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Início da coleção
Colecionar é escolher, dentre inúmeros testemunhos materiais produzidos ao longo de
sua história, aqueles nos quais identificamos aspectos de representação. Os motivos
pelos quais iniciamos a coleção são vários: preservação da cultura brasileira, o valor
pela raridade, pela ancestralidade, a forma de confecção, a preciosidade do material,
sua antiguidade, etc.
Quando esses testemunhos passam a fazer parte da coleção exige-se do colecionador
responsabilidade para que sejam preservados do esquecimento, da ruína e do
abandono.
Nossa coleção já estava em formação, quando, em 1999, em um leilão em Campos do
Jordão, SP, adquirimos, uma obra do artista Mario Gruber, produzida em 1997, que nos
encantou e passou a ocupar um lugar proeminente de exposição em nosso
apartamento.
Ainda que seja difícil expressar com exatidão as razões que induziram à aquisição
desta obra figurativa, o fato é, que me encantei com a figura fantasiada com um traje
amarelado escuro usando um barrete como nos velhos carnavais, que me fez lembrar
uma antiga foto de família em que meu pai, criança, usava chapéu semelhante.
Não me pareceu uma obra esteticamente bonita, mas sim forte e significativa. O
personagem parecia querer falar alguma coisa através do gestual das mãos e certo
movimento corporal. Esta obra foi intitulada, posteriormente, Fantasiado n°1, 1997 Figura 1,
Reflito, já no inicio deste trabalho, sobre uma óbvia ironia. Por um lado, a discussão do
ato de colecionar e, de outro, o culto aos amores ausentes ou defuntos, como colocou
Walter Benjamin, lembrando o principal tema das primeiras fotografias. O rosto
humano. O rosto de meu pai enquanto criança, onde a aura acena fugaz, naquela
antiga foto que nem sei onde se encontra. De qualquer forma, a coleção segue, com
Mário Gruber.
A partir daí, procuramos aprofundar os conhecimentos sobre o artista e, infelizmente,
não havia bibliografia sistemática e precisa sobre sua vida e obra.
Aproximadamente dois anos após, quase adquirimos para nossa coleção uma obra
falsa de Aldo Bonadei. Em razão desse fato, decidimos nos assegurar sobre a
autenticidade das obras que eram parte da coleção, o que me colocou em contato com
Gruber em seu atelier, na época, localizado na esquina da Avenida Paulista com Bela
Cintra, em São Paulo, para examinar a obra já citada.
Ele não só confirmou a autenticidade da mesma, como mostrou vários outros trabalhos
que havia executado. A partir deste momento iniciamos uma relação que perdurou até
2011, quando faleceu.
O mais interessante do convívio foram as conversas, sempre variadas e curiosas.
Depois, comecei a perceber como era fascinante a maneira como concebia suas obras.
Era uma mistura de forma geométrica, um fato político, uma manifestação crítica e, não
raro, a ironia.

Formação da coleção
A partir desse conhecimento e aproximação a coleção passou a se dedicar
especialmente à sua obra. Nos primeiros meses a aquisição era de telas que ele
estava produzindo ou havia recém produzido. Desta forma, prevaleciam quadros da
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série dos Fantasiados, que na vivência do artista era bem aceita pelo mercado. Para
um melhor conhecimento do artista visitamos suas obras em espaços públicos 1.
Em nossos contatos pessoais falou sobre suas viagens, família, preocupações e
desafios. Pintava sobre temas distintos, como situações vivenciadas pelo Moleque
Cipó, um dos seus primeiros temas,ou balões de onde se percebiam lugares como a
Areia Branca que fazia parte do seu repertório há muitos anos. Havia uma certa
prevalência do tema carnaval e os fantasiados.
Naquele tempo ele insinuava que deveria adquirir gravuras que ainda tinha disponíveis,
embora produzidas há mais tempo. A falta de conhecimento me limitava a escolher
telas a óleo. Gradativamente percebi a relevância da gravura em sua obra. Seu
processo criativo começava com o desenho e era muito bem feito. Se o tema ainda o
intrigasse, naturalmente passava para a gravura e só depois da ideia cristalizada ele a
levava para a tela.
Algumas obras também foram adquiridas em situações de necessidade financeira. Não
tendo obra pronta para oferecer propunha a venda das mais antigas, em seu poder.
Naturalmente tive a curiosidade de conhecer melhor os trabalhos que havia produzido
nos mais de cinquenta anos de atividade e pude "garimpar" e adquirir alguns,
disponíveis no mercado por diversas formas.

Perfil da Coleção
Com o crescer da coleção, procuramos adquirir pelo menos uma obra de cada ano de
sua atividade profissional. Desta forma, a cronologia da data de execução das obras foi
o critério de catalogação inicial, pois na maioria das vezes ele datava e assinava seus
trabalhos.
Com melhor conhecimento dos temas que haviam causado inquietações no artista, o
olhar foi se aprimorando. O crescente aumento da coleção permitiu observar que em
alguns anos, em particular, não ocorrera repetição de temas. Curiosamente, temas
"aparentemente esquecidos" seriam retrabalhados anos à frente.
Pela percepção da importância da gravura em sua obra, conforme já exposto,
passamos a adquiri-las em galerias especializadas.
Atualmente, a coleção particular é composta por aproximadamente 500 trabalhos.
Perto de metade por telas, com pinturas a óleo ou acrílico;
um terço por gravuras; e as demais: desenhos, aquarelas ou monotipias.
Com relação a cronologia de execução das obras, o perfil é o seguinte :
décadas de 40/50 (cerca de 10% das obras) ; década de 60 (15%) ; década de 70 (25%) ;década de 80
(15%) ;década de 90 (próximo a 10%) e as demais obras são dos anos 2.000 (25%).
Esta coleção foi catalogada utilizando seis dígitos alfanuméricos.
Os quatro primeiros dígitos numéricos informando o ano em que a obra foi produzida e, na maioria das vezes, assinada e
datada.
O quinto digito informa a técnica da obra, assim:
• a: pintura a óleo/acrílica;
• b: desenho, monotipia ou aquarela;
• c: gravura ou serigrafia.

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Expostas na Estação Sé do metrô de São Paulo, bem como na biblioteca do Memorial da América
Latina, além de alguns dos retratos dos governadores do Estado de São Paulo expostos no Palácio dos
Bandeirantes
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Finalmente, o sexto digito, alfabético, indica a sequência em que a obra integrou a coleção naquele particular ano.

A coleção é guardada em ambiente fechado, e os quadros enfileirados em prateleiras,


permitindo ficar na posição vertical. As prateleiras apresentam dimensões distintas
adequando, desta forma, aos vários tamanhos de obras, com exceção das muito
grandes que ficam encostadas à parede. As gravuras, na sua grande maioria, também
são guardadas já emolduradas e protegidas por acrílico, na posição vertical em
prateleiras

A experiência do Olhar na Classificação da Coleção


Após análise mais cuidadosa, verificamos que muitos dos temas que inquietaram o
artista, frequentemente, eram recorrentes e, consequentemente, a cronologia talvez
não fosse a melhor forma de perceber a obra.
Com a ideia de desenvolver uma exposição museológica a coleção foi examinada por
suas características particulares, levando em conta, também, extensas conversas com
o autor, gravadas em 2010.
As obras foram classificadas em coleções temáticas dando organicidade, quer como
uma subcoleção isolada quanto no conjunto da coleção como um todo.
Cada recorte temático é composto por trabalhos não necessariamente produzidos em
uma única década e, em muitas ocasiões, elaborados com distintas técnicas.

Classificação de Recortes Temáticos/Exposições distintas2:


Mário Gruber e Sua Arte A Saga do Moleque A Fantasia do Moleque

As Primeiras Emoções do
Autorretratos Moleque O Moleque Criando o Astolfo
As Primeiras Atividades do O Ovo, o Planeta, a Nave e o
Estudos Moleque Astolfo
Os Anjos da Renascença
Naturezas Mortas O Moleque e os Balões Brasileira

Paisagens Retratando o Moleque O Moleque e as Aves

Animais O Moleque se Movimentando O Moleque Fantasiando


O Moleque Fantasiando a
Bonecas O Moleque Limitado Commedia dell´Arte
O Moleque Fantasiando o
Erotismo O Moleque Armando Fantástico
O Moleque, o Carnaval e o
Enigmas O Moleque Dependente Estandarte
Os Últimos Trabalhos do
O Moleque Enfeitiçado Artista

Colecionar obras de Mario Gruber, é como colecionar máscaras, que estão sobre as
mais distintas faces; chapéus ou gestos que são feitos com a palma da mão, sempre
parecendo querer narrar algo como menciona Walter Benjamin quando escreve:

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Vide lista de obras no Anexo III (comprimir Ctrl e o cursor sobre a Coleção Temática)
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"(...) A narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na
verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na
experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito." (1986:221) (4)
(GONÇALVES, Antropologia dos Objetos, p.65).

Estes elementos estão presentes nas várias coleções temáticas mencionadas acima.
Percebemos como a coleção não é algo hermético e imutável e que, com
conhecimentos adicionais, alterações, possivelmente, venham a ocorrer e podemos
mencionar que:
Afinal, uma coleção é sempre parcial, ela jamais atinge uma totalidade. Pela sua natureza
mesma, ela problematiza essa totalidade, já que uma coleção jamais se fecha. Trata-se portanto
de um conhecimento sempre situado, produzido a partir de um sujeito situado numa posição
relativa. Um sujeito limitado a produzir, portanto, "verdades parciais".
(GONÇALVES, Antropologia dos Objetos, p.49).

Para o colecionador o que importa é a possibilidade de que o acervo proporcione de


ser a base sobre a qual se gera e dissemina conhecimento. Assim, para a coleção,
passamos a entender, de que objeto colecionado e documento são sinônimos.

O Colecionismo e reflexões de Walter Benjamin


Boa parte das obras de Gruber foram adquiridas em leilões, e aqui cabe uma reflexão
em que os comentários de Walter Benjamin são bastante adequados, quando coloca:
Colecionadores são pessoas de instinto prático...Quem pretende tomar parte de um leilão deve
concentrar a atenção equitativamente na obra e nos concorrentes e, acima de tudo, manter a
cabeça fria o bastante - o que, no entanto, raramente ocorre - para não ser arrastado pela
disputa e assim não se ver, por fim, enforcado por um preço alto num ponto em que ofereceu
mais, antes para fazer frente ao adversário do que para adquirir a obra em si.
(BENJAMIN; Um discurso sobre o colecionador; p. 232)

Neste caso, o tempo causa algumas mudanças, mas, sem dúvida muitas das obras
importantes da coleção foram obtidas em casas de leilão 3, como também, em galerias. 4
Novamente vale lembrar de Benjamin quando escreve:
Uma das lembranças mais belas do colecionador é o momento em que vem em socorro de uma
obra, para o qual, em vida, talvez jamais tivesse tido um pensamento, e muito menos ainda o
desejo de possuir, só porque estava à venda, abandonada e sozinha, e, ele a comprou para lhe
dar a liberdade. Pois para o colecionador a verdadeira liberdade de toda a obra é estar nalguma
parte da sua coleção. (BENJAMIN; Um discurso sobre o colecionador; p. 232)

Algumas obras foram adquiridas em um antiquário que vendia peças muito


interessantes que Gruber logo identificou como sendo da coleção de Cecília Helena
Decourt, sua ex-esposa, já falecida.
Cecília Helena fora sua esposa entre o início da década de 60 até meados da década
de 70 e teve grande influência sobre sua vida e obra.
Interesses comuns nos aproximaram de colecionadores que haviam tido um contato
maior com o artista e estavam, por várias razões, começando a se desfazer de

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Casas de leilão: Renot, Lordello & Gobbi, Tableau, Pro-Arte, Vila Anticca, Cia Paulista de Leilões,
Garcia, James Lisboa, TNT, André Cencin e Artes & Eventos.
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Galerias: Nóbrega, Portal, Nova André, Bel, Espaço de Arte M. Mizrahi, Almeida & Dale, Escritório de
Arte Soares Rodrigues, Espaço, Galeria 22, Paulo Galvão, Dutra e Galeria Paulistana.
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algumas obras. O interessante é que cada vez que era oferecida uma obra, mesmo
gostando, o procurava para ouvir sua opinião.
Com frequência ele sabia exatamente a quem havia vendido a obra e então passava a
narrar fatos curiosos pertinentes a cada situação.
A analise dos antigos proprietários de obras de Mario merece observação pois muitos
eram psiquiatras e psicanalistas, artistas plásticos e pessoas que tinham frequentado
as colunas sociais e de artes dos jornais, como é o caso de Joe Kantor (antigo
proprietário do Nick Bar).

De vez em quando, o entusiasmo em poder adquirir uma nova obra, é muito grande.
Vários de seus trabalhos são voltados a temas ligados a brinquedos e crianças,
principalmente, na primeira fase em que vai apresentando as emoções e atividades do
Moleque Cipó. Curiosamente, o ato de colecionar os trabalhos do artista, quase que
nos faz voltar a ser criança ou mesmo ter um apelo quase sexual, conforme relata
Walter Benjamin em reflexões feitas em 1930 :
O Eros que, esfolado, volta esvoaçando à boneca é aquele mesmo que certa vez emancipou-se
dela, através de calorosas mãos infantis, razão pela qual o colecionador e amante mais
extravagante está aqui mais próximo da criança do que o cândido pedagogo, que trabalha por
empatia. Pois criança e colecionador, até mesmo criança e fetichista - ambos situam-se no
mesmo terreno, mas certamente em lados diferentes do maciço encarpado e fragmentado da
experiência sexual. (BENJAMIN; o Elogio da Boneca; p. 97).

Ao identificar um trabalho novo, e durante o processo de análise para aquisição ou,


principalmente, após a obra integrar a coleção, iniciamos uma busca frenética sobre
quem teriam sido os proprietários anteriores, a relação desses trabalhos com outros
produzidos no mesmo ano e, principalmente, as conexões e diálogos com obras
produzidas muito antes e muito depois.
A reflexão de Walter Benjamin sobre tal comportamento é interessante:
A verdadeira paixão do colecionador, com muita frequência ignorada, é sempre anarquista,
destrutiva. Pois esta é a sua dialética: vincular à fidelidade pelo objeto, pelo único, pelo elemento
oculto nele, o protesto subversivo e inflexível contra o típico, contra o classificável. A relação de
propriedade coloca acentos inteiramente irracionais. Ao colecionador o mundo está presente em
cada um de seus objetos; e mais ainda, de maneira ordenada, Mas ordenado segundo uma
relação surpreendente, incompreensível para o profano. Que se tenha em mente a importância
que possui para o colecionador não apenas seu objeto, mas também todo o seu passado. Assim
como o passado que pertence à sua origem e qualificação objetiva e os detalhes de sua história
aparentemente exterior: proprietários anteriores, preço de compra, valor etc. Tudo isto, tanto os
fatos científicos como os outros componentes de cada uma de suas propriedades, concentra-se
em uma enciclopédia mágica, em uma ordem universal, cujo esboço é o destino de seu objeto.
Colecionadores são os fisionômicos do mundo das coisas. Basta observar um deles, como ele
manuseia os objetos de sua vitrine. Mas os tem em mãos e ele parece inspirado pelos objetos,
como um mágico parece contemplar através deles sua distância.
(BENJAMIN; Elogio da Boneca; p. 100).

Relação com o artista


A minha apreciação por Gruber, se deu logo no primeiro contato, quando surgi em seu
atelier com certo cuidado, conforme mencionado, levando uma foto da primeira obra
adquirida, temendo que pudesse não ser trabalho seu, e ele abriu um sorriso sedutor,
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dizendo que era um trabalho típico seu e já preparando a caneta para assinar
declaração de autenticidade. Mostrou-me o atelier, que era bastante impressionante,
com dois cavaletes distribuídos em ambientes distintos. Várias obras estavam em
processo de pintura, penduradas em paredes metálicas com pequenos orifícios.
Perguntou se gostava daquilo que estava exposto e eu, simplesmente, disse que sim,
ainda sem prestar a devida atenção. Tomamos café, ele fumou pelo menos duas das
inesquecíveis cigarrilhas Talvis.
Menos do que duas semanas depois, telefonou-me dizendo que havia pintado um
quadro especial e que poderia ser do meu interesse. Fui, gostei, houve uma certa
negociação, sem grandes problemas. Pouco depois, voltou a ligar para eu ver o novo
quadro que havia pintado. Nessa obra ele já introduzia componentes do Realismo
Fantástico. Já éramos, então, bons amigos e trocávamos lembranças de experiências
de viagens, principalmente, à Bélgica, enquanto caminhávamos para tomar um café na
Padaria Bella Paulista. Aproximadamente um mês depois, ele voltou a ligar, para
apresentar três obras expostas em uma das paredes metálicas, perguntando se eu
gostaria de ficar com uma. Ocorre que as obras eram absolutamente diferentes entre
si, e duas muito interessantes. Uma, era uma paisagem em que se destacava um balão
que sobrevoava uma vila, que mais tarde eu viria a saber ser Areia Branca. A outra, era
um engravatado jovem que parecia conversar com o observador, convidando-o a entrar
no ambiente e ficar a vontade.
Confesso que a dúvida entre optar era muito grande, e ele percebendo a minha
hesitação, já conhecendo, alguns dos meus hábitos, habilidosamente sugeriu que eu
levasse o quadro com o balão, pois se eu sentasse em um local confortável, tomando
um uísque enquanto observava o quadro, veria uma série de elementos,
aparentemente, não visíveis. O resultado foi que conversamos mais um pouco e levei
os dois que havia gostado.
Acompanhava, atentamente, as exposições e os principais leilões que ocorriam em
São Paulo, da mesma forma, que visitava regularmente seu atelier sem
necessariamente adquirir obras.
Surgiu então a oportunidade de adquirir uma pequena obra, produzida em 1963, em
um importante leilão da cidade, por um valor bastante razoável. Após adquirir, mostrei
ao Gruber que informou a obra ter pertencido à coleção de Mário Schenberg, e que a
havia denominado/caracterizado como de arte feérica. Tratava-se da obra sem título,
representando uma Menina com um boneco de pano, que mais adiante fui perceber
que era uma etapa na formação do personagem Astolfo. A obra necessitava uma
limpeza, mas estava perfeita e como, tipicamente, nos seus trabalhos era datada e
acabou sendo denominada Menina e Astolfo, 1963 Figura 2.
Com frequência, ele não dava título à obra, deixando para o observador que fizesse a
sua própria interpretação.
Foram muitas as horas em que acompanhei sua vida através de notícias de jornal,
críticas publicadas, fotografias e catálogos de exposições que foram cuidadosamente
colocados em ordem cronológica no enorme álbum feito por Dona Iná, sua mãe, que
ficava aberto e exposto sobre uma escrivaninha não longe do cavalete central. Foi a
partir desse álbum que eu pude conhecer melhor sua vida e obra. A partir daí,
verifiquei os detalhes de obras que estiveram nas várias exposições em que participou.
Algumas delas serviram de modelo, após solicitação minha, para que voltasse a pintar
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o mesmo tema. Era notável no atelier do Gruber a existência de pesados equipamentos


utilizados para a produção de gravuras, como também, trabalhos antigos e outros ainda
por concluir. Alguns dos quais acabaram sendo ofertados pelo artista para compor a
coleção.
Havia também uma máscara mortuária, pendurada próximo aos equipamentos de
gravura e ele comentou que foi executada após o falecimento do seu amigo e analista,
Dr. Murilo Pereira Gomes.
Morava só no apartamento/atelier da Paulista, mas vivia cercado por um grupo de
empregados. Deixou o imóvel pois devia alugueres, se mudando para atelier/moradia
na Rua Maranhão.
Um dos maiores prazeres, como colecionador, foi idealizar a exposição na Pinacoteca
de Santos, curada por Fábio Magalhães e ter Os Anjos da Renascença Brasileira como
tema. A imprensa deu ampla cobertura e Gruber nas várias gravações em que se
manifestou, estava radiante.

Mário Gruber, Walter Benjamin e Baudelaire


À medida em que se tornaram mais frequentes as visitas ao seu atelier e observando
melhor seus trabalhos, pude perceber a interessante relação entre sua obra e a história
recente do Brasil.
Sua obra não havia sido registrada em livro, dificultando o conhecimento de sua
trajetória artística, e ele também não tinha projeto para tal.
Mencionou-me o intelectual Leandro Konder, que havia escrito sobre o filosofo,
historiador e crítico Walter Benjamin e que ele ao ler, sentiu grande identificação com o
mesmo. Em 1996 gravou um longo depoimento em Santos como parte do Projeto
Encontros, e lá afirmou:
O Benjamin estabelece uma hipótese que eu acho extremamente atraente. Eu que me interessei
sempre por análise, psicanálise e fui analisado, me interessou o inconsciente humano. O
Benjamin fala de um velho judeu, no livrinho do Konder : O Marxismo da melancolia, que eu
recomendo esse livro, pois é fantástico e ele fala sobre o pensamento do Walter Benjamin. Havia
um velho judeu chamado Abolafia que dizia que havia existido uma linguagem adâmica inicial.
Adâmica de Adão, bem no passado, com os primeiros homens. Eles não tinham linguagem, não
tinham ferramentas, não tinham instrumentos, não tinham nada e nem linguagem, mas eles
conseguiam se entender. Ao se entender eles tinham um contingente de lidar com seu interior
com seu inconsciente que era uma maneira direta. A única coisa que eles tinham. Então o
significado da primeira linguagem é uma linguagem forte e que seria a linguagem simbólica
original...eu encontrei certa paz quando ouvi as ideias de Walter Benjamin, que ultimamente
tenho citado muito, e que eu sinto como uma cabeça irmã. (GRUBER, Projeto Encontros, 1996).

Frequentemente, ele não dava títulos às suas obras, focando na essência de algo que
o sensibilizava, buscando ironia e ambiguidade e deixando para que o observador
criasse a sua própria interpretação. Este comportamento lembra a Walter Benjamin
quando escreve:
Em caso algum a preocupação com o destinatário se revela fecunda para o conhecimento de
uma obra de arte ou de uma forma artística. E é assim não apenas porque toda a relação com
um público determinado ou com os seus representantes corresponde a um desvio, mas também
porque até o conceito de destinatário “ideal” é nefasto em toda a reflexão no âmbito da teoria da
arte, porque a função desta última é tão somente a de pressupor a existência e a essência do
homem em geral.
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A própria arte pressupõe a existência corpórea e espiritual do homem – mas em nenhuma das
suas obras a sua atenção. De fato, nenhum poema se destina ao leitor, nenhum quadro ao
observador, nenhuma sinfonia aos ouvintes. (BENJAMIN; A Tarefa do Tradutor; p.82).
Benjamin reflete com mais intensidade sobre o tema da identificação entre a essência
do produto intelectual e a adequabilidade a distintos indivíduos, ligando a multidão e o
flâneur em sua análise sobre a obra de Baudelaire. Este, por sua vez, havia traduzido o
conto O Homem da Multidão de Edgar Alan Poe no qual a ideia de multidão era
fundamental:
Se a mercadoria (obra de arte) tivesse uma alma - com o qual Marx, ocasionalmente, fez graça,
esta seria a mais plena empatia já encontrada no reino das almas, pois deveria procurar em
cada um o comprador a cuja mão e cada morada se ajustar.
Ora, essa empatia é a própria essência ... à qual o flâneur se abandona na multidão.
(BENJAMIN;Obras escolhidas III; p.52).

Gruber, já nos primeiros trabalhos desenvolve a representação de grupos de pessoas,


em várias situações. Neste caso, é comum dar títulos aludindo ao conceito de multidão,
como em: Multidão, 1974 Figura 3, onde parece conceituar sobre a formação da multidão a
partir do surgimento e sumiço do individuo e, depois, mostrando-o em uma multidão
clássica formada em um bloco carnavalesco que é tema recorrente na obra do artista,
até ao final de sua vida.
Baudelaire abordou o tema da multidão que, imediatamente, sintoniza o artista, quando
coloca:
A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o
dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito
flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar
residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no
infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se
encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao
mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes,
apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão
toscamente... (BAUDELAIRE, O pintor da vida moderna,1996, p. 21).

A Multidão, o Flâneur, a Política e o Carnaval


O curta metragem intitulado "Em volta do Cavalete" dirigido por Lessandro Sócrates
sobre o artista, o permite lembrar na meninice como sendo um flâneur, vagando pela
praia e calçadão de Santos.
Lá, observava o mar, a natureza e o horizonte, como quando disse: "Eu gostava muito
de imaginar, em frente além do horizonte, a África, que era do outro lado. E eu apurava
o olfato pra ver se sentia cheiro de leão". Refletindo assim, as primeiras emoções do
Moleque Cipó. (TORRES; Gravação de Mário Gruber; 2009), e como pode ser
observado em Menino Cipó, 1952. Figura 4. Como uma criança que flana por Santos e
outros lugares de sua admiração, vemos multidões representadas em Santos, 1965 Figura
5 ; S/T (estudo sobre homens com guarda chuva), 1967 Figura 6; Rua Tiro 11 - Santos, 1962 Figura
7; ST (multidão com igreja), 1961 Figura 8; Multidão (igrejas), 1966 Figura 9; Ouro Preto, 1966 Figura
10; Idílio na noite, c.1963 Figura 11 que estão classificados na coleção em As Primeiras
emoções do Moleque.

Benjamin, comenta que:


na base da flânerie encontra-se, entre outras coisas, a pressuposição de que o produto da
ociosidade é mais valioso que o trabalho. Sabe-se que o flâneur realiza "estudos" , de formas
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que: seu olho aberto, seu ouvido atento, procuram coisa diferente que a multidão vem ver. Uma
palavra lançada ao acaso lhe revela um daqueles traços de caráter que não ser inventados e
que é preciso aprender ao vivo; essas fisionomias tão ingenuamente atentas vão fornecer ao
pintor uma expressão com que ele sonhava, um ruído insignificante para qualquer outro ouvido,
vai atingir o do músico e lhe dar a ideia de uma combinação harmônica. (BENJAMIN; Obras
Escolhidas,III; p.233-234).
É interessante a obra Bacia do mercado Santos, 1962 Figura 12 onde parece haver diálogos
e negociações entre os pequenos grupos que se apresentam.
Há um elemento comum a Gruber, Benjamin e Baudelaire com o pensamento de Marx
e o antagonismo ao progresso/tecnologia, quando segundo Benjamin, a modernidade
traz como marco o florescer do capitalismo selvagem, do trabalho fabril descrito por
Baudelaire:
Não importa o partido a que se pertença, é impossível não ficar emocionado com o espetáculo
dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspire partículas de algodão, que se
deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio, e todos os venenos usados na fabricação de obras
primas. (BENJAMIN; Charles Baudelaire :Um lírico no auge do Capitalismo; p.73)

Gruber foi militante do Partido Comunista e no início dos anos 1950, pós retorno da
França, época em que criaria o Clube da Gravura em Santos.
Walter Benjamin, tem uma observação interessante sobre a conspiração política:

A boêmia surge em Marx num contexto revelador. Ele aí inclui os conspiradores


profissionais...Rememorar a fisiognomia de Baudelaire significa falar da semelhança que ela
exibe com esse tipo de político. Marx assim o delineia: "com o desenvolvimento das
conspirações proletárias surge a necessidade de divisão do trabalho...As condições de vida
desta classe condicionam de antemão o seu caráter... Sua existência oscilante é, nos
pormenores , mais dependente do acaso que da própria atividade, sua vida desregrada, cujas
únicas estações fixas são as tavernas dos negociantes de vinho - local de encontro dos
conspiradores - suas relações invitáveis com toda sorte de gente equívoca colocam no naquela
esfera da vida que ... é chamada a boêmia.
(BENJAMIN; Charles Baudelaire Um lírico no auge do Capitalismo; p.9-10)

Sua militância se desenvolveu junto ao sindicato ligado ao porto da cidade quando


frequentou zonas de moradias dos trabalhadores como a Areia Branca.
Os trabalhos Porto de Santos, 1953 Figura 13; Catadeiras de café - Rua São Leopoldo - Santos,
1955 Figura 14; Bar Pinheirinho (Santos), 1952 Figura 15; Areia Branca n°1, c.1955 Figura 16; Areia
Branca n°2, 1964 Figura 17 nos remetem à região portuária, seus trabalhadores , moradias
e relacionamentos.
A Areia Branca será cenário para vários trabalhos como os já citados, além da maior
parte das obras que compõem a coleção temática classificada de Os Balões e o
Moleque Cipó, tais como: Balão caindo, 1996 Figura 18 e Panorama Com Balão, 2004 Figura 19.

Gruber costumava relembrar o período em que viveu em Paris, no Pós guerra, com
poucos recursos, vivendo no bairro proletário de Puteaux, próximo ao atual centro
financeiro de Paris, La Defense, e se deslocando a pé até o centro onde estavam as
principais avenidas e galerias da cidade, como um verdadeiro flâneur. Certamente esta
lembrança o fizeram a refletir sobre citação de Walter Benjamin:
"O pedestre sabia ostentar em certas condições sua ociosidade provocativamente. Por algum
tempo,... foi de bom-tom levar tartarugas e passear nas galerias. De bom grado, o flâneur
deixava que elas lhes prescrevessem o ritmo de caminhar." (1989:122).
(GONÇALVES, Antropologia dos Objetos, p.67).
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No inicio da década de 1990, ele iniciou uma série, que denominou de "Os Noivas".
Eram figuras, aparentemente, masculinos que bem vestidos, engravatados, tendo
sobre a cabeça uma espécie de véu se movimentavam, sós ou em grupo e,
frequentemente, acompanhados de tartarugas. Assim, foram produzidas as gravuras
"Os Noivas", 1990 Figura 20; "Os Noivas n°2, 1990 Figura 21 e "Os Noivas", 1997 Figura 22
onde a ação dos personagens parece ocorrer em Areia Branca, região onde, segundo
o artista, os sindicalistas o quiseram como vereador. A tartaruga, passa a ser um
elemento que o artista incorpora em seus trabalhos juntamente com engravatados e
anjos da renascença brasileira como em Multidão com Anjos, 1989 Figura 23 onde há a
impressão de uma algazarra carnavalesca.
Sonhos e Emoções
Ele relata que quando criança sofrera de terrores noturnos. Seu pai, calmo e carinhoso
é quem conseguia acalmá-lo. Menciona, ainda, o clima de mistério que percebia em
Santos, particularmente, à noite. Alguns de seus trabalhos são ligados a imagens
escuras, dando a impressão de advir do subconsciente da criança que sonha com a
formação de imagens amedrondatoras, como: S/T (rosto), c.1972 Figura 24; S/T (cabeça de
homem), c.1948 Figura 25; S/T (homem pelado), 1950 Figura 26; Mão estendida, 1970 Figura 27
que passam a compor o que classificamos de As Primeiras Emoções do Moleque.

Walter Benjamin, trata de seus sonhos em que o medo e/ou o desconforto, se faz
presente:
Uma tradição popular adverte contra contar sonhos, pela manhã, em jejum...Quem está em
jejum fala do sonho como se falasse de dentro do sono...Em uma noite de desespero eu me vi
em sonho renovar tempestuosamente amizade e fraternidade com o primeiro companheiro de
meu tempo de escola, que já há decênios não conheço mais e de que mesmo nesse instante
mal me lembrava, Ao despertar, porem, ficou claro para mim: o que o desespero, como uma
explosão, tinha posto à luz do dia, era o cadáver desse homem, que estava emparedado lá,
parecendo dizer: quem mora aqui agora não deve assemelhar-se a ele em nada... (BENJAMIN;
Obras Escolhidas,II; p.12-13).Os
trabalhos Ceia, 1947 Figura 28 e S/T, 1949 Figura 29,
também presentes em As Primeiras Emoções do Moleque deixam evidente que
o fantástico já era parte do sonho do Moleque.

Brinquedos e crianças
Um dos primeiros personagens imaginados pelo artista foi o Moleque Cipó.
Baseado na sua infância em Santos quando, sendo de classe média, convivia na praia
com moleques de poucas posses, mas com criatividade para sobreviver e superar
limitações através de resistência e flexibilidade que ele associou com as do cipó. Daí, a
criação do Moleque Cipó, que será o fio condutor para estudar a psique do brasileiro ao
longo do tumultuado período que se estende do final dos anos quarenta até a primeira
década do novo milênio. Há na figura do Moleque Cipó um componente de
autoimagem do artista.
A principal manifestação da criatividade do moleque era a de aproveitar elementos que
encontrava, usados e jogados no lixo, ou que, meramente, encontrava na rua. A partir
daí, produzia chapéus feitos com jornal ou chaleiras/bules, ou ainda, brinquedos
velhos, como podemos ver nas obras "Menino Cipó" c.1952 Figura 30, e "Fantasiados", 1960
Figura 31.
Walter Benjamin já havia refletido da reutilização de objetos para atender o imaginários
das crianças, em texto de 1928:
11

Mas uma coisa devemos ter sempre em mente: jamais são os adultos que executam a correção
mais eficaz dos brinquedos - sejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos - mas as próprias
crianças, durante as brincadeiras. Uma vez perdida, quebrada é reparada, mesmo uma boneca
principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças.
BENJAMIN; História cultural do brinquedo (1928); ps. 69-70.
A obra Construção, 1979 Figura 32 dá mostra da criatividade da criança ao brincar.

Comer
Gruber pintou a obra "Menino tomando sopa", 1967 Figura 33 que na coleção está
classificada no que chamamos, As Atividades do Moleque.
O curioso, é que o ato banal de se alimentar é lindamente representado e, o texto a
seguir, proveniente das reflexões de Benjamin se adéqua bem:
Jamais provou uma iguaria, jamais degustou uma iguaria quem sempre a comeu com
moderação. Assim se conhece talvez o prazer da comida, mas nunca a avidez por ela, que leva
à mata virgem da comezaina. É na comezaina, a saber, que estes dois se reúnem: a imoderação
do desejo, e a monotonia com que ele se sacia. Comer, isto significa antes de tudo: comer
radicalmente. Não há dúvida de que isso alcança mais profundamente a coisa devorada que o
prazer...se esquece de tudo o mais que existe na Terra para comer...E tu mesmo que estás
sentado,talvez ao lado dele, à mesma mesa, no mesmo banco, e, contudo te sentes distante e
sozinho...O jejum é uma iniciação em muitos mistérios e não menos no mistério de comer. E se a
fome é o melhor cozinheiro, o jejum é o melhor entre os melhores... Primeiramente, ele deposita
em tua língua uma máscara de vapor. Muito antes de tua língua molhar a colher, teus olhos já
lacrimejam, tuas narinas já pingam sopa (borscht). Muito antes que tuas entranhas se ponham à
escutar e teu sangue seja uma onda que inunda teu corpo com a espuma perfumada, teus olhos
já beberam da abundancia rubra desse prato. Agora eles estão cegos para tudo o que não seja
sopa ou seu reflexo nos olhos do comensal...Então vais descobrir o segredo da sopa que, dentre
todos os pratos, é o único que tem o dom de saciar suavemente, de aos poucos penetrar-te,
quando com outros um brusco e inamistoso "basta" abala de repente teu corpo inteiro.
(BENJAMIN; Obras Escolhidas - Walter Benjamin; Imagens do Pensamento; ps.213-217).
Este tema existe, também na forma de gravura com o título de "Moleque Cipó tomando
sopa", c.1963 Figura 34 com uma sequencia de 10 provas de cor, muito interessante.
É em uma situação como esta que o percebemos quando diz: "Para mim, a gravura em
metal em preto e branco é música de câmera, enquanto a pintura tem o som da
orquestra sinfônica" (GRUBER; A gravura no fio da navalha; 1992).

Sobre a crítica do poder como violência

No período em que esteve na França, enquanto estudava gravura, desenvolveu alguns


estudos fruto de observações de ações políticas, como o "Reprimindo manifestações nas
ruas de Paris", 1951 Figura 35 em que mostra policiais coibindo manifestantes em
antagonismo à presença colonizadora francesa, na antiga Indochina, depois Vietnã
com a presença americana. Esta obra faz parte do conjunto que classificamos como Os
anos de formação e os estudos do Artista.
De volta ao Brasil, produziu uma série de gravuras alusivas às "Greves de Abril", c, 1953
Figura 36 em que nos remete a Walter Benjamin, autor do ensaio Sobre a crítica do
poder como violência, que menciona:
O primeiro exemplo poderá ser a luta de classes, sob a forma de direito à greve garantido aos
trabalhadores. O operariado organizado é, hoje em dia, o único sujeito jurídico, além do Estado, ao qual se
concede o direito à violência. Contra esse ponto de vista, é certo, pode objetar-se que a recusa de agir, a
não ação - coisa que, em última instância, a greve é -, de modo algum pode ser referida como violência.
12

(BENJAMIN; O Anjo da história; p.63).


Gruber já havia estudado o problema da escravidão ao desenvolver "Estudo para Navio
Negreiro", 1989 Figura 37 ,bem como "Grupo de pessoas caminhando", 1965 Figura 38
mostrando um grupo de afro descendentes em movimento. Há uma gravura muito
interessante onde se percebe o impacto da violência causada pelas condições
climáticas e a negligência do poder publico: "Retirantes", 1949 Figura 39.
A obra "Moleque Cipó", 1973 Figura 40 mostrando a perda de mobilização dos braços e a
desconstrução da bandeira brasileira, como símbolo, tendo exu ao centro sobre a
cabeça do moleque triste é significativa do sentimento de perda de liberdade, ou
mesmo a obra "Labirinto", 1973 Figura 41 ambas expostas na mostra em São Paulo, da
Galeria Ipanema. Walter Benjamin, abaixo, se manifesta sobre a violência:

a crítica do poder militar que se tornou ponto de partida de uma acesa crítica da violência em
geral - crítica que, pelo menos, ensina que ela não pode já ser exercida de forma ingênua nem
tolerada-, aquele poder transformou-se em objeto de crítica, não apenas por querer instituir um
Direito; ele foi julgado de forma talvez ainda mais arrasadora no que respeita a uma outra
função. O que, de fato, caracteriza o militarismo - que só chegou a ser o que é devido ao serviço
militar obrigatório - é uma duplicidade na função da violência. O militarismo é a compulsão ao
uso generalizado da violência como meio para atingir os fins do Estado.
(BENJAMIN; O anjo da história - sobre a crítica do poder como violência; p.66).
As obras citadas no tópico acima foram classificadas na coleção como O Moleque Cipó
cerceado.
A violência é apresentada em algumas situações ligada a brincadeiras infanto-juvenis,
como Cipó malhando a Judas, 1962 Figura 42.
Mais adiante verificamos trabalhos com o menino apresentando um sorriso pouco
decifrável em Menino da Agulha branca (careca), 1974 Figura 43 e que, sutilmente, pode ser
percebido como uma arma branca tanto quanto em Menino observando o pião (careca),
1975 Figura 44. Já em O Menino do facão, 1976 Figura 45 a violência é mais evidente, tanto
quanto em Menino com chapéu, 1975 Figura 46. Há uma outra forma de violência que
importou e influenciou Gruber em seus trabalhos que é aquela da dependência cultural.
É aquela em que impôs o Taylorismo e que podemos ver seu impacto em S/T (CLASSE
MÉDIA TENTANDO SUBIR NA VIDA), 1980 Figura 47 e a ironia de um tecnicismo exagerado.
Da mesma forma, em O Grande Alfinete, 1980 Figura 48 e O Quebra Nozes, 1980 Figura 49, há
uma proposta quase violenta de abrir a cabeça de seguidores de modismos irrefletidos
e culturalmente limitantes.

Narrador
As mãos dos personagens pintados por Gruber parecem, com frequência, ajudar na
narrativa de algo, muitas vezes, enluvadas e espalmadas ou com o indicador em riste
como que a enfatizar algum ponto importante. Este componente existe já nos moleques
que mostram algo a ser protagonizado, como em Fantasiado com gravata verde, 1978 Figura
50. Há ocasiões que estão em roupas a caráter, proveniente da Commedia dell´ Arte,
como Fantasiado, 1979 Figura 51, ou Fantasiado n° 11, 1986 Figura 52, ou do momento
presente, vindo do nordeste brasileiro, como em L'espiègle aux gants rouges, 1979 Figura
53, ou de algum lugar fantástico como o Profeta dos anzóis III, 1993 Figura 54.

Walter Benjamin, no ensaio escrito em 1928 sobre Brinquedos e jogos, lembra que: "O
adulto, ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza novamente
uma felicidade." (BENJAMIN; Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação; 1984).
13

Figuras do carnaval brasileiro podem ser narradores, como vemos em Fantasiado


(Camisa Verde) Passista de frente), 1981 Figura 55 e Fantasiado (Camisa Verde) (Passista de
lado), 1981 Figura 56 ou como o arlequim em Fantasiado ʺPanteraʺ, 2006 Figura 57 ou ainda
quando há um semblante de tristeza que não coaduna com a fantasia como em
Fantasiado, 1988 Figura 58.

Máscaras e Experiências
Máscaras são extensivamente utilizadas pelo artista. Podemos vê-las no Moleque que
está a narrar momentos da história como em Menino com Máscara n°3 (Vermelha), 1970
Figura 59 , ou como quando se inicia o processo de busca de alterego do Moleque, e
que será denominado de Astolfo, em Máscara, 1966 Figura 60; ou no intermediário da
pirâmide humana experimentando a chegada do Astolfo, em ST (pirâmide humana), 1967
Figura 61.
Ao examinar estas obras, percebemos como se adéquam com o pensamento de
Benjamin, quando escreve:
a situação é a seguinte: a assim chamada imagem interior do próprio ser que trazemos em nós
é, de minuto a minuto, pura improvisação. Ela se orienta, se assim podemos dizer, inteiramente
de acordo com as máscaras que lhe são exibidas. O mundo é um arsenal de tais máscaras. Só o
homem atrofiado e desolado o busca como simulação em seu próprio interior. Pois nós mesmos
somos em geral pobres em imagens. Por isso nada nos faz tão felizes como alguém que se
aproxima de nós com uma caixa de máscaras exóticas e então nos apresenta os exemplares
mais raros, a máscara do assassino, do magnata das finanças, do circunavegador. Olhar através
delas nos encanta. Vemos as constelações, os instantes, nos quais fomos verdadeiramente um
ou outro, ou todos de uma vez. Todos nós almejamos este jogo de máscaras com êxtase.
(BENJAMIN; Obras Escolhidas - W. Benjamin; Imagens do Pensamento; p.212).

Há situações quando a face inexiste como em Carnaval em Ipojuca,1982 Figura 62; ou


usada como escudo em Astolfos (Ipojuca), 1991 Figura 63; ou com uma pilha de máscaras
exóticas, como em Fantasiados (com pilha de mascaras), 2008 Figura 64 ou quando a
máscara é o inverso, em Camisa verde n°2, 1981 Figura 65.
Baudelaire quando escreve Spleen de Flores do Mal:

Quando, pesado e baixo, o céu como tampa


Sobre a alma soluçante, assolada aos açoites,
E que deste horizonte, a cercar toda a campa
Despeja-nos um dia mais triste que as noites;

Quando se transformou a Terra em masmorra úmida,


Por onde essa esperança, assim como um morcego
Vai tangendo paredes ante uma asa túmida
Batendo a testa em tetos podres, sem apego;

Súbito, os sinos saltam com ferocidade


E atiram para o céu um gemido fremente,
Tal aquelas errantes almas sem cidades
Que ficam lamentando-se obstinadamente.

- E féretros sem fim, sem tambor ou pavana,


Lentos desfilam dentro mim; e a Esperança.
Vencida, chora, a Angústia, feroz e tirana,
A negra flâmula em meu curvo crânio lança.
(BAUDELAIRE, Flores do Mal - Spleen, Blog de Bruno Anhanga)
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O texto lembra a angustia e melancolia que podem ser percebidos em: ST (Figura
humana com máscara observando máscaras ao chão), 1982 Figura 66 e, possivelmente,
refletem a alma do artista com o falecimento de Cecília Helena Decourt, ex esposa e
pessoa que influiu muito em sua vida e carreira e a prevalência do regime militar na
política brasileira.

Misticismo e fetiche
A partir da década 1980, e, principalmente na década de 1990 produz obras que
conduzem o Moleque a um novo estágio. Lembremos que em períodos anteriores, o
Moleque já se vira cerceado em sua liberdade e manifestara alguma violência
presumida e depois evidente, em alguns trabalhos, parecendo acompanhar os
sentimentos da dinâmica da política nacional.
Walter Benjamin em ensaio sobre surrealismo, comenta:
...as posições burguesas de esquerda são uma irremediável vinculação entre a moral idealista e
a prática política. Certos traços fundamentais do surrealismo e da tradição surrealista somente
se tornam compreensíveis pelo contraste com esses pobres compromissos ideológicos. É difícil
resistir à sedução de ver o satanismo...num inventário de esnobismo...descobriremos que o culto
do mal é um aparelho de desinfecção e isolamento da política, contra todo diletantismo
moralizante, por mais romântico que seja esse aparelho...porque é na política que a metáfora e a
imagem se diferenciam da forma mais rigorosa e mais irreconciliável. Organizar o pessimismo
significa simplesmente extrair a metáfora da esfera da política, e descobrir no espaço da ação
política o espaço completo da imagem.
(BENJAMIN; Obras Escolhidas - Magia e Técnica, Arte e Política; p.30)
O ocultismo passa a estar presente em trabalhos como Montando, 1980 Figura 67; S/T
(Menino e touro com máscara), 1993 Figura 68; Mascarado com bois, 1992 Figura 69 e outras
obras que na coleção constam da classificação de O Moleque Enfeitiçado, dando a
impressão de que o Moleque é dotado de poderes excepcionais e que pode influenciar
outros seres. Vale lembrar que a maior partes destas obras foi produzida num período
cujo quadro político, em nível nacional, estava sob o efeito do governo Collor e, em
nível internacional, vivia a queda do Muro de Berlim, a desintegração da União
Soviética e o fim da guerra fria.

Alegorias e Símbolos
Um dos componentes de sua linguagem, é o estandarte, que foi utilizado de forma
extensa por décadas, em várias obras. Em boa parte, o estandarte é usado como um
mero símbolo do carnaval, que tanto sensibilizou o artista, conforme cita:
O carnaval é uma coisa que me intriga até hoje. É um fenômeno, né? Mas acontece que esse
fenômeno tá sendo tocado por racionalistas horrorosos que instituem prêmios, competições,
desfiles. E desvirtuou, né? Eu sou do tempo que você ia pra rua e o carnaval se dava na rua,
batalha de confete com carro, serpentina. Lança-perfume. Lança-perfume era liberado, rapaz!
(TORRES; Gravação de Mário Gruber; 2009).

Vários destes estandartes na coleção estão classificados em O Moleque, o carnaval e


o Estandarte, como Carnaval, 1984 Figura 70, ou Carnaval, 1994 Figura 71.

Ocorre que, pouco a pouco, o estandarte foi sendo utilizado para anunciar novos
conceitos ou mesmo, estados de espírito. Passa a ser uma alegoria, que revela novas
possibilidades de significação. É através de um estandarte que anuncia a formação da
15

imagem de um boneco, que se tornará o alterego do Moleque e que Gruber irá chamar
de Astolfo, como Estandarte com 2 personagens (máscara), c.1966 Figura 72.
Da coleção, na classificação Os últimos trabalhos do Artista, vemos obras em que
relata a sua insatisfação, como em Estandarte, 2009 Figura 73 , ou o seu cansaço, como
que se despedindo da vida, tendo a alegoria do estandarte como meio de expressão
em Estandarte triste em amarelo, 2008 Figura 74 e Estandarte em amarelo, 2009 Figura 75.

A alegoria funciona em Benjamin como uma cadeia de ideias que facilita o acesso aos
conceitos, experiência de ser da linguagem que predispõe para o conhecimento do
verdadeiro.
É interessante suas observações quando relata sentimentos da infância em Berlim:

Na maior parte das vezes, era minha mãe quem me fazia a cama. Sentado no divã,
acompanhava seus movimentos de sacudir os travesseiros e as cobertas e pensava nas noites
em que me davam banho e, em seguida, me traziam à cama o jantar numa bandeja de
porcelana. Sob o esmalte, em meio a uma brenha de framboeseiras silvestres, aparecia uma
mulher se empenhando em desfraldar ao vento um estandarte com a divisa: "Vá para o Ocidente
ou para o Oriente, mas é em casa onde você melhor se sente". E a lembrança do jantar e das
framboeseiras era tanto mais agradável quanto mais o corpo sentisse superar para sempre a
necessidade de comer alguma coisa, Em compensação, lhe apetecia ouvir histórias...Eu as
amava, pois da mão de minha mãe já gotejavam histórias que , logo, em abundância, emanariam
de sua boca. (BENJAMIN, Infância em Berlim; p.108 e 109).

Benjamin, poeticamente, dá margem a um diálogo entre sua narrativa e a obra de


Gruber envolvendo o Estandarte, o comer, e o Narrador.

No processo de esclarecimento sobre a diferença entre a representação simbólica e a


alegórica, Benjamin, coloca que esta significa apenas um conceito geral, ou uma ideia,
diferentes dela mesma, enquanto aquele é a própria ideia tornada sensível, corpórea.
Afirma ainda que a alegoria não é uma retórica ilustrativa através da imagem, mas
expressão, como a linguagem, e também a escrita. (BENJAMIN, A Origem do drama
trágico alemão; p.175).
A gravura "Periscópio Branco", 1963 Figura 76 inicia uma série de trabalhos que será
revisitada algumas vezes, sempre aludindo à violência e limitação no livre agir, e que
de certa forma acompanhou o período militar.
Vale mencionar que em 1972, na reabertura do Teatro Arena, ocorreu exposição com
obras sobre o tema Periscópio, quando do lançamento da peça "Cromossomos" de
autoria de seu amigo, Clay Gama de Carvalho, também santista. Gruber participou da
cenografia da peça, que teve uma pintura representando um recém-nascido e
constando o texto: ”Enquanto vocês vão ao espaço nós ficamos aqui morrendo de
fome” “Esta é uma manifestação da consciência de um pintor” e pode ser visto na obra
Cromossomos, 1967 Figura 77. Embora não tenha sido um sucesso de publico, a peça foi
muito apreciada pelo escritor argentino Julio Cortazar que, inclusive, escreveu um
conto em homenagem a Clay Gama e mantiveram durante anos uma amizade de
telefonemas e cartas.
Gruber nutria enorme respeito pela força intelectual de Clay Gama, partilhando dos
mesmos ideais políticos. Clay Gama se exilou na Suécia e após seu retorno a São
Paulo suicidou-se, ao ter seus textos apreendidos pelo governo militar. Posteriormente
16

Gruber iria homenageá-lo com painéis em Santos e na Biblioteca do Memorial da


America Latina, utilizando o mesmo elemento visual de o Periscópio.
O símbolo é composto por círculos concêntricos contendo o rosto de uma criança que
tem a boca costurada com linha, parecendo feita à mão, e uma costura vertical,
parecendo feita a máquina, indo do topo da cabeça ao pescoço, no rosto. Esta imagem
volta a ser utilizada pelo artistar, com alterações, em Periscópio, c.1972 Figura 78,
Periscópio n°3, 1978 Figura 79. Em Periscópio n°2, 1968 Figura 80 e Periscópio n°5, 1972 Figura 81,
ele coloca vários rostos justapostos, parecendo à distância obras geométricas. Este
mesmo elemento visual está presente em obras públicas no Memorial da America
Latina (SP) e no Outeiro de Sta. Tereza, marco zero de Santos. Em 1984, este mesmo
símbolo fez parte de um trabalho com 3 metros de diâmetro participante da exposição
internacional itinerante promovida pela ONU, denominada ART contre/against
APARTHEID. A imagem foi utilizada como capa da Revista Novos Rumos em 1986.
O comentário de Benjamin, de que:
enquanto o símbolo atrai a si o homem, o alegórico irrompe das profundezas do ser para ir ao
encontro da intenção no seu caminho e a abater...para resistir à queda na contemplação absorta,
o alegórico tem de encontrar formas sempre novas e surpreendentes. Já o símbolo,...,
permanece tenazmente igual a si mesmo.
(BENJAMIN, Origem do drama trágico alemão, p.195).

Por outro lado, a linha de costura que é parte do símbolo, será modificada de diversas
formas, transformando-se em cordas, correntes, ganchos, cipós, pregos, alfinetes,
gravatas e vários outros elementos como pode ser observado em S/T (Estudo de Astolfo
e elementos de retenção), 1970 Figura 82, que poderão limitar o indivíduo fisicamente ou
mentalmente, criando uma alegoria da limitação. Estas obras estão classificadas nas
coleções temáticas: O Moleque sendo Limitado e O Moleque Dependente.

O Realismo Fantástico e as Aves


Mário Schenberg, físico, crítico de arte e seu amigo foi quem observou, citando como
uma nova característica de sua pintura, na segunda parte dos anos sessenta,
conceituando-a de realismo fantástico.
O artista, por sua vez, procurou explicar o conceito de realismo fantástico a partir da
ideia do antropólogo americano Loren Eiseley, cuja forma de pensar se aproxima dos
autores de “Despertar dos Mágicos”, contando a seguinte história que exprime bem o
que querem dizer:
Descobrir outro mundo, diz ele, não é apenas um fato imaginário. Pode acontecer aos homens.
Aos animais também.
Por vezes, as fronteiras resvalam ou interpenetram-se: basta estar presente nesse momento. Vi
o fato acontecer a um pássaro/corvo. Esse pássaro é meu vizinho: nunca lhe fiz mal algum, mas
ele tem o cuidado de se conservar no cimo das árvores, de voar alto e de evitar a humanidade.
O seu mundo principia onde a minha vista acaba. Ora, uma manhã, os nossos campos estavam
mergulhados num nevoeiro extraordinariamente espesso, e eu dirigia-me às apalpadelas para a
estação. Bruscamente, à altura dos meus olhos, surgiram duas asas negras, imensas,
precedidas por um bico gigantesco, e tudo isto passou como um raio, soltando um grito de terror
tal que eu faço votos para que nunca mais ouça coisa semelhante. Esse grito perseguiu-me
durante toda a tarde.
Cheguei a consultar o espelho, perguntando a mim próprio o que teria eu de tão revoltante...

Acabei por perceber. A fronteira entre os nossos dois mundos resvalara, devido ao nevoeiro.
Aquele pássaro, que supunha voar à altitude habitual, vira de súbito um espetáculo espantoso,
contrário, para ele, às leis da natureza. Vira um homem caminhar no espaço, mesmo no centro
do mundo dos pássaros. Deparara com a manifestação de estranheza mais completa que um
pássaro pode conceber: um homem voador....Agora, quando me vê, lá do alto, solta pequenos
gritos, e reconheço nesses gritos a incerteza de um espírito cujo universo foi abalado. Já não é,
17

nunca mais será como os outros pássaros...(PAUWELS E BERGIER; O despertar dos Mágicos;
p.12)
Curiosamente, o artista, desenvolveu uma série de trabalhos mostrando o
relacionamento entre o homem e a ave, que está classificado na coleção, como A Ave
e o Moleque com obras como: Menino coroado de pássaros, 1994 Figura 83; Fantasiado Com
Pássaros, 1990 Figura 84; Personagem e pássaro ʺPertuiʺ, 1994 Figura 85; Fantasiado,1988 Figura 86
e outras gravuras e pinturas mostrando desde a submissão da ave às necessidades do
homem, passando pela convivência harmoniosa mostrado poeticamente, a uma
amalgamação da figura do homem e da ave, até uma coleção de trabalhos em que o
homem cavalga a ave para ir ao céu.
Há um efeito lúdico marcante e lembra algo como que feito para apreciação das
crianças e que nos leva a Walter Benjamin, quando comenta em um ensaio sobre a
Visão do Livro Infantil, escrita em 1926:
Em uma estória de Andersen aparece um livro cujo preço "valia a metade do reino".Nele tudo
estava vivo."Os pássaros cantavam e os homens saiam do livro e falavam". Mas quando a
princesa virava a página "eles pulavam imediatamente de volta, para que não houvesse
nenhuma desordem".
(BENJAMIN; Visão do livro infantil (1926); p.55)
O artista produziu uma sequencia de 20 desenhos ST (A Ave e o Homem), c.1975 Figura 87
mostrando a vida e crescimento dos pássaros até o momento em que se defrontam
com o homem e que mais parece história em quadrinhos.

Os anjos da Renascença (teses sobre conceito da história)


Ao final da década de 1960, iniciou alguns trabalhos em um momento particularmente
agitado da política brasileira quando havia sido instaurado o AI-5 com forte limitação à
liberdade individual e crescentes manifestações de violência.
Gruber tinha grande apreciação pela arte produzida pelos maneiristas que surgiram
após a Renascença Italiana e, utilizando da ironia e ambiguidade, procurou
caracterizar o brasileiro durante um longo período, com obras até após o ano 2000 e
que estão classificadas na coleção, como Os Anjos da Renascença Brasileira, tais
como: Anjo Da Renascença Brasileira, 1969 Figura 88; Peixe-Arco Iris (ARB), 1973 Figura 89; Anjo
Da Renascença Brasileira, 1974 Figura 90; Anjo Da Renascença Brasileira, 1974 Figura 91
e vários outros.

Curiosamente, no livro O anjo da história, Walter Benjamin, observa que:


Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo "tal como ele foi". Significa
apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge como um clarão num momento de perigo.
Ao materialismo histórico interessa-lhe fixar uma imagem do passado tal como ela surge,
inesperadamente, ao sujeito histórico no momento do perigo. O perigo ameaça tanto o corpo da
tradição como aqueles que a recebem, Para ambos, esse perigo é um e apenas um: o de nos
transformarmos em instrumentos das classes dominantes. Cada época deve tentar sempre
arrancar a tradição da esfera do conformismo que se prepara para dominá-la. Pois o Messias
não vem apenas como redentor, mas como aquele que superará o Anticristo. Só terá o dom de
atiçar no passado a centelha da esperança aquele historiador que tiver apreendido isto: nem os
mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo nunca deixou de vencer.
(BENJAMIN; O anjo da história; )

Procuramos nas estrofes abaixo resumir o que ocorreu com as asas dos Anjos da
nossa renascença:
E assim chegam os Anjos da Renascença
resultado de muita pesquisa sobre o Maneirismo.
É um relato, para o brasileiro, da consequência
da luta pelo poder e da cultura externa ter dependência.
18

Meramente surge um par de asas:


é pano sustentado por madeira,
depois dá clara noção, realmente, de penas
até que é de madeira a estrutura inteira.

O que foi mais definido


foram as asas de placa metálica
com personagens a fazer ruído
com postura menos triste ou bélica.
(Paulo M Torres)

Podemos acompanhar a mutação não só das asas, como também do enfoque que é
dado aos anjos, através os trabalhos Anjo da Renascença, 1980 Figura 92; Anjo da
Renascença Brasileira, 1982 Figura 93. As crianças começam a aprender sobre o uso das
asas, e isto pode ser visto em momentos diferentes através de Anjos da Renascença
Brasileira, 1978 Figura 94 e Anjos da Renascença Brasileira (Les papillons), 1982 Figura 95, até
acontecer uma revoada de Anjos Da Renascença Brasileira, 2006 Figura 96. Há uma releitura
do Anjo do futuro, em Anjo da Renascença Brasileira, 1986 Figura 97.

O Ovo, o Planeta e a Nave


Gruber acompanhou atentamente a corrida espacial que foi parte importante da
chamada Guerra Fria, entre os anos 1950 e 1960. O desenho em nanquim S/T (Estudo
s/ astronauta), 1960 Figura 98 reflete a preocupação do artista sobre o tema.
Em 1967, tem a primeira exposição individual, na Galeria Atrium em São Paulo com a
temática: O Ovo, o Planeta e a Nave, aludindo à origem/passado, ao
realismo/presente e ao futuro/imaginário.
A obra O Ovo e a Nave, 1967 Figura 99 é exposta, caracterizando uma nave em formato
oval, dirigida por um pequeno feto. Também é exposta a obra S/T (figuras passando a
bola), 1967 Figura 100, cujo comentário feito pelo Professor Antonio Cândido de Mello e
Souza, no catálogo da exposição diz:

Veja-se o quadro admirável, onde um pequeno ser argênteo, tatuado do mais belo azul, oferece
a outro, alto e solicito com a mancha preciosa do seu rubro olhar convencional, a esfera em que
Mario Gruber parece representar obsessivamente as forças germinativas, robôs, marcianos,
cosmonautas, - não importa, - eles são vivos e comoventes, produzem gestos humanos, e a
prata quase fosforescente do seu corpo-couraça é uma carne de mundos sonhados... O gesto
propiciatório que este fazia em direção do ovoide não deu efetivamente lugar a uma
reciprocidade, à instauração mágica de um novo ser, que completa o gesto pela oferta do objeto
esférico? Só que aqui tudo é solido, sendo etéreo, pois as manchas de cor se tornaram volumes,
e o que parecia exercício prolongou em formas estuantes de vida.
Diante de quadros como este... é como se vislumbrássemos a pintura do futuro. Tudo que é jogo
com a cor, a proporção, o volume, conserva-se na sua essência mais pura; mas não em
abstrato. Conserva-se como instrumento de uma imaginação que recria o mundo com dignidade
e senso da tragédia, buscando formas novas, transfigurando o que há de contingente na
representação do objeto. Sejamos francos: na orla do mundo que nasce Mario Gruber levanta o
véu de uma nova pintura.(MELLO E SOUZA; Gruber - Galeria Atrium)

Ao analisar esta obra em que, liricamente, mostra figuras absolutamente distintas entre
si, em um trabalho conjunto no cuidar da esfera que, simbolicamente, significa a vida,
percebemos uma perspectiva otimista com relação ao futuro, algo que foi identificado
por Mário Schenberg quando coloca:
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O problema do Tempo esteve sempre no centro da vivencia artística de Gruber com uma ênfase
no sentido do passado, de um passado subsistindo no presente ou de um presente aprisionado
pelo passado. Agora Gruber começa a vivenciar um futuro que parece descer espiralando sobre
um aqui – agora, vindo das profundidades cósmicas. Para Gruber o sentimento do passado ou
do presente-passado foi sempre impregnado de angustia, mas o do presente-futuro e do futuro
denotam uma alegria nascente. (SCHENBERG; publicação em 05/09/1976 na Folha
Ilustrada).
É neste período que cria a figura que se tornará o Astolfo e que será um espaçonauta,
um ser extraterrestre ou mero boneco de pano em Astolfo, 1967 Figura 101 e Boneco
astronauta, 1967 Figura 102. O Astolfo fará parte de sua obra, até o final de seus dias, como
em Astolfos, 2009 Figura 103 e estará presente na forma de criança, adolescente, formará
família, será, eventualmente, vegetal.
Da mesma forma que poderá ter contato com humanos e ter a sua textura alterada
para distintos materiais.

Considerações Finais

À medida que o tempo avança, o artista incorpora em suas obras elementos de


linguagem que compõem seu alfabeto, símbolos da alegoria do prender/atar, como:
alfinetes, chaves, anzóis, correntes com o Astolfo, o Anjo da Renascença Brasileira, a
Ave e, principalmente o Fantasiado como em Fantasiado, 2007 Figura 104, ou ARB, Astolfo e
Bloco das Galinhas, 1994 Figura 105 ou ainda Série Burro #1, 2006 Figura 106 e Série Burro #2,
2006 Figura 107.
Cada obra foi catalogada em uma específica coleção temática, não impedindo que as
obras híbridas possam estar em eventuais exposições parciais, se adequadas.
Há trabalhos realizados no início de carreira quando pintou no atelier de Di Cavalcanti e
que evoca nos anos 2000, como em, Natureza Morta 1947 Figura 108 e Natureza Morta,
2006 Figura 109.
Trabalhando intensamente mesmo após estar doente, voltou ao tema do carnaval e o
estandarte dando coloração amarelo ouro, mostrando o fantasiado triste, em dupla e no
meio de blocos que vão aumentando o número de componentes. Figura 110; Figura 111;
Figura 112; Figura 113; Figura 114. A obra Figura 115 é uma serigrafia, técnica nunca antes
utilizada por ele e, certamente, a aceitou por razões econômicas. Isto me faz recordar
indagação que fez, em ocasião anterior, sob minha concordância com a afirmativa de
Walter Benjamin relacionada à perda da aura da obra de arte após ser submetida à
reprodutibilidade técnica. Eu, que pouco conhecia de Benjamin, fui enfático em
concordar, pois à época só adquiria telas. Utilizou da alegoria do Estandarte
demonstrando que estava cansado e, em breve, nos deixaria, mas a aura de seus
trabalhos segue forte Figura 116.
Como mencionado, o pensamento de Walter Benjamin é respeitado por Gruber.
Benjamin, por sua vez, deixa uma sólida análise crítica de obras não só de Baudelaire,
como de Marcel Proust, Kafka e Brecht da mesma forma, que Gruber se identifica com
Rembrandt, Michelangelo, Caravaggio, Van Gogh, Goya através de seus estudos,
como em (Estudo de Rembrandt), 1948 Figura 117; D´apress Michelangelo , 1948 Figura 118;
Estudo de Caravaggio, 1980 Figura 119; (Pensando em Van Gogh), 1963 Figura 120 e,
concluindo, por sua apreciação pelos Maneiristas, permitindo conciliar a busca da
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psique do brasileiro com o estilo dos grandes mestres, e o uso da ironia e ambiguidade
em seus trabalhos.

Ter ganho o primeiro premio de pintura, em 1947, na histórica exposição dos 19


Pintores, em São Paulo, com o júri formado por Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Lasar
Segall propiciou a ele oportunidades que lhe conferiram notoriedade no círculo e
imprensa especializados em arte. Gruber foi apreciado, criticado e teve momentos de
enorme prestígio. Mas, sempre se posicionou como um artista independente, com um
viés marginal à rota seguida pelos artistas mais bem sucedidos. Isto trouxe como
consequência, o conhecimento fragmentado de sua obra, principalmente, no ambiente
artístico paulista e, não raro, visto de forma distinta, por pessoas distintas. Fez algumas
exposições, mas poucas ligadas a entidades culturais oficiais, ainda que nos últimos
anos tenha recebido reconhecimento formal.
A obra de Gruber através do Moleque que flana por nossa história narrando emoções
através de suas fantasias, suas experiências na forma de máscaras, que tem nos
blocos de carnaval a multidão onde como flâneur percebe personagens e os retrata
com precisão e ironia. Sua obra tem com as reflexões de Walter Benjamin pontos de
semelhança que merecem ser amplamente expostos e discutidos por sua
contemporaneidade.
Podemos dizer que o flâneur, como o dandy, o colecionador, a prostituta, são figuras
alegóricas escolhidas, pelo Benjamin alegorista na sua apresentação da modernidade;
assim como o Moleque, o Fantasiado, o Mascarado, O colecionador de pérolas, os
Anjos da Renascença Brasileira, os Noivas, são algumas das figuras alegóricas
escolhidas pelo Gruber alegorista na sua pintura contemporânea.
Desenvolver uma coleção das obras de alguém que se teve a oportunidade de conviver
e respeitar é algo significativo. Principalmente, se a coleção, em particular, permite dar
uma noção de como o artista se expressou ao longo de sua trajetória profissional,
assim como, propiciar a constatação da atualidade de sua obra no presente momento.
Uma coleção desenvolvida com cuidado, preservada com critério, só faz sentido se
puder ser compartilhada por apreciadores de arte, e jovens pelo caráter lúdico da obra.
Por outro lado, a existência de espaço físico em condições adequadas para a
preservação das obras assim como para circulação segura de seus visitantes implica
em valores elevados nem sempre suportáveis para o colecionador que não deseja
vender suas obras.
É problemático conciliar em museus a exposição de seus acervos com a exposição de
obras de outros colecionadores. Problemática é a criação de espaço permanente para
exposição de obras de Mário Gruber.
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REFERÊNCIAS

BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna.1996

BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única - Obras Escolhidas- Desempacotando


minha Biblioteca (Um discurso sobre o colecionador). Editora Brasiliense 1987.
pagina 232

BENJAMIN, Walter. Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação. Summons


Editorial, 1984

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Autêntica Editora, 2012

BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Autêntica Editora, 2011

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I - Magia e Técnica, Arte e Política. Editora


Brasiliense, 1996

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única. Editora Brasiliense,


1995

BENJAMIN, Walter.Obras Escolhidas III - Charles Baudelaire Um Lírico no auge do


Capitalismo. Editora Brasiliense, 1997

CASTELLO BRANCO, Lucia. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro


traduções para o português. Fale/UFMG, 2008

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e


patrimônios. Coleção Museu, memória e cidadania, 2007

PAUWELS, Louis; BERGIER, Jacques. O Despertar dos Mágicos – Introdução ao


Realismo Fantástico.

Catálogos de exposições do artista. Anexo IV


GRUBER, Mário, A gravura no fio da navalha. Retrospectiva de Gravuras (1940-1993).
Instituto Moreira Salles, 1992
Gravações feitas com o artista
Críticas publicadas em jornais e revistas, sobre o artista. Anexo II

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