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49 Convém ressaltar que a ques- Richerson & Boyd argumentam, a meu ver de modo
tão da evolução da cultura é convincente, que a concepção evocada de cultura não con-
distinta da questão da evolu-
ção cultural. A evolução cul- segue explicar a flexibilidade comportamental humana em
tural distingue-se da evolu- toda sua amplitude. Para tanto, é necessário dar à cultura
ção propriamente biológica
em vários aspectos, embora
maior autonomia (inclusive com respeito ao ambiente), de
apresentem similaridades fun- modo a que funcione como um genuíno sistema de heran-
damentais que autorizam o ça. 49
uso, por analogia, do mesmo
termo, “evolução”, em ambas
expressões. Isso permite que A interdependência natureza-cultura
se aplique à dinâmica cultural
modelos matemáticos impor- Diversas características fenotípicas humanas podem
tados da genética de popu- ser explicadas como produtos de um processo evolutivo no
lações que oferece, para tan- qual a cultura desempenhou um papel causal.50 Podem-se
to, uma “caixa de ferramen-
tas” (RICHERSON, P. & citar, como exemplo, modificações na dentição e no tama-
BOYD, R. Not by genes nho do trato intestinal que decorreram do domínio do fogo
alone... Op. cit., p. 119).
50
e do seu uso no cozimento de alimentos.51
É importante observar que
não se trata, simplesmente,
O caso da tolerância à lactose é um dos efeitos fisio-
de afirmar a tese interacio- lógicos melhor estudados da evolução de grupos humanos
nista, que diz respeito ao de- que domesticaram animais produtores de leite, o que com-
senvolvimento, mas sim a tese
de que a evolução de deter- pôs um ambiente seletivo cultural de tipo particular.52
minados comportamentos Uma hipótese particularmente interessante para os
deu-se em nichos construí- tópicos explorados aqui é a da diminuição da variação mor-
dos culturalmente.
51 Ver os artigos de Lúcia Neco
fológica que teria ocorrido entre hominíneos do Pleistoce-
& Peter Richerson e de Pe- no como consequência da adoção de normas igualitárias por
dro Da-Gloria, ambos neste seus grupos, por exemplo: na distribuição dos produtos da
volume.
52
caça, no controle do poder político e no acesso a parceiros
Ver o artigo de Rafael Bisso-
Machado e outros neste vo- sexuais. Indivíduos de tipo alfa, com propensões domina-
lume. doras e que trangrediam as normas, eram punidos.53 Os
53 Boehm conjectura que a par- líderes do grupo eram mantidos fracos pelo controle social,
tir do momento que os indi-
víduos no grupo tiveram à
de modo a que não extrapolassem o seu poder. Boehm
sua disposição armas de caça, chamou de “síndrome igualitária” a esse conjunto de nor-
também podiam usá-las con- mas e estratégias de conduta, que ainda são aplicadas em
tra os indivíduos alfa, redu-
zindo assim a importância da grupos de caçadores-coletores na atualidade.54
força bruta, que até então A coevolução gene-cultura também explicaria a maior
era decisiva no exercício do corpulência dos Neandertais, comparados ao Homo sapiens.
poder. Tais avanços tecnoló-
gicos e, portanto, culturais, Especula-se que resultaria, entre outras causas, do fato da-
também teriam levado, a queles não terem possuído armas de projeção à distância,
longo prazo, a uma diminui-
ção na variabilidade fenotípi-
como lanças, o que exigia maior aproximação da caça e mais
ca da espécie (BOEHM, C. força além, claro, de representar maior risco, sobretudo
Interactions of culture and quando tinham como alvo grandes animais.55
natural selection among
Pleistocene hunters. In: Certas características fenotípicas comportamentais e
LEVINSON, S. & JAIS- suas bases psicológicas também são mencionadas como efei-
SON, P. (Eds.). Evolution tos evolutivos de relações complexas entre as heranças ge-
and Culture. Cambridge (MA):
The MIT Press, 2006. p. 86). nética e cultural. A TDH postula que a cultura foi uma das
54 BOEHM, C. Op. cit. p. 84; causas envolvidas na evolução de todo um equipamento
88-99. psicológico que possibilitou a cooperação num círculo so-
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55 KLEIN, R. & EDGAR, B. cial cada vez mais amplo – em função do incremento demo-
O despertar da cultura. RJ: gráfico dos grupos humanos, que se intensificou com a in-
Zahar, 2004, p. 164.
56 Para detalhes a respeito des-
venção da agricultura há, aproximadamente, onze mil anos.
sa psicologia social, ver o ar- Essa psicologia social, produto em grande medida da pró-
tigo “Conflito e cooperação pria cultura, possibilitou, por sua vez, maior eficiência em
e na evolução humana” neste
volume. assimilar e transmitir variantes culturais.56
57 RICHERSON, P. & BOYD, Essa teoria rejeita, então, a dicotomia natureza/cultu-
R. Not by genes alone... Op. ra, já que variantes culturais não são vistas, unicamente,
cit., p. 8. Usando-se a distin-
ção, que propuseram Elliott
como causas do comportamento dos agentes e responsáveis,
Sober e Ernest Mayr, entre portanto, pela enorme diversidade de comportamentos ob-
causas últimas (ou remotas) servados nos grupos humanos. Richerson & Boyd defen-
– que atuam na evolução das
espécies, na filogênese –, e dem que a cultura atuou, também, como uma causa na evo-
causas próximas – que atuam lução da espécie Homo sapiens – e esteve envolvida, portan-
na ontogênese dos seres vivos to, no processo de seleção natural.57 Entretanto, admitir
individuais (ver ABRANTES,
P. (Org.). Filosofia da Biolo- esse duplo papel causal da cultura impede, em definitivo,
gia. Op. cit., 2011) –, pode- que se possa falar, apropriadamente, de uma natureza huma-
se traduzir a referida tese da
TDH da seguinte forma: a na (que remeta, especialmente, aos planos psicológico e
cultura é tanto uma causa comportamental)?
próxima quanto uma causa No meu entendimento, esses autores comprometem-
última do comportamento
dos agentes humanos. se com a tese de que há universais no plano psicológico, a
58 RICHERSON, P. Human despeito de declarações em contrário. É sintomático, nesse
Nature. Edge, 6/05/2014. sentido, que usem a expressão “instintos tribais” para se
Em resposta à questão de
2014: “What scientific idea is referirem a algumas das dimensões da nossa psicologia pró-
ready for retirement?”. Des- social, embora defendam que tais instintos sejam produto
carregado de http://edge.org/
response-detail/25404. Em co-
de um processo de coevolução gene-cultura.58
municação pessoal, Richerson
esclareceu que não se opõe a Dissolvendo a dicotomia natureza/cultura?
uma concepção “fraca” de
natureza humana que aponte Plotkin aponta para a necessidade de se “expandir” a
para a existência de adapta- teoria da evolução de modo a que possa incorporar a cultu-
ções genéticas associadas tan-
to à nossa capacidade para a ra entre os fatores causais envolvidos na evolução de certas
cultura quanto a elementos espécies, em especial daquelas que se situam na linhagem
da nossa psicologia social. Ar-
gumenta, contudo, que uma
hominínea. Ele acredita que essa teoria expandida teria po-
concepção “forte” de nature- tencial para promover uma aproximação entre a biologia e
za humana, com um caráter as ciências sociais.59
essencialista, é inadmissível.
Por isso, prefere dispensar Essa expansão vem-se dando em várias frentes (inclu-
completamente o uso da no- sive com a contribuição substancial de filósofos), das quais
ção de natureza humana por
prestar-se a tal equívoco. destacam-se: as investigações conceituais e empíricas sobre
59 PLOTKIN, H. Op. cit., p. diversas modalidades de herança, incluindo a epigenética;
454; 460. sobre a seleção em múltiplos níveis; e, também, tentativas
60 Ve r J A B L O N KA , E . & de se integrar evolução e desenvolvimento.60
LAMB, M. J. Evolution in
four dimensions. Cambridge
Acrescentem-se a esse rol os trabalhos que enfatizam
(MA): The MIT Press, 2006. a relevância da construção de nichos no processo evolutivo,
É instrutivo ver as nuances aprofundando a crítica, já clássica, ao adaptacionismo feita
que Eva Jablonka e David
Sloan Wilson introduzem em por Gould & Lewontin.61 Odling-Smee & colaboradores,
suas respostas, basicamente por exemplo, defendem que haja, além de uma herança ge-
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