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2 UM CONCEITO FUGIDIO. NOTAS SOBRE O FILME-ENSAIO Antonio Weinrichter Lopez Em Maio DE 1997, ao apresentar em Cannes seu Histoire(s) du cinéma, Jean-Luc Godard, na coletiva de imprensa, deu conti- nuidade a ideia contida em seu magnum opus: de que o cinema tinha uma voca¢io originaria que permanecia, em grande me- dida, irrealizada. De uma outra perspectiva (Godard cita que o cinema talvez tivesse nascido para gerar conhecimento e nao para contar histérias), ouviram-se depois semelhantes lamen- tos acerca da morte do cinema tal como o amavamos: em uma notoria formulagio recente de Susan Sontag e em escritos de alguns pensadores que desde a margem artistica se aproximam do cinema (ou ao audiovisual) partindo da convicgio — e pa- rece que isso é a condi¢ao prévia a seus interesses — de que vivemos uma era pés-cinematografica (Royoux, Brea).A mes- ma melancolia submete ao recolhimento de suas videotecas de inverno os cinéfilos do classico e aqueles que velam os res- tos da modernidade. Naquela coletiva de imprensa me atrevi a apontar para Godard 0 paradoxo sobre a crise do cinema da qual ele se la- mentara em uma obra que era uma grande prova do contririo, pois ele colocava sobre a mesa (¢ tudo o que Godard faz é sempre uma magnifica caixa de ressonancia) uma nogdo cheia de potencial,a do ensaismo cinematografico, um possivel anti- 2 Urn conceito tigidio, fi audio, Notas sobre o filme-ensaig 43 dor contnt o esgotamento da ficgio ¢ contra a sujeich . . ot , Slo do documentirio d problennitica ideia de representacao da realida- de em ver de se propor como um discurso sobre 0 real Ainda algum o pri- n ido), tunidade de sua aparigio num ambiente tio crepuscular como o mencionado sugeria que a nogio de filme-ensaio talvez s6 pudesse ser av aliada num contexto de crise do cinema con- gue e exemplo godardiano nio fosse de modo meio de cnsatsmo filmico (somente © mais conhe a opor- yeneional na verdade ele s6 poderia surgir neste contexto,O ria entio uma forma da maturidade da expressio fica, mas ensaio mare cinematogra também poderia ser visto como uma forma pos: pos-moderna, pds-documental ou, utilizando um termo aqui popularizado pela curadora Berta Sichel, postvérité, Um conceito recente A programagio dos festivais e dos museus muitas vezes serve para que seu curador faca algo mais do que redigir ata de uma Pr ede artistas ele pode contribuir para a criagdo de uma tendén- cla ou.no minimo, pode chamar atengdo para um determina- do movimento que esteja surgindo e acabar por batiza-lo. No campo do documentirio, talvez os casos recentes mais marcan= tes tenham sido a retrospectiva “Fake”, organizada pelo Festi- val Rotterdam em 1997 e que ajudou a colocar no mapa ° conceito de falso documentiario e, dentro do contexto espa- nhol, o mencionado conceito de postvérité divulgado na pu- blicagio homénima editada em 2003 por Sichel. Dessa pets- Pectiva, a categoria de filme-ensaio permianece, no entanto, quase inédita. Entre as poucas tentativas que Cal ta-se o bastante parcial ciclo organizado 2 estabelecida: gragas a sua particular combinagio de obras be mencionar encon- em 2000 por Sylvie 44 Antonio Weinrichter Lopez Astric no Centre Pompidou de Paris, sob 0 titulo “Le fil essai: identification d’un genre”, onde foram Projetados ah mes de Resnais, Marker, H. Jennings, Rossellini, Buiuel, Godard, Cavalier e 0 casal Gianikian e Ricci Lucchi, apenas uma parte deles de produgao recente. O ciclo foi acompanhado de um livreto homénimo de vinte paginas com textos curtos de Patrick Leboutte” e Alain Bergala.* Em seguida, em 2002 vem o simpésio “Stuff It” em Ziirich, com curadoria de Ursula Biemann,* sob o patrocinio do Institut fiir Theorie der Kunst und Gestaltung e Migros Museum. Aqui, a diferenga em rela- co aos eventos anteriores foi a énfase posta sobre 0 video-en- saio ea lista de artistas representados de carater muito menos canénico ou histérico (Johan Grimonprez, Rea Tajiri, Walid Ra’ad, Birgit Hein, etc.). A publicagdo que acompanhou 0 evento, Stuffit: the video essay in the digital age, € também muito mais ambiciosa ao incluir textos de Christa Bliimlinger, Hito Steyerl, Paul Willemen e Jorg Huber, entre outros, que abor- dam questdes tedricas sobre 0 desenvolvimento recente do ensaismo na era audiovisual (ou seja, fora da Instituigao cinema - - 2 o- propriamente dita). O evento mais recente do qual a n ‘ici é re- ticia, novamente na Franga, é pautado sobre uma grande 4 i i ns Coté trospectiva organizada pelo festival de curta-metrage! a mples titulo de Court de Pantin em abril de 2005, sob 0 sir i a“ ividida em vinte sesso jista de cineastas € mo essai filmé”.> A programagao esti d que projetam um total de oitenta titulos.A | i i é i figuras cor de videoartistas representados é grande, e inclui figu : Catalogo do Cem ' Sylvie Astric (org.). Le film-essai: identification d'un genre. Catalog Pompidou, Paris, maio de 2000. sdjatheque de Ia commune 2 Patrick Leboutte. Ces ilms qui nous regardent, Mediatheque ¢ frangaise de Belgique, 2002. (org) Le > Alain Bergala. “Qu’est-ce qu'un film-essai?” In: Sylvie Astti¢ idensifcation d'un genre, ct. a3 * Ursula Biemann (org). Stuffit: the video essay in the digital 2 lo festival Coté CO e.Viena: SPOS" 2003, unt, Panis * José Moure. Le cinéma au banc d’essai. Catilogo di (Franga), abril de 2005, Um conceito fugidio. Notas sobre 0 filme-ensaio 45 Pasolini, Godard, Marker, Pollet, Moullet, Garrel, Ioseliani Depardon,Van der Keuken, J. Mekas,Varda. . .e também Man Ray, Vigo, Straub, Duras, Brakhage, Genet, Mitry, Rouch ou Kawase. Isso tudo, em nossa opiniio, talvez contribua para dispersar a nogio de ensaio, convertendo-o em uma catego- ria aberta demiais para se tirar proveito, além da forte tendén- cia franc6fona a selecio chauvinista, que ignora quase que completamente os ensaistas alemies e anglo-saxdes. O evento ndo gera uma publicacio, mas um dossié na revista Bref’ (tam- bém especializada em curta-metragem) com artigos de Jacques Kermabon, Nicole Brenez e uma dezena de anilise de titulos concretos. Esta é a magra colheita de eventos que colocaram sobre a mesa a no¢io de ensaismo cinematografico, se bem que de forma local, ao se tratarem de eventos pontuais que geram publicagdes de mais dificil acesso em relagdo a um livro con- vencional. Tal situagio encontra semelhantes na escassez de estudos dedicados a analisar especificamente o filme-ensaio como uma categoria separada. A bibliografia compilada no compéndio La forma que piensa. Tentativas en torno al cine-ensayo (2007) parece demonstrar que é um conceito relativamente novo. Deixando A parte os textos de André Bazin ou Alexander Astruc,’ que sempre sio mencionados como pioneiros da no- ¢0 do potencial ensaistico do cinema (mais do que sua reali- za¢4o), os primeiros estudos de carter geral aparecem la pelos anos 1990 e muitos deles estio em alemao, o que tem limitado a difusio da nogo para além da area de influéncia do idioma. Acontece também que, mais do que um “género’ ou Pratica especifica, o ensaismo tem como propésito discutir al- guma figura emblemitica, em geral procedente do campo do il de 2005. Dossier “Les essais * Bref. Le magazine du court métrage, n.° 65, margo-ab' cinématographiques”. 7... ou 0 texto de Hans Richter, que junto da poética, ou mesmo da significativa intuigio da po de Bazin ¢ Astruc sio “fundadores ética do filme-ensaio. go Antonio Weinrichter Lopez cinema de ficgio (Godard, Pasolini, Welles) ou experimental (Mekas) evem menor medida, do campo documental (Marker Farocki). D.i-se por certo 0 fato de que esses cineastas faze, dios sem Caracterizar Sua CAL goria nem vinculi-la a uma er praitica ou tradigdo anterior, se é que a tradigio existe, Pref em obr -se pensar em artistas singulares que fa nev 8, c © ensaio permancee, por sua Vez, como um modo singular e seco que o de ser uma ferramenta sem maior interesse intrin a0 alcance desses ilustres artistas, O surgimento (entre 1989 ¢ 1998) de Histoire(s) du cinéma fornece uma dramatica demons- algo nio conquistado por tragio do que estamos abordand Chris Marker mas que, dentro do circulo seleto de seus exe- getas, o monumental video de Godard conseguiu, gerando literatura do que filme-ensaio em si.® E é, além do a) e um quase mai mais, um “filme” de autor (do Autor por excelénc cado que se debruga no cine vem de um cine-cine € exemplo de cineasta-teorico apli tual: novamente, © real intere io, ou um cine/video e perimental, as ver- nio do documentir dadeiras fontes do ensaio. Para dizer a verdade, cabe mencionar que 2 nogio (atual) de filme-ensaio s6 pode aparecer de forma pertinente a partir dos anos 1980, em fungdo de uma série de obras emblemiticas de Godard, Marker e do bem menos conhecido (fora da area alema) Harun Farocki. Se me permite outra anedota pessoal, ainda me lembro do impacto que me produziu a visio, com poucos meses de titulos como Lettre @ Freddy rdianos de de difereng: Bhd ¢ Scénario du film Passion,ambos ensaios goda 1982, ¢ da markeriana Sem sol (Sans soleil) no festival de Berlim em 1 de Pa “Um sintoma di é 7, * a disso € que, em 1997, Ala propds no Jeu i Alain Bergala propos n0 J eee Paris 4 Pach oan ciclo intitulado “Essais de Jean-Luc Godard”, Nio incluimos © ciel : fos mencionados em razio das atengdes postas mais em Godard do que no ensaio Propriamente dito, Algo que nos interessa rastrear aqui. Isso prova 0 quanto Godan € 3, como ¥ ates et referéncia chav a chave © emergente de um conceito ensaistice do cinen mos ao longo desta reflexio mot se long de re xlo € nos demais textos do livro La formia quie piensa: fm" Um coneeito fi " ‘ugidio. Notas FA S110. Notas sobre o film ne-ensaio de 1983. Nao vou presumir jé ter, na nogao de ensaio, nem muito menos, mas estimei si ty pela primeira vez (naquele tempo nio via muitos docune we rios), que 0 cinema poderia fazer algo mais do que eaitar ia torias. E foram pegas como essas — sobretudo as de Marker no cenario alemio, Bilder derWelt und Schrift des Krieg : 47 quela época, intuido a es es (“Ima- gens do mundo e inscrigdes da guerra”, 1988), de Farocki unidas no auge do documentarismo pessoal norte-americano; as obras de Godard estavam demasiado impregnadas pelo peso (literal) de sua figura na tela, de modo que poderiam ser vistas como outra coisa além de um novo e apaixonante capitulo de seu embate pessoal com o cinema —, foram pecas como essas, podemios dizer, que iluminaram a nogio potencial do um cine- ensaio como se concebe atualmente, tal como demonstrado na literatura revista. Na verdade, com um décalage de alguns anos, como se fosse o tempo necessario para digerir a complexidade de obras como Sem sol e comecar a ver sob certa perspectiva os desen- yolvimentos do cinema documentdrio — e experimental — de carater autobiografico, além das contribuigdes dos cineastas que praticam uma escrita pessoal proximas do filme de nio ficcdo, comecam a suceder-se estudos de carater geral que apre- sentam a nogao do ensaismo cinematografico. Em 1992 foi publicada a antologia de Christa Bliimlinger Constantin Wulf Schreiben Bilder Sprechen: Texte zum essayistischen film,” nascida de um simposio realizado um ano antes emViena. Essa a gia pioneira sinaliza pela primeira vez as linhas a serem adota ao longo de toda a exploragio posterior da nogao de cine-en- saio. Ao notavel texto de Bliimlinger, logo traduzido a i francés, seguem-se os textos de Birgit Kmper sobre Sans sort j da de Marker, outro de Karl Sierek sobre a voz off, uma Jorna' _). Schreiben Bilder Sprechen: Texte + Christa Blimlinger & Constantin Wulf (ores ‘um essayistischen film. Viena: Sonderzabl, 1992. 48 Antonio Weinrichter Lopez de Bill Krohn sobre a obra ensaistica de Welles Para 0 ciney etelevisio, uma reflexdo de Raymond Bellour que introduys video na equagio, textos do proprio Farocki e de Hartmut Bitomsky (outro ensaista alemio), um estudo deThomasTode sobre Van der Keuken, ete. Além disso, se traduzem os textos canénicos de Richter, Bazin e Astruc e,se inclui um conjunto de Alexander Kluge e Edgar Reitz sobre a relacao entre a pa. lavra ea imagem." Apés essa primeira e definitiva contribuicdo alema, vem a anglo-saxa: a longa anilise de Bilder der Welt und Schrift des Krieges publicado por Nora Alter'! no New German Critique em 1995;0 estudo de Susan Dermody” sobre a voz subjetiva no documentiario, incluido na antologia de 1995 Fields of Vision; o artigo de Phillip Lopate'* de 1996 que equipara o mistério da forma do ensaio sob a imagem de um inacessivel centauro. Até mesmo uma antologia de carater menos académico como Imagining reality: the Faber book of documentary,"* também de 1996, inclui uma seco intitulada “The Essayists”. A esta é preciso acrescentar uma série de artigos de Michael Renov"’ "Nota do tradutor: Grande parte dos textos citados estio no compéndio orgi- nizado pelo autor: Christa Bliimlinger. “Leer entre las imagenes”. In: Antonio Weinrichter (org.) La forma que piensa: tentativas en torno al cine-ensayo. Pamplona: Gobierno de Navarra y Museo Reina Sofia, 2007, pp. 50-65 Karl Sierek. “Voz, guia ti en el camino: el lado sonoro del ensayo filmico”. In: Antonio Weinrichter (org.) La fornia que piensa, cit., pp. 176-85. = Philip Lopate. “A la biisqueda del centauro: el cine-ensayo!” In: Antonio finrichter (org.) La forma que piensa, cit., pp. 66-91. mwa Noes M. Alter. “The political im/perceptible in the essay film: Farocki = a and the Inscription of War". New German Critique, n° 68, primaver~ ® Susan Der y : jective voice in 2 ‘tmody. “The pressure of the unconscious upon the image: viion, Bega faumentary In Leslie Deveraux & Roger Hillman (orgs.) A . film studies, visual anthropology tograp! keley ¢ Los An- geles: Unser of California Pen anthrepology and photograpy. Berkeley ilip Le * 2 > 1 Tas Weinrichter (org) Life que poe “ 6651. 41 eine ensayo” Ta Ae Kevin MacDonald & Mork Caner 007 1- documentary. Londres Fiber Sat scausins (orgs.). Imagining reality. ® Michael Renoy, ‘ Press,2004, A¢! Renov. The subject of documentary. Minneapolis: University of Minnesot 5 im- the sub— Fields of The Faber book of Um conceito fagidio. Notas sobre o filme-ensaio 49 que serio recompilados depois em uma edi¢do recente de seus escritos, The subject of documentary, e alguns textos sobre video na antologia Resolutions,"° de 1996. Depois as atengGes se vol- tam para 0 contexto alenrio com a apari¢io em 1997 da anto- logia de Birgit Kimper ¢e Thomas Tode"” sobre Chris Marker film-essayist;em 1998, um estudo de Tilman Baumgirtel'* so- bre Farocki; e em 2001 Christina Scherer!” sobre a vertente ensaistica na obra de Ivens, Marker, Godard e Jarman. Ha que se esperar até 2004 para receber uma colabora- gio francesa sobre L’essai et le cinéma,” se bem que na vasta literatura desta lingua nao faltam textos sobre Marker e Godard, sobretudo, como dissemos, a partir do momento em que o Ultimo completa Histoire(s) du cinéma, obra 4 qual melhor se aplica 0 conceito de ensaismo. Em italiano hé a tentativa de Adriano Apra*! e, em espanhol, cabe mencionar as colabora- ¢6es de Josep M. Catala e alguma do autor destas linhas e ain- da um simpésio como 0 organizado por Doménec Font no El Escorial em 2003. Mas esta deve contar como a primeira pu- blicagao global sobre um conceito que, sem diividas, é tratado com certa naturalidade quando se escreve sobre determinados ensaistas consagrados do cinema. Por fim, cabe situar a mencio- nada antologia de Ursula Bienmann Stuff it: the video essay in the digital age, que se centra no trabalho dos videoartistas ¢ tira © monopélio do ensaismo dos film studies. Este corpus de publi- cagOes que vimos permite seguir a génese de um conceito “Michael Renov & Erika Suderburg (orgs.). Resolutions: contemporary video practices. Minneapolis: University of Minnesota Press, Minneapolis, 1996, Birgit Kmper & Thomas Tode (orgs.). Chris Marker filmessayist. Munique: Institut Frangais de Munich/Cicim, 1997. * Tilman Baumgirtel. Vom Guerillakino zum Essayfilm: Harun Farocki. Werk= monographie eines Antorenfilmers. Berlim: b-books, 1998. ” Christina Scherer. Ivens, Marker, Godard, Jarman. Erinnenung im Essayfilm, Muni~ que: Wilhelm Fink Ve ; Suzanne Liandrat-Guigues & Murielle Gagnebin (orgs.). L’essai et le cinéma, np Vallon, 2004. ; + Adriano Apri. “Note sul cinema saggistico”, Catilogo festival Filmmaker (Milio), 1996, Paris: C 50 Antonio Weinrichter Lapez impreciso que poucoa i ‘ i 5 sem dtvida, tanto pela abundancia de fj Mptsionado, , Byes ie , no¢ao tradicional do documentirio Como pelo . Trapassam 4 . ‘ Uge re] mente recente do video como Instrum, Be telativa, eNO de ex, Ee mundo. Ploragio dg POUCO vai se impondo e Imes qu Um conceito atrativo Filme-ensaio, Cine-ensaio, se nao cine de (arte ¢ mes que seriam o equivalente cinematogrifico multifacetada tradicao do ensaio literar; tipo de cinema é uma ideia intrigante e atrativa quando nos é apresentada. Em seguida se Pensa, embora num p} mento se desconhe¢a quantos exemplos hist6ricos concretos pPossam existir dessa pratica, que é um conceito natural, dente. Necessariamente é ficil pensar, logo em seguida, a res- peito desta pratica como uma voca¢ao adicional do cinema, que pode ter nascido nao somente para contar histérias, mas também para discutir ideias, como, alias, tem sido colocado em diferentes momentos por alguns profetas renegados, de Ros- selini a Godard. Pode-se pensar que efetivamente esta catego- ria potencial do cine-ensaio nao poderia nascer pronta, " como outras praticas cinematograficas, porque o meio ee sava alcangar certa maturidade. O cinema tinha de aprender primeiro a manusear as imagens, a crid-las,a coma ri deveria aprender a criar representagdes do mundo real *° nal go da pratica documental; vencer posteriormente sua ma oe resisténcia ao verbal e seu rechacgo a subordinagao oo as aum discurso nao primordialmente visual, questdes “tizaslo dos abusos da primeira fase do documentario, de sua 2 emo" desta voz de Deus cheia de uma abusiva autoridade ce cansi- légica; quem sabe, deveria produzir também um eae que ¢o da imagem, um esgotamento de sua velha fasci ) ensaio, Fi rimeiro mo- Um conceito fagidio. Notas sobre o filme-ensaio 51 possibilitara a ideia de voltar a usar, de voltar a olhar as imagens de outra maneira, uma ideia incorporada no material de arqui- vo encontrado; deveri +Por fim, dar-se a circunstancia de que os individuos procedentes de outras tradigdes se aproximaram da imagem factual: cineastas habituados 4 narracio de ficgdo mas também oriundos da vanguarda ¢, por tiltimo, artistas ha- bituados as praticas audiovisuais, nio necessariamente e nem primordialmente narrativas, pensadas desde ja para os museus. Com base na soma de todos esses fatores, pode-se pensar que se encontrava madura a no¢io ea praxis do ensaio cinema- tografico. Especula-se um ideal: 0 ensaio poderia ser uma cul- minacdo do cinema documentirio, cuja evolucao fora inspirada em uma variante interna, 0 ensaio poderia ser visto como 0 horizonte ao qual havia tendido o cine factual ao longo de seu diversificado desenvolvimento. Para alguns, tratava-se de algo mais, uma forma cujo alcance ultrapassaria a expansio do para- digma documental. Para Patrick Leboutte em Ces films qui nous regardent, o ensaio seria “le cinéma par excellence”, expressaio reveladora do tom messianico que as vezes é dificil evitar quan- do se explora uma nova forma. O filme-ensaio podia ser visto também como a expressio pratica daquela intrigante nogdo langada por Catherine Russell de “etnografia experimental”, uma ambiciosa denominagao para uma pritica cultural radical que, ao desafiar os compartimentos estanques nos quais tém se mantido separados 0 modernismo e a antropologia, retine 0 interesse pela inovacao estética e pela observacio social. E por fim, como escreve Nora Alter, o ensaio poderia ser nada menos que a usforma reprimida de outros géneros cinematogrificos um horizonte ao qual tende o cinema para recuperar e cumprir sua voca¢do primordial reprimida de gerar conhecimento. ® Nora Alter. Projecting history. German non fiction cinema 1967-2000, Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2002, p. 9. Na realidade Alter se refere 4 nogio sugerida por Reda Bensmaia em The Barthes effect: the essay as re tive un nD Antonio Weinrichter Lopez Um conceito problematico E dificil sintetiza ich hs tentativn we see operacional do ensaio a “ nhecemos, além de uma série d a a Fecorrentes que iremos comentar. Nora Alter. vote bus poss ten Seiam quai forem as caracteristicas secundirn, r Salo Como genero, a caracteristica basica permanece € que o ensaio ndo é um gén i luta para livrar-se de toda restrici . . Precisamente, pois cial”. Em um texto posteri ‘eb nas conceit on : i ior ela tentaré uma descrigio me- nos negativa: © ensaio resiste a todo isolamento, seu argumen- to nao é linear e é abertamente pessoal, todo o qual, acrescenta, faz com que seja particularmente adaptavel ao feminismo (2); e suas duas principais caracteristicas seriam a autorreflexividade € 0 “uso equivoco de imagens objetivas para estabelecer um discurso subjetivo”.** Cristina Scherer isola assim as caracte- risticas do ensaio: visdo subjetiva (relacionada com os sonhos, a imagina¢do e a meméria), questionamento da possibilidade de representar a realidade, afirmagoes indecisas, narrativa nio linear fragmentada e com niveis de sentidos miiltiplos, estilo hibrido e emprego de diferentes meios e formas, etc. Nicole Brenez, por sua vez, postula quatro dimensées do ensaio filmico:”* a primeira é uma dimensio argumentativa, para que se tenha em mente que basta que um. filme trabalhe em “argumentar uma tese polémica, seja qual for seu modo demonstrativo” (desde o filme de tese até o cinema de género “transgressor”); as outras trés ela descreve em fungio, respectivamente, de uma ‘The political im/perceptible in the essay film: Farocki’ images 2 Nora Alt / be f the world and the inscription of wat”, cit. P , . coat we Nora Alter. Projecting history, german non fiction cingria 1967-2000, cit. pp. 7-8. Fee Marker, Godard, Jarman, Exinnerang im Essay, Intro- % Christina Scherer. lvens, eevee In Bref dossier Les ssim. ; . Nicole Brenez. “Quatre dimensions de Tessii filmique matographiqites, 2005, pp. 22-4 essais cin Uni conceit figidio, Notas sobre o filme-ensaio 53 dinamica formal, uma fornia historica ¢ un horizonte estet= co, 0 que abre tanto o guarda-chuva que © cnsaio acaba esca= pando por entre as mos, pois se torna todo filme que quere~ MOS QUE Assi se]. O mesmo problema cncontramos em alguns textos per= tencentes A antologia L'essai et le cindita: Jean-Louis: Leutrat diz que,gragas.4 fungio“ meta” que tem o cnsaio, "todo remake é suscetivel de adquirir uma coloragio ensaistica”,’” ao esta- belecer uma relagdo entre as duas versdes em jogo... Sem dtvida, mas o problema que enfrentamos, de cunho histérico e textual, ¢ 0 da dispersio de uma forma, sendo assim, deveria- mos trabalhar no sentido contrario.A definigao mais restritiva, © ensaio como xemplo de documentirio pessoal, tampouco resulta satisfat6ria; ignora as contribuigdes do campo experi- stico, embora oferega a vantagem de superar a mental ¢ percepgio tradicional do cinema de nao ficgio como uma pra- tica desprovida de interesse estético. Em todo caso, cabe aqui considerar a origem do ensaio como uma expansio do cinema factual, para evitar definigdes tao abertas e arbitrarias,em alguns casos irrelevantes. Do mesmo modo que alguns estudiosos do ensaio literario viram nele uma forma apropriada e moderna de praticar a literatura filos6fica, ante 0 modelo do tratado,”* 0 en- saio filmico poderia encarnar as mesmas virtudes ante 0 mo- delo da reportagem e do documentirio hist6rico tradicional. Jacques Kermabon mencionou os “contornos impreci- sos ¢ em constante transformagio” de uma forma cujo inte- resse viria exatamente dessa instabilidade.”” Mas se 0 que atrai ? Jean-Louis Leutrat. “Un essai transformé”. In: Suzanne Liandrat & Murielle agnebin (orgs.). Liessai et le cinéma, cit. p. 239. © ensaio literirio clissico foi uma especulagio que “destacou um tipo de saber © uma forma de escrever plenamente distintos do humanismo ¢ da escolistica”. Cf. Francisco Sinchez Blanco (org,). El ensayo espaiol. Vol. 2. El siglo XVIIL. Barcelona: Critica, 1997, p. 54, ® Jacques Kermabon."Penser en cinéma”. In: Bref, dossier “Les essais cinémato- graphiques”, cit., p. 19. 54 Antonio Weinrichter Lopez No ensaio provém desse seu cariter transversal, »O Mesm, lo Cari lema, Uma Coisa @ ie Cele. Sua propria Condigs, 0, Outra é tentar cite. 0 0 adjetivo de 7 ssoal transgengricg : t eon ensaio, tragando uma genealogia e convencées préprias. Os que tentam correm 0 risco de cair em uma acep¢ao literal (literaria) do termo ensaio. No extremo oposto encontra-se a tentacio de abrir 0 conceito até incluir todo texto que se refira a outro ou asi mesmo de maneira aproximadamente (auto)reflexiva. Este n6 gordio parece ser a tinica conclusio que podemos estabe- Jecer por hora. Como dissemos, um elemento essencial para o aflora- ter também o converte em um prob] brar 0 espaco paradoxal que se abre,e é de e: goriza-lo. Uma coisa é aplicar a discri¢: isténcia, o ensaismo cinematografic saistico como signo de uma escrita pe outra é tratar de caracterizar o nome de este Ultimo, mento de uma concep¢ao genérica dessa forma tio intrigante que é 0 filme-ensaio é. . . mais precisamente, a sua dificil filiacio genérica. E um obstaculo inevitavel porque o ensaio é uma forma herética cuja esséncia reside precisamente nessa sta con- dicdo fronteiriga. Podemos pensar que essa dificuldade de en- caixe € 0 que o define como categoria a parte;mas estariamos caindo em uma defini¢do tao atrativa (no caso, tranggressor®) como imprecisa e negativa: ensaio é todo aquele texto que nao “cabe” em outro lugar. Este dilema é frequentement® mencionado nos estudos da forma. Nicole Brenez se pergun® se podem existir formas instituidas do ensaio e se isso con tuiria uma contradigio de termos.” Nesse caso, 0 enst0 i ° segue os passos da forma literdria da qual adota © nome ¢ . qual herda também o dificil encaixe genérico. Em uma “ de doutorado que busca propor umia teoria geral do aie Maria Elena Arenas se depara com o problema da specific sek etn 1 te is tem provoce” literaria de “uma das classes de textos que mais te™ P} 2 . . Ins Brg, cits P ” Nicole Brenez. “Quatre dimensions de lesai filmique”, | Um conceito fugidio. Notas sobre 0 filme-ensaio 55 do desorientac’o e incompreensio”*' e, em seguida, levanta a necessidade de ampliar 0 tradicional marco genérico tripartite da literatura (lirica, épica e dramitica) para incluir uma quarta categoria que englobe os textos de carater argumentativo. No caso do cinema, esta ultima categoria (Arenas menciona que no contexto anglo-saxdo muitas vezes se denomina como nao ficcdo, tendo a vantagem de aludir ao referente real dessa clas- se de textos), seria abarcada, e talvez de forma menos proble- mi&tica na literatura, pela categoria genérica de documentirio. Porém, como ja dissemos, o ensaio filmico se caracteriza pre- cisamente por ultrapassar a tradicao documental, de modo que este tampouco nos serve de auxilio. Longe da discussio marcada pela teoria dos géneros, o ensaio cinematografico tem outro tipo de problema que po- demos qualificar de recepgao. Um ensaio nao é um filme de fic- cdo e nao interessard a quem somente estuda este tipo de ci- nema, a nao ser que venha assinado por um verdadeiro cineasta, no caso, como diziamos que acontece com Godard, por quem se justifica o interesse: Orson Welles, Pier Paolo Pasolini, Alain Resnais, Nanni Moretti, Wim Wenders. . .Por outro lado, mui- tas vezes se 1¢ que 0 ensaio mescla ficc4o e documentario (é uma forma de dizer que nao é nem uma coisa nem outra); mas © certo € que os ensaios que conhecemos nao costumam ado- tar formas ficticias ou reconstrucdes dramiticas, se bem que ha excegdes como Level five (1996), de Marker. A nao ser que se considere que quando um cineasta se insere dentro de uma cena, como faz Welles em seus ensaisticos Verdades e mentiras (F for fake, 1973) e Filming Othello (1978), se esteja fazendo ficcdo. Parece que a coisa é um pouco mais complicada; além disso, significaria que Michael Moore, Alan Berliner, Nick Broomfield e demais figuras do documentirio performatico § Marfa Elena Arenas Cruz, Hacia una teorfa general del ensayo. Construcin del texto ensaylstico, Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 1997, p. 17. 56 Antonio Weinrichter Lopez também fazem ficgdo a0 aparecer em cena ou m, gonizar seus proprios filmes. . . Outra COisa sig ae lagem de Alain Resnais (Hiroshima men amor, 1959 os filme Makavejev (Ui caso de amor ou O drama de a en companhia telefbnica, 1967), que mesclam, assinalanigg da (como é feito na colagem pictérica), blocos document ficgdo. Produz-se, assim, um efeito em que um tipo dem, de rial projeta sua sombra sobre outro, modificando retifocs. mente a leitura que fazemos de cada um deles. Aqui se inne duz 0 ensaistico que, como veremos, depende deste tipo de leitura em segundo grau do material apresentado, Mas um ensaio nao é (somente) um documentirio, tam- pouco interessara muito aos seus estudiosos. As histérias con- vencionais do documentirio podem apresentar problemas para incluir figuras como Harun Farocki, Alan Berliner, Ralph Arlyck ou ainda Chris Marker (a menos que este assine uma mostra mais ou menos canGnica do cinéma vérité, como Le joli mai).Trata-se de um movimento de rejeig4o produzido dentro da propria Instituigéo documental, que expulsa o que é consi- derado desvio em rela¢do as normas impostas. E 0 que lamen- ta Stella Bruzzi quando escreve que a arvore geneal6gica do documentirio evoluiu a partir da “relativa marginalizacao a tradicao de um documentirio mais reflexivo” 22 Sendo assim, a reflexividade de obras prematuras como A propos de > * Terra sem pao (Tierra sin pan), Noite e neblina (Nuitet brouillar y . seria precisamente uma das fontes do ensaismo, levando i, conta que a reflexividade nao é o tinico desafio qe ee glo- ensaio para a Institui¢io documental. Apenas uma ne perine bal do cinema de nio ficg40, como foi apontado A a texto Russell em Experimental etnography (ou © ave son nos em Desvios de lo real) e na qual trabalham varios estuct dees: Routleds* 199, © Seella Bruzzi. New documentary: a critical introduction. Londres pp. 154-5. Um conceito fugidio. Notas sobre o filme-ensaio 57 tiltimos anos, permitiria encaixar 0 ensaio dentro da dita cate- goria global. A coisa nao acaba aqui. Um ensaio pode vir assinado por um cineasta experimental como Jonas Mekas, um dos criado- res do filme-didrio, a forma autobiografica do ensaio, nos di- versos “volumes” de seu Diaries, notes and sketches (1968-1985). Porém a endogamia dos estudos da vanguarda (forgada por seu proprio carater radical e oposicional 4s formas dominantes do cinema) parece dificultar que esse tipo de trabalho se po- sicione em relacio ao documentirio subjetivo, por exemplo. Finalmente, videoartistas e figuras procedentes do mundo ar- tistico tendem cada vez mais, em tempos recentes, a filmar obras de carater ensaistico: Sophie Calle (No sex last night, 1992), Anri Sala (Intervista, 1998), Matt McCormick (The subconscious art of graffiti removal, 2001), John Smith (0 triptico Hotel room, 2003) ou Hito Steyerl (November, 2004) sio apenas alguns exemplos. Mas aqui a institui¢do artistica revela seu carater externo em relagio as tradi¢des audiovisuais enumeradas ante- riormente de forma muito mais dramitica e evidente. Nova- mente teria de invocar uma nogio global de nio ficcdo, neste caso de carater j4 nao transversal sendo quase literalmente multidisciplinar. . .O problema ao qual fazemos alusio sobre a dificil adscrico genérica do filme-ensaio é fruto, na reali- dade, de uma dramitica dificuldade de adscri¢o institucional. Mas entio, onde haveria de se situar o ensaio? Nov. mente hé de se referir 4 sua condigao hibrida (em sua melhor virtude reside sua condenagio), entre deux, como diria Bellour. Cabe qualificar 0 ensaio como uma confluéncia entre o cine- ma documentirio e o experimental,em um primeiro momen- to. Posteriormente, sua pratica se renova através do emprego do video (que constitui hoje seu formato majoritério); com n suporte, mas uma tradi- da videoarte, assinalando ele tem importancia nao somente un cio diversa,a que se origina da chama Anconio Weintichtet Lopes Antonis ancia entre esta (adigio procedente va contluéneit ¢ cir I edente da j Jo cinema fetual (que enqu, un Howl 3 qrtivica cad NCO isso pag tigho . iio xan wide. 3 ccentemente capturido cnr video, & clay a ser crescentemne I WO). Assn, o & uma pniticn que atravessa uma série de Instituj Stituicg ens : . » pela i Be Be, “argetcrizadas historicamente pela ignorincia ou ingigas cara : cen. “1 protessadas mutuamente, tanto do ponto de Vista dos i wh Cine. as cartistas, quanto dos historiadores. As areas de trabal} aDalho ¢ ast Jo tio Compartimentadas de exibigio das obras ¢ €¢ reve. lam tio estanques entre si Como os estudos We se escreye sobre elas. Mas essa s cep¢do, institucionais) que explicam o dificil afloramento da categoria do filme-ensaio. Existe outra razio e, desta vez, nio é de carater pragmatico senio “ontoldgico”: 0 conceito de en- saio serviria para denominar um tipo de obra que utiliza re- cursos proprios para descrever uma forma intransferivel, oque nunca poderia servir de “modelo genérico”. Essa ideia é for- mulada por Alain Bergala: tuagio se refere ds condigdes externas (de re. O que é um filii-essai? E um filme que nio obedece a nenhuma das regras que geralmente regem o cinema como instituigdo: género, duragao standard, imperatve social. E um filme “livre” no sentido de que se deve it ventar, a cada vez, sua propria forma, e que somente Se voltara a ela. O documentirio geralmente Pp . tema, éum filme “sobre”. . .E este tema, normalmen Preexiste como tal no imaginario coletivo da sane ca. [. . .] O film-essai surge quando alguém ens com suas préprias forcas, sem as garantias de mo fem? prévio, um assunto que ele mesmo consti ® ° cada te" ao fazer o filme. Para o ensaista cinematogr sobre ma lhe exige reconstruir a realidade. ° aw ade mu a tela, ainda que se trate de segmentos de rea ossui unt | Um conceito fugidlio. Notas sobre o filme-ensaio 59 to concretos, somente existe pelo fato de ter sido pen- sado por alguém," Bergala chega a 1 sugerir que um verdadeiro ensaio inven- ta ndo somente sua forma e seu tema, mas sim, seu referente: diferentemente do documentério, que filma ¢ organiza o mun- do, 0 ensaio 0 constitui.Ou seja, nao pode servir, por definicio, aum modelo de nada. E a pritica do cine-ensaio se reduziriaa uma série de casos singulares, nio apenas porque a institui¢io se negue integra-los em sua tradic4o, mas porque eles sao ne- Cessariamente: a tinica generalizacio a ser dita sobre 0 filme- ~ensaio é que cada pelicula é. . .um caso particular, Vale entio a pena esforcar-se em categoriz4-lo num género voltado ao que é essencialmente excéntrico, fronteirico, agenérico e sin- gular? Parece que chegamos a uma espécie de circulo vicioso. E isso justifica que, como diziamos, se fale menos do filme- ~ensaio que dos ensaios de Godard, de Marker ou de Farocki. No caso do ensaio, a (impossivel) politica dos géneros se tra- duz em uma nova edi¢io da politica dos autores. Mas entio, como veremos, parece possivel isolar algumas estratégias en- saisticas (a voz,a montagem, a dialética dos materiais) e talvez um principio geral, derivado da utilizagio desses recursos: a segunda camada ou distancia que nos faz olhar e avaliar 0 ma- terial visual que nos é apresentado. Imagem, palavra, montagem Um obsticulo 4 apreciagao do cine-ensaio, supondo que nesta forma devemos “ouvir” sempre a voz do ensaista, é o cinema ser sempre considerado como um meio eminentemente visual; ce qu'un film-essai?” In: Sylvie Astric (org. Le film- % Alain Bergala. “Qu’e: essai: identification d’un genre, cit. p. 14. 60 Antonio Weinrichter Lopez portanto, se diz, cineasta deve “mostrar” en vez, de conta, ante os talking Pictures no cinema de ficgio (denunciado por Sarah Kozloff), se com. bina no caso do documentirio com a pesada heranga da voz expositiva que levou a proscrever 0 comentario, Por fim, j4 se sabe, uma imagem vale mais que mil palavras, Suponhamos Este velho preconceito ante a palavrs que fosse 6 contririo, Ou melhor, suponhamos que essa po- téncia da imagem fosse um problema. E que fosse necessirio rebaixd-la para poder util -la, analis4-la ou converté-la emum instrumento de andlise. Para evitar esse efcito-Medusa, sob o qual a imagem nos assombra, como diz Jan Verwoert,* deve- ~se estabelecer uma certa distancia em relacao a cla. $6 entio poderemos pensar a imagem, pensar com a imagem, ou até mesmo construir uma imagem pensante: diferentes maneiras de resumir o Projeto ensaistico, A mancira de conver ter uma imagem em algo maneja- vel é utilizi-la como uma segunda camada. Existem varios modos de estabelecer essa mediagio, Sio precisamente os mo- dos que o cinema tem de se materializar como ensaio, de “pen- sar”, ese incorporam nas técnicas que utiliza para modificar 0 gem. Em ambos os caso: 8,0 principio em jogo é 0 da monta- sem. Montagem entre seth Palavra ¢ imagem (da palavra 4 ima- semia montagem “ ao olho). Uma mo uidade €spa¢otemporal ¢ cau- lade discursiva, E por ultimo, o que montagem entre os blocos ou fontes Tginais, entrevistas, Presenga fisica do * CE Jan Verwoe the ‘ettical ue of yin Video essay tt, “Double Viewing: the ignificance of the to media in video 8 Significance of the pictorial turn in the digital spe, silt Video are”. Ine (emticance of the de pregunigés O Cate idee se ericorera reped- {sicas 2 Mages. Omens ; . 62 Antonio Weinrichter Lopez uma voz em off literal Para ter voz, 9 significativo que se tenh Ine visual e nio verbal para e: dever-se-ia fal como di izem a : © costume de Utilizar . XPressi-lo):no ¢ lar de uma dimensio material, dos meios Pelos quais se Materializa ou uma argumentacio, de uma légica que infor Gao € a apresentagio do material, " 880 do dog etica ora 8istrar nahi de re stray 0 Petspectiy, 4 Organiza. / Mesmo assim nao estamos Convencidos: deve-se ¢ guir entre © efeito discursivo que indubitavelmente - produzido através de uma imagem (composi¢io Seance através da justaposicio de imagens, e 0 discurso propian 7 dito, entendido como efeito de uma “consciéncia” pensante stin- inscrita no texto, que é o que caracterizaria o ensaio. Ainds que isso faga com que sejamos acusados de menosprezar o dito efeito discursivo, reduzindo-o a uma voz poética para priv giar a voz ensaistica em prosa (mas em todo caso, acresce mos, totalmente desprovido de interesse linguistico ou «st: co). Nesse desejo de querer ouvir sempre uma voz que pens podemos ser acusados de ter sucumbido ao risco de sobre- por ao cinema o paradigma do ensaio literdrio. E, além nesta supremacia da cultura visual, como nos seven sistir na necessidade da palavra? Sem diivida, a historia 60 °° saio € uma voice story. O que caracterizaria a voz ensaistic: de ida e volta do documentirio em torne bal até encontrar um novo fon. Esse cam” Po crever a narracao a recupera-la em outros ter na anor? . vo, que desig a 7 ormativo, qu sujel- estabelecimento do paradigma pert nto quanto ae lo documentarista ta" jnceress4s 3S . . nos do primeiro que" desupe™ ‘0! ,cheia 1 ncarnada mostta co™ de Deus & © e frag” pleta, ince ° fisso. disso, a seria um cam do comentirio ¥°" ho que vai de pros elo assa pe? participacao aberta de to. Ea inscri¢io verbal abandona essa voz incorpérea, dese autoridade epistemoldgica da voz on umia perspectiva mais de tentativa, Inc’ Um conceito fingidio. Notas sobre 0 filme-ensaio 63 mentada, uma atitude muito parecida com a do ensaista. Para caracterizar essa nova modulagio da voz ensaistica nos parece Util evocar uma distingao feita por Ursula Le Guinn.** Por um lado a tingua patera: &a linguagem do poder social (e acadé- mico), 0 discurso histérico, puiblico, oficial; a linguagem ra- cional que busca ser objetiva,a voz que estabelece uma dico- tomia criando uma distancia entre 0 eu € 0 objeto, ou o Outro. Esta ndo éa lingua materna de ninguém;¢ um de seus dialetos 0 narrador do documentirio classico. Depois, ha a lingua ma- terna: a voz dos contos para dormir, trivial e sem pretensdes; usa uma linguagem comum, que nao separa, mas conecta, ofe- rece a experiéncia como tinica verdade, nio dita sendo oferece e est encarnada (em um corpo: vulnerivel). Finalmente ha- veria uma terceira lingua, intermediaria entre as outras duas, na qual se fundiriam o discurso publico ea experiéncia priva- da, capaz de argumentar sem autoritarismo, mas sem reduzir- -se A esfera doméstica. Esta voz “intima, mas clara” seria a pro- pria voz do ensaista. Centremo-nos agora na pujanga argumentativa da ima- gem somente. Como tem se perguntado Ni ficole Brenez, pode uma imagem ser um argumento?”” e pode uma imagem expli- car, criticar, argumentar, demonstrar, concluir e comentar?“ Consideremos as antigas sinfonias urbanas ou, avancemos até a imagem-tempo da qual fala Deleuze. . -E possivel pensar que 0s longos planos de D’Est (Chantal Akerman, 1993), por exem- plo, geram uma imagem mais complexa que uma mera Te~ presentagio do mundo concreto; mas no sei se respondem as perguntas de Brenez. Para encontrar essa possivel fung’o Le Guinn a partir de Susan Dermody em “The pressure e: the subjective voice in documenta 299-301. In: Bref, dossier Les ® Seguindo as ideias de of the unconscious upon the image » Nicole Brenez. “Quatre dimensions de l'essai filmique”. essais cinématographiques, 2005, p. 23. Nicole Brenez. “Létude visuell (Al Razutis, Ken Jacobs, Brian de Palma)”. compare. Influences et répétitions, Paris: Cinémathéque Francaise, ue jsances d'une forme cinématograph In; Jacques Aumont (org.). Pour ut ci 1996, p. 347. 64+ Antonio Weinrichter Lépez argumentativa da i é ue a ‘ada imagem é Preciso introd do visual prop: Opri vena : Proposta pela propria Brenez, em cee a &M seu text, - © de 199 6, para denomin, escolhe um bi Steaballc que se realiza quand 1 objeto filmico ¢ © estuda em - UM cineasy Profundid, lade, um estudo de imagem com 05 meios da prépria j para trabalhar coma imagem, diziamoe oo. imagem * Mas -la. A esse respeito nos parece mais s6b —. Ae se reais. a uma ideia de Roland Barthes contin line 3 de Brenez delo experimental” reivindicado pelo pen: lacs S/Z:0"no, estudo literario do romance de Balzac o mon ane as fico, que segundo 0 teérico “no é nem o weds donee nem 0 todo da anilise”.? wa A intuigio de Barthes é brilhant exemplo (de nossa escolha) da sequéncia inicial da entrega de prémios de uma obra tao pouco ensaistica a priori como A malvada (All about Eve, 1950), em que Mankiewicz detém a imagem a fim de inserir sobre ela um comentirio de imediato efeito discursivo (Berlanga empregara o mesmo recurso trés anos depois em Bienvenido Mr. Marshall), € necessario fear # imagem para poder usd-la, para olhd-la. Coma camera lent ou congelada, de fato, uma imagem come¢a a ser algo a mais (08 algo menos?) que uma imagem: nao olhamos para ela coms uma primeira camada, sendo enguanto imagem. Mas aber tampouco chegue a ser uma “analise da image™ ae nos condene a pensar que 0 cinema somente pode “é com estudo visual de suas proprias imagens. Bren oath ett otimismo que 0 estudo visual anula “a divisto ¢ 7 we tre arte e critica” (p. 348). Cabe entio pergunat 1, dese da possivel dimensio analitica,e em ulti ‘omo demonstra o 30 caso erst a some forme einem sine forme cae esd’ es Aumont OTs 41 Nicole Brenez. “L'étude visuelle. Puissane (AI Razutis, Ken Jacobs, Brian de Palma). t Influences et répétitions. Paris: Cinémarncy 0, Roland Barthes. S/Z. Paris: Le Seuil, 197 compa os, Um conceito fagidio. Notas sobre o filme-ensaio 65 forma, sobre sua capacidade de produzir sentido, para dizer algo a respeito ou a partir do material que manipula, e sobre se esse sentido sera equiparavel ao que se produz em outros formatos que geram conhecimento (Brenez chega a dizer que 0 mode- lo de estudo visual nio é a critica, o ensaio ou a literatura hi torica, mas a investigagao cientifi que se produz na poes 1),€ ndo ao sentido evocativo a ou na musica. A manipulagio do fluxo da imagem é um caso particular do principio da montagem, outro grande meio que tem o ci- nema para arrancar da imagem outro sentido além do seu con- tetido literal. O conceito de estudo visual seria inseparivel desse principio da montagem. Esta é a outra grande pergunta que deve ser feita: pode o ensaio ser uma histéria da moviola? E possivel um cine ensaistico sem voz? O proprio Marker se apresenta no comeco de Le fond de l’air est rouge:*Tendo abu- sado muitas vezes no passado do poder do comentario orien- tador, eu tentei, certa vez, devolver ao espectador, por meio da montagem, seit proprio comentirio, ou seja, seu proprio po- der”. E curioso que a montagem se associe a uma maior liber- dade ao espectador, dada a relutancia do documentirio (0 mo- delo de realismo baziniano) ante a manipulagio de nosso olhar por ela provocada. Mas para fazer ensaio, ja dissemos, ha que se manipular a imagem, traté-la como uma segunda camada; é preciso criar um espago, uma distancia para voltar a olha-la. Isso nia se pode conseguir com a mediacao da voz; mas essa dista também se estabelece de forma natural ao se trabalhar com imagens alheias. E do documentario de compilagio ao found footage ha uma ampla tradigdo de cinema de apropriagdo, no qual sempre se viu uma (pré)condigao ensaistica. / Pensamos entio na obra de cineastas como os america- nos Ken Jacobs e Craig Baldwin, o alemio Matthias Miiller, 0 huingaro Peter Forgics,a equipe de italianos Gianikian & Ricci Lucchi, a prolifica “escola austriaca” de Martin Arnold, Dietmar

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