem “acis- totélica” ou “indo-européia’ 16.As diferengas entre linguas ocidentais (combinadas e simbilicas) e o chines (isolantes) sia tra- balhadas pelo lingdista Edward Sapir em Language, 1949. Diz Sapir: “Um chinés com certa inteli- géncia e sensibilidade, acostumado como esta a deparat-se com a propria esséneta de linguagem, poders dizer, depois de compreender uma frase latina: ‘Que imaginagio mais impregnada de pe- dantismo!, Deve ser muito diffcil para ele, ac entear em contato pela primeira vez com as ilégicas complexidades de nossas Iinguas européias, sentir-se a vontade diante de uma atitude que con- funde de tal modo 0 assunto material de que se fala com seu esquema formal, ou, pare dizer com maior precisdo, que relega certos conceitos fundamentais concretos @ empregos tho secunditios Crise do verso 183 mediante o verbo “ser” sao inerentes as linguas indo-européias e implicam uma determinada visio do mundo. Jacques Derrida se referiu a esse modo de organizar a linguagem como “o modelo enigmatico da linha” toda a produgio postica do concretismo desses anos deve ser lida como insurgéncia contra esse modelo. Foi contra esses lagos logicos, baseados no principio de identidade, que os poetas concretos busca- ram relagdes de contigitidade, sobreposigio, intercambio e semelhanca. Para por essas relagdes em funcionamento, os manifestos e ensaios dos poetas bra- sileiros se propuseram a fazer um uso programatico do espago como agencia- mento € do signo como né material de relacdes, Leituras critic; ideograma Das leituras que os poetas do grupo Noigandres fizeram durante os anos 1950, surgiu 0 termo “ideograma” que, ao longo dos ensaios e manifestos, transfor- mou-se no catalisador de uma série de operagies posticas ¢ criticas, JA na in- trodugao de Poetamenos, de 1953, Augusto de Campos falava de “instrumentos: frase/palavra/silaba/letra(s), cujos timbres se definam p/ um tema grifico-foné- tico ou ‘ideogramico””, Nesse uso, o ideograma se define - de um modo res- trito — como uma continuidade ou um motivo visual e fonico que se repete no poema ¢ que substitui o tema seméntico ou o estribilho. Posteriormente, os di- ferentes usos ¢ leituras que o termo “ideograma” comporta permitem falar de um conceito eléstico que é pensado, basicamente, em oposi¢ao ao verso e que funciona em vérios niveis, Embora os poetas paulistas usem a palavra “ideo- grama” para se referir tanto a seus poemas da fase concreta e A poesia chinesa, & poética de Pound e Mallarmé como 4 cultura visual, 4 simultaneidade eaes- pacializagao textual, em cada momento privilegiam-se elementos diferentes ¢ de relagio” (pp. 96-97). Embora o proprio Sapir advirte que se trata de um exagero, ¢ importante notar aqui o seguinte: 1. busca de legitimacio dos poetas concretos em fontes tedricas de carter cientifico; 2. crenga de que essas diferencas podem subverter-se no trabalho poético; 3. confusio entre dois niveis que se relacionam, mas que nao necessariamente se equivalem: lingua e pensa- mento. Esse livro foi muito citado por Augusto de Campos, sobretado em seu artigo “A Moeda Concreta da Fale" (Teoria da Poesia Concreta, ap. cit, pp. 111-122), cujo titulo est tomado do en- saio de Sapir, quem também € citado no “plano-piloto para poesia concreta’ 17. Teoria da Poesia Concreta, op. cit, p.15, 184 Poesia concreta brasileira odecisivo é que o “ideograma’, como termo, consegue sintetizar fenémenos de natureza distinta. Aproximar-se da génese do termo nos ensaios e manifestos permite estabelecer um ponto de partida para construir um instrumento crf- tico de leitura do poema concreto. Em 1913, Ezra Pound recebeas notas € os manuscritos do sindlogo Ernest Fe- nollosa, que havia morrido em 1908. A heranca havia passado, a principio, para a.esposa de Fenollosa, que decidiu colocd-la nas mos do jovem poeta a quem considerou, apesar de nao conhecé-lo pessoalmente, como o mais idéneo para traduzir poesia chinesa. O trabalho de Pound com o coloquial e sua atitude van- guardista podem ter influenciado na escolha da esposa de Fenollosa, embora a rario decisiva pareca haver sido a destreza, 0 rigor ¢ a originalidade com que Pound compunha a imagem postica’*, Esses papéis causaram tal impacto no poeta norte-americano, que,a partir dai, grande parte de sua produgao critica e postica girou em torno da histéria e da escritura chines s. Cathay, varias passa- gens dos Caritos (dez deles, do Lit ao Lxt, dedicados exclusivamente & historia da China) e os livros sobre Confitcio (Confucius Digest of the Analects, de 1937, Confucio, Studio Integrale, de 1942, ¢ Confucian Analects, de 1951) séo alguns dos textos que surgiram desse legado. Dos textos de Fenollosa, 0 que mais magnetismo exerceu sobre Pound foi The Chinese Written Character as a Medium for Poetry (Os Caracteres da Eseri- lura Chinesa como Instrumento para a Poesia), ensaio que prefaciou € anotou em 1918, e publicou em varias ocasides’®. Muitas eram as ansiedades do jovem poeta que esse ensaio satisfazia. Em primeiro lugar, Fenollosa concebe 0 ideo- grama em termos muito similares ao que 0 faria a arte cinematografica alguns anos depois, ¢ isso era fundamental para os artistas de vanguarda, tao preocupa- 48. As hipéteses sobre as razdes da esposa de Fenollosa para entregar o legado literdrio de seu marido a Pound sao especulativas, Para uma aproximagio biogrifica a esse fato, pode-se consul tat o livro de Noel Stock, Ezra Pound, 2989, pp. 198 ¢ ss. Para uma abordagem tedrica, pode-se ver Ideograma, op. cit, livto de Haroldo de Campos que compila o ensaio de Fenollosa, prefa- ciado por Pound, e outros ensaios muito importantes sobre 0 tema, como os de Serguei Eisens- tein eS. L, Hayakawa. 19.0 ensaio de Fenollosa fot publicado, primeiro, na revista Little Review (set.-dea. 1919) ¢, de- pois, incluido no liveo de Pound, Jnstigations, de 1920. Tomo esses iltimos dados do ensaio intro. losa), dutérlo de Haroldo de Campos, “Ideograma, Anagrama, Diagrama (Uma Leitura de Fen em Idengrama (Logica, Poesia, Linguagem), op. cit, 2.12. Crise do verso 185 dos com um trabalho moderno e autoconsciente dos materiais da obra**. Por outro lado, o texto do sindlogo reforcava um antiocidentalismo bastante difuso mas que, na Europa, vinha-se impondo com bastante forga desde o pés-impres- sionismo ¢ que em Pound assumiu a forma de uma paixao pela cultura chinesa (em distintas modulagées, essa caracteristica pode ser observada no uso das mascaras africanas em Picasso, nas viagens de Blaise Cendrars e, um pouco depois, na fascinacao dos surrealistas pela natureza americana), Contudo, tam- bém 6 necessério considerar a postura postica do préprio Fenollosa: o privi- légio que dé A metéfora e as imagens mentais em sua correspondéncia com 0 mundo percebido transformaram The Chinese Written Character as a Medium for Poetry em um momento de guinada da poética de Pound e, portanto, das vanguardas anglo-americanas. Em seu ensaio, Fenollosa afirma que o idioma chinés nao se compée de “sim- bolos arbitrarios’ mas sim que “obedece 4 sugestao natural” Seus tragos sao re- Presentagoes ideograficas dos objetos que designam e “lendo o chinés — afirma Fenollosa — nao temos a impressio de estar fazendo malabarismos com fichas mentais, e sim de observar as coisas enquanto elas vio tecendo seu proprio des- tino’ As conexées entre os signos e as coisas tém razées de ser e nao so arbitrs- tias, como nas linguas alfabéticas, A combinacdo desses tragos que obedecem a sugest4o natural nao determinam um sentido por sua soma, ¢ sim por uma associacao do leitor: “duas coisas que se somam nao produzem uma terceira, mas sugerem uma relacao fundamental entre ambas”", No método de constru- Gio dos ideogramas, o que predomina € a associagio metaférica que, segundo Fenollosa, diferencia a poesia da prosa. Na concep¢ao de Fenollosa (e 0 mesmo pode ser dito de Pound), “a metafora, a reveladora da Natureza, é a substancia mesma da poesia”, Fenollosa surpreende-se diante dessas caracteristicas da escritura pictogra- fica e chega a afirmar que nos encontramos diante de uma linguagem postica, 20. Como se sabe, essa proximidade entre ideograma e montagem foi desenvolvida pelo cineasta soviético Serguei Eisenstein, em 1929, em seu escrito "O Principio Cinematogrifico € o Ideo- grama’: Esse texto, muito citado nos artigos ¢ manifestos dos poetas concretos, foi inchiido na antologia Ideograma (Logica, Poesia, Linguagem), op. elt. 21. Cito de "Os Caracteres da Escrita Chinesa come Instrumento para a Poesia em dem, pp. 123- 134, 22, Jdem, p. 139. 186 Poesia concreta brasileira visto que se baseia na metéfora © nao nas categorias logicas. O carater sintético ¢ paratitico néo seria, como nas linguas indo-européias, uma violéncia que se exerce sobre a lingua, mas uma caracterfstica da lingua em si: no chinés, nao s6 a organizagio dos signos é paratatica e sintética, como cada signo também 0 ¢. Estamos, argumentam Pound e Fenollosa, na presenga de uma lingua poética Nao importa aqui que as consideragdes do sindlogo e do poeta nao tenham sido rigorosas: interessa-nos mais um critério de produtividade que de ver- dade®, A interpretagio do sentido dos hierdglifos egipcios durante 0 perfodo barroco foi totalmente errénea e, no entanto, essa concepgao esta no cerne de um poema como Primero Sueno, de Sor Juana Inés de la Cruz, que escapa aos ctitérios de verdade ou falsidade. Algo similar poderia ser argumentado por um antropélogo ao revelar o quanto de mistificacdo existe nas teorias antropofagi- cay de Oswald de Andrade; entretanto, clas nos oferecem um diagnéstico origi- nal e estimulante da cultura brasileira do século xx. E assim como uma concep- ¢éo erronea do ideograma deu origem & poesia de Pound, um erro muito simi- lar fez com que Eisenstein estivesse em condiges de criar seus grandes filmes. Todos esses exemplos server para 0 caso Fenollosa-Pound e explicam que, ape- sar do reptidio dos sindlogos, T. §. Eliot tenha declarado que Ezra Pound, pela qualidade de suas tradug6es, foi “o inventor da poesia chinesa para nosso tempo’ Na transposigio que fez para sua propria pottica das conclusées de Fenollosa, Ezra Pound valorou 0 ideograma de acordo com trés caracteristicas: acombinaco e a apresentacao direta de imagens por justaposigao (carater sin- tético), a organizac&o néo-hierérquica nem predicativa (caréter paratitico) ¢ 0 carter ideogréfico estrito. A combinacio desses elementos proporciona um mé- todo de escritura postica que Pound denominou “ideogramético” Em muitos de seus ensaios, o poeta norte-americano desenvolveu as possibilidades desse mé- todo, mas foi um livro de critica publicado em 1951 que servi como mediador entre as teorias de Pound e os poetas de Noigandres: The Poetry of Ezra Pound, de Hugh Kenner, Nesse livro, defende-se que a importancia de Pound reside 23.0 préprio Haroldo de Campos aponta, sem por isso deixar de dar continuidade a muitos de seus principios, algumas limitagdes do ensaio de Fenollosa:“Dos quatro prineipios em que se fundamen: tou a construgao dos caracteres chineses, apenas 0 primeiro se baseia na representacao pictérica (o segundo seria uma espécie de diagramagao da idéia [.]; 0 terceiro, uma evocagdo por sugestie [Jo quarto, (.] seria uma combinagdo de um dos 214 elementos radicais: Ide, p- 38 Crise do verso 187 prineipalmente em suas “descobertas técnicas’, entre as quais se encontra o “mé- todo de composigao ideogramstico”**. “Método ideogramitico” nao é0 mesmo que ideograma, e a proposta de Pound, tal como a descreve Kenner, asseme- Iha-se & idéia de montagem cinematogréfica, s6 que com blocos de palavras. A idéia do linear continua predominando nessa concep¢ao e 0 ponto de partida de Kenner é que “cada poema tem uma trama (plot)"5. Desse modo, ainda que as imagens atuem sobre quem as recebe por contraste e sintese, no texto man- tém-se sujeitas 4 apresentagio linear e sucessiva*®, Esta é uma das contradigoes 4s quais chega o método ideogramético poundiano e que seus poemas “resol- vem" precariamente com um uso disruptivo dos ideogramas chineses?”. O card- ter ideografico estrito esta reservado para os caracteres chineses e nao se aplica as linguas indo-européias a nao ser metaforicamente. A presenga insistente das teorias de Pound e do livro de Kenner como media- dores nao fez, porém, com que suas posigées fossem reproduzidas na poética do coneretismo. E evidente, ¢ isso se observa em qualquer poema concreto, que a metéfora j4 nao tem mais o lugar privilegiado que lhe outorgavam Fenollosa e Pound. Ou melhor, existe, como demonstrarei mais adiante, uma recusa da ima- gem metaférica como célula basica do poema. A idéia da poesia como “arte do tempo’ que Fenollosa defende e que permanece com “o poema como trama’, de Kenner, também nao encontra continuidade nas teorizagdes dos poetas paulis- tas, mais preocupados em ressaltar os aspectos espaciais do poema com o fim 24. Hugh Kenner, The Poetry of Ezra Pound, 1952, p. 32. 25. Idem, p. 62. Assim como na poesia do fim do século essa trama se compunha de transigies com nuance, a principios do século predominaria a composigio com contrastes e choques. Entre as fontes de inspiragdo de Pound, estava o cinema de Eisenstein. 26.Nos Cantos de Pound, a linearidade as vezes é quebreda pela reprodugao de ideogramas que funcionam como sinteses ético-poéticas, mas que ndo interrompem o fluxo de versos, que € como se apresentam, fem excecio, todos os poemas dos Cantos. Pound nunca teve uma con- cepedo do espaga como forma, apeser do exemplo que se costuma dar de seu poema *Em uma Estado de Metr6” ("In a Station of the Metro”), em que os blocos s4o separados por espacos em branco, Esse texto é, mais exatamente, um claro exemplo da idéia de poema como plot (trata), Considero que se Pound nunca chegou a essa concep aa, isso se explica pelo predominio de uma idéia referencial (ainda que como representagaes mentais) das imagens poéticas. 27.De qualquer forma, o que parece uma contradi¢ao entre recepcao e texto s6 0 € em termos ted- ricos, j4 que um poema longo ¢ de tom épico como os Cantos s6 pode sustentar-se recorrendo & linearidade da linguagem. 188 Poesia concreta brasileira de desembocar em uma nogao de espago-tempo*. A carga referencial, metafo- rica e temporal da posi¢ao Fenollosa-Pound-Kenner é contrabalangada com as propostas que tomam de Un Coup de Dés, de Stéphane Mallarmé, ¢ da leitura que critico norte-americano Robert Greer Cohn fez desse texto. E essa intersec- 0 com Mallarmé que lhes permite desenvolver, de um modo original, a idéia basica da poética de Pound e Kenner: 0 método ideogramatico de composicao. © fato de que em seu livro LOeuvre de Mallarmé — Un Coup de Dés, de 1951, Robert Greer Cohn ut de Mallarmé, permitiu-lhes sair da nogdo temporal ou de “trama” do método ye 0 termo “ideograma” para se referir a0 poema poundiano ¢ considerar 0 signo em sua posigéo espacial”. Diversamente de Pound, que utilizava o método ideogramiatico para aplicar, em seus versos, os prineipios de justaposigao e de montagem, os poetas concretos quebram a su- cessividade discursiva e desembocam no poema em sua relagio com a forma espacial. © “método” de Pound é de composiggo, enquanto que para os concre- tos 0 ideograma define-se no campo da percepedo. Aqui nao sé tém um papel- chave a leitura de Mallarmé e sua solugio ideografica, mas também é funda- mental a teoria gestdltica da percepcao, que era aplicada rigorosamente pelos pintores concretos ¢ que os criticos de artes plésticas utilizavam para atribuir fungdes ¢ valores estéticos 4 obra. 28,0 poema“Tempoespaco" de Augusto de Campos, sugere a reversibilidade de ambas as dimen- s6es (tempo e espaco) no espago da pagina, Para uma leitura desse poema, ver Flora “Augusto de Campos e 0 Tempo’, em A Voz ea Série, 1998. ag. A primeira edigdo do livro de Robert Greer Cohn é de 1946, em inglés: Mallarmdés Un Coup de Dés: An Exegesis. A edigho em francds, de 1951, ¢ a citada pelos poetas brasileiros. O close reading que Greer Cohn realizou ¢o entio desvalorizado poema de Mallarmé foi decisivo nas leituras do grupo (ver, por exemplo, da Poesia Concreia, op. cit). Ademais, a importancia desse livro para a poesia concreta se baseia, em primeiro lugar, em um uso do termo “ideograma’ que ¢ definido com critérios ideogrificos ou visuais: “os caracteres sao agrupados para formar ideogramas (como o rabo do rato de Alice mo ekind, ontos - Periferia - Poesia Concreta’, de Augusto de Campos, em Teoria Pais das Maravilhas) que expressam, como em um quadro, algo do modo e do fluxe da narracio” {p. 4). Greer Cohn insiste na “dimensao temporal-espacial” do poema (p. 28) e lé cada pagina —em sta exegese — como um ideograma. Em segundo lugar, assim como Kenner associara Pound com Mallarmé, Greer Cohn estabelece numerosas analogias entre Un Coup de Dés e Finnegans Wake, de James Joyce (pp. 5, 114-215). Nao importa aqui se os poetas concretos se guiaram por essas ana- logias ou se estes sé confirmaram suas leituras. O que me interessa ¢apontar que essas leituras crf ticas incidiram — de uma maneira ou de outra ~ nos postulados ¢ teorizagbes do movimento. Crise do versa. 189 O resultado a que os poetas concretos chegaram é¢ bastante diferente daquele que haviam alcangado os autores que lhes serviram de ponto de partida. Jé nao se trata das qualidades metaféricas do ideograma, nem sequer da indicagao de um processo moderno como o de montagem; para os poetas concretos, 0 ideo- grama ¢ 0 caminho rumo a materialidade do signo ¢ do espago, no qual estes signos se relacionam. Porém, se os signos j4 nao se organizam na trama linear do verso, como se dispdem nessa nova dimensio que éa pagina como plano visual? Os poetas concretos recorreram a diferentes organizacées ao longo das sucessi- vas fases, porque a viabilidade de seu projeto conereto residia, em ultima instan- cia, no seguinte: a invengao de uma nova forma que substituisse 0 verso. A espacialidade; o percurso da boa forma O poema como forma espacial é 0 resultado das leituras dos poetas concretos, que haviam girado, principalmente, em torno das figuras de Ezra Pound e Sté- phane Mallarmé. A partir desse ponto de vista, a palavra se transforma em uma palavra-coisa, algo que se percebe mas que nao pode ser extrafdo da pégina como plano ou totalidade e da rede de relacdes nas quais entra®*. Tratava-se, ent&o, depois da critica do verso e da formulagao conceitual do ideograma, de definir qual era esse tipo de relagdes, se ja ndo eram mais as da versificagao tra- di “spatium est ordo coexistendi” permite apresentar a questéo da seguinte ma- jonal, e nem sequer as da linha. A definigao que dé Leibniz de espago como neira: como definir essa ordem de coexisténcia entre as palavras-coisas?* O “plano-piloto para poesia concreta” define 0 espago grafico como “agente estrutural” e acrescenta que os termos se relacionam por “fatores de proximi- dade e semelhanca, psicologia da gestalt”®*, Na etapa do concretismo ortodoxo, nao se deve interpretar o termo “estrutura” em um sentido “estruturalista’ (como se desenvolveu na corrente francesa, a partir das ligdes de Saussure, ou 30, Esta é uma das grandes dificuldades enfrentadas por quem quer citar os poemas concretos: a necessidade de manter sua espacialidade e sua tipogeafia dificulta muito a incorporagae desses textos no fluxo da prosa, £ como se eles resistissem e exigissem um espace proprio, a reprodugao eo respeito de suas qualidades materiais. 31. Tomoa definigao de Leibniz de W. J. T. Mitchell, “Spatial Form in Literature: Towards a Gene- ral Theory’, em W. J. T. Mitchel (ed.), The Language af Images, 1980, p. 275. 32. Teoria da Poesia Concreta, op. cits p.157. 190. Poesia conereta brasileira segundo os préprios poetas paulistas em seus ensaios da década de 1960), mas sim em um sentido gestdltico. As categorias da Gestalt, que j4 eram parte do repertério habitual dos artistas plasticos (sobretudo daqueles que haviam parti- cipado com éxito das primeiras bienais, como os pintores concretos, Max Bill, Alexander Calder e tantos outros), proporcionaram um esqueleto perceptive aplicdvel ao plano da pagina e uma série de leis nas quais ~ muito de acordo com as inclinagdes do grupo —, cincia e estética confluiam: a simplicidade e a ordem como critérios cientificos e estéticos e 0 carater objetivo dessas estrutu- ras que sao propriedades comuns da natureza e da mente”. As leis da percepeao da Gestalt sao inatas e nao 6 necessdrio que alguém se proponha a cumpri-las para que sejam corroboradas ou descobertas. Qual- quer poema ¢ formado de “partes” (versos) que se combinam para formar uma estrutura maior, 0 “todo”, que é mais que a soma das partes que o compéem. A diferenca esté em que, nas neovanguardas, a utilizagao consciente dessas leis permitiu um tratamento mais elaborado ou consciente das relagées espaciais. Segundo testemunha Pierre Boulez, “quando eu mesmo ministrei cursos de ana- lise — especialmente no final de meu breve perfodo pedagogico -, jd ndo me in- teressava uma anilise nota a nota. Buscava a anilise por uma forma global, por Gestalt; tomava as estruturas de origem e escrutinava e fazia escrutinar as trans- formagées destas idéias primeiras, a maneira em que cram suscetiveis de se desenvolver”s+, Em “Pontos - Periferia - Poesia Concreta’, Augusto de Campos apontou, com relacao a Pierre Boulez e Sergei Eisenstein, o “interesse da aplica- g&o dos conceitos gestaltianos ao campo das artes”. ‘Ao néo partir de formas dadas de antemao, a poesia concreta pode encarar com menos amarras essas relagdes ¢ tornd-las visual e espacialmente presentes, 33: Mitchel G, Ash apresenta o desenvolvimento histérico da teoria da Gescalt em seu liveo Ges- tali Psychology in Germam Culture, 1890-1967 (Holism and the Quest for Objectivity), 1995. Se- gundo Ash, “uma das palavras favoritas dos tedricos da Gestalt era sachtlich, significando obje tivo: buscavam uma ordem objetiva que subjaz nao atris, mas dentro do fluxo da experiéneia” (p.2). 34. Em “Cuestion de Herencia’, Puntos de Referencia, 1984, p. 484. O principio serial ¢ enunciado por Boulez em termos que recordam os da Gestalt; “criar estruturas sonoras em constante evolt- 40% p. 23, Para as relagoes entre Pierre Boulez e o grupo paulista, ver meu trabalho, “CollAGE, op cit. 35. Teoria da Poesia Concreta, op. cits p. 17. Crise do verso 191 com uma gravita¢io inerente 4 ocupagao de um lugar. As categorias da Gestalt transpostas A poesia outorgam ao material uma espacialidade, uma funcdo rela- cional e uma instantaneidade que acentua aquela exercida pelo verso (possibili- tando, ainda, um jogo visual de que a poesia escrita tradicional nao precisa, em- bora sé raramente o destaque) Os poetas concretos aplicaram as leis gestdlticas aos autores do paideuma, como critério de leitura, embora, a rigor, s6 e. e. cummings tenha feito uma utilizagao intencional de tais leis. Mas 0 fato de que as aplicassem mostra cla- ramente como tratavam de buscar no paideuma, ainda que em leituras a con- trapelo, uma legitimagao para o trabalho de espacializagdo que estavam rea- lizando, Segundo Augusto de Campos, “é em estritos termos de Gestalé que entendemos o titulo de um dos livros de poesia de ¢. e. cummings: Is 5". E com relagdo a Ezra Pound, Haroldo de Campos afirmou: “Estrutura aberta ofe- recem também os Cantos de Ezra Pound, em particular os "Pisanos” que, orga- nizados pelo método ideogramico, permitem uma perpétua interagao de blo- cos de idéias que se criticam reciprocamente, produzindo uma soma poética cujo principio de composigio é gestaltiano, como jé observou James Blish”?, Entretanto, em Pound, a percep¢ao fisica e a forma espacial nao estavam privi- legiadas ¢, em cummings, as disposigdes espaciais nao haviam abandonado 0 predominio da linha, apesar de leva-la ao préprio limite de sua dissolugio. Foi na poesia de Mallarmé que os poetas encontraram as resolugdes orga- nizativas que a consideragado do espago como agente estrutural exigia. Nao se tratava de uma proposta explicita de Mallarmé, mas sim das conseqiiéncias que podiam ser derivadas de uma leitura estrutural de Lin Coup de Dés, em vez de interpreta-lo, como a critica havia feito com freqiiéncia, no sentide negativo de dissolucao do verso. Para recuperar o legado de Mallarmé, era necessario assumir uma posigao clara diante de quem parecia um de seus her- deiros, Guillaume Apollinaire, cujos poemas visuais ou caligramas sao consi- derados até hoje o exemplo da poesia visual e espacial. Qs caligramas permitiram precisar ainda mais, por contraste, @ tipo de busca ao qual os concretos estavam dedicados. Em Apollinaire, as palavras ¢o- locam-se em uma ordem visual, formando, porém, a figura 4 qual o poema faz 36. Em “Pontos ~ Periferia — Poesia Conereta’, Idem, p. 17. 37.EmA Obra de Arte Aberta’ idem, p. 33. 192 Poesia concreta brasileira referéncia: um poema se assemelha a um relégio, outro ao cair da chuva, outro a uma pomba**. Nao se trata da materialidade do signo, mas sim da violéncia que o referente exerce sobre o signo, e nfo se trata da palavra-coisa, mas sim da palavra que remete as coisas. Abandona-se 0 verso, mas ele nao é substi- tufdo por novas estrutura: nitrega-se o poema a contingéncia do objeto re- presentado. A experiéncia de Apollinaire implicava um retrocesso, jé que nem sequer considerava a pagina como plano ¢ nem os signos entravam em relagao com 0 espago. As diferengas entre os caligramas e os poemas concretos poem em destaque a vontade construtiva destes e a necessidade de buscar principios de organizacio imanentes 4 forma poética e no — como sucede em Apolli- naire — segundo o tema representado, A espacializacao de Mallarmé, ao contrario, é estrutural ¢ nao mimética ou ilustrativa: nio remete — como os caligramas — a um objeto. O sentido surge das diferengas ¢ equivaléncias entre as partes que integram o poema. Quando Paul Valéry foi & casa de Mallarmé para ver o poema, sua reacio oscilou entre o medo e a admiragao, “Pareceu-me ver ~ relata — a figura de um pensamento, pela primeira vez colocada em nosso espaco. ... Verdadeiramente ali a extensio falava, sonhava, engendrava formas temporais"®, Mallarmé ndo se propunha dar uma forma “bela” ao pensamento ou a sensibilidade, mas sim — utilizando a pagina como unidade de sentido ~ desdobrava 0 “espetaculo ideogrifico” do pensamento poético. Cada pagina podia ser admirada como um ideograma com- Posto por uma montagem de partes que, mediante os jogos tipograficos, produ- ziam um efeito de totalidade. A figura que subjaz a esse método de escritura é a constelagio (um dos eixos teméticos do poema), mas ja nao com um sentido ilus- trativo, e sim como uma dimensio material-espacial do texto e das palavras. A partir do encontro que produzem entre Mallarmé e a Gestalt, os poetas con- cretos resolvem o tratamento da pagina como plano e 0 vinculo entre sentido e forma. Como no poema de Mallarmé, as variagoes dos tamanhos e das posicdes das palavras geram um sentido por proximidade e semelhanga. Essa conjuncdo, além de ser uma safda & limitagao referencial de Apollinaire, permitia combinar nivel discursivo e o da organizagao espacial em um tinico gesto. E, com um jogo 38."A Gravata ¢ 0 Relégio” e “Chove" so exemplos conhecidos dos caligramas de Apollinaire, ‘Ver Guillaume Apollinaire, 1965, op. cit, pp. 192, 203, 39."Le Coup de Déss em Variedad, 1, 1956, p. 144. Crise do verso 193 de relagdes que nao distava muito do funcionamento do ideograma na conceitua- 40 critica de Pound, embora ele nunea a tivesse aplicado nessa direcio. A experimentagao com essas relagdes espaciais permite, na produgao do periodo 1955-1960, estabelecer as diferengas entre 0 que se denominou “fase organica” e “fase matemética’*°, No primeiro caso, predomina um tipo de rela- cionamento entre as partes bastante similar ao de Lin Coup de Dés, um ordena- mento irregular que trabalha com a pagina a partir de agrupamentos relativos as exigéncias contingentes de cada poema. Em Poetamenos (1953), de Augusto de Campos, 0 4 mago do 6 mega (1955-1957), de Haroldo de Campos, e “Semi di Zucca” (feverciro de 1956) ov “Um Movimento” (abril de 1956), de Décio Pig- natari, rompe-se com a sintaxe, e as diregées que podem ser aplicadas sobre © plano séo miltiplas, evitando a nogio de eixo central ou de um critério uni- forme que se aplique a todos os poemas. O poema “o a mago do 6 mega” pode ser lido em relacao horizontal, mas sua espacializagio pée em destaque rela- goes verticais (“duro’ “oco’, “osso’, “centro”) ou circulares (com a letra “Z" de “zero” € “zénit"), além da leitura posicional (a relagao diagonal, por exemplo, entre “nitescendo’ e “ex nihilo"). Trata-se de uma aplicacao dinamica da Gestalt que n&o subsume o texto em uma simultaneidade homogénea, mas sim em um jogo espacial relativamente indeterminado*. Na fase mateméatica, essa simulta- 40, Cito um texto de Décio Pignatari que discrimina muito claramente as duas etapas:“O isomor- fismo, num primeiro momento processual da pritica compositiva espacial, tende a fisionomia € um movimento imitative do real (motion). Pode-se dizer que, nesta fase, predomina a forma ot- ganica, A esta fase, de maneira geral, pertencem poemas como 0 ‘lormigueiro’ (Ferreira Gullar), ‘solidao’ (Wlademir Dias Pino), ‘um movimento’ (Décio Pignatari), ‘silencio’ (Haroldo de Came P08), ‘ovonovelo’ (Augusto de Campos), ‘choque' (Ronaldo Azeredo), ou ‘my méy" (Eugen Gom- tinger), iniciador simultaneo, na Europa, da poesia concreta, com seu volume de konstellationen, 1953. Num estigio mais avancado de evolugiio formal, num estégio mais racional de criagao, 0 isomorfismo tende a resolver-se em puro movimento estrutural, estrutura dindmica (movement). Pode-se dizer que, nesta fase, predomina a forma geométrica ou matemitica. Pertencem a esta fase poemas como ‘tenstio' (Augusto de Campos), ‘velocidade’ (Ronaldo Azeredo), ‘mar azul! (Fer- reira Gullar), ‘tecra; (Décio Pignatari), fala clara’ (Haroldo de Campos) ou ‘baum kind hund haus’ (Eugen Gomringer): CF. "Poesia Concreta: Organizagio’ em Teoria da Poesia Concreta, op. elt, p. 89 (grifo meu), 41. Em seus escritos, os poetas concretos conceberam esta passagem como uma evolucdo ¢ um Progresso em sua obra. Como sugito aqui, tema que depois retomarei a propésito da poesia de Augusto de Campos, essa mudanga reforgou uma concepgao do moderne que reprimia possibili- dades (também modernas, poderia dizer-se) que se anunciavam ou praticavam nesses poemas, 194 Poesia concreta brasileira

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